Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
39/19.2JELSB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO
SENTENÇA
DESPACHO QUE PÕE FIM AO PROCESSO
DETENÇÃO LÍCITA
Data do Acordão: 10/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS 374.º, N.º 3, AL. C), E 186.º, N.º 2, DO CPP; ART. 109.º, N.ºS 1 E 2, DO CP; ART. 35.º, N.ºS 1 E 3, DO DL 15/93, DE 22-01
Sumário: I – Como modelo padrão, em conformidade com os preceitos dos arts. 186.º, n.º 2, e 374.º, n.º 3, al. c), do CPP, é na sentença que deve ser decidido o destino dos bens ainda apreendidos no âmbito de um processo penal.

II – Todavia, não tendo o processo atingido aquela fase, relevante, para o referido efeito, passa a ser a decisão que lhe põe fim – no caso dos autos, o despacho determinativo do seu arquivamento, em razão do cumprimento das injunções a que ficou subordinada a suspensão provisória do processo.

III – Transitado esse despacho sem que nele seja declarado o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos cuja detenção, por particulares, seja lícita, deve ser dado cumprimento ao disposto no art. 186.º, n.º 2, do CPP, não sendo legamente admissível a declaração de perda em despacho autónomo posterior.

Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO


Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo de Instrução Criminal de Viseu (J1), do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, e no processo em que é arguido 

AA, solteiro, estudante, natural de ..., ..., nascido a .../.../1999, filho de BB e de CC, residente na Rua ..., ..., ..., ...,

foi em 26/05/2022 proferido despacho que indeferiu o requerimento daquele arguido para restituição de determinados bens que no decurso do inquérito lhe haviam sido apreendidos, no mesmo despacho e pelo contrário sendo tais bens declarados perdidos a favor do Estado.

 2. É dessa decisão que o arguido recorre, pugnando pela revogação do despacho e determinação da restituição dos bens, das suas motivações de recurso extraindo as seguintes conclusões:

«I – O presente recurso vem interposto do douto despacho (…) que decidiu “- Indeferir o pedido de restituição de bens; - Declaram-se os objetos apreendidos perdidos a favor do Estado nos termos do artigo 35 DL 15/93”.

II – Por requerimento apresentado em juízo a 03/06/2019, o ora recorrente solicitou a devolução de diversos bens que haviam sido apreendidos ao mesmo, a saber: Computador portátil da marca ..., modelo ...; Carregador do computador portátil, marca ...; Recetor Bluetooth, marca ..., que se encontrava conectado numa porta USB do lado esquerdo do computador; Telemóvel Apple ... e respetiva capa de couro, também marca ..., onde se encontrava inserido.

III – Tal requerimento foi inicialmente alvo de um despacho que dizia expressamente que “logo que não se revelar necessária a manutenção da sua apreensão serão entregues ao arguido” – após se realizar a perícia.

IV – Tal despacho proferido já há muito que transitou em julgado! (pois, o mesmo foi notificado a 07/06/2019).

V – Ainda, a 07/04/2022, foi promovida a sua restituição por “não haver indícios que tais objetos tenham sido adquiridos de forma ilegal e não haver razões para serem declarados perdidos a favor do Estado ou retirados do comércio jurídico, sendo certo que tais objetos já foram devidamente examinados, não se perdendo a eventual prova que putativamente houvesse necessidade de produzir”.

VI – Note-se que os bens anteriormente referidos estavam na posse do arguido, e são da sua propriedade.

VII – A declaração de perda a favor do Estado depende da verificação de um dos seguintes requisitos: ou de que tais bens tenham servido à prática de uma infracção ou que os mesmos tenham sido produzidos e sejam o resultado dessa infracção.

VIII – Ora, tais requisitos não se verificam no caso sub judice!

IX – Porquanto, e contrariamente ao referido no douto despacho recorrido, nos presentes autos foi, sim, aplicada uma SPP (suspensão provisória do processo);

X – Não tendo resultado dos mesmos uma condenação propriamente dita.

XI – Sendo certo que o art. 32.º da Constituição da República Portuguesa (CR) inclui entre as garantias do processo criminal, no seu n.º 2, a de que “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (…)”.

XII – O princípio da presunção de inocência, ali consagrado, “integra uma norma directamente vinculante e constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (art. 18.º, nº 1 da CR)”.

XIII – Logo, apenas em sede de sentença é que tal juízo poderá ser efectuado, pois antes do arguido ser submetido a julgamento não se pode concluir se os bens apreendidos serviram ou resultaram da prática de um facto ilícito típico.

XIV – O certo é que, não é manifestamente o caso dos bens cuja restituição está em causa, já que o arguido não foi condenado por nenhum crime!

XV – Em suma, o tribunal a quo ignorou, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, tais princípios que derivam da lei fundamental.

Sem prescindir e por mera cautela, invoca-se

XVI – Das disposições conjugadas dos art. 186.º e 374.º, n.º 3, al. c), ambos do Código de processo penal (CPP), resulta claramente que só em sede de sentença é que o tribunal pode declarar perdidos a favor do Estado os bens apreendidos, sendo este o momento próprio para o efeito.

XVII – Diversa é a jurisprudência nesse sentido, a título exemplificativo, refira-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido a 12/04/2016, no processo n.º 1072/11.8GTABF-B.E1, por aplicação mutatis mutandis, resulta: “I – Após o trânsito em julgado do acórdão condenatório, no âmbito do qual o tribunal omitiu pronúncia sobre o destino dos objetos que se encontravam apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do art. 186.º do CPP, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses bens a favor do Estado”.

XVIII – Mais à frente tal Acórdão prescreve: “Há que distinguir: Se o bem ou objecto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no artº 374º, nº 3, al. c), se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no art. 186.º, n.º 2 do CPP, seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe. Se, porém, o objecto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstracto a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão. Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso (…). Porque assim, mutatis mutandis, forçoso é concluir in casu que o despacho judicial recorrido deve ser revogado e substituído por outro que cumpra o disposto no art. 186.º, n.º 2, do CPP, já que os bens apreendidos são de detenção lícita por particulares e não foram objecto de declaração de perdimento a favor do Estado, no ‘momento correcto’, no acórdão proferido em 12/07/2013, transitado em julgado – no mesmo sentido, v.g. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 30/06/2004, proferido no processo nº 0413638 e de 17/05/2006, proferido no processo nº 0610514 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/01/2009, proferido no processo nº 2200/08.2, de 28/09/2009, proferido no processo nº 2143/05.5 TBBCL, de 17/01/2011, proferido no processo nº 1168/03.0 PBGMR e de 21/10/2013, proferido no processo nº 316/09.0 JABRG-F.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt”.

XIX – Em suma, da análise da diversa jurisprudência advém que o momento próprio para declarar perdidos a favor do Estado bens apreendidos é a sentença.

XX – Em momento anterior à sentença, apenas pode ser proferido despacho a ordenar a restituição dos bens, se tal se compadecer com os pressupostos legais, mas nunca a ordenar a sua perda a favor do Estado, a menos que se trata de bem ilícito pela própria natureza.

XXI – E, de facto, esse despacho foi proferido, em data anterior a 07/06/2019 – vide notificação datada de 07/06/2019, com a referência 84400732.

XXII – A verdade é que, a declaração de perda a favor do Estado também não pode resultar de despacho posterior ao proferimento da sentença.

XXIII – Considerando que o arguido não foi condenado pelo crime de que vinha acusado;

XXIV – Considerando que os bens apreendidos não são bens ilícitos pela própria natureza;

XXV – Considerando que, os bens apreendidos destinam-se ou resultaram da actividade de estudante desenvolvida pelo arguido – sendo todos de proveniência lícita;

XXVI – Considerando que a decisão que pôs termo aos presentes autos não declarou perdidos a favor do Estado os bens em causa;

XXVII – Considerando que a decisão que pôs termo aos presentes autos foi proferida a 01.02.2021, tendo há muito transitado em julgado;

XXVIII – Considerando que em tal decisão não foi ordenada a perda a favor do Estado dos bens apreendidos,

XXIX – Considerando que a declaração da perda dos bens a favor do Estado foi feita em despacho posterior – o que é ilegal,

XXX – A apreensão efectuada ofende o direito de propriedade.

XXXI – Assim sendo, o douto despacho proferido é nulo por violar ou dar errada interpretação ao disposto no art. 32.º da CR, art. 109.º do Código Penal (CP), ao estatuído no art. 35.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, e ao prescrito nas disposições conjugadas dos art. 186.º e 374.º, n.º 3, al. c), ambos do CPP, sendo consequentemente nulo, nulidade essa que expressamente se invoca, para os devidos efeitos legais, até mesmo inconstitucional».

3. Admitido o recurso, respondeu-lhe o MP, pugnando por que lhe seja negado provimento, dessa resposta igualmente formulando conclusões que são as seguintes:

«I – A perda de objectos opera nos casos em que existe perigo de repetição de cometimento de factos ilícitos através do instrumento.

II – Não foi mal interpretado e aplicado o disposto no art. 109.º do CP.

III – Por outro lado, estamos perante uma situação do art. 35.º do Dl 15/93, de 22/01, na medida em que o arguido só cometeu os factos por ter na sua posse meios informáticos, sem os quais não era possível praticá-los.

IV – Apesar de não existir sentença condenatória pela prática do crime, nada impede que sejam declarados perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos.»       

4. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que, aderindo à resposta do MP em primeira instância, e desenvolvendo-a, igualmente pugna pelo não provimento do recurso, e, cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente [….].

5. Após exame preliminar a que se não patentearam dúvidas relevantes, sem outras vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, sendo as matérias neste caso relevantes, como dessas conclusões se extraem, exclusivamente de direito e em concreto as seguintes:

i. Determinar se, em tendo o inquérito culminado na suspensão provisória do processo, e assim não havendo sentença condenatória, os bens apreendidos podiam, ou não, como defende o recorrente, ter sido declarados perdidos a favor do Estado, e na afirmativa se podiam, ou não, como igualmente defende o recorrente, tê-lo sido em despacho autónomo, posterior à decisão que pôs termo ao inquérito, e em que moldes e com que condições.

ii. Concluindo pela admissibilidade dessa declaração de perda em despacho autónomo após a decisão de suspensão provisória do processo, determinar ainda assim se a mesma ficara prejudicada por despacho anterior (do MP) supostamente determinativo da restituição deles.

1.2. No mais, não tendo sido requerida e nem se mostrando pertinente renovação de provas, e não sendo a decisão recorrida uma tal que conhecesse a final do objecto do processo (nos termos do art. 97.º, n.º 1, a), do CPP), cabe julgamento do recurso em conferência (art. 419.º, n.º 3, als. b) e c), e 430.º, n.º 1, a contrario, do CPP).   

2. Os dados do processo e o despacho recorrido

2.1. Dados relevantes do processo [como se colhem do escrutínio dos autos]

a) Investigando-se no inquérito um crime de tráfico de estupefacientes, sucedeu que no decurso de busca levada a cabo em 21/03/2019 na residência do arguido, a este foram ali apreendidos, entre outros, os seguintes objectos:

- Computador portátil da marca ..., modelo ...;

- Carregador do computador portátil, da marca ...;

- Receptor bluetooth da marca ...; e

- Telefone móvel da marca ..., modelo ..., com capa de couro da mesma marca.

b) No ulterior decurso do inquérito e concretamente em 27/05/2019, o arguido solicitou ao MP a restituição desse objectos, sendo que em despacho de 06/06/2019 sobre esse requerimento incidente, a Sr.ª procuradora-ajunta proferiu o despacho que, depois notificado por ofício de 07/06/2019, tem os seguintes termos:

“Tomei conhecimento.

Informe o arguido AA que os objectos apreendidos estão a ser sujeitos a exames periciais cuja conclusão, segundo informação prestada pela STI da Polícia Judiciária - Directoria do Centro, não se vislumbra, no prazo de 30 dias.

Assim, indefere-se o requerido, com a informação que logo que não se revelar necessária a manutenção da sua apreensão serão entregues ao arguido.

Notifique.”

c) No culminar do inquérito, foi a 14/12/2020 proferido despacho de acusação, no qual se imputou ao arguido a comissão de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22/01, a final dessa peça fazendo a Sr.ª procuradora-adjunta constar promoção com o seguinte teor:

“Todos os objectos apreendidos nos autos são fruto da actividade do arguido, como instrumentos essenciais para a prossecução eficaz, contínua e consistente da actividade relacionada com o tráfico de estupefacientes.

Foi ainda apreendido o produto estupefaciente, que vem descrito no libelo acusatório, sendo que a sua manutenção afronta a ordem jurídica.

Pelos motivos expostos, promovo que, oportunamente, se declarem perdidos a favor do Estado tais objectos bem como as substâncias apreendidas – cfr. art. 109.º, n.º 1, do CP, e art. 35.º e 36.º do DL 15/93, de 22/01, estas para destruição em conformidade com o disposto no art. 62.º do DL 15/93, de 22/01”.

d) O arguido requereu abertura de instrução e, admitida esta, no culminar respectivo foi em 01/02/2020, como ele mesmo requerera, com a sua concordância e a do MP, determinada a suspensão provisória do processo, pelo período de um ano, e subordinada à injunção de em quatro prestações mensais, iguais e sucessivas entregar ao “Banco Alimentar Contra a Fome” a quantia de 1.000,00 €, nada então e ali sendo decidido sobre os objectos apreendidos. 

e) Decorrido aquele prazo e mostrando-se a injunção cumprida, o processo foi arquivado, por decisão de 10/02/2022, na qual igualmente nada foi decidido sobre o destino dos objectos apreendidos, notificada ao arguido e ao MP por ofícios de 11/02/2022, sem que depois lhe fosse oposto o que quer que fosse, e mais tarde, já a 07/04/2022, tendo o MP promovido (de novo pela pena da Sr.ª procuradora-adjunta e com referência ao requerimento de restituição dos bens formulado pelo arguido a 27/05/2019), nos seguintes termos:

“Nada opomos a que se ordene a restituição ao requerente dos equipamentos que constam do ponto 1.º do requerimento, visto não haver indícios que tais objectos tenham sido adquiridos de forma ilegal e não haver razões para serem declarados perdidos a favor do estado ou retirados do comércio jurídico, sendo certo que tais objectos já foram devidamente examinados, não se perdendo a eventual prova que putativamente houvesse necessidade de produzir”.

f) Foi em face dessa promoção que a Sr.ª juiz, ordenou a instrução do incidente em separado (neste apenso que agora aqui se tramita), e na sequente tramitação, depois de determinar a notificação da referida promoção ao arguido, que sobre ela se não pronunciou, veio ainda o MP, igualmente notificado, apresentar em 03/05/2022 um requerimento em que, desta feita pela pena do Sr. procurador da república, se manifesta nos termos seguintes:

“O magistrado do MP junto da Instância Central de Instrução Criminal vem, nos autos em epígrafe, expor e requerer o seguinte:

Aquando da prolação do despacho de acusação (…), a Exma. Colega titular do inquérito tomou posição sobre o destino dos objectos apreendidos ao arguido.

Nesse aludido despacho promoveu que os objectos fossem declarados perdidos a favor do Estado.

Não nos parece curial, agora, o MP apresentar posição diferente daquela expressa pela Colega, sendo certo que, ainda para reforçar, aquela é a posição mais consentânea com a situação de facto e de direito.

A nossa posição assumida no despacho de [07/04/2022] foi imponderada e errada, tendo em conta a natureza dos objectos, pelo que, sem dificuldade entendemos ser de não seguir pela Sr.ª juiz, o que se requer.

Pelo exposto, promovo que se indefira a entrega dos objectos reclamados ao arguido”.

g) Notificado dessa nova posição do MP, o arguido veio em 24/05/2022 pronunciar-se, mantendo a pretensão de restituição dos objectos, louvando-se das razões expressas pelo próprio MP na primeira posição tomada e depois revertida e concluindo não haver fundamento legal para a declaração de perda a favor do estado em segundo Lugar pelo MP promovida.

2.2. O despacho recorrido

Na sequência de quanto antecede, foi por fim a 26/05/2022 proferido o despacho recorrido, que aqui no essencial se transcreve:

«(…)

II – Fundamentação de facto

i. Contra o arguido foi deduzida a seguinte acusação:

1. Os serviços Alfandegários Belgas informaram a Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes (UNCTE) da Polícia Judiciária da existência de uma encomenda, expedida da Holanda, com o remetente “DD, Amsterdam- NetherLands”, contendo no seu interior, face às características apresentadas, produto estupefaciente, tendo como destinatário o arguido AA.

2. No âmbito de uma operação de entrega controlada, devidamente autorizada, levada a cabo pela Polícia Judiciária ... (SRITE), no dia 21.03.2019, pelas 14h55m, o arguido AA recebeu através do serviço CTT – Correios de Portugal, SA na sua habitação sita no Bairro ..., a encomenda que lhe estava endereçada e na qual constava o seu nome e o referido endereço postal.

3. Ato contínuo à receção da referida encomenda pelo arguido, os inspetores da PJ, que aguardavam no exterior, apreenderam a encomenda postal que o arguido acabara de receber, a qual continha uma embalagem prateada em vácuo com 50 comprimidos de “2C-B”, com o peso líquido de 6,824 gramas conforme Tabela II-A.

4. O arguido adquiriu o produto estupefaciente a indivíduo que não identificou e destinava-o à venda a terceiros mediante contrapartida económica de valor não concretamente apurado.

5. Sendo que, só por força da descrita intervenção policial, o arguido não concretizou a venda do referido produto.

6. No dia 21.03.2019, o arguido detinha na sua posse, no interior da residência;

a) Um envelope aberto, sem conteúdo, endereçado a “AA, Bairro ..., ... ...”, com o remetente “..., EE, 133-141-1094 Amsterdam- NetherLands”.

b) Um envelope aberto, sem conteúdo, que se apresenta com a identificação do endereçado rasurado, não visível, proveniente de “...11 FF, ... CA 95742, USA”, que segundo a etiqueta continha “52 Playing Cards”.

c) Uma embalagem com produto de cor rosa, em pó, anfetaminas, com o peso de 0,350 grs.;

d) Três microselos impregnados de LSD acondicionados em embalagem com fecho hermético;

e) Numa embalagem de fecho hermético e num frasco branco opaco, cannabis (folhas/sumidades), com o peso de 1,505 grs.;

f) Uma embalagem plástica transparente contendo dez pequenos sacos igualmente transparentes e com bandas brancas de fecho hermético, sem qualquer conteúdo, habitualmente utilizados para acondicionar produtos estupefacientes para venda a terceiros;

g) Um disco rígido da marca ..., com o S/N ...;

h) Um telemóvel da marca ..., com ido ..., ligado, bloqueado desconhecendo-se o PIN de Acesso e Código de desbloqueio;

i) Um computador portátil da marca ..., modelo ..., com o ..., com o respetivo carregador.

7. Desde data não concretamente apurada, mas situada pelo menos a partir do mês de janeiro de 2019, o arguido movido pela facilidade com que podia obter proveitos económicos, decidiu dedicar-se à compra e posterior distribuição/venda de produtos estupefacientes, nomeadamente “drogas sintéticas” através da internet.

8. O produto estupefaciente por si comprado através da Dark Web era posteriormente dividido pelo arguido, em doses individuais devidamente acondicionadas nos sacos de plásticos descritos supra e por este vendido a terceiros que o procurassem para esse efeito, mediante contrapartidas monetárias, que atingiam habitualmente o valor, por saco, entre os cinco e dez euros.

9. O arguido através da Dark Web realizou, pelo menos, três encomendas de produto estupefaciente em domínios não determinados, a fornecedores, nomeadamente sedeados na Holanda e nos EUA.

10. No DISCO1 em resultado da perícia informática, foram identificadas 1057 coincidências, com as palavras chave “2-CB”, 2C-B, 2CB, LSD, Synthetics, MDMA, Ecstasy, DMT, changa, ayahuasca, cetamine, cetamina, ketamine, ketamina, quetamina, Weed, hierba, haxixe e mushrooms”, no DISCO2, foram identificadas 1115 coincidências e no DISCO3 - 598 coincidências.

11. Os equipamentos informáticos apreendidos (disco rígido, computador, telemóvel) eram utilizados como meio de contacto entre o arguido e os fornecedores, sendo os demais artigos apreendidos utilizados habitualmente no acondicionamento e preparação para venda das doses do produto estupefaciente.

12. O arguido AA agiu voluntária, livre e conscientemente, pois bem conhecia a natureza dos produtos estupefacientes que comprava, vendia e tinha na sua posse e não ignorava que a respetiva compra, detenção e venda lhe estavam legalmente vedadas.

13. Quis o arguido, com a sua descrita actividade de tráfico, fazer distribuir substâncias estupefacientes por um número não concretamente apurado de consumidores e obter, por essa via, compensações monetárias.

14. O arguido é consumidor de produtos estupefacientes, nomeadamente LSD, desde os 17 anos de idade.

15. O arguido atuou da forma descrita motivado pelo lucro fácil que a sua descrita atividade proporcionava, bem sabendo que incorria em responsabilidade criminal.

Cometeu assim o arguido (…) como autor material e na forma consumada, um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º nº 1 alínea a) do D.L. 15/93, de 22/1 com referência às Tabelas II-A, I-C e II-B anexas”.

ii. Ao arguido foram apreendidos os bens que constam de fls. 2);

iii. O arguido requereu a instrução, pretendendo exclusivamente a suspensão provisória do processo;

iv. Ao arguido foi aplicada a suspensão provisória do processo;

v. O arguido cumpriu as injunções e foi ordenado o arquivamento dos autos.

Os factos em causa resultam da prova documental junta aos autos.

II – O direito

Pretende o requerente (…) a restituição dos objetos apreendidos.

O arguido foi acusado pela prática de um crime tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º do DL 15/93.

Só não foi sujeito a julgamento porque beneficiou da suspensão provisória do processo, o que implica um juízo da prática dos factos em causa nos autos.

Preceitua o artigo 178.º, n.º 1, do CPP, que:

São apreendidos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova”.

Estipulando o art. 109.º, n.º 1, do CP, por seu turno, que:

São declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.

São requisitos legais da declaração de perda:

- Que os objetos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico ou;

- que tenham sido o produto isto é, o efeito do facto ilícito típico;

- A perigosidade dos objetos.

Assim, para a declaração de um bem perdido a favor do Estado, impõe-se que se verifique a essencialidade da sua utilização e a relação da causalidade entre esse uso e a prática do ilícito, a que acresce a ponderação do princípio da proporcionalidade.

Mas, no que tange ao crime de tráfico de estupefacientes, estipula ainda o art. 35.º, n.º 1, do DL 15/93 que: “são declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir à prática de uma infração prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos”.

Também aqui, a declaração de perda de objetos a favor do Estado, exige a verificação do requisito “essencialidade”.

Assim, o bem tem de se apresentar como essencial para o desenvolvimento da atividade ilícita.

Na situação concreta foram apreendidos objetos como computadores e telemóveis que, sem dúvida, tiveram uma natureza essencial à prática dos factos em causa dos autos.

Na verdade, o arguido só conseguia praticar os factos ilícitos através do uso do equipamento informático, na medida em que as aquisições do estupefaciente eram feitas através da internet, mais concretamente da Dark Web, sendo, o arguido, aliás, estudante de engenharia informática.

Alias, o arguido aceitou os factos imputados, nomeadamente o facto 9 em que se refere que os equipamentos informáticos apreendidos eram utilizados como meio de contacto entre o fornecedor e o arguido.

Sem dúvida que estamos perante uma situação do art. 35.º do DL 15/93, na medida em que o arguido só cometeu os factos por ter na sua posse meios informáticos, sem os quais não era possível praticá-los.

Pelo exposto:

IV – Decide-se

- Indeferir o pedido de restituição de bens:

- Declaram-se os objetos apreendidos perdidos a favor do Estado nos termos do art. 35.º do DL 15/93. Custas pelo arguido/requerente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo.

Notifique.»

3. Enfim apreciando

3.1. Nos termos do art. 374.º, n.º 3, al. c), do CPP, é requisito da sentença o constar do correspondente dispositivo “a indicação do destino a dar a (…) coisas ou objectos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas”. Conjugando esta norma com a do art. 186.º, n.º 2, também do CPP, onde se dispõe que “logo que transitar em julgado a sentença, (…) as coisas ou os objectos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”, bem se percebe que por princípio seja na sentença (ou acórdão) que deve decidir-se o destino dos bens que até aí se mantenham apreendidos (isto é, aqueles em relação aos quais não tenha antes tido lugar ou a restituição, nos termos do art. 186.º, n.º 1, do CPP, ou a alienação ou destruição, nos termos do art. 185.º, n.º 1, do CPP). Isto nada porém directamente nos diz quanto às hipóteses em que o processo termina sem sentença ou acórdão, como é o caso dos autos, em que, tendo havido suspensão provisória do processo e, decorrido o pertinente prazo, o arguido não cometeu novos crimes e mostrou ter cumprido a injunção imposta, o processo foi simplesmente arquivado. O arguido procura extrair desse termo do processo sem uma decisão final que em substância conheça do mérito da causa (da sua culpa), a consequência de os bens não poderem ser declarados perdidos a favor do Estado senão no caso de serem em si mesmos de detenção ilícita, caso contrário impondo-se restituir-lhos, desde logo porque não chegou a ser condenado e nem no julgamento feito o juízo sobre os pressupostos da referida perda – de tal sorte que sobre violar os citados art. 374.º, n.º 3, al. c), e 186.º, n.º 2, do CPP, uma decisão como a recorrida, impondo-lhe a perda dos bens sem ter sido condenado, violaria também o art. 32.º, n.º 2, da CR, por brigar com a presunção de inocência de que beneficia.

3.2. Começando a abordagem a esse corpo argumentativo com a indagação sobre aqueles pressupostos da declaração de perda, temos que nos termos gerais do art. 109.º, n.º 1, do CP, “são declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática”. Porém, nos termos especiais do art. 35.º, n.º 1 e 2, do DL 15/93, de 22/01, “são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos” (n.º 1), e “as plantas, substâncias e preparações incluídas nas tabelas I a IV são sempre declaradas perdidas a favor do Estado” (n.º 2) – estas últimas, de acordo com o art. 62.º, do mesmo diploma, sempre em vista de ulterior destruição (sem prejuízo da preservação de amostra-cofre até à definitividade da decisão final, quando é igualmente destruída (n.º 6 desse art. 62.º). Como vemos, embora em boa medida sobrepostos, os pressupostos são menos rigorosos, isto é, consentem declaração de perda com foco mais amplo, quando se trate de processo por crime de tráfico de estupefacientes (incluindo o de menor gravidade – art. 25.º, al. a), daquele Dl 15/93, de 22/01), e, sendo precisamente esse o caso, de modo aliás absolutamente inequívoco e com efeito indisputado, são aqueles os que importa ter presentes.

3.3. Com isto, já bem vemos que no que aqui importa, e no plano substantivo, a declaração de perda a favor do Estado dos bens apreendidos ao recorrente (não curamos aqui das substâncias estupefacientes, que não são o que está em discussão), reclamaria simplesmente que: a) tivessem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um crime dos previstos naquela lei; ou b) por um tal crime tivessem sido produzidos. Trata-se de computador com equipamento periférico e de um aparelho de telefone que nada nos autos permite sequer cogitar terem sido produzidos pelo crime que ao recorrente foi imputado, i.e., mediante ele ou suas vantagens adquiridas, coisa de resto nem em momento algum sustentada pelo MP ou postulada pela Sr.ª juiz recorrida, o que de pleno afasta a verificação daquele segundo requisito. Diversamente, no que tange ao primeiro, a afirmação respetiva afigura-se à partida clara: sendo o crime imputado o de tráfico de menor gravidade, nos próprios termos da acusação era empregando aqueles aparelhos que o recorrente cuidava de adquirir os estupefacientes e estabelecer contactos com os terreiros a quem os revenderia – o que não consente conclusão outra senão a de que, mais do que estarem destinados à prática do facto ilícito típico, com efeito serviram para essa prática. Pode pois, e sem reservas, afirmar-se aquele primeiro requisito, ao que, como já de seguir veremos, nada obsta a circunstância de por força da suspensão provisória do processo e decurso do prazo respectivo sem cometimento de novos crimes e cumprimento da injunção, o mesmo ter sido arquivado sem que tivesse lugar julgamento e portanto não chegando a haver sentença ou acórdão.

3.4. Na verdade, se claramente e como dissemos a regra é a de a decisão que dá destino aos objectos então ainda apreendidos ter lugar na sentença ou acórdão, não podemos perder de vista que sendo esse o modo padrão do termos do processo em primeira instância, amiúde interferem as mais variadas razões substantivas e vicissitude processuais que levam a não ser assim. Ajuda à compreensão do relevo disto o ter-se em conta que, ao contrário do que o recorrente dá por adquirido, a declaração de perda não implica como necessário pressuposto uma condenação. Pelo contrário, nos termos gerais do art. 109.º, n.º 1 e 2, do CP, e nisso convergindo os especiais do art. 35.º, n.º 1 e 3, do DL 15/93, de 22/01, não é imperativo que se tenha chegado a perfectibilizar o crime, com a afirmação integral dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito e da culpa, bastando que se tratasse de bens empregues ou destinados a ser empregues como instrumentos “do facto ilícito típico” (na expressão do n.º 1 do art. 109.º do CP), ou “de uma infracção prevista no presente diploma” (na do art. 35.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/01). Mais ainda, os dois regimes, geral e especial, deixam absolutamente claro, de forma textualmente idêntica, que a perda “tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto” (art. 109.º, n.º 2, do CP, e 35.º, n.º 3, do DL 15/93, de 22/01), e isso é o que está em linha com a disposição do art. 268.º, n.º 1, al. e), que prevê a competência do juiz de instrução para declarar essa perda (que portanto tem cabimento) mesmo quando o MP arquive o inquérito! Se a tanto somarmos que à perda presidem exclusivamente necessidades de prevenção, manifestamente não tendo a natureza de uma pena (acessória que fosse) ou medida de segurança, e que o juízo que a decisão concita não reclama, estruturalmente, uma afirmação sobre a culpabilidade do arguido, mas tão só sobre a relação de certos bens com uma determinada actividade, ficamos em crer que tudo é o bastante para concluir que embora cabendo sentença (ou acórdão…), seja aí que deve ser declarada, a hipótese de não caber por si só não afasta, não pode afastar, a eventualidade respectiva.

3.5. Ora, se o entendimento correcto das disposições dos art. 186.º, n.º 2, e 374.º, n.º 3, al. c), do CPP, é o de que em correspondendo o desenvolvimento do processo aos modos padrão, terminando em sentença ou acórdão, seja aqui que se decida sobre o destino dos bens apreendidos, então e aprofundando a análise, nisso tendo sempre em mente a necessária congruência entre o direito adjectivo e o subjectivo, chegamos à conclusão que para os desvios a esse iter processual, isto é, para os casos em que o processo termina sem sentença ou acórdão, a decisão que põe termo ao processo é que é o lugar adequado. Por outras palavras, a regra verdadeiramente ínsita naqueles art. 186.º, n.º 2, e 374.º, n.º 3, al. c), do CPP, é a de que a decisão sobre o destino dos bens deve ser tomada na que em primeira instância põe termo ao processo. De resto, a sermos literalmente rígidos na interpretação que as normas concitam ao empregarem o termo “sentença”, em rigor arriscaríamos o absurdo de excluir os acórdãos (que todavia por extensão do art. 97.º, n.º 2, do CPP, àquelas processualmente se equiparam. De modo mais enxuto: terminando o processo sem ser por sentença (ou acórdão) o destino a dar aos bens ainda apreendidos deve constar da decisão que lhe põe termo. No caso, e para sermos rigorosos, não foi a decisão de suspensão provisória do processo (de 01/02/2022), mas sim a de arquivamento dele (em 10/02/2022) – até aqui, e caso durante o período da suspensão o recorrente tivesse cometido crime da mesma natureza pelo qual viesse a ser condenado, ou não cumprisse a injunção, teria o processo prosseguido (para julgamento), nos termos do art. 282.º, n.º 4, als. a) e b), do CPP, e seria na sentença ulteriormente a proferir que cumpriria determinar destino aos bens.

3.6. Quase escusado seria dizê-lo, nem uma declaração de perda dos bens a favor do Estado à margem de uma sentença (ou acórdão) importa por si só e necessariamente violação dos art. 186.º, n.º 2, e 374.º, n.º 3, al. c), do CPP, na medida em que casos há em que por definição cabe tomar essa decisão sem ter havido lugar a sentença (ou acórdão), nem em si mesmo isso implica que a interpretação daquelas normas que o consente brigue com a presunção de inocência e assim com o art. 32.º, n.º 2, da CR, justamente porque a dita declaração, como se disse, não pressupõe uma condenação do arguido e muito menos à margem dela. Isto, todavia, não resolve em definitivo as questões concitadas pelo recurso em apreço, porque se de acordo com o exposto julgamos ficar já claro que era na decisão de arquivamento do processo que a Sr.ª Juiz deveria ter decidido sobre os bens (em tese declarando a respectiva perda ou a sua restituição, mas em concreto tudo apontando para que coubesse declarar a perda e porque de modo notório estavam verificados os pressupostos do art. 35.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/01, como igualmente ficou visto já), o certo é que assim o não fez. A situação, bem se vê, é em tudo paralela à que se verifica quando em sentença (ou acórdão) é omitida decisão sobre o destino dos bens, e por isso não pode deixar de ser enfrentada com os mesmos critérios, sendo aqui que se impõe dar atenção à destrinça que o recorrente ensaia fazer entre bens/objectos cuja detenção em si mesmos é lícita e aqueles em que o não é – mas quanto àquela outra linha de argumentação que passa pelas posições que o MP foi assumindo e como as alterou, simplesmente nenhum valor atribuindo.

3.7. Na primeira dessas tomadas de posição do MP, a 06/06/2019, embora a formulação linguística se mostre algo equívoca, nem mesmo pode dele inferir-se com segurança mínima uma decisão (antecipada de resto…) de entrega dos bens, sendo que onde se diz “indefere-se o requerido”, que era a restituição, “com a informação de que logo que não se revelar necessária a manutenção da sua apreensão serão entregues ao arguido” (cfr. supra, II/2/2.1/b), não pode deixar de ler-se remessa da decisão (do MP) para momento ulterior, com, implícita que seja, mas clara, a condicionalidade do afirmado, de expresso e com valor decisório restando apenas o indeferimento – e tudo já mal falando de que nem em sentido próprio é correcto falar-se em caso julgado de uma decisão condicional do MP em inquérito, nem certamente esta vincularia ulteriormente o juiz de instrução. E é certo que após isso a postura do MP se mostrou a este respeito algo errática, salvo o devido respeito, tendo passado por promover a declaração de perda com a dedução da acusação (em 14/12/2020 – cfr. supra, II/2/2.1/c), depois e na sequência do arquivamento do processo por promover a restituição (a 07/04/2022 – cfr. supra, II/2/2.1/e), para finalmente retroceder nisso e em 03/05/2022 afinal promover de novo a declaração de perda (cfr. supra, II/2/2.1/f)! Certamente esses avanços e recuos não são o que se espera do MP, sempre salvaguardado o devido respeito, mas não esqueçamos que a posição que o juiz de instrução por fim teve de ponderar foi a por último e pela pena de superior hierárquico do MP este manifestou, e em todo o caso que se trata de promoções, a que uma vez mais o juiz de instrução não estava vinculado, nenhum efeito tendo sobre a decisão. De outro modo se perspectivariam as coisas, claro está, e até e aí sim em face do caso julgado formal, se aquela contraditoriedade de posições se surpreendesse em decisões do juiz, mas não é esse o caso e do que aqui se cura, o que o recurso versa, é a decisão do juiz, não as putativas decisões do MP (em inquérito) ou as promoções que fez (já em instrução). 

3.8. Voltemos pois ao que verdadeiramente importa: ter sido declarada a perda dos bens em decisão autónoma posterior à que deu termo ao processo e até ao respectivo trânsito (essa decisão, de 10/02/2022, foi notificada logo no seguinte dia 11/02/2022, e na sequência não foi contra ela oposto recurso ou reclamação – cfr. supra, II/2/2.1/e). A posição que nesta matéria seguimos com efeito e de encontro à argumentação do recorrente reclama destrinça entre bens/objectos de detenção lícita ou não, e ilustramo-la aqui com citação do Ac. do TRP de 26/05/2021 (proferido no processo 970/18.2JAPRT-C.P1, relatora Paula Natércia Rocha – disponível em www.dgsi.pt):

« (…)

I – Da análise do disposto no art. 374.º, n.º 3, al. c), em conjugação com o disposto no art. 186.º, n.º 2, ambos do CPP, resulta que o momento correto para dar destino aos objetos que até esse momento continuam apreendidos é a sentença (…)

V – Mas se nada foi declarado na sentença sobre o perdimento a favor do Estado de determinado bem apreendido nos autos teremos que distinguir duas situações para a resolução da questão. Pela clareza da sua explicação, passaremos a citar o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/4/2013, disponível em www.dgsi.pt:Se o bem ou objeto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no art.º 374.º, n.º 3, al. c), do CPP, se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no art.º 186.º, n.º 2 do CPP, seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe. Se, porém, o objeto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstrato a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão”.

 VI – Consoante a natureza do bem, assim merece e deve a questão ter um tratamento diferenciado. Não pode tratar-se do mesmo modo, juridicamente, nomeadamente no que respeita à restituição de bens apreendidos, bens que têm natureza diferente. Se são diferentes, devem diferentemente ser tratados.

VII – Sempre se consigna que se o Ministério Público entendesse que tais bens deveriam ser declarados perdidos a favor do Estado, deveria – no tempo certo – interpor recurso da sentença que tal não decidira. Como não o fez: sibi imputet!

VIII – Em jeito conclusivo: transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objetos apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no art.º 186º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objetos.

IX – Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso.

3.9. Acompanhamos a doutrina assim sustentada, que aliás e quanto julgamos é maioritária. Neste sentido, além da acima transcrita, e como citada pelo recorrente, igualmente concitamos a seguinte jurisprudência:

- Ac. do TRP de 05/11/2014 (proferido no processo 418/08.0PAMAI-O.P1 – relatora Lígia Figueiredo), de cujo sumário consta que “I - Os bens e objectos apreendidos em processo crime não sendo declarados perdidos a favor do Estado devem ser restituídos a quem de direito após o trânsito em julgado da sentença (…)”, no texto tendo-se consignado que “de resto, como supra deixamos exposto, chegados à sentença, das duas uma: ou os objectos são declarados perdidos ou não o foram e após o trânsito desta são restituídos a quem de direito nos termos do artº 186º nº2 do CPP”;

- Ac. do TRE de 12/04/2016 (proferido no processo 1072/11.8GTABF-B.E1 – relatora Maria Filomena Soares), de cujo sumário consta que “I - após o trânsito em julgado do acórdão condenatório, no âmbito do qual o tribunal omitiu pronúncia sobre o destino dos objetos que se encontravam apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do art. 186.º do CPP, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses bens a favor do Estado”, escrevendo-se no texto que “há que distinguir: se o bem ou objecto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no art. 374.º, n.º 3, al. c), se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no art. 186.º, n.º 2 do CPP seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe. Se, porém, o objecto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstracto a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão. Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso. (…) Posto que os objectos apreendidos sejam de detenção lícita por particulares (como sucede no caso em apreço), a omissão de pronúncia quanto ao destino a dar-lhes em sentença transitada em julgado determina, nos termos do art. 186.º, n.º 2, do CPP a sua restituição ‘a quem de direito’, isto é, aos seus proprietários. Se o MP entendesse que tais bens deveriam ser declarados perdidos a favor do Estado, deveria – no tempo certo – interpor recurso da sentença que tal não decidira. Em jeito conclusivo: transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no art. 186.º, n.º 2, do CPP, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objectos (…). Porque assim (…), forçoso é concluir in casu que o despacho judicial recorrido deve ser revogado e substituído por outro que cumpra o disposto no art. 186.º, n.º 2, do CPP, já que os bens apreendidos são de detenção lícita por particulares e não foram objecto de declaração de perdimento a favor do Estado, no ‘momento correcto’, no acórdão proferido em 12/07/2013, transitado em julgado – no mesmo sentido, v.g. Acs. do TRP de 30/06/2004, proferido no processo nº 0413638, e de 17/05/2006, proferido no processo nº 0610514, e Acs. do TRG de 12/01/2009, proferido no processo nº 2200/08.2, de 28/09/2009, proferido no processo nº 2143/05.5TBBCL, de 17/01/2011, proferido no processo nº 1168/03.0 PBGMR, e de 21/10/2013, proferido no processo nº 316/09.0 JABRG-F.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt”;

- Ac. do TRL de 22/05/2018 (proferido no processo 174/11.5GDGDM-I.L1-5 – relator Simões de Carvalho), de cujo sumário consta que “Após a prolação de uma sentença e, tratando-se de bens ou objectos apreendidos que tenham natureza e características lícitas, os mesmos devem ser restituídos às pessoas que tiverem direito a eles, não podendo ser declarados perdidos a favor do Estado, em despacho proferido após a sentença”.

3.10. O aqui relator, também nessa qualidade subscreveu decisão nesse sentido, no Ac. do TRP de 02/02/2022 (proferido no processo 559/19.9JAAVR.P1, e este, ao contrário dos demais citados, todos disponíveis em www.dgsi.pt, por seu lado inédito), e voltando à afirmação de que a referida doutrina é de acompanhar sem reservas, não temos mais do que onde em toda esta jurisprudência se lê “sentença”, de acordo com as incidências dos concretos casos e como é a literal expressão legal, ler antes “decisão que põe termo ao processo”, para respeitar a já referida homologia das situações (e disso exceptuando os casos em que o final do processo resulta de decisão do MP, e não judicial – art. 268.º, n.º 1, al. e), do CPP), com isso chegando à conclusão de que se a decisão judicial de arquivamento (de 10/02/2022) omitiu a declaração de perda dos bens, e se estes são em si mesmos de detenção lícita (como manifestamente são: computador, seus periféricos e um telefone móvel), então após o trânsito dela, que é igualmente indiscutível, não poderia o tribunal recorrido ter declarado essa perda em despacho autónomo, como em 26/05/2022 veio a fazer. O que cumpria, o que não podia deixar de ter sido feito, porque a decisão final não determinara a perda de tais objectos e em face da licitude da respectiva detenção, era determinar a correspondente restituição, à luz do art. 186.º, n.º 2, do CPP, que em última análise textualmente o comanda: “logo que transitar em julgado a sentença (…) as coisas ou os objectos são restituídos (…), salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”. Sem ironia, registamos que, independentemente das razões, correcta foi a promoção do MP de 07/04/2022 (cfr. supra, II/2/2.1/e), e errada a de 03/05/2022 (cfr. supra, II/2/2.1/f), com que se procurou “emendá-la” e que a decisão recorrida indevidamente acolheu. Em suma, o despacho recorrido incorreu em violação do art. 186.º, n.º 2, do CPP, e isso, nos termos que ficam miudamente esclarecidos, é razão bastante para ser dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida no que aos objectos em causa diz respeito.

III – Decisão

Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do arguido AA, e em consequência determinar que lhe sejam restituídos os bens em causa (referidos supra, em II/2/2.1/a).

Sem custas (art. 513.º, n.º 1, a contrario, do CPP).   


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Coimbra, 26 de Outubro de 2022

Assinado eletronicamente

Pedro Lima (relator)

Jorge Jacob (1.º adjunto)

Eduardo Martins (2.º adjunto)