Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
343/09.8T2ALD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: CONVENÇÃO DE CHEQUE
OPERAÇÃO BANCÁRIA
REVOGAÇÃO
ERRO
VONTADE
Data do Acordão: 04/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INST. CÍVEL DE ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 344º, 362º, 363º E 408º DO CÓDIGO COMERCIAL; 4º E 8º DO RGIC, APROVADO PELO D. L. Nº 298/92, DE 31/123; 3º E 32º DA LUCH.
Sumário: I – A abertura de conta e o depósito bancário são operações, rectior, contratos bancários, reservadas a banqueiros (artºs 362º do Código Comercial e 4º e 8º, nºs 1 e 2 do RGIC, aprovado pelo DL nº 298/92, de 31 de Dezembro).

II - As operações bancárias são reguladas pelas disposições especiais respectivas aos contratos que representarem ou que afinal se resolverem (artº 363º do Código Comercial).

III - A abertura de conta é um contrato celebrado entre um banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos e diversas práticas bancárias. Trata-se de um contrato bancário nuclear ou central, que, embora sem regime legal explícito, constitui a moldura dos diversos actos bancários subsequentes.

IV - O contrato de abertura de conta conclui-se pelo preenchimento de uma ficha, pela aposição da assinatura em local bem demarcado e tem por conteúdo necessário uma conta-corrente bancária, como operação associada o depósito bancário e como elemento eventual, entre outros, o negócio de concessão de crédito por descoberto em conta.

V - A conta-corrente bancária é uma conta-corrente comum mas celebrada entre o banqueiro e o cliente que se inclui no negócio jurídico mais vasto representado pela conta bancária: através dela fica assente o modo pelo qual a conta é movimentada em termos de débito e de crédito e tem por elemento nuclear o saldo, verdadeiramente autónomo em relação aos créditos que o antecedem (artº 344º do Código Comercial).

V - O depósito bancário, em sentido estrito ou próprio, ou depósito de dinheiro ou disponibilidades monetárias, é o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária a um banco, que dela passa a dispor livremente e se obriga a restituí-la, a solicitação do depositante, nas condições convencionadas (artºs 408º do Código Comercial e 1º do DL nº 430/91, de 2 de Novembro).

VI - A natureza jurídica precisa do depósito bancário é muito discutida. Alguma doutrina, e sobretudo a jurisprudência, considera-o um depósito irregular; outra sustenta que tem a natureza de mútuo; finalmente há quem o encare como figura unitária, típica, autónoma, próxima do depósito irregular.

VII - Um outro negócio subsequente à abertura de conta é a convenção de cheque, que tanto pode ser expressa como meramente tácita. Em regra, a convenção de cheque surge associada a um contrato de abertura de conta. Trata-se, porém, de uma convenção autónoma e não um simples acto integrado no negócio mais vasto da abertura de conta.

VIII - A convenção de cheque é, assim, o contrato, expresso ou tácito, pelo qual o depositante fica com o direito de dispor de uma provisão, por meio de cheque, obrigando-se o banco a pagar o cheque até ao limite da quantia disponível, quer esta resulte de um depósito antecipadamente efectuado ou de crédito concedido pelo banqueiro (artº 3º da LUCh). Esta convenção tem por fim a atribuição ao cliente do direito de dispor de fundos por meio de um ou mais cheques: o direito de dispor de fundos por cheque equivale ao direito de sacar cheques.

IX - Em face do regime da convenção de cheque, é controversa a sua natureza. No entanto, a jurisprudência e uma doutrina maioritária são hesitam em assimilá-la a um contrato de mandato, não representativo, ordenado, justamente, para a realização dos actos jurídicos inerentes ao pagamento do cheque.

X - Esta qualificação é extraordinariamente importante, dado que, em tudo o não for objecto de regulação específica, são aplicáveis as regras do mandato - seja directamente seja por força da extensão de regime das regras desse tipo contratual a todas as modalidades atípicas de contrato de prestação de serviço (artº 1156º do Código Civil). XI - Realmente, o sacado mais não é do que um simples mandatário ou executante de uma ordem do sacador; a relação intercedente entre o banco e o sacador não tem por fonte o acto de emissão do título – mas um negócio jurídico que lhe é interior: a convenção ou contrato de cheque.

XII - O cheque pode extinguir-se por uma multiplicidade de causas, como, por exemplo, o pagamento, a prescrição e – embora impropriamente – a rescisão e, caso que interessa especialmente à economia do recurso – a revogação.

XIII - O direito de sacar cheques envolve o direito de os revogar. A revogação é, assim, a faculdade que assiste ao sacador de, mediante uma contra-ordem ao sacado, privar o cheque dos seus efeitos próprios, já depois de ter sido posto em circulação (artº 32º da LUCh).

XIV - A Lei Uniforme relativa ao Cheque é terminante na declaração de que a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação (artº 32º, corpo).

XV - Note-se que não se proíbe a revogação do cheque, desde a sua emissão, antes se declara simplesmente que essa declaração produz os seus efeitos só depois do termo do prazo de apresentação.

XVI - Realmente, o exame dos trabalhos preparatórios da Lei Uniforme, inculcam que a revogação que regula abstrai – salvo o disposto no seu artº 21º – das situações em que haja justa causa de não pagamento do cheque, designadamente nos casos de furto, de extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer outra situação de falta ou de vício na formação da vontade, cujo regime foi deixado ao critério de cada uma das Partes Contratantes (artº 16º do Anexo II da Convenção de Genebra de 19 de Março de 1931, de que a Lei Uniforme Relativa ao Cheque constitui o Anexo I).

XVII - Na interpretação da 1ª parte do artº 32º da LUCh há, portanto, que fazer um distinguo entre a revogação proprio sensu do cheque ou simples proibição do seu pagamento – e a ordem de não pagamento motivada por uma qualquer irregularidade na posse do portador ou assente ou determinada por um qualquer facto que se resolva numa falta ou num vício na formação da vontade.

XVIII - A proposição uniformizadora do Acórdão nº 4/2008 tem por objecto apenas os casos de revogação, proprio sensu, do cheque, e bem assim aqueles em que é alegada um justa causa assente na invocação abstracta e infundamentada da categoria jurídica falta ou vício na formação da vontade, que, na lógica do Acórdão nº 4/2008, se reconduzem também a uma revogação ad nutum do cheque. Em qualquer caso, a recusa de pagamento do cheque pelo sacado constitui um acto ilícito susceptível de o constituir numa responsabilidade delitual face ao portador do cheque.

XIX - Portanto, fora do espectro uniformizador do Acórdão nº 4/2008, ficou a ordem de não pagamento do cheque com fundamento, sério e concretizado, no furto, extravio ou falsificação do cheque e na falta ou vício na formação da vontade, i.e., em que se verifica, em concreto, uma justa causa de oposição ao pagamento, pelo sacador, do cheque, pelo sacado, ao portador.

XX - Porém, o sacado só deve aceitar a ordem de não pagamento, fundada no falta ou num vício na formação da vontade, quando, em face da declaração do sacador, existiam indícios sérios, fundados, da verificação do vício alegado.

XXI - É este, de resto, o critério de que a lei se socorre para justificar o não pagamento do cheque pelo sacado – nas hipóteses em que esse pagamento é obrigatório – nos casos de falsificação, furto, abuso de confiança ou apropriação ilícita do cheque: qualquer destes factos só legitima a recusa do pagamento pelo sacado se houver sérios indícios da sua verificação (artº 8º, nº 3 do DL nº 454/91, de 28 de Dezembro).

XXII - O erro-vício na formação da vontade consiste na ignorância ou falsa representação da realidade, portanto, de factos ou circunstâncias já ocorridas, no passado ou no presente.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

B… Lda., propôs, no Juízo de Pequena e Média Instância Cível de Albergaria-a-Velha, da Comarca do Baixo Vouga, contra P… e Banco …, SA, acção declarativa de condenação, com processo comum, sumário pelo valor, pedindo a declaração de nulidade do contrato de empreitada que celebrou com o primeiro demandado e a condenação deste no pagamento da quantia de € 21.780,00, acrescida de juros, à taxa legal desde a citação, até pagamento, e a condenação solidária, do segundo demandado, a pagar-lhe igual quantia, também acrescida de juros, desde a citação até pagamento.

Fundamentou estas pretensões no facto de, no dia 21 de Março de 2009, ter celebrado com o réu P… um contrato de empreitada, pelo preço de € 17.280,00, tendo-lhe entregue, para o pagamento, nove cheques pré-datados, do Banco …, de € 1.920,00 cada, o primeiro para o dia 31 de Março e os restantes para o final de cada mês seguinte, de aquele réu, no dia 30 de Abril, ter abandonado a obra, de ter negociado na errada convicção de que o contrato de empreitada seria concluído no dia 30 de Abril de 2009, pelo que, se estivesse esclarecida de que a empreitada não estaria concluído nessa data, não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou, que, por isso, deve ser considerado nulo, e de aqueles cheques continuarem a ser depositados no Banco … que, apesar de interpelado, não procedeu à sua revogação.

O réu P…, citado editalmente, não contestou. O Ministério Público, citado em representação dele, também não contestou.

O réu Banco …, SA, defendeu-se alegando que, por carta de 23 de Outubro de 2009, a Mandatária do autor, solicitou a revogação dos cheques datados de 31 de Agosto, 30 de Setembro, 31 de Outubro e 30 de Novembro de 2009, por justa causa, com fundamento no vício da formação da vontade de emitir os cheques, tendo respondido que não considerava haver motivo que fundamentasse a oposição ao pagamento dos cheques.

                 A sentença final da causa - depois de observar que o pagamento dos cheques não pode, com fundamento em vício na formação do contrato, ser recusado durante o prazo de apresentação a pagamento, pelo que a actuação do Banco … ao pagar os cheques se mostra conforme ao direito, que a factualidade dos autos consubstancia uma situação de incumprimento por parte do réu P…, e que estamos não no domínio do erro, mas no domínio das regras do cumprimento contratual, e que é imputável aquele réu incumprimento definitivo, pelo que o credor pode resolver o negócio – condenou o réu P… a restituir à autora a quantia de € 17.280,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, e absolveu o réu Banco …, SA, do pedido.

                E esta sentença que a autora impugna por via do recurso ordinário de apelação, no qual pede a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a acção procedente.

                A recorrente condensou a sua alegação nestas conclusões:

...

                Na resposta, o réu Banco …, SA, depois de obtemperar que apesar da ordem de revogação respeitar apenas a quatro cheques, o pedido formulado contra o Banco abrange a sua totalidade – concluiu pela improcedência do recurso.

2. Factos provados.

O Tribunal de que provém o recurso julgou provados os factos seguintes:

...

                3. Fundamentos.

                3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

                Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Maneira que, tendo em conta a vinculação temática deste Tribunal ao conteúdo das conclusões da alegação do recorrente e do recorrido e da decisão sob recurso, a questão concreta controversa que importa resolver é a de saber se a sentença impugnada deve ser revogada substituída por acórdão que condene o apelado no pedido.

A resolução deste problema vincula ao exame do contrato ou da convenção de cheque, das condições em que é lícito ao sacador do cheque revogar o cheque ou ordenar ao sacado o seu não pagamento e, enfim, do regime do erro-vício na formação do negócio jurídico.

                3.2. A convenção de cheque, a revogação do cheque e a ordem de não pagamento do cheque.

                A abertura de conta e o depósito bancário são operações, rectior, contratos bancários, reservadas a banqueiros (artºs 362 do Código Comercial e 4 e 8 nºs 1 e 2 do RGIC, aprovado pelo DL nº 298/92, de 31 de Dezembro).

                As operações bancárias são reguladas pelas disposições especiais respectivas aos contratos que representarem ou que afinal se resolverem (artº 363 do Código Comercial).

                As noções de abertura de conta e de depósito bancário devem ser cuidadosamente recortadas e separadas.

                A abertura de conta é, muitas vezes, confundida quer com a conta-corrente quer com o depósito bancário. Trata-se, porém, de realidades bem distintas.

                A abertura de conta é um contrato celebrado entre um banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos e diversas práticas bancárias[1]. Trata-se de um contrato bancário nuclear ou central, que, embora sem regime legal explícito, constitui a moldura dos diversos actos bancários subsequentes[2].

                O contrato de abertura de conta conclui-se pelo preenchimento de uma ficha, pela aposição da assinatura em local bem demarcado e tem por conteúdo necessário uma conta-corrente bancária, como operação associada o depósito bancário e, como elemento eventual, entre outros, o negócio de concessão de crédito por descoberto em conta.

                A conta-corrente bancária é uma conta-corrente comum mas celebrada entre o banqueiro e o cliente que se inclui no negócio jurídico mais vasto representado pela conta bancária: através dela fica assente o modo pelo qual a conta é movimentada em termos de débito e de crédito e tem por elemento nuclear o saldo, verdadeiramente autónomo em relação aos créditos que o antecedem (artº 344 do Código Comercial).

                Se é perfeitamente admissível a conclusão de um contrato de abertura de conta, com a inerente conta-corrente bancária, sem um depósito inicial, a verdade é que o depósito é uma operação que surge, normalmente, associada a uma abertura de conta: aquando da conclusão deste último contrato, surge para o banqueiro, em regra, a obrigação de receber depósitos bancários.

                O depósito bancário, em sentido estrito ou próprio, ou depósito de dinheiro ou disponibilidades monetárias, é o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária a um banco, que dela passa a dispor livremente e se obriga a restituí-la, a solicitação do depositante, nas condições convencionadas (artºs 408 do Código Comercial e 1 do DL nº 430/91, de 2 de Novembro)[3].

                O depósito bancário, proprio sensu, é portanto, um depósito em dinheiro constituído junto de um banqueiro, operação que surge sempre associada a uma abertura de conta. Tratando-se de depósitos à ordem, existe uma única convenção, anexa à abertura de conta e que vincula o banqueiro a receber, levando à conta, as diversas remessas feitas a título de dinheiro depositado.
                A natureza jurídica precisa do depósito bancário é muito discutida. Alguma doutrina, e sobretudo a jurisprudência[4], considera-o um depósito irregular; outra sustenta que tem a natureza de mútuo[5]; finalmente há quem o encare como figura unitária, típica, autónoma, próxima do depósito irregular[6].

                Um outro negócio subsequente à abertura de conta é a convenção de cheque, que tanto pode ser expressa como meramente tácita. Em regra, a convenção de cheque surge associada a um contrato de abertura de conta. Trata-se, porém, de uma convenção autónoma e não um simples acto integrado no negócio mais vasto da abertura de conta.

                De forma deliberadamente simplificadora, bem pode dizer-se que o cheque é um documento, em regra normalizado, do qual consta uma ordem de pagamento, dada por um cliente ao seu banco, para que proceda a um determinado pagamento a um terceiro, ao portador ou até ao dador dessa ordem (artº 1, 2 e 12 nº 2 da LUCh)[7].

                O cheque enuncia uma ordem de pagamento que se dirige a um banqueiro, no estabelecimento do qual devem existir fundos à disposição do primeiro, em regra uma provisão constituída pelo emitente do título (artº 3 da LUCh). É assim cheque o meio pelo qual se mobilizam fundos, quer em benefício do emitente – cheque a favor do depositante – quer a favor de um terceiro. O cheque pode apresentar-se como título de crédito à ordem quando indica o nome do beneficiário da ordem de pagamento; é então correntemente denominado cheque nominativo, designação, contudo, imprópria, dado que a sua forma de transmissão é o simples endosso (artº 12, 1º § da LUCh). Quando seja ao portador, o cheque transmite-se por simples traditio (artº 5 da LUCh).

                O cheque pressupõe, portanto, uma convenção de cheque e uma relação de provisão, de harmonia com a qual o banqueiro deve ter fundos à disposição do emitente do título. Não é necessário que o sacador tenha previamente depositado esses fundos no banco; basta, por exemplo, que este tenha concedido àquele um limite de crédito.

                A convenção de cheque é, assim, o contrato, expresso ou tácito, pelo qual o depositante fica com o direito de dispor de uma provisão, por meio de cheque, obrigando-se o banco a pagar o cheque até ao limite da quantia disponível, quer esta resulte de um depósito antecipadamente efectuado ou de crédito concedido pelo banqueiro (artº 3 da LUCh). Esta convenção tem por fim a atribuição ao cliente do direito de dispor de fundos por meio de um ou mais cheques: o direito de dispor de fundos por cheque equivale ao direito de sacar cheques.

                A convenção de cheque adstringe as partes – necessariamente o banqueiro e o seu cliente – a uma pluralidade de deveres, alguns ainda que puramente acessórios. O dever principal que para o banco decorre da convenção de cheque é, naturalmente, o de pagar o cheque que seja sacado sobre a conta que detenha no seu estabelecimento, à custa de fundos que nessa conta se encontrem disponíveis.

                O cheque é, fundamentalmente, um meio ou instrumento de pagamento: a sua função económica primordial consiste em ser um meio de execução e extinção de dívidas pecuniárias, representando, desse modo, um sucedâneo da moeda legal – notas e moeda metálica.

                A emissão de um cheque coenvolve o estabelecimento de relações jurídicas entre os vários intervenientes. Uma relação de cobertura – que vincula o sacador e o sacado, que se consubstancia na constituição de uma provisão de fundos e num pacto de disponibilidade por meio de cheques; uma relação de valuta, referida à ligação ente o sacador e o tomador, que explica a emissão do cheque como meio de pagamento de determinada divida pecuniária do primeiro ao último - embora, excepto em caso de convenção expressa das partes, a emissão dos títulos de crédito se entenda feita pro solvendo, com a consequência de que o saque do cheque não operar a extinção da relação fundamental do sacador-devedor (artº 840 do Código Civil).

O cheque, porém, não cria qualquer relação cambiária entre o sacado e o portador, como é patente em face do facto de o sacado não poder ser accionado em via de regresso, nem aceitar ou avalizar o cheque (artºs 4, 25 e 40 da LUCh). Daqui decorre que o banco sacado, embora esteja obrigado a satisfazer a ordem emitida pelo sacador, não tem qualquer obrigação cambiária perante o portador, seja directa ou simplesmente de garantia – sem prejuízo, no entanto, da eventual responsabilidade civil extracontratual, que pode decorrer, quer da violação dos seus deveres gerais de conduta, quer da ofensa de deveres especiais de pagamento (artºs 73 e ss do RGIC, e v.g., 8 e 9 do DL nº 454/91, de 28 de Dezembro).

O cheque é um título pagável à vista, pelo que o seu vencimento ocorre na data da sua apresentação, ainda quando a data da emissão seja posterior (artº 28 da LUCh). O cheque deve ser apresentado a pagamento pelo portador no prazo de oito dias a contar da data da sua emissão – no caso de ter sido passado no país onde é pagável – e deve ser pago pelo banco sacado, mediante qualquer modalidade admissível – entrega em numerário, crédito em conta, transferência bancária, compensação, etc. -excepto no caso de ultrapassagem do prazo de prazo de apresentação, hipótese em que o banco pode, embora não deva, pagar (artºs 29 e 32 nº 2 LUCh).

                Em face do regime da convenção de cheque, é controversa a sua natureza. No entanto, a jurisprudência e uma doutrina maioritária são hesitam em assimilá-la a um contrato de mandato, não representativo, ordenado, justamente, para a realização dos actos jurídicos inerentes ao pagamento do cheque[8]. Esta qualificação é extraordinariamente importante, dado que, em tudo o não for objecto de regulação específica, são aplicáveis as regras do mandato - seja directamente seja por força da extensão de regime das regras desse tipo contratual a todas as modalidades atípicas de contrato de prestação de serviço (artº 1156 do Código Civil). Realmente, o sacado mais não é do que um simples mandatário ou executante de uma ordem do sacador; a relação intercedente entre o banco e o sacador não tem por fonte o acto de emissão do título – mas um negócio jurídico que lhe é interior: a convenção ou contrato de cheque.

O cheque pode, evidentemente, extinguir-se por uma multiplicidade de causas, como, por exemplo, o pagamento, a prescrição e – embora impropriamente – a rescisão e, caso que interessa especialmente à economia do recurso – a revogação.

O direito de sacar cheques envolve o direito de os revogar. A revogação é, assim, a faculdade que assiste ao sacador de, mediante uma contra-ordem ao sacado, privar o cheque dos seus efeitos próprios, já depois de ter sido posto em circulação (artº 32 da LUCh).

                A Lei Uniforme relativa ao Cheque é terminante na declaração de que a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação (artº 32, corpo).

                Note-se que não se proíbe a revogação do cheque, desde a sua emissão, antes se declara simplesmente que essa declaração produz os seus efeitos só depois do termo do prazo de apresentação.

                Todavia, há que distinguir, mesmo em face da Lei Uniforme, entre a revogação do cheque – entendida como a faculdade de o sacador do cheque, alterar livremente, segundo o seu critério, a ordem de pagamento que emitiu – da oposição ao pagamento, fundada, por exemplo, em justa causa.

                Realmente, o exame dos trabalhos preparatórios da Lei Uniforme, inculcam que a revogação que regula abstrai – salvo o disposto no seu artº 21 – das situações em que haja justa causa de não pagamento do cheque, designadamente nos casos de furto, de extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer outra situação de falta ou de vício na formação da vontade, cujo regime foi deixado ao critério de cada uma das Partes Contratantes (artº 16 do Anexo II da Convenção de Genebra de 19 de Março de 1931, de que a Lei Uniforme Relativa ao Cheque constitui o Anexo I)[9].

                Na interpretação da 1ª parte do artº 32 da LUCh há, portanto, que fazer um distinguo entre a revogação proprio sensu do cheque ou simples proibição do seu pagamento – e a ordem de não pagamento motivada por uma qualquer irregularidade na posse do portador ou assente ou determinada por um qualquer facto que se resolva numa falta ou num vício na formação da vontade.

Na verdade, não deve considerar-se como revogação, em sentido próprio, do cheque, a declaração referida a uma relação jurídica cambiária inválida, designadamente por falta de consciência da declaração, coacção física ou moral ou erro na declaração (artºs 246 e 247 do Código Civil). Seria, efectivamente, de todo desrazoável, v.g., que um cheque furtado e depois falsificado pudesse ser pago dentro do prazo de apresentação, só porque o aparente sacador deu notícia do facto do desapossamento e da falsificação ao sacado. Neste caso, como, genericamente, em todos os casos de falta ou vício na formação da vontade, não se estará face a uma revogação proprio sensu e, portanto, no perímetro da previsão do artº 32 da LUCh.

                De resto, a sensibilidade da lei a esta distinção é patente na previsão como causa de justificação de recusa pelo sacado do pagamento do cheque – nos casos em que é imposta ao sacado essa obrigatoriedade – da falsificação, do furto, do abuso de confiança ou da apropriação ilegítima do cheque, desde que de tais factos existam indícios sérios (artº 8 nº 2 do DL nº 454/91, de 28 de Dezembro, com as alterações decorrentes dos DL nºs 316/97, de 19 de Novembro, 323/2001, de 17 de Dezembro e da Lei nº 48/2005, de 29 de Agosto). Sensibilidade que encontra expressão também na norma incriminadora do cheque sem previsão, que se refere à proibição à instituição sacada de pagamento do cheque e não, como na Lei Uniforme, à sua revogação (artº 11 nº 1 b) do DL nº 454/91 de 28 de Dezembro). Distinguo a que, por último, é também permeável o Sistema de Compensação Interbancária (SICOI) do Banco de Portugal, dado que de, harmonia com o Anexo à Instrução nº 3/2009 – BO nº 2, de 16 de Fevereiro de 2009 – constitui motivo de devolução de cheques, pelos participantes no subsistema de compensação, o cheque revogado – por justa causa: Quando nos termos do nº 2 do artº 1170 do Código Civil, o sacador tiver transmitido instruções concretas ao sacado, mediante declaração escrita ou qualquer outro meio de prova aceite em tribunal, no sentido de o cheque não ser pago, por ter sido objecto de furto, roubo extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer outra situação em que se manifeste falta ou vício na vontade. O motivo concretamente indicado pelo sacado, no registo lógico, deve ser aposto no verso do cheque, pelo banco tomador.

                Questão particularmente espinhosa, em face da ineficácia da declaração de revogação do cheque durante o prazo da sua apresentação a pagamento determinada pela Lei Uniforme, era a de saber se o sacado que tivesse recusado o pagamento do cheque, na sequência de indicação ou instrução do sacador, se constituía, em face do portador, em responsabilidade - necessariamente aquiliana ou extracontratual, por força da patente ausência, entre os dois últimos, de um qualquer vínculo contratual.

                Na doutrina era patente uma fractura entre uma resposta negativa[10] e uma afirmação positiva[11]. A jurisprudência, por sua vez, reflectia essa clivagem, tendo a unidade do direito, no plano jurisprudencial, sobre essa questão, sido estabelecida apenas com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2008 do Supremo, que – embora não una voce - uniformizou jurisprudência nestes termos: Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento do cheque, apresentado a pagamento dentro do prazo estabelecido no artº 29 da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32 do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legitimo portador do cheque, nos termos previstos nos artigos 14.º, segunda parte, do Decreto nº 13 004, e 483.º, n.º 1 do Código Civil.

                Todavia, a partir da sua fundamentação, é nitidamente perceptível no Acórdão nº 4/2008, o distinguo entre revogação proprio sensu do cheque, durante o prazo da sua apresentação a pagamento – facto ilícito e, portanto, constitutivo, no seu ver, de uma responsabilidade ex-delicto do sacado perante o portador – e a revogação por justa causa – furto roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer outra situação de falta ou vício da vontade – em que tal recusa de pagamento é tida por legítima.

É certo que em face da situação de facto subjacente ao Acórdão – cheques revogados por justa causa – falta vício na formação da vontade e cheque revogado – falta vício na formação da vontade – não se tratava de revogação propriamente dita do cheque, mas de uma ordem de não pagamento dirigida pelo sacador ao sacado com fundamento em falta ou vício na formação da vontade, portanto, de casos de justa causa, abstractamente considerada, de não pagamento. Simplesmente, o Acórdão, perante o carácter infundamentado do motivo da revogação e da natureza meramente formal da invocação do vício dos cheques, concluiu que o caso era de meras ordens de revogação, pelo que a recusa de pagamento do sacado se devia ter, em face do artº 32 da Lei Uniforme, por ilícita. Por outras palavras: o acórdão assimilou ou equiparou à revogação proprio sensu do cheque a ordem de não pagamento dirigida pelo sacador ao sacado baseada numa justa causa, assente na simples alegação da categoria puramente abstracta e infundamentada de falta ou vício na formação da vontade.

Quer dizer: a proposição uniformizadora do Acórdão nº 4/2008 tem por objecto apenas os casos de revogação, proprio sensu, do cheque, e bem assim aqueles em que é alegada um justa causa assente na invocação abstracta e infundamentada da categoria jurídica falta ou vício na formação da vontade, que, na lógica do Acórdão nº 4/2008, se reconduzem também a uma revogação ad nutum do cheque. Em qualquer caso, a recusa de pagamento do cheque pelo sacado constitui um acto ilícito susceptível de o constituir numa responsabilidade delitual face ao portador do cheque.

Portanto, fora do espectro uniformizador do Acórdão nº 4/2008, ficou a ordem de não pagamento do cheque com fundamento, sério e concretizado, no furto, extravio ou falsificação do cheque e na falta ou vício na formação da vontade, i.e., em que se verifica, em concreto, uma justa causa de oposição ao pagamento, pelo sacador, do cheque, pelo sacado, ao portador.

Isto mesmo foi constatado pelo Supremo – no acórdão de 29 de Abril de 2010[12] – invocado pela recorrente na sua alegação e relatado por um dos subscritores da doutrina que vez vencimento no Acórdão nº 4/2008 – logo seguido – e reproduzido - por acórdão da Relação de Lisboa de 31 de Março de 2011[13] também invocado pela apelante no seu recurso - quando faz notar que o Acórdão do STJ nº 4/2008, de 28-02, distingue, nitidamente, duas situações: a revogação pura e simples (sem qualquer justificação) do cheque, durante o período de apresentação a pagamento, e as situações de “revogação” por justa causa, havendo nestes casos, uma proibição legítima de pagamento do cheque, que não pode ser negada. Porém, certas situações concretas – acrescenta o acórdão do Supremo de 20 de Abril de 2010 – como o furto do cheque, o seu extravio ou falsificação ou mesmo qualquer outra situação que afecte a vontade de emissão da entrega do cheque ao portador, justifica ou legitima a proibição de pagamento transmitida ao banco sacado pelo sacador, e que o banco tem de cumprir, mesmo que a ordem de proibição surja durante o período de pagamento.

No mais, este acórdão do Supremo reitera a doutrina contida no Acórdão Uniformizador, designadamente que, sempre que não exista qualquer justificação concreta, séria e plausível para a revogação do cheque, esta deverá ter-se por uma revogação pura e simples, ordenada pelo sacador, sem justificação atendível, e a que, portanto, o sacado não pode validamente levar em conta, o que sucederá sempre que não disponha de qualquer indício mínimo que seja que lhe permita controlar a verificação da situação alegada como justa causa para a revogação, ainda que em termos de mera probabilidade razoável.

                Estas considerações, em si exactas, trazem naturalmente implicada esta dificuldade: a controlabilidade, pelo sacado, da veracidade da alegação do facto invocado como justa causa para a ordem de não pagamento do cheque. Realmente, este entendimento do problema coloca o sacado nesta posição delicada e difícil: se aceita uma qualquer alegação de justa causa invocada pelo ordenador e acata ordem de não pagamento do cheque pelo sacador, fica incurso no perigo de ser ver constituído numa responsabilidade extracontratual face ao portador; se não aceita a ordem de não pagamento que lhe foi dirigida pelo sacador, corre o risco da sua constituição numa responsabilidade ex-contractu – fundada na convenção ou no contrato de cheque – relativamente a esse mesmo sacador.

                Dificuldade que, evidentemente, sobe de tom nos casos de falta ou de vício da vontade, dado que, em regra, se referem a factos de difícil objectivação e apreensibilidade. Para a remover são abstractamente possíveis duas soluções.

                A primeira consiste em não aceitar, como fundamento legítimo da ordem de não pagamento, qualquer alegação fundada em falta ou vício na formação da vontade, dado que o sacado, não tem, por regra, qualquer possibilidade de controlo da veracidade situação invocada pelo sacador. Neste caso, o sacado ou aceita, incondicionalmente, o motivo alegado pelo sacador, sem qualquer indício da sua verificação, o que, na prática corresponde a não exigir qualquer justificação, ou não a aceita e paga o cheque que lhe foi apresentado no prazo legal, caso em que nenhuma responsabilidade contratual lhe possa ser exigida pelo sacador que se limitou a revogar o cheque.

                Mas também é claro que são configuráveis situações de falta ou vício na formação da vontade que podem ser objecto de concretização indiciária com a probabilidade exigível, caso em que, sendo séria e plausível a alegação do vício, o banco pode aceitá-la como “revogação por justa causa”[14].

                Devendo aceitar-se, por força da convenção ou do contrato de cheque, a possibilidade de o sacador dirigir ao sacado um ordem de não pagamento do cheque, fundada em justa causa, assente na falta ou num vício na formação da vontade, então deve exigir-se-lhe, como contrapartida, a alegação concludente dos factos concretos integrantes daquela falta ou deste vício e mesmo, nos casos em que seja possível, a respectiva prova, não sendo suficiente, para justificar aquela ordem, a alegação da categoria, puramente jurídica e genérica, de falta ou de vicio na formação da vontade.

                Por seu lado, o sacado só deve aceitar a ordem de não pagamento, fundada no falta ou num vício na formação da vontade, quando, em face da declaração do sacador, existiam indícios sérios, fundados, da verificação do vício alegado. É este, de resto, o critério de que a lei se socorre para justificar o não pagamento do cheque pelo sacado – nas hipóteses em que esse pagamento é obrigatório – nos casos de falsificação, furto, abuso de confiança ou apropriação ilícita do cheque: qualquer destes factos só legitima a recusa do pagamento pelo sacado se houver sérios indícios da sua verificação (artº 8 nº 3 do DL nº 454/91, de 28 de Dezembro)[15]. E no mesmo sentido se orienta a Instrução nº 3/2009, ao exigir, para que a devolução do cheque por um participante no sistema de compensação com fundamento em revogação do cheque por justa causa seja admissível, que as instruções transmitidas pelo sacador ao sacado sejam concretas.

                Portanto, o sacado só deve aceitar a ordem de não pagamento que lhe foi dirigida pelo sacador, fundada na falta ou em vício na formação da vontade, quando disponha de indícios sérios de que a situação alegada pelo sacador se verificou ou, ao menos, que dadas as circunstâncias concretas do caso, seja altamente provável que se tenha verificado. Quando isso não suceda, deve entender-se que não se verifica qualquer situação de justa causa que justifique aquela ordem e, portanto, que o sacado não incorre, perante o sacador, em qualquer responsabilidade, contratual. Caso, nas mesmas condições, o sacado acate aquela ordem, e não proceda ao pagamento do cheque, esse facto é susceptível de o fazer incorrer, em face do portador, numa responsabilidade extracontratual.

                Resta dizer que, quer a revogação, pelo sacador, do cheque, proprio sensu, quer a ordem de não pagamento dirigida por aquele sujeito cambiário ao sacado constituem declarações unilaterais receptícias ou recepiendas e, portanto, só se tornam eficazes quando cheguem ao poder do sacado ou quando só por culpa deste não tenham sido oportunamente recebidas (artº 224 nº 1 do Código Civil).

                3.3. O erro-vício na formação do negócio jurídico.

                De forma deliberadamente simplificadora, pode dizer-se que o erro-vício consiste na ignorância ou na falsa representação de uma realidade que poderia ter intervindo entre os motivos da declaração negocial.

Mas só há erro quando falta um elemento ou a representação está em desacordo com a realidade existente no momento da formação do negócio jurídico. Se o caso consiste na falsa representação de uma realidade futura, que se não se chega a verificar, o caso - muitas vezes impropriamente chamado de error in futurum - não é de erro, mas de falsa ou deficiente previsão (artº 437 do Código Civil).

O erro tem de respeitar a circunstâncias passadas ou presentes. Quando respeita a circunstâncias ou factos futuros, não há qualquer erro em sentido técnico-jurídico, dado que se não desconhece a realidade nem se faz dela uma falsa ou deficiente representação – e só nesse caso é que haverá erro, é que a vontade estará viciada por ele.

                Se se celebra um contrato de empreitada no convencimento de que a obra estará concluída no prazo convencionado, poderá dizer-se que se erra, sim, mas quanto ao futuro, mas isso não é um erro em sentido próprio - é uma falha na previsão, é uma falsa ou deficiente previsão, cujo enquadramento adequado é o instituto da alteração das circunstâncias (artº 437 do Código Civil).

                E face à consagração clara deste último instituto, não se mostra necessário recorrer actualmente ao error in futurum: uma deficiente previsão do evoluir das circunstâncias – um error in futurum – releva se, e na medida, em que se verifique os requisitos da alteração das circunstâncias; não é um caso de erro nem tem autonomia em face do instituto apontado.

                Na verdade – insiste-se – o erro-vício consiste no desconhecimento ou numa falsa representação da realidade; se, pelo contrário, a falsa representação se reportar ao futuro, é a previsão que falha ou o quadro de acontecimentos pressuposto que não se verifica ou evolui em termos diferentes do previsto, caso em que será de recorrer ao instituto da alteração das circunstâncias e verificar se essa falsa representação reúne os pressupostos reclamados para que aquele instituto seja aplicável.

                O parecer de que o erro se reporta ao presente ou ao passado, ao passo que a pressuposição se refere ao futuro corresponde, aliás, à doutrina dominante[16]. E a afirmação de que o erro tem a ver com ignorância ou falsa representação da realidade, portanto, de factos ou circunstâncias já ocorridas, no passado ou no presente, e de que, por sua vez, a pressuposição se reporta ao futuro, tendo a ver com a convicção determinante, da vontade de contratar, de que as circunstâncias se manterão no futuro ou evoluirão em certo sentido ou de certa maneira, constitui também jurisprudência corrente[17].

                Este viaticum habilita-nos à decisão da questão concreta controversa, objecto do recurso.

                3.4. Concretização.

                A recorrente alegou, como causa petendi a conclusão com o réu P… de um contrato típico e nominado de empreitada. E, em face da matéria de facto apurada na instância recorrida, não oferece, realmente, dúvida a conclusão que entre a recorrente e o réu P… foi celebrado um contrato de empreitada no qual a primeira figura na posição jurídica de dono da obra e, o segundo, na de empreiteiro (artºs 1154, 1155 e 1207 do Código Civil).

                É, justamente, esse contrato de prestação de serviço que constitui a relação subjacente à relação cambiária constituída com a emissão dos cheques, já que estes títulos de crédito foram emitidos e entregues para facilitar a satisfação, àquele réu, do seu direito ao percebimento do preço convencionado como contrapartida da sua prestação de obra (artºs 840 e 1207 do Código Civil).

                Naquele contrato, convencionou-se como terminus ad quem do prazo para a conclusão da obra que aquele réu se obrigou a realizar, o dia 30 de Abril de 2009[18]. Todavia, nesta data, o réu P… abandonou, sem a terminar, a obra.

                A recorrente tratou logo de alegar, na petição inicial, que negociou na errada convicção de que o contrato de empreitada seria concluído em 30 de Abril do corrente ano e que se estivesse esclarecida que a empreitada não estaria concluída em 30 de Abril do corrente ano, não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou.

                Portanto, de harmonia com a sua alegação, a declaração negocial da recorrente foi viciada por erro, e esse erro não foi causa de uma divergência não intencional entre a sua vontade e a sua declaraçãoerro-obstáculo ou erro na declaração – antes constitui um verdadeiro vício na vontade – o erro-vício (artºs 247, 251 e 252 do Código Civil).

E um tal erro nos motivos determinantes da sua vontade, por não se referir nem à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, é, segundo a recorrente, um erro sobre os motivos (artº 252 nº 1 do Código Civil): se soubesse que os trabalhos não estariam concluídos no dia 30 de Abril de 2009 - diz a recorrente - não teria concluído o contrato nos termos em que o celebrei.

                Simplesmente, um tal erro, a ter-se por verificado, constitui causa de anulação mas não fundamento de nulidade do negócio jurídico (artº 252 do Civil). Todavia, com base nesse alegado erro-vício a recorrente pediu – a declaração de nulidade do contrato de empreitada.

                No entanto, a verdade é que não se verifica, no caso, um tal erro. Patentemente, a recorrente não ignorava nem representou falsamente quaisquer circunstâncias passadas ou presentes, i.e., a situação existente no momento da celebração do contrato de empreitada.

                Como se notou, o erro, como falsa representação da realidade, só se pode referir a circunstâncias contemporâneas da conclusão do negócio jurídico e, por isso, não se está em erro sobre o futuro. Pode-se falhar uma previsão, mas quando se prevê não se versa ainda em erro, pois, não há nenhuma representação sem correspondência na realidade.

                Nestas condições, não há, realmente, razão para que se conclua que a vontade da recorrente na conclusão do apontado contrato de empreitada foi viciada por erro.

Nem mesmo há motivo sequer para que se deva assentar em que a apelante tenha, verdadeiramente, formado a sua vontade no contexto de uma falsa ou deficiente previsão quanto à conclusão dos trabalhos no prazo acordado. A prová-lo está a convenção contratual que encerra uma verdadeira cláusula penal moratória, i.e., estabelecida para o atraso na conclusão dos trabalhos (artº 810 do Código Civil).

                Desde que, logo no momento da formação do negócio jurídico, da conclusão do contrato de empreitada, as partes previram a possibilidade de os trabalhos não estarem concluídos no prazo acordado – convencionando para o atraso uma pena moratória – não houve falsa representação de uma realidade futura. Pelo contrário, a possibilidade do atraso na conclusão dos trabalhos foi logo devidamente representada e considerada, pelo que, em boa verdade, não pode dizer-se que houve sequer, quanto a este ponto, uma falsa ou deficiente previsão quanto ao evoluir das coisas.

                Seja como for, a conclusão de que a vontade da recorrente não foi viciada pelo apontado erro é, aliás, inteiramente homótropa àquela que foi encontrada pela sentença apelada que foi terminante em declarar que não estamos no domínio do erro, mas no domínio das regras do cumprimento contratual, por aplicação das quais se decidiu pela resolução do contrato de empreitada - muito embora a recorrente não tenha pedido uma tal resolução, mas antes a declaração da sua nulidade. Como a sentença apelada não sofreu, quanto a tal questão, qualquer impugnação, a decisão sobre tal objecto constitui res judicata (artºs 677 e 684 nº 3 do CPC).

                Ora, não tendo existido qualquer erro-vício na formação da vontade da recorrente na conclusão do contrato de empreitada e na emissão e entrega dos cheques para solver o respectivo preço, segue-se, como corolário que não pode ser recusado, a inveracidade do facto no qual fundamentou a ordem de não pagamento desses mesmos cheques que dirigiu ao banco sacado: o recorrido Banco …, SA.

                E face à inveracidade ou inexactidão do motivo alegado para justificar a ordem de não pagamento dos cheques – o erro-vício na formação da vontade - é clara a inexistência de uma justa causa para a oposição da recorrente ao pagamento dos cheques (artº 1170 nº 2 do Código Civil). Nestas condições, a recusa, pelo sacado, do cumprimento da ordem de não pagamento dos cheques, não é ilícita e, correspondentemente, não a constituiu em responsabilidade, ex-contractu, relativamente à apelante.

                Mas mesmo que, ex-adverso, o contrário se devesse entender, ainda assim o recurso só em parte deveria proceder.

É que a recorrente pede no recurso – e pedia na acção - o valor da totalidade das quantias inscritas nos cheques, mas um tal direito, em face do carácter receptício da declaração de oposição ao pagamento, só lhe assistiria relativamente aos cheques pagos pelo sacado apresentados a pagamento em momento posterior àquele em que recebeu o ordem de não pagamento que lhe foi dirigida pela apelante.

O recurso não tem, pois, bom fundamento. Cumpre, por isso, recusar-lhe provimento.

O conjunto da argumentação expendida bem pode resumir-se nestas palavras: a convenção ou contrato de cheque reconduz-se a um mandato não representativo; a proposição uniformizadora contida no Acórdão do Supremo nº 4/2008 tem por objecto apenas os casos de revogação, proprio sensu, do cheque, e bem assim, aqueles em que é alegada um justa causa assente na invocação abstracta e infundamentada da categoria jurídica falta ou vício na formação da vontade; o erro-vício na formação da vontade consiste na ignorância ou falsa representação da realidade, portanto, de factos ou circunstâncias já ocorridas, no passado ou no presente; as declarações de revogação e a de não pagamento do cheque são declarações receptícias ou recepiendas.

A recorrente sucumbe no recurso. Deverá, por esse motivo, satisfazer as custas dele (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2).

                4. Decisão.

                Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

                Custas do recurso pela recorrente, devendo a taxa de justiça ser fixado nos termos da Tabela I-B integrante do RCP.

                                                                                             

                                                                                                                               Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                                               Regina Rosa

                                                                                                                               Artur Dias

               


[1] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª edição, 2006, págs. 410 a 416.
[2] José Simões Patrício, Direito Bancário Privado, Quid Iuris, Lisboa, 2004, págs. 139 a 141 e Acs. da RC de 09.03.99, CJ, XXIV, II, pág. 21 e do STJ de 19.12.06, www.dgsi.pt; cfr. a Directiva 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de Setembro – JO L 271, de 9 de Outubro, considerando 17 e a Instrução do Banco de Portugal nº 48/96, de 17 de Junho (Boletim Oficial do Banco de Portugal nº 1/96, de 17 de Junho de 1996) relativa aos requisitos a observar pelas instituições de credito na aberturas de contas de depósito, designadamente quanto à identificação dos respectivos titulares e representantes.
[3] Cfr. Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 93 a 98 e Carlos Barata, Estudos em Honra do Professor Doutor Galvão Telles, Volume II, Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 7 a 66.
[4] V.g. Acs. do STJ de 09.02.95, CJ, STJ, III, I, pág. 75, e da RL de 07.10.99, CJ, XXXIV, IV, pág. 119.
[5] – V.g. Paula Ponces Camanho, cit. págs. 145 a 210 e Carlos Ferreira de Almeida Contratos II, Conteúdo – Contratos de Troca, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 158 e 159.
[6] V.g. António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, cit. pág. 482.
[7] Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Volume III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1982, pág. 243 e 244 e Ferrer Correia e António Caeiro, “Recusa do pagamento do cheque pelo banco sacado; responsabilidade do Banco face ao portador”, in RDE, Vol. IV, t. 2, 1978, pág. 447.
[8] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª edição, 2006, Almedina, Coimbra, pág. 497 e Sofia de Sequeira Galvão, Contrato de Cheque, Lisboa, Lex, 1992, págs 63 e 64, e Filinto Elísio, “A revogação do cheque”, in O Direito, Ano 100º, 1968, pág. 490, Ferrer Correia e António Caeiro, “Recusa do pagamento do cheque pelo banco sacado; responsabilidade do Banco face ao portador”, cit., pág. 463, e Acs. do STJ de 19.10.93, de 20.12.77 e de 03.02.05, BMJ nºs 430 e 272, págs. 466 e 217, e www.dgsi.pt, respectivamente. No sentido de que se trata de um contrato a favor de terceiro, Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Títulos de Crédito, cit., pág. 256. Cfr., o Assento do STJ, nº 4/2000, DR, I Série-A, nº40, de 17 de Fevereiro de 2000 e o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 9/2008, DR, 1ª Série, de 27 de Outubro de 2008.
[9] Cfr., o Assento do STJ nº 4/2000, o voto de vencido do Conselheiro Salvador da Costa no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº 4/2008, DR, 1ª Série, nº 67, de 4 de Abril de 2008, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 9/2008, Germano Marques da Silva, “Proibição de pagamento do cheque”, in Estudos em Homenagem ao Professor Raul Ventura, Vol II, FDUL, Coimbra Editora, 2003, pá. 91, e nota 29 e José Maria Pires, O Cheque, Editora Rei dos Livros, 1999, págs. 106 e 107.
[10] Filinto Elísio, “A revogação do cheque”, in O Direito, cit., pág. 450, Ferrer Correia e António Caeiro, “Recusa do pagamento do cheque pelo banco sacado; responsabilidade do Banco face ao portador”, cit. pág. 462, Sofia Sequeira Galvão, Contrato de Cheque, cit., pág. 30, Manuel Couceiro Nogueira Serens, “Natureza jurídica e função do cheque”, in Revista da Banca nº 18, Abril-Junho, 1991, pág. 99, Albertino Soares Parente, Revogação do Cheque e Ordem de Não Pagamento, Lisboa, 1994, Armindo Saraiva Martins, Direito Bancário, Coimbra, 2000, págs. 264 a 267 e Germano Marques da Silva, “Proibição de pagamento do cheque”, cit., pág. 81 e António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Coimbra, 2006, pág. 486.
[11] José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Títulos de Crédito, cit., pág. 256, Evaristo Mendes, “Cheque, crime de emissão de cheque sem provisão, inconstitucionalidade, RDE, Abril-Setembro de 1999, Ano XXXX (XIII, da 2ª Série), José Maria Pires, O Cheque, cit., pág. 93, Alberto Luís, “O problema da responsabilidade civil dos Bancos por prejuízos que causem a direitos de crédito”, ROA, Ano 59º, Dezembro de 1999, pág. 893, Jorge Simões Patrício, Direito Bancário Privado, Lisboa, 2004, pág. 197, Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, Títulos de Crédito, Coimbra, 2000, pág. 264 e Paulo Olavo Cunha “O cheque enquanto título de crédito, evolução e perspectivas”, Estudo de Direito Bancário, Lisboa, 2004, pág. 264 e Cheque Convenção de Cheque, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 594 e 704.
[12] www.dgsi.pt.
[13] www.dgsi.pt. Cfr., no mesmo sentido, e no mesmo local, o Ac. da RG de 10.05.11.
[14] Paulo Olavo Cunha, Anotação ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2008, Cadernos de Direito Privado, nº 25, Janeiro-Março, de 2009, pág. 17.
[15] Evaristo Mendes, “O actual sistema de tutela da fé pública do cheque”, Direito e Justiça, XIII/I (1999), págs. 199 a 254.
[16] Cfr., por todos, António Pinto Monteiro, Erro e Vinculação Negocial, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 18 a 20.
[17] V.g., Acs. do STJ de 10.12.74, BMJ nº 242, pág. 254, da RP de 09.02.93, CJ, XVIII, I, pág. 227  e da RC de 01.03.95, CJ, XX, II, pág. 5
[18] Na sentença impugnada declara-se que as obras se iniciaram no dia 23 de Março de 2010. Trata-se, todavia, de ostensivo erro de escrita, verificável em face do próprio contexto da decisão que apenas dá lugar a rectificação: as obras tiveram início no dia 23 de Março de 2009 (artº 249 do Código Civil).