Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
335958/09.6YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: EMPREITADA
DEFEITOS
DIREITOS
DONO DA OBRA
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1221º E 1222º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: No contrato de empreitada, efectuada a obra com defeito, os direitos conferidos ao dono da obra não podem ser exercidos arbitrariamente, devendo antes obedecer à sequência imposta pela lei: em primeiro lugar, detectado o defeito, terá de exigir ao empreiteiro a sua eliminação, se tal for possível; sendo excessivamente onerosa, a sua substituição; frustrando-se estas, pode ser exigida a redução do preço ou a resolução do contrato, tudo conforme resulta do disposto nos art.ºs 1221.º e 122.º do Código Civil.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No Tribunal Judicial de Alenquer,
A..., SA, domiciliada na (...), Carregado, veio instaurar procedimento injuntivo contra B... , com domicílio na Rua (...), em Alcobaça, reclamando do requerido o pagamento do valor global de € 16 093,85 (dezasseis mil e noventa e três euros e oitenta e cinco cêntimos), dos quais € 14 520,00 respeitam a capital, € 1 497,35 a juros de mora, e € 76,50 à taxa de justiça paga pela apresentação do requerimento de injunção.
Em fundamento alegou que, para além do mais, se dedica à venda e instalação de materiais de pavimentos especiais e pinturas industriais, actividade em cujo desenvolvimento celebrou com o réu contrato de empreitada, nos termos do qual se obrigou a executar o revestimento de pavimento com sistema monexpox compact com selagem de poliuretano no pelo demandado denominado “Armazém das Artes”, sito em Alcobaça. Sucede que, ascendendo o valor global dos trabalhos executados a € 36 300,00, o réu procedeu apenas ao pagamento parcial da factura emitida com data de 16/3/2007, encontrando-se em dívida o montante de € 14 520,00 que aqui reclama.
Citado o réu, deduziu oposição - fls. 5 a 8 dos autos - peça na qual alegou ter a autora executado a obra com defeitos, e tanto assim que, tão logo colocou o piso do rés-do-chão, começou o pavimento a ondular, do que o contestante de imediato reclamou. Passado pouco tempo, essencialmente na zona da entrada, verificou-se o aparecimento de bolhas e desfolhamento do verniz de acabamento. Apresentada pelo requerido a pertinente reclamação, procedeu a requerente à reposição de algum verniz sem que, todavia, eliminasse os defeitos detectados, permanecendo as irregularidades do piso e notando-se até marcas de sapatos no verniz aplicado, tendo surgido posteriormente manchas negras por todo o piso, situação que se tem vindo a agravar.
Mais alegou que, confrontada a autora com a descrita situação, aceitou proceder a uma pintura do piso, o que o contestante recusou, por não ser solução idónea à eliminação dos defeitos, conforme aquela bem sabe.
Porque a obra foi executada com defeitos, tem o direito a fazer operar a redução do preço, o que fez, não liquidando a parte do preço que respeitava ao piso do armazém das artes, pelo que o valor reclamado não é devido.
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Remetidos os autos à distribuição como acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, foi oficiosamente conhecida a incompetência do Tribunal de Alenquer em razão do território e os autos remetidos ao Tribunal Judicial de Alcobaça, aqui tendo prosseguido seus termos.
Dada à requerente a possibilidade de aperfeiçoar o seu articulado inicial, alegou esta ter executado os trabalhos contratados em conformidade com a proposta por si apresentada e aceite pelo réu, que juntou.
Notificado o requerido, manteve quanto alegara no seu articulado de oposição.
Teve lugar audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo que da acta consta e nela, tendo sido permitido à autora pronunciar-se sobre a excepção do cumprimento defeituoso, alegou esta que, em virtude do requerido não ter assentido em parar o uso do museu após a aplicação do produto, uma zona do piso apresenta efectivamente um acabamento deficiente, mas que seria facilmente reparável, o que aquele também recusou. Não obstante, reconhecendo que os padrões de qualidade que usa exigir não foram atingidos em pequena parte do trabalho, naquilo que apelidou de manifestação de boa vontade, reduziu ao pedido o valor de € 3 630,00, correspondente a 10% do valor global da obra, redução admitida no acto, tudo conforme consta da acta de fls. 115 a 118.
Finda a audiência, foi proferida douta sentença que, na procedência da acção, condenou o Réu a pagar à Autora o montante de 10 890,00€ (dez mil oitocentos e noventa euros), acrescida dos juros de mora vencidos desde 16.03.2007, e vincendos até integral e efectivo pagamento, à taxa de juro comercial que indicou.
Inconformado, apelou o réu da sentença e, tendo produzido alegações, rematou-as com as seguintes conclusões:
1.ª- A requerente reduziu de moto próprio o pedindo no montante de € 3 650,00 ponto este não considerado, erradamente, na sentença recorrida;
2.ª- Fê-lo por reconhecer, como, aliás, a matéria de facto expressa, a existência de ondulações, bolhas e desfolhamento do verniz no acho do espaço que arranjou;
3.ª- A posição jurídico-processual da requerente, ao não reparar os identificados defeitos, antes se disponibilizando para fazer “pinturas do piso”, introduz necessariamente a possibilidade de o dono da obra recorrer ao seu direito de pedir a redução do preço;
4.ª- A própria recorrida aceitou que o requerido pedisse a redução do preço, e tanto assim é que ela própria, requerente, se antecipou a pedir a redução do preço;
5.ª- A sentença ora recorrida violou, pois, o preceituado nos art.ºs 1221.º e 1222.º do Código Civil, ao entender que o recorrente não pediu a redução do preço -o que fez no art.º 15.º da sua oposição- e ao entender que o recorrente não exigiu primeiramente a eliminação dos defeitos, quando foi a recorrida que se prestou a fazer apenas a pintura do piso.
Com os aludidos fundamentos pretende a revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra que “considere fazer operar a total redução do preço, tendo em conta os prejuízos sofridos pelo recorrente”.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, a única questão submetida à apreciação do Tribunal é saber se ao apelante assiste, conforme pretende, o direito à redução do preço em montante coincidente ao valor do pedido formulado.
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II. Fundamentação
De facto
Não tendo sido impugnada a matéria de facto (o apelante limita-se a afirmar que irá proceder, em sede de recurso, à análise da matéria de facto debatida e depois fixada, sem na verdade a questionar), e não sendo caso de proceder à sua alteração oficiosa, são os seguintes os factos a considerar, tal como nos chegam da 1.ª instância:
1. No âmbito da sua actividade, a A. executou, a pedido do R., no denominado “armazém das artes”, sito em Alcobaça, a aplicação de revestimento de pavimento com sistema monexpox compat, com selagem de poliuretano, trabalhos que se encontram titulados pela factura nº 7900000115, de 14.02.2007, no montante de 36.300,00€.
2. A factura identificada em 1., com vencimento em 16.03.2007, foi paga parcialmente pelo R., mantendo-se em dívida o valor de 14.520,00€.
3. O piso do rés-do-chão da obra referida em 1. tem ondulações.
4. A obra referida em 1. na zona de entrada apresenta bolhas, tendo desfolhado o verniz do acabamento do chão.
5. O piso apresenta manchas negras.
6. A A. aceitou proceder a uma pintura do piso, o que o R. não aceitou.
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De direito
À luz da factualidade apurada e que se deixou consignada, não oferece dificuldade a qualificação do acordo celebrado entre autora e réu como contrato de empreitada, no que as partes não dissentem. Por via da sua celebração, a autora ficou obrigada a proporcionar ao réu um certo resultado do seu trabalho, por determinado preço (art.º 1207.º do Código Civil, diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem).
Alegando ter executado os trabalhos contratados, reclamou a autora do réu o resto do preço, ao que este contrapôs que, por via da existência de defeitos não eliminados, exercera o seu direito à redução do valor fixado, não sendo por isso devida a quantia reclamada.
De harmonia com o disposto nos art.ºs 406.º e 762.º, n.º 2, os contratos devem ser pontualmente cumpridos e no cumprimento das obrigações, bem como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.
Conforme já referido, nos termos do acordo aqui celebrado, a autora vinculou-se a executar a obra conforme o acordado, sem vícios ou imperfeições que excluam ou reduzam o seu valor ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato, segundo os usos e regras da arte (cf. art.º 1208.º). E a verdade é que, conforme a própria demandante reconhece e resultou apurado, o piso do rés-do-chão da obra referida em 1. apresenta ondulações, a zona de entrada tem bolhas e o verniz do acabamento desfolhou, sendo ainda visíveis manchas negras, o que corresponde inequivocamente a defeitos da obra.
Nos termos conjugados dos art.ºs 1220.º, 1221.º e 1221.º, tempestivamente denunciados os defeitos da obra, tem o dono os direitos de exigir a sua eliminação ou, se não puderem ser eliminados, o de exigir nova construção, e ainda o de demandar a redução do preço ou mesmo a resolução do contrato (mas neste caso apenas quando os defeitos existentes tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina).
Conforme sem dissêndio vem sendo entendido -entendimento igualmente expresso na decisão apelada- os direitos conferidos ao dono da obra não podem ser exercidos arbitrariamente, devendo antes obedecer a uma sequência lógica: em 1.º lugar, detectado o defeito, terá de exigir ao empreiteiro a sua eliminação, se tal for possível; sendo excessivamente onerosa, a sua substituição; frustrando-se estas, pode ser exigida a redução do preço ou a resolução do contrato[1].
Deste modo, resultando apurada a existência de vícios em parte da obra levada a cabo pela demandante, o direito a exercer é o direito à respectiva eliminação, impondo a lei que seja concedida à empreiteira uma derradeira oportunidade para proceder ao (bom) cumprimento da prestação a que pelo contrato se vinculou.
Pretende o apelante que, tendo solicitado a eliminação dos defeitos, a autora apenas se terá proposto efectuar uma pintura no piso, o que não era idóneo à sua eliminação, donde assistir-lhe o direito à pretendida redução do preço. Mais acrescenta que isto mesmo terá sido reconhecido pela apelada, designadamente quando procedeu por sua iniciativa à redução do pedido.
A este respeito, dir-se-á liminarmente que o apelante argumenta como se esta sua versão tivesse resultado cabalmente demonstrada, o que nem de perto corresponde à realidade, bastando para tanto atentar no elenco dos factos assentes.
Com efeito, e contrariamente àquilo que o apelante parece ter depreendido dos termos da resposta que pela autora foi oferecida à matéria da excepção por si invocada, em lado algum foi por esta admitido haver lugar à pretendida redução do preço, e muito menos na extensão pretendida pelo contestante, que conduziria pura e simplesmente à sua absolvição total do pedido. Pelo contrário, na resposta apresentada, a autora, reconhecendo embora a existência dos aludidos defeitos, alegou ter-se prontificado a proceder à pintura do chão, o que o requerido não aceitou, factualidade esta, de resto, narrada pelo próprio na oposição, tendo assim correctamente ingressado no elenco dos factos assentes (cf. ponto 6.). No entanto, e quanto aos motivos da recusa, já divergiram as versões por um e outro apresentadas: enquanto a autora alegou que o requerido nunca se disponibilizou para permitir a realização de tais trabalhos correctivos, este contrapôs que a pintura não era uma solução permanente, uma vez que duraria apenas três anos, pelo que nisso consentiria na condição de ser efectuada a expensas da demandante e nada mais ter que pagar, o que aquela não aceitou. Nenhuma destas versões obteve apoio na prova produzida, apenas tendo resultado demonstrados os factos que em sede própria se deixaram consignados, deles não resultando que os defeitos em causa não fossem passíveis de eliminação ou que a autora a tanto se tivesse recusado, ónus da prova que sobre o réu inequivocamente recaía (cf. art.º 342.º, n.º 2).
Por outro lado, a circunstância da autora, naquilo que apodou de gesto de boa vontade, ter procedido, no início da audiência, à redução do pedido, abatendo 10% ao preço fixado, não equivale ao reconhecimento de que ao recorrente assistia tal direito, e muito menos na extensão por este pretendida.
Temos assim como demonstrada, em suma, a execução da obra com defeitos, os quais foram denunciados, tendo-se a autora prontificado a efectuar uma pintura do piso, o que o réu recusou. Sendo esta a factualidade a atender, logo se vê que o réu não fez prova da autora ter recusado a correcção dos defeitos, antes tendo resultado demonstrada coisa diversa, pelo que a sua pretensão não encontra suporte no invocado art.º 1222.º, sendo antes aplicável quanto dispõe o preceito que o precede.
Por último, seguramente por inadvertência, não terá o apelante notado que o Mm.º Juiz, dando embora como assente que se encontrava em dívida o resto do preço (cf. facto assente em 2.) como inequivocamente acontecia, não deixou de fazer relevar a redução do pedido, subtraindo ao montante peticionado os € 3 630,00 correspondentes a 10% do valor inscrito na factura, valor de que a autora prescindiu, tendo condenado o réu apenas no pagamento do remanescente. Daí que não proceda a derradeira crítica endereçada à decisão recorrida.
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III. Decisão
Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.
Custas a cargo do apelante.
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Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida


[1] V., por todos, aresto do STJ, de 6/6/2013, processo n.º 8473/07.4 TBCSC.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt