Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
244/15.0JAGRD-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: DANO BIOLÓGICO
SUA REPARAÇÃO
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA – JUIZ 4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 483º, 494º, 496º, 562º E 566º DO C. CIVIL.
Sumário: I – Provando-se que a vítima teve um Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total de 170 dias e, bem assim, um Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial de 216 dias, tem de concluir-se - porque encerram realidades diversas e inconciliáveis: - incapacidade total e incapacidade parcial - que tais períodos não são coincidentes, mas antes cumulativos.

II - O dano biológico pode assumir-se como patrimonial e/ou não patrimonial, traduz-se, nuclearmente, num handicap físico-emocional que, ainda que não implique perda remuneratória, torna mais penosa a realização das tarefas quotidianas, profissionais e pessoais, e é, decisivamente, calculado via juízo équo.

III – No caso de uma lesada com 52 anos, auferindo cerca de 350 euros mensais, à qual foi fixado um défice Funcional Permanente da Integridade Física- Psíquica fixável em 15,29272pontos, com admissão de dano futuro, é admissível, casuística e comparativamente, fixar, na vertente patrimonial, a indemnização de vinte mil euros.

IV - Sendo a lesão da integridade física e psicológica, máxime se com sequelas futuras, um dano muito grave, ele merece adequada compensação, pelo que a atual doutrina e jurisprudência defendem, justamente, o abandono de compensações, por danos não patrimoniais, minudentes e quasi miserabilistas.

V - Provando-se, nuclearmente, que a lesada, de 52 anos, foi vitima de tentativa de homicídio; ficou internada oito dias em perigo de vida; ficou com cicatriz frontal direita oblíqua com 4,5 cm; sente dores nos pulsos, pernas, pés e cabeça; teve um Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total de 170 dias; um Quantum Doloris fixável no grau 5/7; um Dano estético Permanente fixável no grau 1/7; um Défice Funcional Permanente da Integridade Física- Psíquica fixável em 15,29272 pontos; as sequelas, ainda que compatíveis com o exercício da atividade habitual implicam esforços suplementares e são afetantes das tarefas diárias, a quantia de dez mil euros como compensação pelo dano biológico na vertente não patrimonial, alcança-se, quer em termos absolutos, quer comparativos, - e sendo que a este título, por factos diversos do mesmo crime, já tinha sido, em sede criminal, compensada em trinta mil euros - aceitável.

Decisão Texto Integral:







ACORDAM NO TRIBUNAL DA  RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

M..., intentou contra J...,  incidente de liquidação de obrigação genérica.

 Pedindo:

 A condenação deste a pagar-lhe a quantia de €34.646,00, acrescida dos juros que se vençam desde a notificação do requerido e até ao integral e efetivo pagamento.

Para tanto alegou:

Por acórdão proferido nos autos, confirmado na Relação e já transitado em julgado, o requerido foi condenado a indemnizar a requerente - nas quantias que se viessem a apurar em liquidação de sentença - pelos seguintes danos que a sua atuação criminosa lhe causou:

a) os danos não patrimoniais relacionados com as consequências físicas, psicológicas sofridas pela requerente,

b) o dano estético;

c) os danos patrimoniais sofridos pela requerente.

 Ora sofreu um Défice Funcional Temporário Total, tendo em conta os atos correntes da vida diária, familiar e social, que perdurou entre 14/10/2015 e 22/10/2015, fixando-se assim o período de 9 dias correspondentes à necessidade de repouso absoluto.

Tal dano não pode ser indemnizado em valor inferior a 20,00€/dia, ou seja, 180,00€ no total.

 Sofreu um Défice Funcional Temporário Parcial, correspondendo ao tempo em que teve limitações na realização daqueles atos, que perdurou entre 23/10/2015 e 02/11/2016, fixando-se o período de 377 dias.

Tal dano, não pode não pode ser indemnizado em valor inferior a 10,00€/dia, ou seja, 3.770,00€ no total.

Sofreu uma Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total, correspondendo esta aos períodos de internamento e/ou repouso absoluto, no período entre 14/10/2015 e 31/03/2016, ou seja, esteve impedida de trabalhar num total de 170 dias.

Tal dano não pode este ser indemnizado em valor inferior a 20,00€/dia, ou seja, 3.400,00€ no total.

Sofreu uma Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial, consideradas as limitações que experienciou na sua atividade profissional, durante o período compreendido entre 01/04/2016 e 02/11/2016, ou seja, num total de 216 dias.

Tal dano não pode ser indemnizado em valor inferior a 6,00€/dia, ou seja, 1.296,00€ no total.

O quantum doloris sofrido pela requerente, correspondendo este à valoração do sofrimento físico e psíquico evidenciado por aquela no período entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões, deve fixar-se no grau 5 numa escala de 7.

Tal dano não pode ser indemnizado em valor inferior a 7.000,00€.

O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-psíquica sofrido pela requerente, referente à afetação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas atividades da vida diária, independentes da atividade profissional, definido como dano biológico pela Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio, deve fixar-se num valor de 15,29272pontos, numa tabela de 100 pontos.

Tal dano não pode ser indemnizado em valor inferior a 15.000,00€.

Por outro lado, há Repercussão Permanente na Atividade Profissional da requerente, que é cabeleireira, uma vez que sempre necessitará de esforços suplementares para a prossecução dessa sua atividade habitual.

Tal dano não pode ser indemnizado em quantia inferior a 2.500,00 €.

Sofreu um Dano Estético Permanente, referente à repercussão das sequelas, numa perspetiva estática e dinâmica, envolvendo a avaliação da afetação da sua imagem que se deve fixar no grau 1, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

Tal dano não pode ser indemnizado em montante inferior a 1.500,00€.

O réu deduziu oposição.

 Impugnou os factos alegados pela autora sustentando, e no essencial, que, com o trânsito em julgado do acórdão condenatório, que condenou o demandado a pagar o que vier a ser liquidado em sede de execução de sentença, por reporte aos danos não patrimoniais relativos à compensação pelas consequências físicas e psicológicas decorrentes da conduta do arguido e pelo dano estético sofrido, viu o seu direito de indemnização perfeitamente consolidado, apenas restando apurar o valor dos danos não patrimoniais que compreendem tal indemnização.

Sustenta, por isso, que está apenas em causa a quantificação do dano não patrimonial futuro e dano estético. Estão, pois, situados fora do deste específico procedimento a quantificação e indemnização por eventuais danos patrimoniais que a demandante tenha sofrido em consequência do evento.

Ademais,  alega que os valores peticionados são manifestamente excessivos, em face dos concretos dados sofridos pela autora.

Por seu lado, as indemnizações liquidadas e peticionadas, pela autora, nos artigos 7.º a 10.º e 15.º a 16.º do seu requerimento inicial, incluem-se exclusivamente no âmbito do conceito de danos patrimoniais, pelo que, não tendo o réu sido condenado a indemnizar a autora, a título de danos patrimoniais futuros nada deve, a esse título, o réu à autora.

Assim sendo, não são devidas as quantias liquidadas nos artigos 8.º, 10.º e 16.º do requerimento inicial.

De todo o modo, sustenta que as quantias liquidadas a título de danos patrimoniais, consubstanciadas em perdas de rendimentos e perda da capacidade de ganho também são manifestamente excessivas, porquanto, a autora, à data dos factos, tinha apenas um pequeno salão de cabeleireira, sem estar devidamente legalizado, instalado em sua casa, localizada numa povoação pequena e, consequentemente, com poucos clientes ou potenciais clientes.

À data do evento, eram esporádicos os serviços de cabeleira que a demandante prestava, resumindo-se a 2 ou 3 por semana.

Pelo que, tendo em atenção o valor médio de cada serviço, a demandante e não auferia mais do que 30€/40€ por semana, ou seja, uma média de 120€/160€ por mês.

Em consequência disso, era o demandado quem suportava as despesas essenciais relacionadas com a habitação, uma vez que, a demandante não tinha capacidade monetária para o efeito.

Pelo exposto, mesmo que a demandante tivesse direito a haver as quantias liquidadas em 7.º e 10.º, que não tem como supra referido, sempre as mesmas se devem considerar excessivas, porquanto, por cada semana de trabalho a demandante nunca auferia mais de 30€/40€.

Sendo certo que, a demandante retomou os seus serviços de cabeleireira pouco tempo depois de ter tido alta hospitalar, passados cerca de 15 dias.

Sendo, por isso, incorreto que a demandante tenha estado até 31 de março de 2016 sem trabalhar. No máximo a demandante terá estado um mês sem trabalhar.

Por outro lado, atendendo a que a demandante prestava o seu trabalho apenas em tempo parcial, o período em que esteve em recuperação não teve qualquer influência na sua capacidade de ganho.

Acresce que a autora foi trabalhar para um salão de cabeleireiro, em …, onde cumpre um horário de trabalho completo (o que não fazia antes do evento), chegando a trabalhar 9 ou 10horas por dia, nos dias em que há uma maior afluência de clientes.

Em virtude da sua atividade profissional, a demandante tem vindo a auferir, mensalmente, uma remuneração superior à que recebia à data dos factos.

Pelo que, ainda que a autora tivesse a haver indemnização por danos patrimoniais, o certo é que a autora não perdeu capacidade de ganho, não tendo direito a haver a quantia peticionada os artigos 15.º e 16.º do requerimento inicial.

Acresce que o pedido de indemnização liquidado e peticionado nos artigos 15.º e 16.º sempre contenderia com o pedido de indemnização peticionado por défice funcional permanente de integridade físico – psíquica, liquidado e peticionado nos artigos 13.º e 14.º do requerimento de liquidação.

Relativamente à liquidação do défice funcional permanente de integridade físico – psíquica, considera ser, não só excessiva a valoração atribuída (15,29272 pontos, numa tabela de 100 pontos), como é igualmente excessiva a própria liquidação monetária peticionada pela autora.

Já o défice funcional permanente de integridade físico – psíquica, ou dano biológico, empregue num sentido amplo de dano corporal, assume relevância, quer pelas suas consequências patrimoniais, quer pelas não patrimoniais, compreendendo-se nas primeiras o dano patrimonial futuro consequente de défice funcional permanente da integridade físico-príquica de que resulte perda de capacidade de ganho, e nas segundas os danos morais complementares relativos ao quantum doloris e os danos à integridade física e psíquica, previstos, respetivamente, nos Artigos 4.º e 8º da Portaria n.º 377/2008 de 26/5.

Assim, o mesmo dano corporal pode gerar danos de caráter patrimonial e não patrimonial.

Ora a demandante, além de ter vindo auferir um rendimento superior ao que recebia à data dos factos, também tem vindo a assumir uma vida pessoal e social mais ativa do que a que desempenhava à data dos mesmos.

Efetivamente, não obstante os danos de que diz padecer, tem frequentado danceterias e bailes, o que não fazia à data do evento

Tem realizado vários passeios e viagens, o que também não fazia à data do evento.

Por exemplo, só em 2017 fez, pelo menos, duas viagens ao estrageiro, à República Dominicana (que implica uma longa viagem de avião) e Suíça.

Também a demandante tem vindo a realizar as suas tarefas diárias e domésticas normalmente, como fazia até à data do evento.

Pelo que, face à situação concreta da lesada, podendo admitir-se que a autora tenha ficado afetada por um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica que não deverá ser fixado como superior a 3/5 pontos, será equitativa nos termos das disposições conjugadas dos artigos 566º nº 3, e 562º, ambos do Código Civil, uma indemnização nunca superior a 2000€ por esse dano sofrido, na sua perspetiva não patrimonial.

Relativamente ao dano estético, a demandante revela, apenas, pequenas cicatrizes, de difícil perceção, que não prejudicam a imagem da lesada, quer em relação a sim mesma, quer perante os outros, pelo que considera um dano irrelevante para efeitos de atribuição de qualquer indemnização, sendo indevida a quantia peticionada, a esse título, de 1500€.

Relativamente à quantia de 7.000,00€ liquidada pela demandante, no seu art.º 12.º, para ser indemnizada pelas dores e sofrimento que teve durante o período entre a dada do evento e a cura ou consolidação das lesões, também se mostra desajustada face à situação concreta, tanto mais se tivermos em atenção que o demandado já foi condenado a pagar à demandante a quantia 30,000.00€ relativa a dores, angústias e terror vivenciado aquando dos factos.

Atento o supra referido, com recurso à equidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 566º, nº 3 e 562º do Código Civil, não deve ser atribuído à autora uma indemnização superior a 500€.

Por fim referir que, da mesma forma que a demandante retomou a sua atividade profissional em meados de novembro de 2015, também por essa altura retomou a realização dos atos correntes da sua vida diária, familiar e social.

Termina pedindo procedência parcial do presente incidente de liquidação devendo o montante indemnizatório ser liquidado em valor não superior a €2.950,00.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Em face de todo o exposto, julga-se parcialmente procedente, por provado, o presente incidente de liquidação de obrigação genérica e, em consequência, fixa-se a quantia devida pelo réu à autora, no montante de €22.520,72 (vinte e dois mil, quinhentos e vinte euros e setenta e dois cêntimos), a título de danos patrimoniais, e no montante de €10.000,00 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais, em que a ré havia sido condenada por acórdão proferido nos autos, transitado em julgado, acrescida de juros de mora devidos desde a presente data, à taxa legal de 4%, até integral e efetivo pagamento.

» Custas fixadas a cargo da autora e réu na proporção dos respetivos decaimentos (artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).»

3.

Inconformado recorreu o réu.

Rematando as suas alegações comas seguintes conclusões:

...

Inexistiram contra alegações.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685-A º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são as seguintes:

1ª – Quantum do dano patrimonial por perdas de remuneração.

2ª -  Quantum do dano biológico.

3ª – Quantum do dano não patrimonial.

5.

Foram dados como provados os seguintes factos que urge considerar:

...

         Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

Clama o recorrente que o número de dias a considerar no cálculo dos danos patrimoniais a título de lucros cessantes não é o de 216 dias admitido na sentença, mas o de 170 dias.

Isto porque, alega, apenas durante este período a autora esteve totalmente incapacitada para o trabalho, sendo que naquele apenas esteve parcialmente incapacitada.

Mas, devidamente interpretados os factos provados, não é assim.

Provou-se – ponto 11 dos provados – que a autora esteve totalmente incapacitada para o trabalho durante 170 dias.

E mais se provou que ela esteve parcialmente incapacitada durante 216 dias.

Ora devidamente interpretada - desde logo pelas regras da lógica – esta factualidade, a conclusão a retirar é que tais períodos de incapacidade não se sobrepõem, antes sendo cumulativos.

Na verdade, a autora não pode estar, no mesmo período, incapacitada,  simultaneamente,  total e parcialmente.

Pelo que a correta exegese de tal factualismo vai no sentido de se inferir que ela esteve incapacitada totalmente nos primeiros 170 dias e, depois, apenas parcialmente, nos subsequentes 216 dias.

A assim ser, como entendemos que é, a sentença, neste particular conspeto, ainda pecou por defeito, pois que apenas considerou um período de incapacidade, quando deveria ter considerado aqueles dois lapsos temporais.

Mas mesmo que assim não fosse, nem por isso esta posição recursiva poderia singrar.

É que, como se diz na sentença, o apuramento dos lucros cessantes futuros assume-se como «uma operação delicada, devendo socorrer-se o julgador a critérios de probabilidade ou de verosimilhança de acordo com o que, em cada caso concreto, poderá vir a acontecer. Em última análise deve o julgador socorrer-se ao princípio da equidade.»

No caso dos autos dando-se como provado que a autora auferia entre 300 a 400 euros mensais, poder admitir-se que, em vez da média de 350 euros atendida pela 1ª instância, se conceda valor algo superior,  na ordem dos 375, ou, até, dos 400 euros.

Afinal estamos perante valores reduzidos e cujo poder aquisitivo de bens, atento o consabido custo de vida, se  revela diminuto, pelo que a justiça do caso sempre  exigirá, ou aconselhará, que se opte pelos valores mais próximos do limite superior.

Ora se se atendesse na verba de 375 euros mensais, da mesma dimanaria uma diária de 12,50 euros, a qual multiplicada pelos 170 dias se alcandoraria ao valor total de 2.125,00 euros.

E se se  considerasse a quantia de 400  euros, da mesma resultaria uma diária de 13,33 euros, a qual, multiplicada por 170 dias, resultaria na soma total de 2.266,60 euros.

Ou seja, tudo valores muito aproximados da verba atribuída pela 1ª instância.

Nesta conformidade, e no âmbito e por apelo ao aludido juízo équo, sempre esta verba se mostraria admissível, porque respaldado naquele juízo e no demais circunstancialismo emergente dos autos, como seja, reitera-se, os valores algo diminutos aqui em dilucidação.

5.2.

Segunda questão.

Neste conspeto a julgadora decidiu nos seguintes, sinóticos e essenciais, termos:

« “é perda in natura que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses [materiais, espirituais ou morais] …há que proceder à integração do dano biológico, ou na categoria do dano patrimonial – como “reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado.” (...) abrangendo não só o dano emergente, como perda patrimonial, como o lucro frustrado, ou cessante –, ou na classe dos danos não patrimoniais (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestigio ou de reputação e que atingem bens como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, o bom nome, que não integram o património do lesado).

(…). Em abono deste entendimento refere-se que, mesmo não havendo uma repercussão negativa no salário ou na actividade profissional do lesado – por não se estar perante uma incapacidade para a sua atividade profissional concreta – pode verificar-se uma limitação funcional geral que terá implicações na facilidade e esforços exigíveis o que integra um dano futuro previsível, segundo o desenvolvimento natural da vida, em cuja qualidade se repercute. Mas também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial. Nesta perspectiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso como decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspetivas de carreira, desencantos…) e da saúde, tudo implicando  um crescente dispêndio de esforço e energia. E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica. Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta direta – ou indiretamente – no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessariamente numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral. Isto é, o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral. A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou, no futuro, durante o período ativo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou inteletual, para além do agravamento natural resultante da idade.”

E como se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/05/2011, proc. 7449/05.0TBVFR.P1.S1, relatado por Gregório Silva Jesus, a indemnização de tal dano para “evitar o reinado de total subjectivismo vem sendo aceite com alguma unanimidade que o montante indemnizatório deva começar por ser procurado com recurso a processos objectivos, nomeadamente através de fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas, com vista a calcular o referido capital produtor de um rendimento vitalício para o lesado que, entregue de uma só vez, e diluído no tempo da sua vida ativa, lhe proporcione o mesmo rendimento que antes auferiria se não tivesse ocorrido a lesão ou o compense pelo maior grau de esforço desenvolvido. As referidas fórmulas não se conformam, porém, com a própria realidade das coisas, com a dinâmica da vida avessa a operações matemáticas, pelo que devem ser entendidas como meramente orientadoras e explicativas do juízo de equidade a que a lei se reporta, e o valor com elas alcançado sempre se traduzirá num “minus” indemnizatório. Terá por isso de ser temperado através do recurso à equidade, que com a ponderação de variantes dinâmicas que escapam ao referido cálculo objectivo (ex. evolução provável na situação profissional do lesado, melhoria expectável das condições de vida e do rendimento disponível, inflação provável ao longo do período temporal a que se reporta o cômputo da indemnização, o aumento da vida activa para se atingir a reforma), em parte mitigadas  pelo benefício decorrente do imediato recebimento e disponibilidade de valores pecuniários que normalmente apenas seriam recebidos ao longo de muitos anos, naturalmente desempenha um papel corretor e de ajustamento do montante indemnizatório às circunstâncias específicas do caso” – cfr. ainda Ac. STJ, de 02.03.2011, proc. 104/04 0TBMBR.L1, relatado por Granja da Fonseca, Ac. do STJ, de 14.10.2010, proc. 665/07.5TBPVZ.P1.S1, …

Revertendo ao caso concreto é necessário considerar que se provou que as lesões sofridas pela autora lhe causaram uma diminuição de capacidade funcional decorrente das sequelas, ficando afetada com um défice funcional permanente da integridade físico psíquica fixável em 15,29272 pontos, sendo certo que tais sequelas de que a autora ficou a padecer na sequência das agressões de que foi vitima são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares. Já relativamente à atividade que a autora exercia, conforme já fizemos notar, temos que se provou que, à data do evento, aquela exercia atividade de cabeleireira, auferindo um salário variável em função do número de clientes, mas não inferior a cerca €300 a €400, mês.

Isto posto, e considerando a necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, ou seja, necessita de esforços suplementares, traduz-se antes num sofrimento psico-somático, ou seja, num dano não patrimonial, do que, propriamente, num dano  patrimonial, pois não determina a privação da capacidade de ganho, nem implica que aquele tenha de abandonar mais cedo do que o normal.

Ou seja, tendo resultado provado que a autora, à data do evento, tinha 52 anos de idade, exercia atividade de cabeleireira, temos como adequado considerar o valor médio do salário, que auferia à data do evento e que ascendia a €350,00, considerando-se os valores correspondentes aos subsídios de férias e de Natal.

Mas é ainda necessário considerar que a autora ficou com uma incapacidade permanente parcial de 15,29272 pontos que lhe exige esforços suplementares, ao que acresce que é de ponderar, no caso concreto, a provável evolução da situação da autora, o aumento da idade da reforma e da vida ativa, a inflação, as taxas de juro das aplicações financeiras, e ainda o benefício da antecipação, dada ainda a vida ativa da demandante, mas também a intensidade da culpa do arguido na produção dos danos.

Quanto à “esperança média de vida ativa” afigura-se-nos que o limite de 70 anos para a vida aciva é o adequado e, embora sem caráter obrigatório, é também esse o limite constante do art. 7º n.º 1 al. b) da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio.

Assim, considerando todos os elementos supra referidos, e utilizando, como base, o critério também utilizado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/10/2009, proc. n.º 307/05.0TAGMR.G1, relatado por Fernando Ventura e disponível in www.dgsi.pt, considera-se adequada a atribuição de uma indemnização de € 20.000,00 ( € 350,00x14 [meses] x 18 [anos de vida activa, considerando que a demandante tinha 52 anos à data do evento] x 15,29272 % [incapacidade]) = 13.488,18, apurando a quantia atribuída (€ 20.000,00, ou seja a diferença entre o valor arbitrado e o que resulta do cálculo efectuado) em função da equidade, por se nos afigurar que o valor resultante do cálculo não ressarce, totalmente, o dano biológico, o que já acontece com o valor arbitrado.»

Este discurso argumentativo apresenta-se, em tese, curial, ao menos na sua essencialidade relevante.

Em seu abono e reiteração dir-se-á ainda o seguinte.

Constituem doutrina e jurisprudência pacíficas que  a compensação a atribuir pelo dano biológico, não tem que ter uma relação direta com a sua atividade profissional, antes se configurando como um dano permanente e interferindo em  todos os aspetos da vida do lesado e na sua qualidade de vida.

Na verdade:

«Se a actividade profissional da Autora, pese embora a incapacidade permanente que a afecta em consequência das lesões provocadas …não implicou a perda de rendimentos laborais, porquanto ao tempo do sinistro estava aposentada da sua profissão de funcionária pública, o que há a considerar como dano patrimonial futuro é o dano biológico, já que a afectação da sua potencialidade física determina uma irreversível perda de faculdades físicas e intelectuais que a idade agravará.

 Havendo dano biológico importa atender às repercussões que as lesões causaram à pessoa lesada; tal dano assume um cariz dinâmico compreendendo vários factores, sejam actividades laborais, recreativas, sexuais, ou sociais.

 A incapacidade parcial permanente, afectando ou não, a actividade laboral, representa, em si mesmo, um dano patrimonial futuro, nunca podendo reduzir-se à categoria de meros danos não patrimoniais.–  Ac STJ de 19/5/2009, p. nº 298/06, in dgsi.pt.

 Ou, noutra perspetiva ou nuance:

«O chamado “dano biológico” tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança ou reconversão de emprego pelo lesado, enquanto fonte atual de possíveis e eventuais acréscimos patrimoniais, frustrada irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afetar, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua atividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas.

… constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num  mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha de profissão, eliminando ou restringindo seriamente qualquer mudança ou reconversão de emprego e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à disposição, erigindo-se, deste modo, em fonte atual de possíveis e futuros lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais.» -  Ac. da  RC de  06.06.2017, p. 3930/06.2TBLRA.C1.

Ou ainda:

«O dano biológico, para além de se apresentar como um dano real ou dano evento, é também um “dano primário”, na medida em que, enquanto dano corporal lesivo da saúde física ou psíquica, está na origem de outros danos (danos-consequência), designadamente a frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer atividades ou tarefas para além da atividade profissional habitual do lesado, bem como os custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas.

E podendo relevar por via dos danos patrimoniais ou não patrimoniais.

É que:

«A afectação da integridade físico-psíquica (em si mesma um dano evento, que, na senda do direito italiano, tem vindo a ser denominado “dano biológico”) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e danos de natureza não patrimonial. Na primeira categoria não se compreende apenas a perda de rendimentos pela incapacidade laboral para a profissão habitual, mas também as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais, mesmo quando o lesado é menor e ainda não exerce uma profissão.

São reparáveis como danos patrimoniais as consequências danosas resultantes da incapacidade geral permanente (ou dano biológico), ainda que esta incapacidade não tenha tido repercussão directa no exercício da profissão habitual.» -  AC.  do STJ de 06.04.2021, p. 2908/18.8T8PNF.P1.S1 in dgsi.pt.

Efetivamente:

« Ao dano biológico não pode ser conferida autonomia enquanto tertium genus e, por essa razão, todas as variantes do dano-consequência terão de traduzir-se sempre num dano patrimonial e/ou num dano não patrimonial.

Assim, o défice funcional, ou dano biológico, representado pela incapacidade permanente resultante das lesões sofridas em acidente de viação, é suscetível de desencadear danos no lesado de natureza patrimonial e/ou de natureza não patrimonial.» - Ac. STJ de 29.10.2019, p. 7614/15.2T8GMR.G1.S1.

(sublinhado nosso)

Ademais,  e quanto ao cálculo/quantificação deste dano, certo é também  que:

« A indemnização deste dano biológico não deve ser calculada com base nas tabelas financeiras na medida em que o sobredito défice funcional genérico não implica incapacidade parcial permanente para o exercício dessa atividade, envolvendo apenas esforços suplementares.

E também não deve ser fixada com recurso às tabelas estabelecidas para efeitos de apresentação aos lesados de proposta razoável de indemnização, nos termos do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08, por estas se destinarem a ser aplicadas na esfera extrajudicial, não sendo lícita a sua sobreposição ao critério legal da equidade previsto no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil. »  - Ac. STJ de 17.12.2019, p. 2224/17.2T8BRG.G1.S1.

Assim e quanto ao apuramento do concreto quantum.

Na vertente patrimonial há que atender aos factos objetivos que  possam sustentar ou amparar o final e decisivo juízo équo, como seja, o grau de afetação biológica, o rendimento do lesado, a sua idade, etc.

Na ótica não patrimonial urge atentar acima de tudo na intensidade da lesão  psíquico-física.

E, nunca é de mais repeti-lo, têm de ter-se em consideração, apara a consecução, tanto quanto possível, da almejada justiça relativa ou comparativa, os valores jurisprudencialmente  atribuídos.

Tomemos alguns exemplos.

«Numa situação em que ao lesado, com 34 anos, foi atribuído um défice funcional de 16 pontos por força das lesões sofridas, sem rebate profissional mas com a subsequente sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional (vendedor e empresário de materiais de construção civil e produtos agrícolas)» foi julgado adequado o valor de € 36 000,00 – cfr. Ac. do STJ de 29.10.2019 sup. cit.

Já no aludido Ac. do STJ de 17.12.2019 arbitrou-se o montante de  € 10.000.00 para lesado de 61 anos que  ficou a padecer de um défice funcional de 4 pontos, implicando um acréscimo de esforço físico no desenvolvimento da sua atividade de trabalhador. 

No mencionado Ac.  do STJ de 06.04.2021 foi decretado que

«Tendo o A., à data do acidente 6 anos,  ficado a padecer de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 50 pontos, com repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau 7 de uma escala de 7 de gravidade crescente, não estando impossibilitado de vir a ter uma vida profissional normal mas tendo sido provado que as sequelas de que ficou portador exigem esforços suplementares no exercício daquela actividade profissional futura (impossibilitado de exercer actividade profissional que exija andar, correr, saltar ou permanecer largos períodos em pé) a indemnização pelo dano biológico, com recurso à equidade, atenta a comparação com outras situações judicialmente decididas, não se afasta delas ao fixar o valor indemnizatório em 300.000 euros».

(sublinhado nosso)

Finalmente, por este mesmo coletivo, em Ac. RC de 2020.10.20,  proferido no p. nº3947/17.1T8VIS.C1, foi chancelada a decisão da 1ª instância, a qual, para um caso similar ao presente -  de lesada 56 anos de idade, com um défice funcional da integridade físico-psíquica de 14 pontos, que apenas também determinou esforços acrescidos para o exercício da profissão, e com rendimentos  de cerca de 200 euros mensais -, arbitrou a quantia de 20 mil euros na vertente patrimonial e 5.000,00 euros na não patrimonial.

No caso vertente.

Num ponto o recorrente tem razão.

Trabalhando a recorrida por conta própria, as mensalidades a considerar não são 14 mas antes 12.

Porém, tal não é o bastante para obter ganho de causa neste particular, máxime no valor por ele pretendido de pouco mais de cinco mil euros.

O dano biológico provado na percentagem determinada acarretou uma afetação/ condicionamento/penosidade na realização não apenas das tarefas profissionais da recorrida, como, outrossim, em toda a sua vida de trabalho, nomeadamente  nas lides domésticas.

Por consequência, e como do supra  exposto dimana, este handicap, é, em si mesmo, suscetível de ser avaliado em sede de perdas materiais/patrimoniais/pecuniárias.

Considerando apenas a idade de trabalho da lesada, até, aos 70 anos, e atento que à  data dos factos ela tinha 52 anos, tem ela de enfrentar ainda mais 18 anos de penosidade e, até, com franca probabilidade, a perda de rendimentos acrescidos que lhe adviriam, não fossem as lesões e a incapacidade sofridas.

A assim ser, a indemnização a este título alcandora-se a pouco mais de mil euros por ano, o que, convenhamos, não se vislumbra, atento o poder aquisitivo de tal verba face ao custo de vida, exagerado e inadmissível.

Já se viu que no cálculo deste dano relevam, de sobremaneira, critérios de  equidade.

Ora, nesta ótica e assim norteados, vistos e razoavelmente ponderados os factos provados, não alcançamos que a verba fixada de vinte mil euros, deva ser considerada como desadequada/inamissível para a realização da justiça do caso concreto.

 Antes, quiçá,  pelo contrário; basta atentar que se provou – ponto 11 – que, atento o défice funcional fixado,  é de «admitir a existência de dano futuro».

E muito menos o é para a consecução da justiça relativa/comparativa, à qual, pelos vistos, o recorrente atribui, e bem, elevado valor.

Basta atentar nos exemplos das sentenças supra aludidas, máxime na prolatada por este mesmo coletivo.

Aquele caso e este são muito similares.

Mas os  factos provados neste  presente processo assumem-se ainda mais gravosos do que os daquele  último exemplo: a lesada é mais nova – 52 anos – o seu défice funcional um pouco superior e os seus rendimentos  são mais volumosos.

Por conseguinte, arbitrando-se nestes nossos autos quantia inferior à naqueles fixada, máxime, reitera-se, a defendida pelo recorrente, é meridianamente óbvio que tal justiça comparativa seria/sairia frustrada e irrealizada.

5.3.

Terceira questão.

Nesta vertente foi, nuclearmente, decidido:

«Como acima mencionado os danos não patrimoniais são danos …não suscetíveis de avaliação pecuniária e face aos quais já não poderemos falar de uma verdadeira indemnização mas antes de uma compensação, que tem por fim facultar ao lesado uma importância em dinheiro apta a propiciar alegrias e satisfação que lhe façam esquecer na verdade o sofrimento físico e moral que lhe foi provocado …como “as dores físicas, os desgostos morais, os vexames e os complexos de ordem estética), que sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física…)

No que a estes danos concerne, a lei manda atender apenas aos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496º n.º 1 do Código Civil), o que implica que a gravidade do dano se deve medir por um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos .

E a respeito da fixação do “quantum indemnizatório”, o Tribunal atender, não só aos critérios estabelecidos no art. 494º do Código Civil, como ainda, de harmonia com o disposto no n.º 3 do referido preceito legal, a critérios de equidade, atendendo, entre outros factores, ao grau de culpa do agente, à situação económica do lesado, à desvalorização da moeda e aos padrões geralmente utilizados na jurisprudência .

Note-se que a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, fixa os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, nos termos do disposto no capítulo III do título II do Decreto – Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (art. 1.º, n.º 1 da citada Portaria)…

Todavia, como já tem vindo a ser decidido na Jurisprudência e com o qual se concorda, tal Portaria não é vinculativa para os Tribunais – cfr. Ac. T.R. Coimbra, de 01/02/2011; proc. n.º 1/09.3T2AND.C1… – embora possa servir como elemento orientador.

Neste tipo de danos não patrimoniais é necessário relevar as dores, o desgosto, as insuficiências, o estado psicológica adveniente do ato lesivo, os tratamentos e intervenções cirúrgicas a que foi submetida (o quantum doloris que sofreu), o dano estético de que a autora ficou a padecer, bem ainda todas as sequelas que lhe resultaram das agressões de que foi vitima, o período de internamento e duração dos tratamentos e a circunstância de nenhuma culpa poder ser assacada à autora pela produção das lesões…

Revertendo ao caso concreto é necessário considerar a factualidade dada como provada em 5., 6., 7., 8., 10. e 11., ou seja, relevam as concretas lesões sofridas pela autora e as sequelas das mesmas, as dores sofridas, os tratamentos de fisioterapia e ortopedia a que foi submetida, o número de dias que esteve internada, em clausura hospitalar, as cicatrizes que ficou a ostentar, o elevado número de dias (377 dias) que a  autora se viu limitada no seu dia a dia, a idade da autora à data do evento lesivo; o quantum doloris que foi fixado no ponto 5 numa escala de 7, o dano estético, fixado em 1 numa escala de 7, os esforços suplementares que a mesma terá de suportar para desenvolver o seu trabalho habitual, a ausência de culpa na eclosão do evento – pois que a mesma, em nada contribuiu para a sua verificação – o que não pode deixar de ser tido em conta em sede de arbitramento de indemnização por dano não patrimonial.

Assim, em face das considerações supra referidas e tendo em conta que, à autora, já foi atribuída uma indemnização no valor de €30.000,00, por danos não patrimoniais, relativos a dores, angústias e terror vivenciado aquando dos factos, o Tribunal reputa justo fixar à autora, a título de danos não patrimoniais, uma indemnização no valor de € 10.000,00 (dez mil euros), a qual é objeto de cálculo atualizado.»

Mais uma vez este discurso apresenta-se, desde logo, em tese, curial.

Em seu abono e algo redundantemente acrescenta-se o seguinte:

Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – artº 496º nº1 do CC.

 Efetivamente: «...os prejuízos insignificantes ou de diminuto significado, cuja compensação pecuniária não se justifica, que todos devem suportar num contexto de adequação social, cuja ressarcibilidade estimularia uma exagerada mania de processar e que, em parte, são pressupostos pela cada vez mais intensa e interactiva vida social hodierna. Assim não são indemnizáveis os diminutos incómodos, desgostos e contrariedades, embora emergentes de actos ilícitos, imputáveis a outrem e culposos» - R. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, 1995 p.555/556.

O dano não patrimonial não se reconduz a uma única figura, tendo vários componentes e assumindo variados modos de expressão, abrangendo o chamado quantum doloris, que sintetiza as dores físicas e morais sofridas; o “dano estético”, que simboliza, nos casos de ofensa à integridade física, o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões; o “prejuízo de afirmação social”, dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afetiva, recreativa, cultural, cívica); o prejuízo da “saúde geral e da longevidade”, em que avultam o dano da dor e o défice de bem-estar e que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem-estar da vítima; o pretium juventutis, que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida – cfr. Ac. do STJ de 18.06.2009, dgsi.pt, p. 1632/01.5SILSB.S1.

Há, também, que ter presente que, logo a seguir ao bem vida, os direitos de personalidade e a integridade física- cuja preservação é necessária para se manter a própria dignidade e amor próprio e para possibilitar uma sã (lato sensu) convivência social - são, quiçá, os direitos com maior dignidade e que importa respeitar e defender.

Acresce que a indemnização por danos não patrimoniais reveste uma natureza acentuadamente mista.

 Por um lado visa, mais do que indemnizar, reparar os danos sofridos pela pessoa lesada; pretende-se proporcionar ao lesado uma compensação ou benefício de ordem material - a única possível -, que lhe permite obter prazeres ou distrações - porventura de ordem puramente espiritual - que, de algum modo, atenuem o desgosto sofrido: não consiste num pretium doloris, mas antes numa compensatio doloris.

Por outro lado não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente, «assumindo uma componente punitiva devendo, pelo seu montante, reflectir o grau de censura da actuação do lesante» - Ac. do  Ac STJ de 19/5/2009 sup. cit.

 No que tange ao apuramento do  justo quantum destes danos.

Obviamente que é sempre difícil apurar, com rigor, a adequação do montante compensatório dos danos não patrimoniais, de sorte a que com o mesmo se possam minorar as afetações negativas sofridas, operando-se, assim, com a maior aproximação possível, a justiça do caso concreto.

Como é pacífico, a  gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo, que tenha em conta o circunstancialismo de cada caso, e não por padrões subjetivos, resultantes de uma sensibilidade particular.

Devendo ainda considerar-se e reiterar-se que a recente jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal vem reconhecendo que se torna necessário elevar o nível dos montantes dos danos morais, perante o condicionalismo económico do momento, e o maior valor que hoje se atribui à vida, integridade física e dignidade humanas.

 Sendo que, hodiernamente se vislumbra sedimentada uma corrente jurisprudencial que visa afastar critérios miserabilistas de fixação desta espécie de danos, pautando-se por uma justa, naturalmente mais elevada, fixação dos montantes indemnizatórios.

Efetivamente: «“É inegável a presença de um certo esforço, no sentido da dignificação das indemnizações. Importante é, ainda, a consciência do problema por parte dos nossos tribunais. Há, agora, que perder a timidez quanto às cifras…

Não vale a pena dispormos de uma Constituição generosa, de uma rica e cuidada jurisprudência constitucional e de largos desenvolvimentos sobre os direitos de personalidade quando, no terreno, direitos fundamentais tais como a vida valham menos de € 60.000.”» -   Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, 755, apud, Ac. do STJ de  07.05.2014, p. 436/11.1TBRGR.L1.S.

Certo é que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, e designadamente, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso  - arts. 496º, nº 3 e 494º do C.C.

E havendo aqui, naturalmente, que conviver e aceitar uma certa álea e relatividade das decisões judiciais, características que são inerentes a tais decisões como aliás a qualquer atividade  humana que não se estribe em premissas de cariz científico-natural ou matemático.

Pelo que o quantum compensatório fixado a este título, sendo-o, por apelo ao juízo équo, apenas poderá ser  censurado quando ele se revele manifestamente desajustado e desproporcionado, não apenas  face aos contornos/limites conformadores do caso concreto, como, outrossim, por comparação com os fixados pela jurisprudência em casos análogos ou semelhantes – cfr. entre outros, o Ac. do STJ de 20.04.2021, p. 1751/15.0T8CTB.C1.S1, in dgsi.pt.

Importando, assim, não apenas dilucidar tais contornos, como, também, perspetivar as diversas decisões prolatadas em casos similares para se tentar operar a fixação de valores idênticos.

Pois que apenas assim se consecute a justiça do caso e, bem assim,  se contribui não só para a certeza e segurança do direito como, também, para a  almejada realização da justiça material, quer na sua vertente absoluta, quer na vertente relativa ou comparativa.

Na verdade:

«O recurso à equidade não afasta a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios…» -  Ac. do STJ  de 24.09.2009, p. 09B0037 in dgsi.pt.

Assim, e neste particular, atente-se, a título exemplificativo, em algumas deliberações dos Tribunais Superiores.

- O Ac. do STJ de 21.01.2016, P. nº 1021/13,  para lesado de 27 anos, com múltiplos traumatismos, sequelas psicológicas, quantum doloris de grau 5, dano estético de 2 pontos, incapacidade parcial de 16 pontos, repercussão nas actividades desportivas e de lazer, claudicação na marcha e rigidez da anca direita, arbitrou  €50 mil euros.

O Ac. do STJ de 19.09.2019 P. 2706/17 para lesado com 45 anos, com IPG de 32 pontos, internamento hospitalar, intervenção cirúrgica, dores físicas muito intensas, repercussões na atividade profissional e particular que deixou de poder exercer ou praticar. fixou em €50.000,00.

- O Ac. do STJ de 10.12.2020, p. 8040/15.9T8GMR.G1.S1, para um caso com internamentos hospitalares e intervenções cirúrgicas; sequelas no membro inferior esquerdo; consultas de fisioterapia; limitações físicas, designadamente, a impossibilidade de correr e de se agachar; claudicação na marcha; 125 dias de ITA e 1.157 dias de ITP; quantum doloris de 6 numa escala de 7; prejuízo estético, limitações na atividade sexual,  arbitrou  55 mil euros.

E quantias ainda mais vultuosas têm sido arbitradas, posto que para casos com incidências e sequelas ainda mais gravosas do que as do presente caso e, inclusive, do que as dos casos ora citados.

Veja-se o Ac. do STJ de 16.03.2017, p. 294/07.0TBPCV.C1.S1, que fixou o montante de cem mil euros.

Descendo ao caso vertente.

Desde logo cumpre ter presente que inexiste cumulação ou sobreposição, mas antes complementaridade, entre a  compensação de trinta mil euros  fixada a este título no acórdão pretérito e a aqui impetrada.

Na verdade, naquele processo a compensação foi fixada com base em factualidade diversa da aqui considerada, qual seja,  a atinente « a dores, angústias e terror vivenciado aquando dos factos».

Já a presente compensação é pedida na sequência  daquela decisão que condenou neste particular no que se liquidasse em execução de sentença «por reporte… (às) consequências físicas e psicológicas decorrentes da conduta do arguido e pelo dano estético sofrido pela demandante».

São, pois, realidades diferentes, sendo que esta última se atém, ao menos essencial e determinantemente,  às consequências decorrentes do dano biológico, o qual, assim, aqui outrossim tem de ser considerado na sua vertente não patrimonial.

Neste particular provou-se, com relevância essencial, o seguinte acervo factual:

- As lesões provocadas em 14.10.2015  levaram a que fosse transportada ao Hospital de …. de onde foi transferida para … onde ficou internada, correndo risco de vida, até 22 de outubro de 2015, tendo sido encaminhada para consulta externa (fisioterapia e ortopedia) (…).”

- Período do Défice funcional temporário total fixável em 9 dias;

- Período do Défice funcional temporário parcial fixável em 377 dias;

- Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total fixável em 170 dias;

- Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial fixável em 216 dias;

- Quantum Doloris fixável no grau 5/7.

- Défice Funcional Permanente da Integridade Física- Psíquica fixável em 15,29272pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro;

- As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional compatíveis com o exercício da atividade habitual mas implicam esforços suplementares;

- Dano estético Permanente fixável no grau 1/7.”

- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 15.02.2017.

Apresenta as seguintes sequelas:

- Crânio: cicatriz frontal direita oblíqua com 4,5 cm de maior eixo por 0,5 cm de eixo menor; tendo também cicatrizes no joelho e tornozelo.

- Membro superior esquerdo: Subjetivos dolorosos à mobilização do punho ainda que com mobilidades normais, sem atrofias musculares ou alterações da sensibilidade;

- Membro inferior esquerdo: cicatriz da face anterior do joelho com 3 cm de maior eixo por 2 cm de eixo menor. Subjetivos dolorosos à exploração; de joelho estável, sem edema, com mobilidade normal

- Dor à exploração da face lateral do pé.

- Sente a perna sempre inchada e tem nela dores que aumentam quando muda o tempo.

- Sofre tonturas e dores de cabeça.

- Deixou de usar saltos altos pela dor que sente no tornozelo, tendo até dificuldade em encontrar calçado, porque nem sempre o mesmo numero serve em ambos os pés.

- Tudo isto a afeta por a limitar nas tarefas básicas do dia a dia, como cozinhar, limpar a casa, passar a ferro.

 - Estas limitações e dores irão acompanhá-la por tempo indeterminado e só recorrendo a analgésicos consegue controla-las.

-  A ofendida nunca mais poderá exercer essa sua atividade  de cabeleireira sem sacrifício, atentas as dores acima referidas e que lhe dificultam o manobrar dos instrumentos.

Perante este acervo factual e o supra aludido em tese, conclui-se, sem dúvidas, que estamos perante danos de cariz não patrimonial com óbvia gravidade (objetiva e subjetiva), a merecerem, assim, uma tutela jurídica efetiva e realista.

Aliás, o ato praticado, ademais de modo  brutal, inopinado e traumatizante, e as lesões dele decorrentes, ferem acentuadamente os direitos de personalidade da autora – maxime a sua integridade física e psicológica e o seu bem-estar.

E o valor de 10.000,00 euros fixados na sentença alcança- se, senão o rigorosamente justo e adequado – fito este, aliás, e como se aludiu, sempre muito difícil de atingir nesta matéria –, ao menos perfeitamente admissível, porque ínsito dentro de parâmetros, mínimo e máximo, aceitáveis.

Na verdade, e desde logo em termos de realização de justiça do caso, há, vg., que considerar: i) os ferimentos e sequelas causados pelo sinistro, o/as quais assumem  elevada gravidade e foram, estão a ser e serão, afetantes da saúde, física e mental, da autora, e do seu bem estar geral; ii) o valor aquisitivo da quantia arbitrada, o qual,  atento o custo de vida atual e a idade da vítima, que, em termos de normalidade, lhe permitirá ainda viver mais de vinte anos, não é muito elevado; iii) a  inexistência de qualquer contribuição da lesada para a ocorrência do facto ilícito; iii) tratar-se de um crime muito grave na prática do qual o recorrente demonstrou uma forte e acentuada carga dolosa.

E em termos de justiça comparativa, considerando os valores arbitrados nas deliberações supra exemplificativamente plasmadas, os quais, não obstante regerem para casos mais graves, fixaram montantes mais elevados do que o presente.

 Pelo que, operando uma análise para aferir da proporcionalidade  que terá de existir em função das sequelas provadas e das compensações fixadas em tais deliberações e na deste nosso caso, não se pode concluir, que o montante aqui arbitrado, se mostre desproporcionado, por excesso.

Antes, pelo contrário, se mostrando algo parcimonioso e comedido e, quiçá, próximo do limite mínimo admissível.

Improcede o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

I – Provando-se que a vítima teve um  Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total de 170 dias e, bem assim, um Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial de 216 dias, tem de concluir-se - porque encerram realidades diversas e inconciliáveis: - incapacidade total e incapacidade parcial -  que tais períodos não são coincidentes, mas antes cumulativos.

II - O dano biológico pode assumir-se como patrimonial e/ou não patrimonial, traduz-se, nuclearmente, num handicap físico-emocional que, ainda que não implique perda remuneratória, torna mais penosa a realização das tarefas quotidianas, profissionais e pessoais, e é, decisivamente, calculado via juízo équo.

 III – No caso de uma lesada com 52  anos,  auferindo cerca de 350 euros mensais, à qual foi fixado um défice Funcional Permanente da Integridade Física- Psíquica fixável em 15,29272pontos, com admissão  de dano futuro, é  admissível, casuística e comparativamente, fixar, na vertente patrimonial, a indemnização de vinte mil euros.

IV - Sendo a lesão da integridade física e psicológica, máxime se com sequelas futuras, um dano muito grave, ele merece adequada compensação, pelo que a atual doutrina e jurisprudência defendem, justamente, o abandono de compensações, por danos não patrimoniais, minudentes e quasi miserabilistas.

V - Provando-se, nuclearmente, que a lesada, de 52 anos:  foi vitima de tentativa de homicídio;   ficou internada oito dias em perigo de vida;  ficou com cicatriz frontal direita oblíqua com 4,5 cm; sente dores nos pulsos, pernas, pés e cabeça;  teve um Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total  de 170 dias; um  Quantum Doloris fixável no grau 5/7;  um  Dano estético Permanente fixável no grau 1/7; um Défice Funcional Permanente da Integridade Física- Psíquica fixável em 15,29272pontos; as sequelas, ainda que compatíveis com o exercício da atividade habitual implicam esforços suplementares e são afetantes das tarefas diárias, a quantia de dez mil euros como compensação pelo dano biológico na vertente não patrimonial, alcança-se, quer em termos absolutos, quer comparativos, - e sendo que a este título, por factos diversos do mesmo crime, já tinha sido, em sede criminal, compensada em trinta mil euros - aceitável.

7.

Deliberação.

Termos em que se decide julgar o recurso improcedente, e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2021.06.22.

Carlos Moreira
João Moreira do Carmo
Fonte Ramos