Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
222/10.6TBVIS-K.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: HABILITAÇÃO
INCIDENTE
FUNDO DE GARANTIA SALARIAL
TÍTULO DE CESSÃO
Data do Acordão: 03/10/2015
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 356 CPC, LEI Nº 35/2004 DE 29/7
Sumário: No caso de incidente de habilitação requerido pelo Fundo de Garantia Salarial, por pagamento de salários aos trabalhadores de devedora insolvente, o título da cessão, previsto no art. 356º, nº 1, a), do NCPC, é constituído pelo requerimento do trabalhador ao FGS, pelo deferimento do mesmo, total ou parcial, e pelo comprovativo do pagamento das quantias salariais ao trabalhador.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. Por apenso ao processo de insolvência de H (…) Lda, veio o Fundo de Garantia Salarial deduzir incidente de habilitação contra Massa Insolvente de H (…) Lda, credores e 4 trabalhadores e credores reclamantes, que identificou, requerendo seja habilitado no lugar dos aludidos trabalhadores/credores reclamantes para efeitos do processo de insolvência.

Para tanto, alegou ter efectuado o pagamento dos créditos emergentes da cessação do contrato de trabalho aos referidos trabalhadores num total de 32.352,18 €, ficando assim sub-rogado, nos termos do art. 322º da Lei 35/2004, de 29.7, nos direitos e privilégios desses trabalhadores na medida dos pagamentos efectuados.

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Foi, depois, proferido despacho de indeferimento liminar.

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2. O FGS interpôs recurso, e apresentou as seguintes conclusões:

1.- A sub-rogação do FGS nos direitos dos trabalhadores, a quem efectuou o pagamento de créditos salariais, decorre diretamente do artigo 322.º da Lei n.º 35/2004, de 29/07. É portanto, uma sub-rogação legal, sem necessidade de especial documento ou formalidade que a titule.

2.- Os pagamentos efetuados, no presente caso pelo FGS aos trabalhadores a insolvente H (...) , Lda., estão devidamente demonstrados e titulados nos autos através dos documentos juntos: Certidão do montante global pago, que configura documento autêntico; Mapa de créditos, e ainda Requerimentos dirigidos pelos trabalhadores ao FGS solicitando o pagamento dos créditos salariais e respectivas decisões de deferimento parcial desses requerimentos.

3.- Assim, estando junto aos autos o título idóneo de aquisição ou cessão a que se refere o artigo 356.º, n.º 1 alínea a) do Código de Processo Civil.

4.- Sobre a questão de saber qual o documento ou documentos que configuram o título de aquisição ou cessão, a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 356.º do Código de Processo Civil (aqui aplicável na redacção dada pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, já em vigar à data da apresentação nos autos do requerimento de habilitação do FGS), no âmbito da sub-rogação legal consagrada no artigo 322.º da Lei n.º 35/2004, de 29/07, pronunciou-se já este Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, nomeadamente, no Acórdão de 19/04/2013, proferido no âmbito do Proc. n.º 1629/10.4TBVIS-J.C1 (que aqui se junta como Doc. n.º 1). Aí decidindo este Venerando Tribunal que “No caso do FGS, o título será constituído pelo requerimento do trabalhador ao FSG, seu deferimento e pagamento das quantias salariais ao trabalhador.”

5.- Encontrando-se, assim, preenchidos nos autos todos os requisitos processuais de que o referido artigo 356.º, n.º 1 alínea a) do Código de Processo Civil faz depender o prosseguimento do incidente de habilitação. Que assim deveria ter sido admitido pelo Meritíssimo Juiz a quo.

6.- A não coincidência dos valores relativamente aos quais o FGS requereu a sua habilitação e sub-rogação, com os valores reclamados nos autos de insolvência pelos trabalhadores fica, inteiramente, a dever-se à aplicação dos critérios que a própria lei, nos artigos 319.º e 320.º da Lei n.º 35/2004, impõe aos pagamentos a efetuar pelo FGS.

7.- No momento em que o FGS veio aos presentes autos de insolvência exercer o seu direito de sub-rogação já os créditos reclamados pelos trabalhadores, e relativamente a parte dos quais se operou a sub-rogação, estavam definitivamente estabilizados, em virtude do seu reconhecimento operado pelas sentenças proferidas no âmbito das ações de verificação ulterior apensas aos presentes autos de insolvência.

8.- O facto de terem sido os trabalhadores, por sua iniciativa, a reclamar junto do instituto com poderes para tal – o FGS – o pagamento de determinada quantia que a sua entidade empregadora/insolvente lhe devia, manifesta uma clara e expressiva declaração de vontade da sua parte em se fazer valer de mecanismos que a lei coloca à sua disposição para que lhe fossem pagos os créditos salariais em débito.

9.- Ora esta manifestação de vontade por parte dos trabalhadores/credores afasta, também na sua relação trabalhador/FGS, a existência de qualquer litígio sobre a quantia que lhe foi entregue na pendência do processo de insolvência e daí que se não verifique também por esta parte qualquer carácter litigioso dos créditos em causa.

10.- E assim, a efetivação da habilitação e sub-rogação que aqui pretende operar o FGS, para que no rateio final seja considera e lhe seja paga a quantia que adiantou aos trabalhadores da insolvente, poderia inclusive ser operada por simples requerimento autónomo dirigido aos autos.

11.- O que quer dizer que, o uso pelo FGS do incidente de habilitação contra a insolvente devedora, os trabalhadores e os demais credores, possibilitando-lhes a apresentação de contestação ao pedido formulado, configura um meio processual ainda mais protetor e garantístico dos direitos desses sujeitos processuais do que aquele que seria suficiente para operar a sub-rogação pretendida.

12.- Não faz sentido exigir-se que o FGS venha aos autos reclamar créditos (por meio de reclamação de créditos ou por meio de ação ulterior para verificação de créditos) que já se encontram reclamados pelos trabalhadores (credores originais) e reconhecidos por sentença transitada, quando o que se pretende é apenas assumir uma posição processual já estabilizada e não discutir qualquer relação jurídica material inerente a tal posição.

13.- Nesse sentido decidiu já este Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão de 30/11/2010, proferido nos autos do Proc. n.º 2057/08.7TBACB-F.C1, publicado em www.dgsi.pt, em que igualmente foi considerado devidamente instruído, “com certidão emitida pelo FGS comprovativa do pagamento e da pretendida sub-rogação do crédito pago”, o requerimento por esse Fundo apresentado nos autos.

14.- A sentença recorrida decidiu, entre o mais, em violação do disposto nos artigos 317.º a 326.º da Lei n.º 35/2004, de 29/07; 356.º do CPC; 592.º e 593.º do CC; 128.º, 129.º, 130.º, 140.º e 146.º do CIRE.

Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. Mui doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, e em consequência, revogar-se a sentença proferida em 04/02/2014 pelo Tribunal a quo, substituindo-a por decisão que admita o requerimento de habilitação e sub-rogação apresentado nos autos pelo Fundo de Garantia Salarial e ordene a citação dos requeridos, para que, cumprindo-se os demais tramites processuais, seja proferida decisão que declare que o Fundo se encontra sub-rogado nos direitos e privilégios dos trabalhadores identificados no requerimento inicial na medida dos pagamentos a estes efectuados, o que deverá ser tomado em consideração em todas as operações subsequentes, nomeadamente, de rateio e pagamento.

Assim decidindo, farão V. Exas.

JUSTIÇA

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

Os factos provados são os que decorrem do relatório supra, a que acresce a fundamentação da decisão recorrida que infra (em III, ponto 2.) se transcreverá.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Suficiência do título da cessão apresentado pelo FGS.

2. Na decisão recorrida escreveu-se que:

“Segundo resulta dos documentos de fls. 6-7 do PP, o requerente peticiona quantias que não coincidem no respectivo montante com as reclamadas nos autos.

Verifica-se por outro lado que a certidão de fls. 39 do PP apresentada pelo requerente também não configura título idóneo de cessão ou aquisição/"sub-rogação" na medida em que se limita a mencionar o montante global da importância paga a trabalhadores da insolvente, sem os identificar e sem discriminação das parcelas que integram essa importância global, o que não permite ajuizar da identidade do crédito em causa com os créditos reclamados na insolvência.

Dir-se-á ainda que o documento particular intitulado "mapa de créditos FGS" nada titula nem comprova, não configurando título de aquisição/cessão para efeitos do disposto no art. 356º do CPC, o que também sucede com os requerimentos dirigidos ao FGS pelos trabalhadores em causa (juntos a fls. 12 e seg).

Do atrás exposto resulta que não foi junto aos autos documento comprovativo idóneo de que se verificam os pressupostos da substituição processual pretendida, sendo certo que também não existe coincidência entre os montantes reclamados pelos trabalhadores nos autos mencionados na informação que antecede e o montante ora invocado.

Resulta do exposto que não se encontram reunidos os pressupostos necessários para que a requerente possa lançar mão do presente incidente…”.
A Lei 35/2004, de 29.7 (que regulamentou a Lei 99/2003, de 28.8 que aprovou o Código do Trabalho, nomeadamente o artigo 380º) declara no seu art. 322º que:
O Fundo de Garantia Salarial fica sub-rogado nos direitos de crédito e respectivas garantias, nomeadamente privilégios creditórios dos trabalhadores, na medida dos pagamentos efectuados acrescidos dos juros de mora vincendos.
Da conjugação do disposto no citado art. 322º e do prescrito nos arts. 589º, 592º, nº 1, e 593º, nº 1, do CC, foi à ora apelante cedido pelos referidos 4 trabalhadores/credores o crédito ou parte dele que tinham sobre a devedora insolvente. Ficando, assim, investido na posição jurídica até aí pertencente ao credor/trabalhador pago.
É, pois, baseado neste quadro legal que o FGS vem pela via da sub-rogação e na medida do pagamento que efectuou aos aludidos 4 trabalhadores requerer a sua habilitação.
Determina o art. 356º do NCPC:
1. A habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, far-se-á nos termos seguintes:
a) Lavrado no processo o termo de cessão ou junto ao requerimento de habilitação, que é autuado por apenso, o título de aquisição ou da cessão, é notificada a parte contrária para contestar; na contestação pode o notificado impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo.
b) Se houver contestação, o requerente pode responder-lhe e em seguida, produzidas as provas necessárias, é proferida decisão; na falta de contestação, verifica-se se o documento prova a aquisição ou a cessão e, no caso afirmativo, declara-se habilitado o adquirente ou cessionário.
2. A habilitação pode ser promovida pelo transmitente ou cedente, pelo adquirente ou cessionário, ou pela parte contrária; neste caso, aplica-se o disposto no número anterior, com as adaptações necessárias.

O FGS instruiu o seu requerimento com os seguintes elementos documentais:

- todos os requerimentos dirigidos pelos 4 referenciados trabalhadores da insolvente (…), Lda. ao FGS (a fls. 12/13, 18/19, 24/25 e 30/31);

- decisões de deferimento parcial, proferidas pelo Presidente do Conselho de Gestão do FGS, que sobre tais requerimentos recaíram (a fls. 14/15, 20/21, 26/27 e 32/33);

- certidão, emitida pelo Presidente do Conselho de Gestão do FGS, comprovativa do montante global, por este Fundo, pago aos mencionados 4 trabalhadores (a fls. 39);

- mapa de créditos, no qual se discriminam os valores concretos pagos a cada um dos trabalhadores e relativamente aos quais se requer a sub-rogação prevista no citado art. 322º da Lei 35/2004 (a fls. 6/7).

Sendo que os primeiros três elementos estão de acordo com o ritualismo processual estabelecido nos arts. 323º a 326º da mesma Lei 35/2004, sendo o quarto elemento explicativo.

Desta maneira, podemos concluir, sem qualquer ousadia, que no caso do FGS o título da cessão é constituído, pelo requerimento do trabalhador ao FGS, pelo deferimento do mesmo, total ou parcial, e pelo comprovativo do pagamento das quantias salariais ao trabalhador.

Ora, no caso concreto estes três requisitos verificam-se, pelo que é manifesto que existe título de cessão, ao contrário do que é dito na fundamentação do despacho recorrido. 

Nesta fundamentação levanta-se, ainda, outra objecção, a de que não existe coincidência, no respectivo montante, entre as quantias pagas pelo FGS e as anteriormente reclamadas nos autos pelos trabalhadores da insolvente, e já reconhecidas. Esta argumentação nunca seria causa de indeferimento liminar total do incidente de habilitação (quando muito parcial).

Contudo a explicação é simples, pois tal deve-se à aplicação dos critérios que a própria lei impõe aos pagamentos a efectuar pelo FGS.

Compulsados os arts. 319º e 320º da indicada Lei 35/2004, prevê-se neles quais os créditos salariais abrangidos pelo FGS e quais os limites que devem presidir aos respectivos pagamentos, não assegurando, assim, o FGS o pagamento da totalidade dos créditos salariais não pagos pelas entidades empregadoras declaradas insolventes.

Efectivamente dispõe o art. 319º que o FGS apenas assegura o pagamento dos créditos que se tenham “vencido nos seis meses que antecedem a data da propositura da acção” (no caso da acção de insolvência) – nº 1; ou “caso não haja créditos vencidos no período de referência mencionado no número anterior, ou o seu montante seja inferior ao limite máximo definido no nº 1 do artigo seguinte, o Fundo de Garantia Salarial assegura até esse limite o pagamento de créditos vencidos após o referido período de referência” – nº 2; mais, o FGS “só assegura o pagamento dos créditos que lhe sejam reclamados até três meses antes da respectiva prescrição” – nº 3.

E dispõe, ainda, o artigo 320º que “os créditos são pagos até ao montante equivalente a seis meses de retribuição, não podendo o montante desta exceder o triplo da retribuição mínima mensal garantida” – nº 1.

Daí que os montantes não tenham necessariamente de coincidir.

E daí, também, que o FGS apenas venha requerer a sua habilitação por sub-rogação nos direitos dos trabalhadores na medida da satisfação que por si foi dada aos créditos dos mesmos.

Inexiste, por isso, face ao acabado de explicitar motivo para indeferimento liminar.

3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) No caso de incidente de habilitação requerido pelo Fundo de Garantia Salarial, por pagamento de salários aos trabalhadores de devedora insolvente, o título da cessão, previsto no art. 356º, nº 1, a), do NCPC, é constituído pelo requerimento do trabalhador ao FGS, pelo deferimento do mesmo, total ou parcial, e pelo comprovativo do pagamento das quantias salariais ao trabalhador.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, assim se revogando o despacho recorrido, e, em consequência, ordena-se o prosseguimento dos autos.

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Sem custas.

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  Coimbra, 10.3.2015

  Moreira do Carmo ( Relator )