Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1224/10.8TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: CASO JULGADO
DOMINIALIDADE
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Data do Acordão: 02/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 387º DO CPC
Sumário: I A indefinição quanto aos limites de dois prédios confinantes, alcançada numa acção declarativa de condenação na qual o proprietário de um dos prédios reivindicava determinado espaço adjacente ao outro prédio, forma caso julgado quanto a essa situação: indefinição da dominialidade do espaço reivindicado.

II – A projecção deste caso julgado material impede a posterior propositura de um procedimento cautelar visando a exclusão de quem foi réu na anterior acção do uso do espaço aí reivindicado, correspondendo o efeito visado pelo procedimento ao resultado que nessa acção foi excluído por indemonstração.

III – Independentemente disto, essa não demonstração com a cobertura de caso julgado, exclui por si só a verificação do requisito da plausibilidade do direito pretendido acautelar, previsto no nº 1 do artigo 387º do CPC.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. No dia 21 de Abril de 2010, autonomamente de qualquer acção declarativa anteriormente proposta, foi requerido o presente procedimento cautelar comum[1] [artigos 381º e segs. do Código de Processo Civil (CPC)], por J… e mulher, M… (Requerentes e aqui Apelantes), sendo o mesmo dirigido contra A… e mulher, B…, C…e mulher, D…, E…e F… (Requeridos e aqui Apelados).

            Neste procedimento formularam os Requerentes o seguinte pedido de tutela cautelar:
“[…]
Deve ser decretada providência cautelar que ordene aos Requeridos que se abstenham de entrar e/ou circular no prédio dos Requerentes, nomeadamente no releixo do mesmo e cuja área é […] (302,94 m2), de obstruir a entrada aos Requerentes, a partir da Rua Pública, para o seu prédio e releixo, de construírem, alterarem, alienarem e/ou onerarem, seja de que modo for, (n)aqueles prédio e releixo […].
[…]”
            [transcrição de fls. 11/12]

            Sustentando este pedido invocaram os Requerentes uma situação de confinância das estremas de um seu prédio urbano com as de um prédio rústico dos Requeridos, atribuindo a estes a destruição, no princípio de 2008, dos elementos de separação dos prédios (um alpendre, lagar e tanque e, ainda, um muro, três peirões, uma parreira e uma rede), invadindo uma área – o referido releixo – pertencente ao prédio dos Requerentes.

            1.1. Os Requeridos deduziram oposição[2], contestando a existência de fundamento para atendimento da pretensão dos Requerentes, invocando, adicionalmente, a formação de caso julgado contrário a essa pretensão, através de um anterior pronunciamento desfavorável aos Requerentes, no âmbito da acção declarativa de condenação correspondente ao processo nº 1590/08.5 do 4º Juízo do Tribunal de Viseu (refere-se a esta a Sentença certificada a fls. 20/27).

            1.2. Findos os articulados foi a providência cautelar indeferida pela Sentença de fls. 219/248 – que constitui a decisão objecto do presente recurso –, através do seguinte pronunciamento decisório:
“[…]
- julga[se] procedente a excepção dilatória do caso julgado e, na procedência da mesma, absolv[e-se] os Requeridos A… e mulher B…da instância, em relação ao pedido (implícito) de reconhecimento do direito de propriedade dos requerentes J…e mulher M… sobre o prédio identificado no art. 1º do requerimento inicial e sobre o «releixo» invocado,
- na parte não afectada pela referida excepção dilatória, julga[-se] desde já improcedente a pretensão deduzida pelos requerentes e não [se decreta] a providência cautelar pelos mesmos requerida, absolvendo[-se] todos os requeridos dos pedidos por aqueles formulados.
[...]”
            [transcrição de fls. 247]

            1.3. Inconformados, interpuseram os Requerentes o presente recurso, motivando-o a fls. 252/268, rematando esta motivação com as conclusões que aqui se transcrevem:
“[…]


II – Fundamentação

            2. Encetando a apreciação do recurso, tenha-se presente que o âmbito objectivo deste foi delimitado pelas conclusões transcritas no item anterior (vejam-se os artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 ambos do CPC).

            Os factos a considerar – correspondem eles essencialmente a incidências respeitantes a um anterior processo cível (1590/08.5TBVIS do 4º Juízo Cível de Viseu), cuja decisão final transitou e produziu caso julgado material –, os factos a considerar aqui, dizíamos, foram enunciados na Sentença apelada nos termos que ora se transcrevem, sublinhando-se que os Apelantes não contestam esse elenco:
“[…]
1) Sob o nº 1590/08.5TBVIS do 4º Juízo Cível deste Tribunal, correu termos uma acção sumária proposta por J…e mulher M… contra A…e mulher B…, em que os então autores pediram que os então réus sejam condenados a:
- reconhecerem que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia de ... sob o art. …, duplicado no art. … e descrito na 2ª CRP de Viseu sob o nº… e inscrito a favor dos autores sob a ap. 22 de 2002/05/20,
- reconhecerem que de tal prédio fazem parte integrante além do mais, o barracão, pátio, alpendre (coberto), lagar e o tanque referidos,
- reporem aqueles alpendre (coberto), lagar e tanque, que destruíram, no estado anterior à sua destruição e remoção do local,
- reporem no local os peirões, a parreira, a rede que destruíram,
- absterem-se de, por qualquer modo, perturbarem e/ou impedirem o exercício do direito de propriedade dos autores sobre aquele prédio e suas partes integrantes e/ou arrogarem-se ou fazerem-se passar por donos, seja perante quem e de que modo for, do todo ou parte daquele prédio urbano, nomeadamente dos ditos alpendre, lagar e tanque.
2) Na acção referida em 1), alegaram os então autores, em síntese, que:
- são donos e legítimos possuidores do prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia de ... sob o art. …, duplicado no art. … e descrito na 2ª CRP de Viseu sob o nº … e inscrito a favor dos autores sob a ap. 22 de 2002/05/20,
- desse prédio fazem parte integrante um pátio, um barracão, um alpendre (coberto) com cerca de 18 m2, um lagar de cerca de 2,25m2 e um tanque com cerca de 3 m2, a facearem estes últimos com a via pública e contíguos a nascente com o prédio dos réus,
- desde há mais de 20, 30 anos que os AA e respectivos antecessores possuem tal prédio urbano, habitando-o, melhorando-o, reparando-o, construindo o barracão, o alpendre (coberto), o lagar e o tanque, onde faziam o vinho e lavavam a roupa, depositando e guardando no barracão e alpendre (coberto) o que bem entenderam,
- os réus são donos do prédio rústico que confronta do poente com os autores, inscrito na matriz sob o art…. e descrito na 2º CRP de Viseu sob o nº … da freguesia de ...,
- a estrema entre os dois prédios sempre se definiu e estabeleceu através de um pequeno muro de blocos de cimento com a espessura de 15 cm de largura e na sua parte final, sentido Sul-Norte, pelos aludidos alpendre (coberto), lagar e tanque,
- há cerca de 2/3 meses o autor apercebeu-se que o réu marido havia destruído os ditos alpendre, lagar e tanque e removido do local os respectivos destroços, tinha derrubado 3 peirões, colocados ao longo daquele muro que faz a estrema, mas dentro do prédio (pátio) do autor marido e ainda a parreira que aqueles suportavam, bem como a rede que evitava a passagem de animais e pessoas de um lado para o outro,
- o réu procedeu a tais destruições no intuito de se apropriar do espaço correspondente aqueles alpendre, lagar e tanque, necessário para o seu terreno ter frente suficiente para a via pública de modo a poder nele implantar uma construção, arrogando-se dono daquele espaço.
3) Na acção referida em 1), e em relação ao prédio descrito na 2º CRP de Viseu sob o nº … da freguesia de ..., alegaram os então réus que «afora das paredes e do prédio interior, os autores nada têm de seu», «afora da parede da casa e no enfiamento desta, na parte em que confina com o prédio rústico dos réus, nada têm».
4) Na acção referida em 1), foi formulado na base instrutória do despacho saneador o seguinte quesito, com o nº 5: «Do prédio referido em A) – nº … da freguesia de ... – faz parte integrante um pátio, um barracão, um alpendre (coberto) com cerca de 18 m2, um lagar de cerca de 2,25 m2 e um tanque com cerca de 3 m2?»
5) Na acção referida em 1), o quesito nº 5 da base instrutória mereceu a seguinte resposta: «Provado apenas que entre o prédio referido em A) – sendo ele o dos autores – e o referido em F) – sendo ele o dos réus – existe um barracão, um alpendre coberto com cerca de 18 m2, um lagar de cerca de 2,25 m2 e um tanque com cerca de 3 m2.
6) Na acção referida em 1), perguntava-se no quesito 8 da base instrutória se foram J… e mulher e depois os autores a construírem o barracão, o alpendre (coberto), o lagar e o tanque, onde faziam o vinho e lavavam a roupa, respectivamente, depositando e guardando no barracão e alpendre coberto o que bem entenderam.
7) Na acção referida em 1), o quesito nº 8 da base instrutória mereceu a seguinte resposta: «Provado apenas que foi J… que construiu o barracão, o alpendre (coberto), o lagar e o tanque, onde ele e a sua mulher faziam o vinho e lavavam a roupa, respectivamente, depositando e guardando no barracão e alpendre (coberto) o que bem entenderam».
8) Na acção referida em 1), provou-se também que:
- O prédio descrito na matriz sob o artigo … e descrito na 2ª CRP sob o nº … da freguesia de ... confronta do norte e nascente com o caminho, do sul com … e do poente com os autores,
- a estrema entre os prédios referidos em A) – sendo ele o dos autores - e F) – sendo ele o dos réus – sempre se definiu e estabeleceu através de um pequeno muro de blocos (de cimento) com a espessura de 15 cm de largura,
- e, na sua parte final, sentido Sul-Norte, junto a via pública, pelo alpendre (coberto), lagar e tanque,
- há cerca de, pelo menos dois/três meses, o réu marido destruiu o alpendre, o lagar e o tanque e removeu do local os respectivos destroços,
- e derrubou (partiu) três peirões, colocados ao longo daquele muro que faz a estrema, dentro do prédio (pátio) do autor marido e uma parreira que aqueles suportavam,
- bem como uma rede que evitava a passagem de animais e/ou pessoas de um lado para o outro,
- no intuito deliberado de se apropriar do espaço correspondente
aquele alpendre, lagar e tanque.
9) Na acção referida em 1), foi proferida sentença em 10-12-2009 nos termos da qual foi julgada parcialmente procedente a acção, tendo sido condenados os réus a reconhecerem que os autores são os donos e legítimos possuidores do prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia de ... no art. … e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o nº … da mesma freguesia e inscrito a favor dos autores sob a ap. 22 de 2002/05/20, absolvendo-se os réus do demais peticionado.
10) No enquadramento jurídico dessa sentença, refere-se «no essencial discute-se na presente acção os limites do direito de propriedade dos autores sobre o prédio referido em A) e se este integra um barracão, um pátio, um alpendre (coberto), um lagar e um tanque».
11) No enquadramento jurídico dessa sentença, refere-se ainda que «O prédio referido em A) encontra-se descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Viseu na ficha nº … da freguesia de ....
O direito de propriedade sobre este prédio está registado a favor dos autores. Estes beneficiam, assim, da presunção prevista no art. 7º do Código de Registo Predial segundo a qual se presume o titular do direito aquele que estiver inscrito no registo. A presunção derivada do registo, porém, não abrange os elementos descritivos, pelo que não está vedado às partes a produção de prova sobre a composição física, estremas e confrontações dos prédios. Esta prova incumbe aos autores em termos de demonstrarem que adquiriram por usucapião o prédio com os limites e composição que alegam.
Nesta matéria provou-se que o imóvel em causa se encontra inscrito na matriz urbana da freguesia de ... no artigo … que sucedeu à inscrição do artigo … daquela freguesia (pontos 2, 3, 8, 9 e 10 dos factos provados). Assim, os dois artigos não correspondem a prédios diferentes mas sim ao mesmo. Existe, portanto, uma duplicação da inscrição matricial do prédio. Relativamente a este prédio provou-se que há mais de 20, 30 anos, que aqueles J… e mulher e depois os Autores, vêm habitando o prédio referido em A), melhorando-o e reparando a casa de habitação.
No entanto, no que diz respeito à questão de saber se o barracão, o alpendre (coberto), o lagar, e o tanque fazem parte desse prédio, os autores não lograram fazer disso prova, conforme resulta da resposta ao ponto 5 da base instrutória. Apenas se provou que tais construções existem e se situam entre o prédio de autores e réus (ponto 11 dos factos provados). É certo que se prova (ponto 19 dos factos provados) que a estrema entre os prédios referidos em A) (autores) e F) (réus) sempre se definiu e estabeleceu através de um pequeno muro de blocos (de cimento), com a espessura de 15cm de largura, e, na sua parte final, sentido Sul-Norte, junto à via pública, pelo alpendre (coberto), lagar e tanque. Este facto, porém, e por si só, não legitima a conclusão de que tais construções integram o prédio dos autores. Tal como o facto de ter sido o pai de autor e réu marido que construiu o barracão, o alpendre, o tanque e o lagar e que o usou, juntamente com a sua mulher, para as suas finalidades (ponto 14 dos factos provados), é irrelevante para determinar em que prédio estão implantados, já que os prédios contíguos (de autores e réus) pertenciam ambos àquele.
Assim, não obstante se provar que os autores adquiriram por usucapião o prédio referido em A), nos termos dos art. 1287º, 1251º, 1261º, nº1, 1262º, art. 1260º, 1294º, al. a) todos do Código de Processo Civil, conforme resulta da factualidade provada nos pontos 13, 15, 16 e 17 dos factos provados, a verdade é que não se provou que desse prédio fizesse parte o muro, o barracão, o alpendre, o lagar e o tanque. Não se provaram, portanto, actos de posse relevantes sobre essas coisas que permitam incluí-las na aquisição originária decorrente da posse pelos autores do prédio referido em A).
Desta forma, também não se poderá considerar ilícita, por violadora do direito de propriedade dos autores, a destruição pelo réus dessas edificações a fim se apropriar do espaço correspondente (pontos 20 e 21 dos factos provados).
A acção terá, por isso, que improceder.»
12) A sentença atrás referida transitou em julgado em 26/01/2010.
[…]”
[transcrição de fls. 222/229, com sublinhados aqui acrescentados]

            2.1. São estes, pois, os factos a considerar na apreciação do presente recurso.

Constitui tema deste, com efeito, a própria ratio decidendi da Sentença, que determinou o desatendimento do procedimento cautelar comum proposto pelos Apelantes (os Autores na referida acção declarativa), referindo-se essa improcedência – que ora nos cumpre sindicar – à consideração, desde logo, do efeito de caso julgado formado nessa anterior acção declarativa de condenação, como obstáculo à tutela cautelar inominada aqui procurada pelos Requerentes, entendendo-se esta conflituante com a projecção da eficácia desse caso julgado material. Paralelamente – e também este elemento integrou a ratio decidendi aqui em causa –, importará determinar se o desatendimento da pretensão dos aqui Requerentes na outra acção (no processo em que estes foram Autores e no qual foram Réus alguns dos aqui Requeridos) induz nestes autos, valorativamente, a falta de aparência do direito pretendido acautelar (v. artigo 387º, nº 1 do CPC)[3].

É a incidência desta dupla vertente do processo argumentativo da decisão apelada que nos cumpre apreciar neste recurso.

2.1.1. Quanto ao caso julgado, considerado este no seu efeito directo (como excepção dilatória[4]) sobre o procedimento cautelar aqui em causa – como obstáculo ao conhecimento do mérito deste –, retemos a correcta valoração da abrangência factual projectiva do pronunciamento decisório emitido pelo 4º Juízo Cível de Viseu no processo nº 1590/08.5TBVIS, bastando comparar a caracterização do pedido e da causa de pedir respeitantes a essa outra acção com a pretensão e o fundamento factual aqui apresentados, na procura de uma tutela cautelar, para se perceber a absoluta coincidência do problema suscitado naquele processo com a questão cuja discussão é aqui pretendida introduzir.

Com efeito, em ambos os casos – e remete-se para a correcta valoração constante da Sentença – está em causa, enquanto verdadeira expressão do litígio que opõe os Requerentes e os Requeridos, a pretensão dos primeiros de ver reconhecida e defendida uma determinada extensão espacial do seu direito de propriedade sobre o prédio que lhes pertence, na zona de confinância deste com o prédio dos Requeridos. Essa zona, que coincide na sua referenciação espacial, tanto nesta como na anterior acção, é aqui definida aludindo a um “releixo”[5], correspondendo este, como decorre da comparação dos elementos espaciais em causa em ambas as situações, à indicação de um ponto de referência no terreno em disputa entre os vizinhos (aqui Requerentes e Requeridos), que nos conduz, ostensivamente, exactamente ao mesmo espaço que na anterior acção foi entendido não estar provado que pertencesse aos ora Apelantes. E esta realidade não se altera pela simples recurso a uma substituição gramatical de designações referidas ao mesmo espaço ou pela procura de outros pontos de referência no terreno[6], sempre dentro desse mesmo espaço, num mal disfarçado propósito de “tornear” o sentido da anterior decisão, introduzindo a rediscussão do que mais não representa que o mesmíssimo problema já abrangido pelo anterior caso julgado: saber a quem pertence o espaço exterior adjacente às paredes da casa dos Requerentes na zona confinante com o prédio dos Requeridos. É neste sentido que falamos aqui em identidade de causa de pedir (sempre a propriedade do mesmo espaço pelos Requerentes) e de pedido (sempre retirar os Requeridos desse espaço, fazendo-os reconhecê-lo como propriedade dos Requerentes), não obstante a (pequena) variação semântica na designação desse (mesmo) espaço neste procedimento cautelar.

Vale esta constatação – a qual, sublinha-se de novo, está suficientemente caracterizada no texto da Sentença –, no plano que agora nos interessa focar, no quadro da projecção do efeito de caso julgado alcançado na anterior acção, relativamente à não integração do espaço aqui visado no prédio dos ora Apelantes.

Refere-se a excepção do caso julgado, e interessa-nos aqui o chamado caso julgado material, estando em causa, na acção anterior, uma decisão de mérito, à “[…] inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal […] em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário”, projectando este (o caso julgado) sobre a situação em causa um efeito de “[indiscutibilidade quanto] ao resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal, ou seja, o conteúdo da decisão desse órgão”[7].

Visando evitar que o tribunal (no processo posterior ao caso julgado) “[…] seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir [a] decisão anterior” (artigo 497º, nº 2 do CPC), opera este efeito de indiscutibilidade em diversos planos, referindo-se estes à exclusão do ulterior pronunciamento, quando o anterior (aquele que gerou o caso julgado) possa ser reconduzido àquele através de uma relação de identidade[8], de prejudicialidade[9] ou de concorrência[10]. Com efeito, em todas estas situações actua a excepção do caso julgado, bloqueando a apreciação suscitada no novo processo, independentemente deste se configurar como uma (nova) acção declarativa ou, como aqui sucede, como uma providência cautelar referida à tutela antecipatória de uma acção que, em si mesma considerada, ofenderia esse anterior caso julgado. Vale neste caso a estrita relação de dependência do procedimento cautelar da causa que tenha por fundamento o direito pretendido acautelar (artigo 383º, nº 1 do CPC).

Aliás, a simples aceitação de que através de um procedimento cautelar pudesse ser posto em causa, mesmo que provisoriamente, um anterior pronunciamento definitivo (referido a uma tutela definitiva alcançado numa acção declarativa), sempre seria contraditória com a essência do caso julgado, quanto ao já mencionado efeito de indiscutibilidade da situação que através dele recebeu definição.

Ora, sendo certo que neste processo, embora algo “disfarçada” (muito ligeiramente disfarçada), não deixa de estar em causa a mesma situação já apreciada – a saber: a extensão do prédio dos Requerentes na sua confinância com o prédio dos Requeridos –, não podemos deixar de observar uma relevante relação de identidade entre as duas acções, em termos de entender condicionada pelo anterior caso julgado, esta nova investida processual referida, na sua verdadeira natureza, ao mesmo objecto, sendo indiferente a roupagem de procedimento cautelar aqui adoptada, já que a acção definitiva que corresponderia a este procedimento sempre entraria em conflito com o caso julgado aqui considerado.

É, com efeito, o que aqui sucede e conduz, como acertadamente se entendeu na Sentença apelada, à actuação da excepção de caso julgado, como pressuposto processual negativo (que exclui esta acção e conduz a uma absolvição da instância).

2.1.2. Cumulativamente, entendeu a decisão recorrida que esse anterior pronunciamento – rectius, o caso julgado que ele originou – determinava, na sua essência significativa projectada sobre esta situação, a ausência do pressuposto de concessão da providência cautelar comum traduzido na plausibilidade do direito pretendido acautelar, nos termos exigidos, como pressuposto do decretamento da providência, pelo artigo 387º, nº 1 do CPC: “[a] providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito […]”.

Vale este elemento – geralmente indicado como fumus boni iuris –, na caracterização que dele faz Lucinda Dias da Silva, nos seguintes termos:
“[…]
Este requisito torna a concessão de uma providência cautelar dependente da possibilidade de se discernir a aparência de titularidade de bom direito por parte do requerente. Visando o processo cautelar salvaguardar o efeito útil de um processo principal, importa indagar se este efeito útil se revela susceptível de vir a ser produzido, sob pena de, vindo a concluir-se em sentido negativo, passar a carecer de justificação a concessão da providência cautelar requerida.
O pressuposto em causa constitui, nesta medida, reflexo da natureza duplamente instrumental do processo cautelar (aqui se revelando a segunda dimensão da instrumentalidade), da natureza hipotética dessa instrumentalidade e da recíproca relação de dependência intercedente entre processo principal e processo cautelar.
[…]
Garantir a garantia só se justificará, atentas as consequências que a providência cautelar comporta para o requerido, se for previsível que a acção principal conduzirá a uma decisão de procedência.
[…]
Não se antevendo o resultado que se pretende tutelar, a instrumentalidade do processo principal não periga, pelo que não faz sentido dar sequência a um processo garante dessa instrumentalidade.
[…]”[11]

            Tendo isto presente, afigura-se-nos quase intuitiva a exclusão neste caso do requisito da plausibilidade do direito pretendido acautelar. Com efeito, se outro efeito não induzisse o caso julgado – e induz como se viu no item anterior –, sempre ficaria em causa, dada a total coincidência da pretensão veiculada nesta acção com a do processo gerador do caso julgado, qualquer prognóstico de um acolhimento positivo desta pretensão, maxime de um resultado distinto do que se alcançou na anterior acção.

Também por esta razão estaria excluída a concessão da providência aqui visada.

            2.2. Resulta de todo o exposto a insubsistência das críticas dos Apelantes à Sentença apelada. Haverá, pois, que a confirmar, deixando aqui nota, previamente à formulação da decisão, do sumário do antecedente percurso argumentativo:
I – A indefinição quanto aos limites de dois prédios confinantes, alcançada numa acção declarativa de condenação na qual o proprietário de um dos prédios reivindicava determinado espaço adjacente ao outro prédio, forma caso julgado quanto a essa situação: indefinição da dominialidade do espaço reivindicado;
II – A projecção deste caso julgado material impede a posterior propositura de um procedimento cautelar visando a exclusão de quem foi réu na anterior acção do uso do espaço aí reivindicado, correspondendo o efeito visado pelo procedimento ao resultado que nessa acção foi excluído por indemonstração;
III – Independentemente disto, essa não demonstração com a cobertura de caso julgado, exclui por si só a verificação do requisito da plausibilidade do direito pretendido acautelar, previsto no nº 1 do artigo 387º do CPC.   


III – Decisão

            3. Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirma-se a Sentença recorrida.

            Custas pelos Apelantes.

          

J. A. Teles Pereira (Relator)

Manuel Capelo

Jacinto Meca


[1] O que vale por dizer que se trata de processo iniciado posteriormente à entrada em vigor (em 01/01/2008) do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, sendo-lhe aplicáveis, por isso, as alterações ao regime dos recursos introduzidas por este último Diploma (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma. Ao sublinhar-mos o carácter autónomo do procedimento cautelar (no sentido de não dependente de qualquer acção declarativa já proposta), temos em conta a particular incidência da aplicação do novo regime dos recursos aos procedimentos cautelares, nos termos definidos por esta Relação no despacho do ora relator, de 16/06/2008, proferido no processo nº 280/07.0TBLSA-F.C1, disponível na base do ITIJ em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/db953307306506a2802574710050bb1.
[2] Haviam os Requerentes solicitado a preterição do contraditório prévio ao decretamento da providência (artigo 385º, nº 1 do CPC), sendo que o Tribunal não atendeu tal pretensão a fls. 48/52.
[3] Tenha-se presente esta dupla faceta do pronunciamento decisório aqui recorrido, expresso nos dois parágrafos da decisão acima transcritos no item 1.2. deste Acórdão. Com efeito, julgou-se o procedimento cautelar bloqueado pelo efeito de caso julgado e, concorrentemente, inadmissível pela exclusão (também logicamente ligada ao referido caso julgado) de uma prognose positiva quanto à existência de um fumus boni iuris do direito aqui pretendido acautelar (v. o trecho de fls. 242/243 da Sentença).
[4] V. artigos 493º, nº 2 e 494º, alínea i) do CPC.
[5] Um “releixo”, no sentido em que os Requerentes aqui empregam a expressão (empregam-na como substantivo), corresponde, etimologicamente, a uma “[…] saliência [ou] avançamento de um muro; terreno não cultivado à beira de um muro; caminho junto de um muro […]” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo VI, Lisboa, 2003, p. 3137).
[6] Veja-se o trecho da anterior decisão certificado a fls. 26, no que respeita ao muro aqui pretendido apresentar como “novo” ponto de referência:
“[…]
Assim, não obstante se provar que os Autores [aqui Requerentes] adquiriram por usucapião o prédio referido em A), nos termos dos artigos 1287º, 1251º, 1261º, nº 1, 1262º, 1260º. 1294º, alínea a), todos do CPC, conforme resulta da factualidade provada nos pontos 13, 15, 16 e 17 dos factos provados, a verdade é que não se provou que desse prédio fizesse parte o muro, o barracão, o alpendre, o lagar e o tanque. Não se provaram, portanto, actos de posse relevantes sobre essas coisas que permitam inclui-las na aquisição originária decorrente da posse pelos Autores do prédio referido em A).
Desta forma, também não se poderá considerar ilícita, por violadora do direito de propriedade dos Autores, a destruição pelos Réus dessas edificações a fim de se apropriar do espaço correspondente (pontos 20 e 21 dos factos provados).
[…]”
                [transcrição de fls. 26, com sublinhado acrescentado]
[7] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, p. 567.
[8] “Se o objecto da decisão transitada for idêntico ao do processo subsequente, isto é, se ambas as acções possuírem a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo posterior, como excepção de caso julgado […]”, sendo que a função desta, enquanto pressuposto processual negativo, “[…] é tanto a de proibir que o tribunal da segunda acção […] profira uma decisão contraditória com a anterior, como a de obviar que esse órgão seja obrigado, numa situação de identidade de causas, a repetir a decisão transitada” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos…, cit., pp. 574/575).
[9] “A relação de prejudicialidade entre objectos processuais verifica-se quando a apreciação de um objecto (que é o prejudicial) constitui um pressuposto ou condição do julgamento de um outro objecto (que é o dependente) […]. Assim, por exemplo, o reconhecimento da propriedade na acção de reivindicação vale como autoridade de caso julgado num processo posterior em que o proprietário requer a condenação no pagamento de uma indemnização pela ocupação indevida do imóvel […]” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos…, cit., p. 575).
[10] “O concurso objectivo verifica-se quando vários objectos processuais se referem a um mesmo efeito jurídico” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos…, cit., p. 576).
[11] Processo Cautelar Comum, Coimbra, 2009, pp. 141/142.