Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
66941/16.3YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE MERCADORIAS
CONCEITO JURÍDICO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 11/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – J.L. CÍVEL – J4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: DL Nº 239/2003, DE 04/10; CONVENÇÃO CMR.
Sumário: I- Genericamente, o contrato de transporte rodoviário de mercadorias pode ser definido como o contrato pelo qual uma das partes - o transportador - se obriga (perante outrem, normalmente o expedidor ou o destinatário) a deslocar, por rodovias, determinadas coisas (mercadoria) de um local para o outro, mediante retribuição.

II- Contratos esses que podem se nacionais ou internacionais, consoante, respetivamente, o ponto de partida e o lugar de entrega de mercadoria previstos se situem no mesmo país em ou países diferentes, ainda que neste caso a viatura de transporte não chegue (por qualquer razão, vg. por furto da mercadoria no seu trajeto) a transpor a fronteira do país do ponto de partida.

III- Enquanto os primeiros estão sujeitos ao regime jurídico do DL nº. 239/2003, de 04/10, já os segundos estão sujeitos à disciplina da Convenção CMR (assim designada a Convention de Transport International de Marchandises par Route).

IV- Contratos que, em termos gerais, se caraterizam por serem de natureza consensual, sinalagmáticos, onerosos e de resultado.

V- Sendo o transportador a pessoa ou entidade que, em regra, que se compromete, perante o expedidor ou o destinatário, ao transporte, é, todavia, irrelevante que o transporte tenha sido materialmente executado por ele ou por outrem por sua incumbência, podendo, assim, o mesmo (sub)contratar um terceiro (subtransportador) para a execução material desse transporte, no todo ou em parte.

VI- Nos casos de o transporte ter sido subcontratado o subtransportador responde, em primeira linha e por via de regra, perante quem o subcontratou, assumindo, nesses termos, a veste de transportador.

VII- Estando-se perante um contrato resultado, o transportador está obrigado a entregar a mercadoria no lugar do destino, no estado e quantidade recebida, e não o fazendo constitui-se em responsabilidade e na obrigação de indemnizar, salvo nos casos ou limitações previstos na lei.

VIII- Entre as obrigações do transportador, encontra-se o dever (acessório) de custódia da mercadoria, devendo, à sua luz, tomar todos os cuidados impostos pela natureza das coisas transportadas e pelos percalços da viagem, velando pela sua guarda e conservação desde o seu recebimento até à entrega, protegendo-a da ação dos elementos da natureza e de terceiros, tal como o faria um bonus pater famílias.

IX- E daí que seja, em regra, o responsável, pela perda total ou parcial da mercadoria (ou da sua avaria) que se produzir entre o momento do seu carregamento e o da sua entrega.

X- O furto de mercadoria não se integra no conceito de caso furtuito.

XI- Nos contratos de transporte internacional rodoviário de mercadorias o transportador é, por força do estatuído artº. 17º, nº1, da CMR, responsável perda total ou parcial da mercadoria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, só ficando desobrigado ou isento dessa responsabilidade quando ocorram algumas das circunstâncias previstas nos nºs. 2 e 4 daquele normativo, sendo certo que nesse caso é sobre ele que impende o ónus de prova da ocorrência dessas circunstâncias.

Decisão Texto Integral:








Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. Na presente a ação - iniciada, em 22/06/2016, como procedimento de Injunção e depois transmutada para ação de processo comum – a ora autora I..., Lda., demandou a ora ré, T..., Lda., ambas com demais sinais de identificação dos autos, pedindo a condenação da última a pagar-lhe quantia de €20.485,78, a título de capital e juros vencidos, bem assim os juros de mora vincendos.

Para o efeito, e em síntese, alegou:

Que no âmbito da sua atividade comercial efectuou, a pedido da ré, diversos serviços transportes de mercadorias, em Portugal e no estrangeiro, titulados por faturas que totalizam o montante de €17.043,68.

Apesar de instada para pagar a R. não o fez, estando em dívida naquele montante a que acrescem os juros moratórios.

2. Na oposição/contestação que apresentou, a ré defendeu-se, em síntese, nos termos seguintes:

Ser verdade que a A. lhe prestou todos os serviços titulados pelas faturas que a mesma indica.

Porém, por conta de tais serviços, já lhe pagou o montante de €6.711,05, pelo que apenas seria devedora da quantia de €10.332,63.

Contudo, e em reconvenção, reclamou a compensação daquele crédito de €10.332,63 por igual montante do crédito de que é credora da A., alegando que um daqueles transportes que a mesma lhe efetuou (pertencendo, dessa vez, o trator à A. e a galera à R.) não ter sido realizado na totalidade, dado que o material quando era transportado acabou por vir a ser alvo de furto em virtude de a A., na sequência de uma avaria no trator surgida no decurso do trajeto, ter abandonado a galera que transportava o material, o que motivou o furto deste.

Nessa sequência a R. teve que suportar junto de sociedade espanhola que lhe havia solicitado aquele transporte, que depois contratou  A. para o efeio, a quantia de € 9.500,88.

Posteriormente, a A. assumiu perante a R. a responsabilidade pelo sucedido, tendo ficado entre ambas acordado que aquele remanescente do valor da dívida de €10.332,63 (referente ao preço de outros serviços de transportes entre ambas contratados) que a segunda tinha para com a primeira fosse compensado com o valor dos prejuízos que a R. sofreu com furto da referida mercadoria, e que para o efeito computaram no valor de €10.332,63.

Compensação de créditos que agora a A. se vem recusando a efetuar.

Pediu ainda a R. condenação da A. como litigante de má-fé.

3. A A. respondeu à oposição da R., declinando, por um lado, qualquer responsabilidade no alegado furto de mercadorias e, por outro, contrariou o essencial versão da mesma no concerne à invocada compensação de créditos, invocando ainda, de qualquer modo, a prescrição do direito crédito que a última reclama.

4. Dispensada realização de audiência prévia, admitiu-se a reconvenção deduzida pela R., e no despacho saneador decidiu-se, além do mais, pela improcedência da exceção de prescrição aduzida pelo A..

5. Mais tarde, realizou-se a audiência de discussão e julgamento (com a gravação da prova).

6. Seguiu-se a prolação da sentença que, no final, decidiu nos seguintes termos:

« Na parcial procedência da acção e reconvenção e operando-se a compensação:

- condeno a R. T..., Lda. a pagar à A. I..., Lda. a quantia de € 5.582,19 (cinco mil quinhentos e oitenta e dois euros e dezanove cêntimos) a que acrescem os juros de mora à taxa comercial respectiva a contar da data desta sentença e até efectivo e integral pagamento.

Custas da acção e reconvenção a cargo da A. em 3/4 e da R. em 1/4.»

7. Inconformada com tal sentença, dela apelou a ré, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

...

8. Contra-alegou a autora, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do julgado.

9. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


II- Fundamentação

A) De facto

Pelo tribunal da 1ª. instância foram dados com provados os seguintes factos:

...

B) De direito

1. Como é sabido, e é pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, e 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).

Ora, da leitura das conclusões das alegações da R./recorrente, verifica-se que a única e verdadeira questão objeto do presento recurso que aqui se impõe apreciar e decidir traduz- se em saber se a ré é também credora da autora e, em caso afirmativo, qual a medida (montante) desse crédito.

Apreciemos então.

O dispositivo final da sentença recorrida acima transcrito assentou nos seguintes tópicos argumentativos:

Dedicando-se ambas à atividade comercial de transporte de mercadorias, na sequência de vários desses serviços de transporte, acordados entre as mesmas, que a autora efetuou a pedido da ré, aquela ficou com um crédito sobre esta no montante de €10.332,63.

Acontece que um desses serviços de transporte ocorreu dentro quadro factual descrito nos pontos 5 a 17 dos factos provados.

Pois bem, à luz desses factos, o sr. juiz a quo reconheceu haver um incumprimento contratual da A., ao não entregar, por perda da mesma, a mercadoria no destino a que se obrigara no contrato de transporte que celebrou com a ré, causando, em consequência, a esta um prejuízo correspondente ao valor dessa mercadoria que a mesma teve de pagar à empresa que a contratara para efetuar esse transporte (a qual, por sua vez, já tinha pago esse mesmo valor à empresa expedidora que contratara originariamente par o efeito).

Porém, na sentença na recorrida conclui-se que a ré foi também responsável, com a sua conduta, pelo desaparecimento/perda da mercadoria, ou seja, que concorreu, em igual medida de culpa com a da autora, também para esse desaparecimento/perda da mercadoria, e nessa medida repartiu entre ambas, e na mesma proporção, a responsabilidade pelo sucedido.

E sendo assim, e à luz do disposto no artigo 570º, nº. 1, do C. Civil, decidiu reconhecer o crédito reclamado pela ré sobre a autora em apenas metade daquele valor de €9.500,88, ou seja em €4.750,44. Desse modo, operando, ato contínuo, a compensação de créditos (daquele crédito da autora no valor de €10.332,63, com esse credito da ré no valor de €4.750,44), resultou o reconhecimento de um crédito a favor da autora no valor de €5.582.19, que a ré foi condenada pagar, acrescida de juros moratórios acima referenciados na transcrição do dispositivo final da sentença.

E contra essa parte/seguemento da sentença que a responsabilizou, e em igual medida com a A., pela perda/extravio da mercadoria, no que se refere ao transporte acima referido, que a ré se insurge neste seu recurso, defendendo que nenhuma responsabilidade lhe poder ser imputada nessa perda/desaparecimento da mercadoria, devendo a mesma ser assacada (quanto a esse desaparecimento) somente à conduta da A., devendo por consequência tal crédito, no valor €9.500,88, ser-lhe reconhecido integralmente, e daí que, operando a compensação de créditos entre ambas, apenas deva resultar um crédito a favor da autora no montante de €831,75.

A favor da tese da seguida na sentença se pronunciou a autora nas suas contra-alegações.

Ora, a resposta à questão que acima deixámos elencada passa, pois, por saber se a ré deve ou não também ser responsabilizada pela perda/desaparecimento da mercadoria que ocorreu aquando do seu transporte atrás referido, sendo, pois, somente esse contrato de transporte que aqui, neste recurso, se discute.

Vejamos.

Genericamente, o contrato de transporte de mercadorias pode ser definido como o contrato pelo qual uma das partes - o transportador - se obriga (perante outrem, normalmente o expedidor ou o destinatário) a deslocar determinadas coisas (mercadoria) de um local para o outro, mediante retribuição. (Vide Francisco Costeira da Rocha, in “O Contrato de Transporte de Mercadorias, Almedina, págs. 25/26”).

Se essa deslocação é efetuada através de veículos rodoviários, estamos perante contratos de transporte rodoviário de mercadorias.

Contratos esses que podem se nacionais ou internacionais, consoante, respetivamente, o ponto de partida e o lugar de entrega da mercadoria se situem no mesmo país ou em países diferentes, ainda que neste caso a viatura não chegue (por qualquer razão) a transpor a fronteira do país do ponto de partida (onde a mercadoria foi carregada).

Os primeiros estão sujeitos ao regime jurídico do DL nº. 239/2003, de 04/10 (cfr. artºs. 1º e 2º e ss.), enquanto os segundos estão sujeitos à disciplina da Convenção CMR (assim designada a Convention de Transport International de Marchandises par Route), assinada em Genebra em 19/05/1956 e aprovada em Portugal pelo DL nº. 46.235 de 18/03/1965, publicado no Diário do Governo, I Série, nº. 65. (cfr. artºs. 1º. e ss.).

Contratos esses que, em termos gerais, se caraterizam por serem de natureza consensual, sinalagmáticos, onerosos e de resultado.

Tem sido igualmente considerado de transporte, em relação às mercadorias, o contrato pelo qual o dono de um veículo trator se encarrega de encaminhar mercadorias carregadas num semi-reboque, quer seja próprio, quer seja alheio (vide Michel Alter, Droit des Transports, 3ª. ed., pág. 50”).

O transportador é a pessoa ou entidade que que se compromete, perante o expedidor ou o destinatário, ao transporte, sendo irrelevante que o transporte tenha sido materialmente executado por ele ou por outrem por sua incumbência. Transportador esse que pode (sub)contratar um terceiro para a execução material do transporte, no todo ou em parte (figura do subcontrato, ou do subtransportador).

Nos casos de o transporte ter sido subcontratado por quem o contratou com o expedidor ou destinatário, vem constituindo entendimento prevalecente (embora não de todo pacífico) que sendo o subcontratado/subtransportador estranho à relação de transporte estabelecida com o expedidor ou o destinatário apenas responde para quem o subcontratou, embora haja quem entenda que essa responsabilidade para com os últimos possa ocorrer ao abrigo do princípio da eficácia externa das obrigações e desde que se verifiquem os demais pressupostos da responsabilidade civil contratual. (Vide, por todos, Alfredo Proença e J. Espanha Proença, in “Transporte de Mercadorias, Almedina, págs. 131/132, notas 8 e ss.”).

Em relação ao expedidor e ao destinatário, considera-se um só o transporte que for executado sob o mesmo contrato por transportadores sucessivos, caso em que, nas suas relações entre si, tomam a posição de expedidor/transportador subsequente.

Estando-se perante um contrato resultado, o transportador está obrigado a entregar a mercadoria no lugar do destino (vg. mencionado na guia), no estado e quantidade recebidas. Se tal não acontecer o transportador constitui-se em responsabilidade e na obrigação de indemnizar, salvo nos casos ou limitações previstos na lei.

Entre as obrigações do transportador, encontra-se o dever (acessório) de custódia da mercadoria, devendo, à sua luz, tomar todos os cuidados impostos pela natureza das coisas transportadas e pelos percalços da viagem, velando pela sua guarda e conservação desde o seu recebimento até à entrega, protegendo-a da ação dos elementos da natureza e de terceiros, tal como o faria um bonus pater famílias. E daí que seja, em regra, o responsável, pela perda total ou parcial da mercadoria (ou da sua avaria) que se produzir entre o momento do seu carregamento e o da sua entrega, sendo que se tem entendido, de forma prevalecente, que o furto de uma mercadoria não se integra no conceito de caso furtuito, por supor negligência do transportador (ou do seu pessoal) no cumprimento do seu dever de custódia. (Vide, Alfredo Proença e J. Espanha Proença, in “Ob. cit., págs. 42, nota 8, 44, nota 3, 60, nota 5, e 94, nota 5”).

Postas estas considerações (e tendo presentes as mesmas) - de caráter genérico sobre o contrato de transporte rodoviário de mercadorias e sempre com os olhos postos no caso sub júdice -, reportemo-nos, agora, ao caso em apreço, avançando, de forma mais incisiva, para a resolução da questão que nos foi submetida a apreciação.

E inquestionável que o contrato aqui em causa – no qual ocorreu a perda de mercadoria – configura, à luz dos factos apurados, um contrato de transporte internacional rodoviário de mercadorias (artº. 1º da CMR), sendo que, naquilo que para aqui interessa, a ré, já de si subcontratada, subcontratou os serviços da autora, para efetuar o referido serviço de transporte, sendo que nas relações internas entre ambas, tudo se passa como se aquela assumisse a posição de expedidora e a última de transportadora.

Já vimos que o facto de o veículo transportador da mercadoria não chegar a transpor a fronteira do nosso país não lhe retira ao contrato a natureza de transporte internacional, pois, que à luz do contrato estipulado para esse transporte o ponto de partida do veículo situava-se no nosso território nacional e os locais previstos para entrega da mercadoria transportada situavam-se em Espanha.

E daí que, em primeira linha, se lhe devam aplicar as disposições da referida CMR.

Essa mercadoria que autora se obrigou a transportar (desde o seu ponto de partida em Portugal, onde foi carregada, e até ao seu destino de entrega, em Espanha) não veio a chegar a seu destino por - no seu percurso e quando ainda o veículo transportador encontrava ainda no território nacional - se vir a perder na sequência das circunstâncias descritas sob pontos 10 a 15 do factos provados.

Nos termos do estatuído no artº. 17º, nº. 1, da CMR o transportador é responsável perda total ou parcial da mercadoria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega.

O transportador só fica desobrigado ou isento dessa responsabilidade quando ocorram algumas das circunstâncias previstas nos nºs. 2 e 4 daquele normativo, sendo certo que nesse caso é sobre ele que impende o ónus de prova da ocorrência dessas circunstâncias (artº. 18º, nºs. 1 e 2, da CMR), não podendo ainda, além do mais, alegar defeitos do veículo para se desobrigar dessa responsabilidade (nº 3 do artº. 17º).

Ora, no caso em apreço, a autora não só não logrou provar a ocorrência de alguma das circunstâncias previstas nos referidos nºs. 2 e 4, do citado artº. 17º, como inclusive ressalta mesmo da matéria factual que elas não ocorreram.

Sendo assim, e à luz do citado artº. 17º, nº. 1, da CMR a autora responde exclusivamente pela perda da referida mercadoria que transportava.

Mesmo que estivéssemos numa situação de transportes sucessivos - a nosso ver, e salvo melhor opinião, não estamos, ao contrário do que parece transparecer da sentença recorrida, dado que não se verificam os pressupostos previstos no artº. 34º da CMR, e desde logo porque foi a A. a única entidade que assumiu execução integral do transporte da mercadoria desde o seu ponto de partida/carga até ao seu local de entrega -, sempre por aí também deveria a A., por força do estatuído no artº. 37º, nº. 1 al a), daquela Convenção, suportar a indemnização decorrente de tal dano, traduzido na perda da mercadoria, já que foi a ela a única responsável pela sua produção.

Na verdade, e como supra deixámos referido, entre as obrigações do transportador encontra-se o dever (acessório) de custódia da mercadoria, devendo, à sua luz, tomar todos os outros cuidados impostos pela natureza das coisas transportadas e pelos percalços da viagem, velando pela sua guarda e conservação desde o seu recebimento até à entrega, protegendo-a da ação dos elementos da natureza e de terceiros, tal como o faria um bonus pater famílias.

A esse respeito, resulta da matéria factual provada que após o carregamento da mercadoria, e quando já se encontrava em circulação em Santarém, o trator da A. sofreu uma avaria que o impediu de continuar a circular em estrada, tendo então o seu legal representante, que conduzia o aludido trator acoplado à galera, solicitado os serviços de um reboque para transportar o trator a uma oficina afim de aí ser reparado, após que acompanhou o serviço de reboque à oficina, deixando a galera na Zona Industrial de Santarém, perto da Volvo, sem qualquer vigilância, tendo na altura o legal representando da A. informado a R., na pessoa de ---, do ocorrido e do local onde se encontrava a galera, tendo o 2º desde logo tentado diligenciar por novo trator para fazer seguir a carga para o destino. Mais ficou provado que a hora não concretamente apurada, mas entre as 20h00 do dia 09/12/2012, e as 06h00 do dia 10/12/2012, a galera e respetiva carga foram levadas por desconhecidos do local onde se encontrava estacionada, vindo dois dias depois a galera a ser encontrada em Castanheira do Ribatejo completamente vazia, isto é, sem a mercadoria.

Perante tais factos, é para nós claro que a autora ao abandonar, no circunstancialismo descrito, a galera, onde era transportada a mercadoria, num local sem qualquer vigilância, não cumpriu, em relação mercadoria que transportava no veículo conduzido pelo seu representante legal, aquela obrigação do dever (acessório) de custódia a que estava obrigada, não tomando os cuidados que no caso se impunham, zelando pela sua guarda, ou seja, não se comportou em relação a ela como um bonus pater famílias. Comportamento omissivo esse, grosseiramente negligente, que deu adequadamente azo ao furto/perda da mercadoria que veio a ocorrer.

E não se se diga que o facto de ter informado a R. do ocorrido e do local onde se encontrava a galera a desculpabiliza/desresponsabiliza do seu comportamento, pois que deveria ter providenciado para que alguém (por si ou a seu pedido) ficasse a vigiar/guardar a referida mercadoria, ou então que providenciasse pelo seu transportasse para local seguro, e pelo menos até que a ré, ou alguém ao seu mando, chegasse ao local.

E não se diga que a ré deva, em tais circunstâncias, ser também ser responsabilizada pelo sucedido, isto é, pelo furto/desaparecimento da mercadoria, pois que ficou provado que logo que informada do sucedido procurou/tentou logo diligenciar por novo trator para fazer seguir a carga para o destino, sendo certo que não ficou apurado quer o momento do dia em que a ré recebeu tal informação, quer o espaço de tempo que decorreu entre essa informação e o furto da mercadoria, apenas se sabendo que este terá ocorrido entre as 20 horas do próprio dia em que a galera ficou abandonada e as 06 horas do dia seguinte. Apuramento esse que poderia mostrar-se relevante para eventualmente se poder concluir que a mesma demorou excessivamente a providenciar por medidas no sentido de reverter a situação que que lhe foi comunicada.

Não pode, assim, a ré ser também responsabilizada – ao contrário do que se concluiu na sentença recorrida - pela perda da referida mercadoria, pois não se vê que se possa concluir, à luz dos factos apurados, que com a sua conduta tenha culposamente concorrido para o furto/perda da mesma.

Ora, perante o exposto, e ao proceder do modo descrito, a autora infringiu, pois, e de forma intolerável/grave, o dever de custódia que tinha sobre a referida mercadoria, e ao fazê-lo constitui-se na obrigação de indemnizar a ré pelos danos/prejuízos que lhe causou com tal incumprimento contratual, e que correspondem ao montante que a última teve de pagar à empresa (Puentes Fernandez que já havia indemnizado no mesmo valor a empresa expedidora, a R..., SA., que a contratara ab initio para realizar o mesmo transporte) que, por sua vez, a (sub)contratara para efetuar o aludido transporte, coincidente ao valor daquela mercadoria.

Diga-se, por fim, que mesmo aplicando nessa parte diretamente o Código Civil se chegaria à mesma conclusão pois que, estando nós no domínio da responsabilidade contratual, o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que cause ao credor (artigo 798º), sendo certo que sobre ele (neste caso a autora) existia uma presunção de culpa do cumprimento defeituoso da contrato, que a mesma não logrou ilidir (artº. 799º, nº. 1). Verificando-se ainda o nexo de causalidade adequado entre o comportamento da autora e o dano que produziu - perda, por furto, da mercadoria – (artº. 563º).

Aqui chegados, e concluindo-se que a autora foi a única responsável pela perda de mercadoria – e era essa a questão que verdadeiramente se discutia neste recurso que atacou a sentença da 1ª. instância – constitui-se, pelas razões que já atrás deixámos aduzidas, na obrigação de indemnizar a ré na quantia de €9.500,88, sendo, pois, esse o valor do crédito da ré sobre a autora (e não de €4.750,44, como se decidiu na sentença recorrida), e com isso se responde à questão que acima colocámos.

Ora - por estarem verificados os requisitos do respetivo instituto e que aqui não se discutem (artºs. 847º e 848º e ss. do CC) -,  operando a compensação de ambos os créditos, resulta que a quantia creditícia a pagar pela ré à autora se cifra em €831,75 (oitocentos e trinta e um euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida dos juros moratórios comerciais nos moldes fixados na sentença recorrida, mas a serem contabilizados somente a contar da presente data, por só com a prolação deste acórdão se ter tornado líquido o montante em dívida (artº. 805º, nº. 3 - 1ª parte – do CC).

Nesses termos julga-se procedente o recurso, e nessa medida se revoga a sentença da 1ª.


III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e em consequência - na parcial procedência da ação e na procedência da reconvenção, com a revogação, nessa medida, da sentença da 1ª. instância, e operando-se a compensação dos créditos entre ambas - condenar o a ré, T..., Lda., a pagar à autora, I..., Lda.,  a quantia de € 831,75 (oitocentos e trinta e um euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida dos juros de mora à taxa comercial, contabilizados a partir da presente e até ao seu integral pagamento (mantendo-se, quanto ao demais, o decidido naquela sentença).

Custas da ação e da reconvenção pela A. e R., na proporção dos respetivos decaímemtos, e do recurso pela A. (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).

Sumário:

I- Genericamente, o contrato de transporte rodoviário de mercadorias pode ser definido como o contrato pelo qual uma das partes - o transportador - se obriga (perante outrem, normalmente o expedidor ou o destinatário) a deslocar, por rodovias, determinadas coisas (mercadoria) de um local para o outro, mediante retribuição.

II- Contratos esses que podem se nacionais ou internacionais, consoante, respetivamente, o ponto de partida e o lugar de entrega de mercadoria previstos se situem no mesmo país em ou países diferentes, ainda que neste caso a viatura de transporte não chegue (por qualquer razão, vg. por furto da mercadoria no seu trajeto) a transpor a fronteira do país do ponto de partida.

III- Enquanto os primeiros estão sujeitos ao regime jurídico do DL nº. 239/2003 de 04/10, já os segundos estão sujeitos à disciplina da Convenção CMR (assim designada a Convention de Transport International de Marchandises par Route).

IV- Contratos que, em termos gerais, se caraterizam por serem de natureza consensual, sinalagmáticos, onerosos e de resultado.

V- Sendo o transportador a pessoa ou entidade que, em regra, que se compromete, perante o expedidor ou o destinatário, ao transporte, é, todavia, irrelevante que o transporte tenha sido materialmente executado por ele ou por outrem por sua incumbência, podendo, assim, o mesmo (sub)contratar um terceiro (subtransportador) para a execução material desse transporte, no todo ou em parte.

VI- Nos casos de o transporte ter sido subcontratado o subtransportador responde, em primeira linha e por via de regra, perante quem o subcontratou, assumindo, nesses termos, a veste de transportador.

VII- Estando-se perante um contrato resultado, o transportador está obrigado a entregar a mercadoria no lugar do destino, no estado e quantidade recebida, e não o fazendo constitui-se em responsabilidade e na obrigação de indemnizar, salvo nos casos ou limitações previstos na lei.

VIII- Entre as obrigações do transportador, encontra-se o dever (acessório) de custódia da mercadoria, devendo, à sua luz, tomar todos os cuidados impostos pela natureza das coisas transportadas e pelos percalços da viagem, velando pela sua guarda e conservação desde o seu recebimento até à entrega, protegendo-a da ação dos elementos da natureza e de terceiros, tal como o faria um bonus pater famílias.

IX- E daí que seja, em regra, o responsável, pela perda total ou parcial da mercadoria (ou da sua avaria) que se produzir entre o momento do seu carregamento e o da sua entrega.

X- O furto de mercadoria não se integra no conceito de caso furtuito.

XI- Nos contratos de transporte internacional rodoviário de mercadorias o transportador é, por força do estatuído artº. 17º, nº. 1, da CMR, responsável perda total ou parcial da mercadoria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, só ficando desobrigado ou isento dessa responsabilidade quando ocorram algumas das circunstâncias previstas nos nºs. 2 e 4 daquele normativo, sendo certo que nesse caso é sobre ele que impende o ónus de prova da ocorrência dessas circunstâncias.

Coimbra, 2017/11/14


Isaías Pádua

Manuel Capelo


                                                                     Falcão de Magalhães