Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
476/11.0PBCTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DOLO
DOLO DIRECTO
Data do Acordão: 04/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DO FUNDÃO (2.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 64.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO DL 291/2007
Sumário: A utilização, intencional, de um veículo automóvel na perpetração de uma agressão física não descaracteriza o evento como acidente de viação.
Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

            1.         O arguido A... (de futuro, apenas A...) foi pronunciado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido (de futuro, apenas p. e p.) pelos arts 143º nº 1 e 145º nº 1 al. a) e nº 2, com referência ao art. 132º nº 2 al. l), todos do Código Penal (de futuro, apenas CP).

            O crime teria sido cometido mediante a utilização de um veículo automóvel.

            O ofendido e demandante B... (de futuro, apenas B...) deduziu pedido de indemnização civil.

            O arguido A... contestou esse pedido de indemnização e, para além do mais, excepcionou com a sua ilegitimidade, com fundamento de que os valores indemnizatórios pedidos se situavam dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e o arguido ter um tal contrato de seguro, celebrado com a Companhia de Seguros C...., SA (de futuro, apenas C...).

            O demandante B... respondeu à excepção e deduziu pedido de intervenção principal provocada, chamando aos autos a C....

Apreciando o incidente de intervenção principal provocada, foi do seguinte teor a decisão da M.mª Juíza:

«(...)

A razão de ser do instituto de intervenção de terceiros é a de evitar futuros litígios em torno da mesma questão fáctica substancial (princípio da economia processual) e também a de formar um só caso julgado material, coerente e alargado a todos os sujeitos de relações conexas com aquela questão.

Dispõe o art. 316º, n.º 1, do CPC, na redação da Lei nº 41/2013, de 26.06, aplicável in casu atento o disposto no art. 5º, nº1 do mesmo diploma legal, que: “Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.”

Por sua vez, preceitua o art. 311º do CPC, na redação da Lei nº 41/2013, de 23.06, “Estando pendente uma causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objeto, tiver um interesse igual ao do autos ou do réu, nos termos dos artigos 32º, 33º e 34º”.

A intervenção principal provocada consubstancia-se no chamamento ao processo, por qualquer das partes, dos terceiros interessados na intervenção, seja como seus associados, seja como associados da parte contrária.

Assim, o interveniente principal terá de ter legitimidade para a ação.

“O interveniente passa a constituir um novo litigante na ação ainda que associado ao autor ou ao réu – cfr. Alberto dos Reis in CPC Anotado, 1982, 1º, 513 e sgs e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1982, 1º, p.187.

Operando-se, por esta via, a cumulação nos autos da apreciação de uma relação jurídica própria do interveniente, substancialmente idêntica ou conexa com a primitiva, o que desencadeia, em termos subjetivos, uma forma de litisconsórcio sucessivo – cfr. Relatório do DL 329-A/95 de 12/12 e Abílio Neto, in Breves Notas ao CPC, 2005, p.99.

Assim tal situação impõe ou pressupõe uma situação litisconsorcial inicial que, tendo sido preterida ou não despoletada, permite, posteriormente, o seu suprimento.” (in Acórdão da Relação do Porto de 13.05.2008, Proc. 0821491, relator: Carlos Moreira).

No caso concreto, o arguido/demandado vem excecionar a sua ilegitimidade alegando que encontrando-se a indemnização peticionada dentro dos limites do capital mínimo do seguro obrigatório e sendo os pretensos danos decorrentes da atuação do arguido quando conduzia o seu veículo automóvel, existindo seguro, apenas a seguradora deve ser demandada para pagamento de tais danos.

E com base em tal defesa o demandante à cautela vem requerer a intervenção principal provada da companhia de Seguros.

Analisados fundamentos da ação, retius da decisão de pronúncia verifica-se que in casu não está em causa um acidente de viação mas antes a utilização do veículo automóvel enquanto instrumento de agressão. Com efeito, resulta da factualidade indiciada que o arguido introduzindo-se no interior do seu veículo, colocando-o em marcha, enquanto o ofendido se posicionou em frente deste para impedir que o arguido iniciasse a marcha, o arguido não deteve a marcha do veículo, vindo a colher o ofendido com a parte frontal do veículo, atingindo-o na perna esquerda, prostrando-o no chão.

Em consequência daquela agressão, o ofendido/demandante, B... sofreu dores e incómodos e lesões várias que foram causa direta e necessária de 58 dias de doença, todos com afetação da capacidade para o trabalho geral e profissional.

Ademais o aqui demandado está indiciado de agir livre, voluntária e conscientemente, com intenção de molestar fisicamente o demandante, bem sabendo que este era chefe da PSP e que atuava no exercício das suas funções, o que logrou conseguir, bem sabendo que a sua conduta era adequada a neste causar as referidas lesões.

Do exposto, afigura-se-nos que a relação material controvertida assenta não no acidente de viação mas antes, como bem salienta o Magistrado do Ministério Público na promoção de 2013.05.08 (cfr. fls. 335) na agressão intencionalmente provocada pelo arguido com o veículo que conduzia, pelo que tal bastaria para não admitir a intervenção principal provocada da companhia.

Todavia, e ainda que assim se não entenda, se analisarmos o âmbito das exclusões do contrato de seguro respeitante à apólice nº (...)800000, estabelece o art. 3º, al. c) que “Não ficam em caso algum abrangidos pelo presente contrato os acidentes causados intencionalmente pelo segurado ou por pessoa por quem ele seja civilmente responsável”, pelo que facilmente concluímos não estar transferida para a chamada a responsabilidade por danos causados por factos causados intencionalmente pelo segurado no exercício da condução estradal.

Assim sendo, de todo o exposto, conclui-se que a chamada não tem legitimidade passiva para a presente ação e, por isso, não será admitir o incidente de intervenção principal provocada.

Nestes termos, e com o fundamento exposto, não se admite a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros, C... , S.A.»

2.         Inconformado, recorre agora o arguido A... para esta Relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

            «I - O ora recorrente excepcionou a sua ilegitimidade passiva, pugnando pela absolvição da instância cível, por entender que se encontrando a indemnização peticionada dentro dos limites do capital mínimo e sendo os alegados danos decorrentes da sua actuação como condutor, existindo seguro, apenas a respectiva seguradora deveria ser demandada para pagamento daquele.

            II. Assim não entendeu o despacho sob recurso, com o que o demandado não se resigna, por três ordens de razões. A primeira, porque é violadora do disposto no art. 64.º n.º 1, alínea a) do Dec/Lei n.º 291/07 de 21/08, a segunda porque ao mesmo presidiu um Juízo sobre a conduta do arguido - que sem julgamento e produção de prova não é passível de tomar - considerando como facto consumado, que a relação material controvertida assenta não no acidente de viação, mas na agressão intencionalmente provocada pelo arguido com o veículo que conduzia, e, finalmente, porque, ainda que se considerasse uma agressão intencional - que não se aceita - do arguido com o veículo, a verdade é que o artigo 15.º, n.º 2, retomando ipsis verbis a redacção do artigo 8.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, dispõe que «o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados (...)», e, em tais casos, como nos anteriores diplomas, «satisfeita a indemnização» a «empresa de seguros» tem direito de regresso «contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente» (artigo 27.º n.º 1, alínea a).

            III. Com efeito, no caso vertente, e, sempre salvo o devido respeito por melhor opinião, encontrando-se a pretensão indemnizatória dentro dos limites do capital mínimo do seguro obrigatório [cf. art.12.º do DL n.º 291/2007, de 21/8], sendo os pretensos danos decorrentes da actuação do arguido quando conduzia o seu veículo automóvel, e, existindo seguro, apenas a seguradora deve ser demandada para pagamento de tais danos.

            IV. O recorrente tinha a sua responsabilidade civil emergente de acidentes de viação transferida para a seguradora “Companhia de Seguros C... , SA”, através da apólice nº (...), beneficiando o veículo ligeiro de mercadorias de matricula (...)ZC, por si conduzido nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no Despacho de Pronúncia, de seguro válido e eficaz.

            V. Como tal e tendo os alegados danos ocorrido em resultado de acidente provocado pelo condutor de um veículo em circulação, devia a pretensão indemnizatória cível de fls. ter sido formulada contra a seguradora, por se conter dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório.

            VI. O despacho recorrido, ao não admitir a intervenção principal provocada depois requerida pelo demandado, precisamente para assegurar a legitimidade passiva do pedido de indemnização, viola por erro de interpretação o disposto na assinalada norma legal, e, ainda que assim não fosse, como é, a verdade é que;

            VII. Como faz notar o STJ, do ponto de vista do lesado, tanto é acidente o acontecimento estradal fortuito e casual como o dolosamente provocado; num caso ou noutro é idêntico o interesse do lesado em ser indemnizado dos danos sofridos; e é esse interesse que a lei quer proteger.

            VIII. A melhor interpretação legal alcançar-se-á considerando que «as directivas têm como objecto o seguro de responsabilidade civil que resulta da “circulação” de veículos automóveis, a qual pode dar origem a acidentes bem como ser utilizada intencionalmente para a prática de crimes, e nenhuma prevê a exclusão da cobertura de danos causados dolosamente a qual deve, assim, ser garantida» (cfr., Moitinho de Almeida, “Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias”, p. 14);

            IX. Certo sendo, por seu turno, que essa garantia do seguro obrigatório não significa a transferência de responsabilidade, nem exonera a pessoa responsável pelo acidente, já que no caso de “acidentes dolosamente provocados”, existe o direito de regresso da seguradora contra o causador do acidente, como dispunha, o artigo 19.º, alínea a) do decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, e, actualmente o artigo 27.º n.º 1 alínea a) do diploma vigente (Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto), que como tal, também se mostra violado.

            X. Em suma, o recorrente é titular de seguro válido a eficaz pelo que, sempre seria contra a seguradora, para a qual tinha e tem transferida a sua responsabilidade civil por acidentes de viação, que a pretensão indemnizatória teria de ser dirigida, a qual se contém dentro dos limites do capital mínimo do seguro obrigatório.

            XI. E não é o facto de se entender - mal, no caso concreto, porque sem produção de qualquer prova - que o acidente foi intencionalmente causado pelo segurado, que deixa de fazer operar as regras do seguro obrigatório de responsabilidade por acidentes de viação, porque então tem a seguradora direito de regresso contra o responsável, mas isso não bule com o facto de, primeiramente, ser a ela - seguradora - que tem a legitimidade passiva no excerto cível.

            XII. Ao assim não entender, e não admitindo a intervenção principal provocada da seguradora do recorrente, o despacho recorrido viola por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 27.º, n.º 1, alínea a) e 64.º, n.º 1, alínea a) do Dec/Lei n.º 291/07 de 21.08, merecendo o devido reparo.

Ternos em que nos melhores de direito aplicável e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., se deveria dar provimento ao presente recurso e em consequência revogado o despacho recorrido, substituindo-o por outro que admita a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros C... e concomitantemente absolva o demandado da instância civel, fazendo-se a costumada e tão necessária justiça!».

3.         O demandante B... não respondeu ao recurso.

Fê-lo, porém, o Ministério Público (de futuro, apenas Mº Pº) em 1ª instância, concluindo:

            «1. O arguido limita-se a afirmar que se tratou de um acidente, isto, contra a factualidade assente na instrução, e daí, afirmar a possibilidade da intervenção principal provocada;

            2. Porém, o crime pelo qual vai ser julgado, é um crime doloso, em que o veículo automóvel não foi utilizado como meio de transporte mas somente como arma de agressão;

            3. Não existiu acidente, apenas o dirigir intencional do automóvel sobre o corpo do ofendido;

            4. Também a apólice do seguro não cobre os “acidentes” causados intencionalmente;

            5. Não foram violados preceitos legais, designada mente os apontados.

            Assim, deverá o recurso ser improcedente, mantendo-se a decisão sob censura.

Já neste Tribunal da Relação, o Ex.mº Sr. Procurador-Geral Adjunto apôs apenas o seu “visto”.

II - FUNDAMENTAÇÃO

            4.         O MÉRITO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 412º nº 1 do Código de Processo Penal (de futuro, apenas CPP). [[1]]

Como flui das conclusões supra transcritas, constitui QUESTÃO A RESOLVER o bem ou mal decidido do indeferimento duma intervenção principal provocada.

Tal questão implica, porém, saber se a situação factual “introduzindo-se no interior do seu veículo, colocando-o em marcha, enquanto o ofendido se posicionou em frente deste para impedir que o arguido iniciasse a marcha, o arguido não deteve a marcha do veículo, vindo a colher o ofendido com a parte frontal do veículo” pode integrar a noção de acidente de viação.

      4.1.      O art. 129º do CP determina que “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.

      O art. 483º nº 1 do Código Civil (CC) - “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem (...) fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação” - engloba quer a responsabilidade civil por factos ilícitos, quer a responsabilidade criminal.

            No art. 71º do CPP, consignou-se o princípio da adesão: “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”., sendo que, mesmo no âmbito dum processo-crime, o “pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil” (art. 73º nº 1 do CPP).

            Por seu turno, o art. 64º nº 1 al. a) do regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08, dispõe que “as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente: só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório”.

            Decorre deste preceito que, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório, só a empresa de seguros pode ser accionada, o que é o mesmo que dizer que a Seguradora é a única parte legítima para o pedido de indemnização.

4.2.      Como se depreende da decisão recorrida, o fundamento essencial do indeferimento da intervenção principal da Seguradora residiu na consideração de não estar “em causa um acidente de viação mas antes a utilização do veículo automóvel enquanto instrumento de agressão. Com efeito, resulta da factualidade indiciada que o arguido introduzindo-se no interior do seu veículo, colocando-o em marcha, enquanto o ofendido se posicionou em frente deste para impedir que o arguido iniciasse a marcha, o arguido não deteve a marcha do veículo, vindo a colher o ofendido com a parte frontal do veículo, (...)” e “Ademais o aqui demandado está indiciado de agir livre, voluntária e conscientemente, com intenção de molestar fisicamente o demandante, (...)”.

Não podemos concordar com tal posição.

O que impressiona, no imediatismo da análise do caso, e pode levar a vício de raciocínio, é o facto de esse veículo/instrumento de agressão ter sido usado duma forma deliberada, consciente e intencional. [[2]]

No entanto, o elemento subjectivo (imputação a título de culpa) não é inerente, não faz parte do conceito de “acidente de viação”.

Basta pensar num acidente de viação causado pelo funcionamento do próprio veículo ou por qualquer causa da natureza. [[3]]

Efectivamente, numa primeira vertente, o vocábulo “acidente” remete-nos para a noção de um acontecimento fortuito, para além da vontade e/ou da previsibilidade e cautela do ser humano.

Um “acidente de viação” seria um tal acontecimento, com a especialidade de ocorrer no decurso da condução rodoviária.

Um “acidente de viação” expressa uma realidade objectiva, um encadeamento de factos objectivos.

Nesta medida, pode dizer-se que em qualquer “acidente de viação”, o veículo automóvel é sempre o “instrumento de agressão”.

A imputação a título de culpa constitui um segundo momento, relevante para o tipo de responsabilidade e respectiva medida.

É o próprio artigo 64º nº 1 al. a) do regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, que prescinde da imputação do acidente a título de culpa para conferir legitimidade à Seguradora.

Na verdade, aí se dispõe que quando o pedido indemnizatório se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório só a Seguradora será accionada, quer o pedido seja exercido “em processo civil quer (...) em processo penal”.

Ora, como é sabido, em processo penal é a responsabilidade criminal que está em causa e, esta, tem sempre subjacente a imputação a título de culpa.

O que releva é que o causador do acidente, e titular dum tal seguro, esteja a conduzir um veículo [[4]], na via pública [[5]] [[6]].

Essas características ocorrem na descrição da decisão instrutória, pois aí se diz que “o arguido introduzindo-se no interior do seu veículo, colocando-o em marcha, (...) não deteve a marcha do veículo, vindo a colher o ofendido”.

Causaria a mesma estranheza, ao nível da classificação como “acidente de viação”, o caso de um indivíduo que vai a conduzir e, ao ver um seu inimigo numa passadeira, resolve acelerar e nele embater, ao invés de parar?

            As hipóteses podem ser as mais variadas, como se colhe dum acórdão do STJ (ainda que proferido no domínio do anterior diploma do seguro obrigatório de responsabilidade civil, e num caso que veio a ser considerado homicídio voluntário): «(...) No caso dos autos, o veículo conduzido pelo arguido A e a vítima F seguiam um arruamento do Bairro de .... Este foi aí atropelado, o que só aconteceu por o condutor do veículo o ter querido e com a intenção de o matar, o que conseguiu.

            Não obstante ter ocorrido esta intenção, continuamos na mesma a estar perante um acidente de viação.

             Da conjugação dos vários preceitos do Decreto-Lei 522/85 acima transcritos, temos que concluir que o caso a que estes autos se reportam é um acidente de viação dolosamente provocado pelo condutor do veículo.

            De uma maneira geral, o acidente de viação ocorre por negligência, ou por parte do condutor do veículo, ou do peão. Estamos então perante um acidente de viação negligentemente provocado.

            Referindo-se a lei, por várias vezes, a acidente de viação dolosamente provocado, só pode ter em vista aquelas situações em que o condutor do veículo quer provocar um acidente de viação.

            Se alguém conduz na via pública o seu veículo e vê um carro pertencente a alguém com quem anda de relações cortadas, e dirige o seu veículo voluntariamente contra o outro a fim de lhe provocar danos, está a actuar dolosamente. E a sua seguradora será chamada a indemnizar o lesado sem prejuízo de mais tarde vir a exercer o seu direito de regresso contra o segurado.

             Ele poderia ter danificado o outro veículo com um martelo, por exemplo; mas fê-lo com o seu carro. Apesar disto, estamos perante um acidente de viação, que acarretará a imediata responsabilidade da seguradora.

            Se alguém vê um peão na via pública e o quer atropelar e atropela, estamos igualmente perante um acidente de viação, mas dolosamente provocado.

            A que situações se quererá referir a lei quando usa a expressão "acidente de viação dolosamente provocado", se não a situações como a dos autos?

            Suponhamos ainda que o dono e condutor de um veículo, devidamente segurado em companhia de seguros, convida um seu sócio em certa sociedade a dar consigo um passeio de automóvel. Mas fá-lo com intenção de provocar, no decurso do passeio, um acidente de viação de que venha a resultar a morte de tal sócio, o que vem a acontecer. Não estaremos também aqui perante um acidente de viação dolosamente provocado, que torna a seguradora imediatamente responsável pelo pagamento de indemnização?

            Em qualquer das hipóteses, o veículo surge sempre como a "arma" do crime. (...).». [[7]]

E com isto não se está a “desresponsabilizar” o autor dum crime.

A Lei preveniu os casos de responsabilidade criminal; como se refere no art. 27º nº 1 al. a) desse mesmo Decreto-Lei nº 291/2007, “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente”. [[8]]

            «V - Este direito de regresso é mais propriamente um direito de reembolso do que a seguradora teve que pagar em circunstâncias que tornam o risco assumido legalmente inaceitável; é um direito que, deixando incólume o objectivo social do seguro obrigatório, de algum modo repõe o equilíbrio contratual rompido pela obrigatoriedade deste e evidencia que, contrariamente ao alegado pela ré, o legislador não “pactua” com contratos de seguro “que dão cobertura a actos criminosos”». [[9]]

A jurisprudência do STJ tem entendido que o facto de o sinistro se ter ficado a dever a uma conduta intencional e deliberada do agente, não o descaracteriza como “acidente de viação”.

Assim, os acórdãos invocados pelo Recorrente, de 18.12.2008 (Relator Henriques Gaspar, processo 08P3852, nº do Documento: SJ20081218038523) — em que a arguida deliberadamente guinou com o seu veículo automóvel na direcção do ofendido, entalando-o contra o automóvel deste, abandonando o local sem lhe prestar qualquer auxílio; acórdão de 07.05.2009 (Relator Nuno Cameira, processo 09A0512, nº do Documento: SJ200905070005126) - num caso em que o arguido “abriu repentinamente a porta do seu lado e atingiu com ela a face esquerda do” ofendido e, apesar de “saber que esse estava junto à porta do lado direito da carrinha, (...) de forma brusca e com grande velocidade, obrigando as rodas a “patinarem” no pavimento, arrancou com a “Nissan” (...), embatendo com a parte direita da carroçaria da mesma no (ofendido), o que fez com que este fosse projectado para o solo, onde ficou caído”; bem como o acórdão de 06.07.2011 (Relator Helder Roque, processo 3126/07.6TVPRT.P1.S1) - relativo a uma situação em que o autor do furto de um carro, ao ser perseguido por agentes policiais, direccionou intencionalmente o veículo que conduzia para o veículo policial, e embateu nele.

            Nesta perspectiva, concluindo-se que a intencionalidade de utilização dum veículo automóvel para perpetrar uma agressão, não descaracteriza a ocorrência como um acidente de viação, falece o fundamento da decisão recorrida.

            4.3.      Quanto ao argumento da existência duma cláusula no contrato de seguro a excluir a responsabilidade da Seguradora relativamente a “acidentes causados intencionalmente pelo segurado ou por pessoa por quem ele seja civilmente responsável”, cumpre referir que tal já não contende com questões de legitimidade, antes importando ao mérito da causa (verificação dos pressupostos da responsabilidade).

Assim, a sede própria para avaliar e decidir da relevância e validade duma tal cláusula do contrato será a sentença, a proferir em tempo oportuno.

III.       DECISÃO

5.        Pelo que fica exposto, no provimento do recurso, revoga-se a decisão recorrida, e admite-se a intervenção principal da Companhia de Seguros C... , SA, cabendo ao Tribunal de 1ª instância promover os actos processuais subsequentes e inerentes a essa admissão da intervenção.

Sem custas.

Coimbra, 09.04.2014

 (Isabel Silva - relatora)

 (Alcina da Costa Ribeiro - adjunta)


      [[1]] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 12.09.2007 (processo 07P2583), disponível em http://www.dgsi.pt/, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem: «III - Como decorre do art. 412.º do CPP, é à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, ou seja, o cerne e o limite de todas de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso estão contidos nas conclusões, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso.
                IV - As possibilidades de cognição oficiosa por parte deste Tribunal verificam-se por duas vias: uma primeira, que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP, e uma outra, que poderá verificar-se em virtude de nulidade da decisão, nos termos do art. 379.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.».

      [[2]] E não se diga, como o Recorrente, que com isto se está já a efectuar pré-juízos sobre a conduta do arguido (considerando tal como facto consumado), o que só em audiência de julgamento se operará. A solução jurídica da decisão deste recurso é que impõe se perspective tal ocorrência. O objecto do processo é delimitado pelos factos constantes do despacho de pronúncia e respectiva imputação do tipo de ilícito. A legitimidade e possibilidade de incidente de intervenção principal provocada só pode ser analisada em função desse objecto do processo.

[[3]] Como é sabido, a responsabilidade objectiva, ou responsabilidade pelo risco, prescinde da ilicitude e da culpa; ela só é admitida em casos bem contados, expressamente consignados na lei.
      [[4]] Um dos veículos elencados nos artigos 105º a 113º do Código de Estrada.
      [[5]] Na acepção do art. 2º do Código da Estrada.

      [[6]] Cf. Ainda o art. 1º da Directiva 72/166/CEE (que a Directiva 2005/14/CE não alterou), que estipula que, “para efeitos do disposto na presente directiva entende-se por: 1. Veículo: qualquer veículo automóvel destinado a circular sobre o solo, que possa ser accionado por uma força mecânica, sem estar ligado a uma via férrea, bem como os reboques, ainda que não atrelados; 2. Pessoa lesada: qualquer pessoa que tenha direito a uma indemnização por danos causados por veículos;”.

      [[7]] Acórdão de 18.12.1996 (processo 047823, nº do Documento: SJ199612180478233).
      [[8]] Entramos então no domínio de outra relação jurídica, a existente entre a Seguradora e o autor do crime, cuja causa de pedir reside no contrato de seguro e no direito de regresso fundado na conduta criminosa.

     [[9]] In acórdão do STJ, de 07.05.2009 (processo 09A0512, nº do Documento: SJ200905070005126).