Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | TELES PEREIRA | ||
Descritores: | PRESUNÇÕES JUDICIAIS IMPUGNAÇÃO PAULIANA MÁ FÉ | ||
Data do Acordão: | 02/18/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM – 2º JUÍZO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 351º, 610º E 612º, Nº 1, TODOS DO C. CIVIL. | ||
Sumário: | I – A dedução de factos por presunção judicial, nos termos autorizados pelo artigo 351º do CC – ou seja, nos casos em que a valoração probatória assenta numa livre apreciação –, consiste no estabelecimento de factos, dos quais não existe uma prova directa, através da conjugação de outros factos directamente estabelecidos no processo de forma inquestionável. II – Esta dedução assenta num juízo de forte preponderância lógica, alcançado por inferência, em que o facto afirmado se apresente, ostensivamente, como o mais provável de ter acontecido em vista dos factos conhecidos, estando para além do “limiar da prova” aceitável em processo civil. III – Assim sucede relativamente à integração dos pressupostos da impugnação pauliana (artigo 610º e segs. do CC) quando – e referimo-nos aos factos directamente provados –, já na pendência de uma execução, o executado celebra com um irmão um contrato de compra e venda da sua casa, provando-se que posteriormente a esse negócio continua a viver nessa mesma casa, inexistindo qualquer documentação da transferência do preço desta venda do comprador para o vendedor ou do pagamento por este, subsequentemente à venda, de uma renda. IV – Nesta situação, o requisito da má fé previsto no artigo 612º, nº 1 do CC, expresso na consciência do prejuízo que o acto causa ao credor, como situação também referenciada ao (irmão) comprador, é igualmente dedutível, mesmo sem uma prova directa, como presunção judicial, da factualidade indicada em III, no sentido em que uma relação familiar próxima, como a de dois irmãos, reflecte usualmente e com forte probabilidade uma situação de acordo e de adesão entre os intervenientes num negócio aos verdadeiros motivos determinantes da celebração desse negócio. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra I – A Causa 1. Em 14/05/2009[1] a empresa M…, Lda. (A. e Apelada no contexto deste recurso) demandou F… e mulher, Â… (1ºs RR. e aqui Apelantes) e J… (2º R. e, em conjunto com os outros RR., também Apelante)[2] fazendo actuar relativamente a estes o mecanismo da impugnação pauliana, nos termos do artigo 610º do Código Civil (CC), visando a venda pelos 1ºs RR. ao 2º R., na pendência de uma execução instaurada pela A. contra esses 1ºs RR., de um prédio urbano sito no lugar de …, correspondendo este imóvel à casa dos 1ºs RR. e, praticamente, ao único bem destes susceptível de penhora[3]. Em função disto, considerando a A. ter essa venda (entre familiares próximos) visado a subtracção do imóvel ao alcance executivo dela como credora, no quadro de uma execução já pendente ao tempo da venda, em função de tudo isto, dizíamos, formulou a A. o seguinte conjunto de pedidos: “[…] [Ser] 1º - Declarada ineficaz, em relação à A. e na medida dos seus interesses, a transmissão da propriedade do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … e inscrito na matriz respectiva sob o artigo …, operada pela escritura junta sob o doc. 18; 2º - Declarado o direito de a A. obter a satisfação integral do seu crédito à custa deste imóvel dos RR., podendo executá-lo e praticar os actos de conservação e garantia patrimonial autorizados por Lei; 3º - Declarado ineficaz em relação à A. o registo de transmissão do mencionado prédio a favor do R. referido em B, operado pela inscrição G, Ap. 18 de 2005/06/06, por forma a ser garantido o crédito da A. e apenas na medida deste. […]”. 1.1. Contestaram os RR. esgrimindo os mesmíssimos argumentos[4], afirmando a ausência de qualquer propósito de subtracção do imóvel ao alcance executivo da A. Paralelamente, na única especificidade de uma das contestações, invocou o 2º R. a respectiva ilegitimidade por estar desacompanhado da sua mulher, R... O chamamento desta, desencadeado pela A., foi admitido a fls. 217. 1.2. Entretanto, foi o processo saneado e condensado na audiência preliminar documentada a fls. 133/139, fixando-se na base instrutória (fls. 138) como único “tema de prova”, em vista do ulterior julgamento, a seguinte asserção – aí formulada interrogativamente: “[o]s RR. celebraram a escritura referida em F), com o propósito de retirar o prédio aí identificado da esfera patrimonial dos 1ºs RR. e evitar que o mesmo respondesse pelo pagamento da dívida à A.?”.
1.3. Mais tarde, a culminar o julgamento, e depois de neste ter sido fixada a matéria de facto por referência ao único ponto da base instrutória – o que se resumiu à formulação de uma resposta positiva ao tal quesito único a fls. 263[5] – foi proferida a Sentença de fls. 266/276, correspondendo esta à decisão objecto do presente recurso, julgando ela a acção procedente no que respeita à impugnação pauliana[6]. 1.4. Inconformados, recorreram os RR. formulando, a rematar a motivação do recurso, as conclusões que aqui se transcrevem: II – Fundamentação 2. Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pelos Apelantes operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC) – ou, se se entendesse aplicável o Novo CPC, nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º deste[7]. Assim, fora das conclusões só valem, em sede de recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo, em qualquer dos casos, o artigo 660º, nº 2 do CPC, ou o artigo 608º, nº 2 do Novo CPC). E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações. Lendo as conclusões compreende-se que o recurso incide sobre a matéria de facto que se expressa no trecho desta fixada a culminar a audiência de discussão e julgamento, através da resposta positiva ao quesito único. Atacam os Apelantes, pois, essa asserção de facto – “[o]s RR. celebraram a escritura referida em 6.º com o propósito de retirar o prédio aí identificado da esfera patrimonial dos 1ºs RR. e evitar que o mesmo respondesse pelo pagamento da dívida à A.” (item 8 dos factos) –, criticando o processo justificativo empregue pela Exma. Julgadora, nos termos em que o mesmo foi expresso no despacho de fundamentação de fls. 262/264, no quadro justificativo previsto na parte final do nº 2 do artigo 653º do CPC ([…] analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”). Daí que, na compreensão do sentido do recurso, assuma um papel central a referência, que efectivamente é enfatizada pelo despacho de fundamentação, à prova da asserção positivamente afirmada como decorrente da actuação de uma presunção judicial estabelecida – estabelecida pela Julgadora nos termos dos artigos 349º e 351º do CC – através da correlação de diversas incidências de facto (a pendência da execução ao tempo da venda; tratar-se fundamentalmente de uma venda entre irmãos, etc.). Ter-se-ia alcançado o facto afirmado com a resposta positiva ao quesito, por via do relacionamento dessas incidências de natureza indiciária e, enfim, é esta construção lógica que os Apelantes contestam através do recurso, competindo a este Tribunal controlar esse elemento da dinâmica da prova, enquanto factor que foi determinante, por via da fixação de determinados factos, da afirmação de estar integrada a facti species do artigo 610º do CC. Resumindo as coisas, dir-se-á constituir fundamento único do recurso – e aqui o enunciamos como tal – o controlo da presunção judicial que permitiu fixar, por projecção lógica de determinados factos primários directamente reconhecidos e inquestionavelmente estabelecidos no processo – que são os indicados no despacho de fls. 262/264 –, um facto sequencial inferido daqueles (obtido fundamentalmente por probabilidade indutiva), correspondente à asserção de terem os 1ºs RR. celebrado a escritura de venda do imóvel a um familiar com o propósito de retirar esse imóvel da respectiva esfera patrimonial (da dos 1ºs RR.), evitando que o mesmo respondesse pelo pagamento da dívida à A. É nesta questão que se encerra o tema do presente recurso, sendo evidente não adiantarem os Apelantes qualquer alternativa de julgamento – que, aliás, nem existe com um mínimo de consistência jurídica – que passe pela manutenção do trecho dos factos (o item 8º do rol que já de seguida será transcrito) que contém a asserção que indicámos. Tudo se resume, pois, ao controlo por esta instância desse facto, sendo que só através do afastamento dele os Apelantes aspiram a um julgamento-outro da acção, no sentido da improcedência. 2.1. Como ponto de partida importa aqui indicar os factos fixados na primeira instância, incluindo, devidamente assinalado a itálico, o tal facto 8º impugnado pelos Apelantes: 2.2. Como antes dissemos, é nesta última asserção (item 8º) que se contém a base fáctica através da qual se considerou integrada a facti species da impugnação paulina, sendo aqui de sublinhar prescindir esta, na caracterização dos “actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito” (como preceitua o corpo do artigo 610º do CC), da consideração de uma intenção real que seja excludente do negócio efectivamente celebrado, por oposição à intenção aparente expressa nesse negócio. Com efeito, podendo ser esse o caso (e nesse caso haverá simulação, nos termos do artigo 240º do CC, e consequente invalidade do acto), o que interessa à actuação da impugnação pauliana – e seguimos os pressupostos comummente caracterizados desta – é (i) a realização pelo devedor de um acto que, não sendo de natureza pessoal, tenha o efeito de diminuir a garantia patrimonial de determinado crédito; (ii) a anterioridade deste crédito relativamente a esse acto, ou, sendo o crédito posterior, tenha o acto sido praticado dolosamente com o intuito de impedir a satisfação do direito do futuro credor; (iii) que, sendo o acto oneroso ocorra má fé do alienante e do adquirente, requisito que se dispensa nos actos gratuitos; (iiii) e, finalmente, que resulte do acto a impossibilidade ou agravamento da factibilidade do credor obter satisfação do crédito através do património do devedor[8]. Vale isto por dizer que a impugnação paulina não afecta o valor jurídico do acto, prescindindo, por isso mesmo, da averiguação dessa circunstância, sendo nessa particularidade que se funda a caracterização da acção pauliana como de natureza pessoal, incidência que se radica na opção legislativa que subjaz aos nºs 1 e 3 do artigo 616º do CC[9]. Sublinhamos esta incidência, fazendo luz sobre a realidade que aqui cumpre demonstrar, acentuando que se trata do efeito do negócio impugnado, em si mesmo, sobre a garantia patrimonial do credor, efeito expresso na diminuição desta garantia, e, no que interessa a esta particular situação (em que o crédito foi anterior ao acto e o acto de alienação foi formalmente oneroso), associado a uma especial posição comportamentalmente referenciada tanto ao alienante como ao adquirente – a má fé dos dois –, em vista do efeito desse acto. Tenha-se em conta, enfim, e isto encerra a essência do que ressalta quando analisamos a presente acção, que sendo exacto, como se costuma dizer, que nem tudo o que parece é…, não é menos verdade que existem situações tão apelativas naquilo que parecem, que tudo nos leva a crer serem isso mesmo: aquilo que parecem. É, de alguma forma, o que usualmente se qualifica de “Teste do Pato” (Duck Test) e se expressa no humorado aforismo anglo-saxónico característico do raciocínio indutivo: “parece um pato, nada como um pato, grasna como um pato é, provavelmente, um pato…”[10] (aforismo inspirado no poema de James Riley: “When I see a bird that walks like a duck and swims like a duck and quacks like a duck, I call that bird a duck”). Ora, aqui, o que parece – o que parece a um observador minimamente imparcial –, conjugando os diversos elementos indiscutivelmente estabelecidos nos autos, elementos que de seguida indicaremos, é que a venda do único bem minimamente consistente existente no património do devedor[11], pretendeu inquestionavelmente subtrair o imóvel dos 1ºs RR. ao alcance do credor na execução anteriormente instaurada por este e que previsivelmente atingiria, a muito breve trecho, a fase da penhora. Ao sublinhar isto não pretendemos encerrar a discussão suscitada no presente recurso numa lógica de aparência, e muito menos utilizar como prova tão-somente essa aparência. Esta – a aparência – não pode constituir, e não constituiu aqui, um ponto de chegada, mas pode assumir o papel de ponto de partida e ser efectivamente um bom ponto de partida, no sentido de contribuir decisivamente para a aferição de um resultado indagatório afirmado a final como correctamente estabelecido. É neste sentido que convocamos – e convocamos tão-só como ponto de partida – o carácter significativo da concreta aparência que nos interpela vivamente neste processo – como interpelou a Senhora Juíza a quo – através dos seguintes dados de facto que emergiram incontestáveis da produção de prova: (a) a venda impugnada ocorreu entre irmãos (só envolveu, aliás, familiares muito próximos); (b) foi já realizada em plena acção executiva e, muito sintomaticamente, contemporaneamente aos executados terem cessado o cumprimento do acordo de pagamento celebrado nessa mesma execução[12]; (c) a escritura de venda realiza-se em local diverso da residência de qualquer dos intervenientes (o que dificultaria, como dificultou, a pesquisa pelo agente de execução); (d) o imóvel vendido continuou (continua) a ser habitado pelos vendedores; (e) nenhum dos RR. comprovou o pagamento efectivo do preço declarado na escritura (ninguém paga €90.000,00 ou €85.000,00 em numerário), nem o accionamento com base na letra que se declara na escritura ter garantido parte desse pagamento (embora o 2º R. tenha dito em julgamento – com pouca convicção e notório embaraço – que o preço foi todo pago: ”ele deu-me o dinheiro…”); (f) do pagamento da própria renda de casa (€200,00/mês, que o 2º R. diz estar a ser paga pontualmente) não existe no processo rasto documental algum; (g) enfim, sintomaticamente – e tudo aqui assumiu um valor sintomático, mas tributário de uma sintomatologia muito expressiva –, o sócio da A., a testemunha …, referiu que a “garantia” do 1º R. marido ao cumprimento do acordo celebrado na execução (garantia dada verbalmente), foi, precisamente, a subsistência da sua casa como bem apto a assegurar o pagamento (minutos 5 a 6 do depoimento desta testemunha e confirmação no depoimento da testemunha … aos minutos 4 a 5 do registo áudio). É certo que tudo isto pode ser interpretado de diversas maneiras – tudo na vida pode ser interpretado de muitas maneiras –, mas a mais consistente e dotada de maior suporte probabilístico – de um esmagador suporte probabilístico, é a que se expressa na resposta ao quesito único criticada pelos Apelantes. 2.2.1. Foi através da conjugação destes dados de facto que a primeira instância deduziu a verificação dos pressupostos da impugnação pauliana, nos termos decorrentes da resposta ao ponto único da base instrutória. Tratou-se, assumidamente, de uma prova indirecta, porque alcançada com recurso a presunções naturais ou judiciais, também ditas presunções hominis, alicerçadas em regras ou máximas de experiência, nos termos consentidos pelo artigo 351º do CC. Tratou-se, pois, de retirar ilações lógicas, suportadas numa forte e preponderante probabilidade, de diversos factos conhecidos para afirmar um facto que, sendo à partida desconhecido (no sentido de não provado directamente), é fortemente indicado como real pela conjugação daqueles factos conhecidos (v. a definição de prova por presunção no artigo 349º do CC[13]). Coloca-se nestas situações um problema de justificação racional da prova do facto afirmado por inferência de outros factos, justificação esta que terá de ultrapassar, como aqui ultrapassa, uma mera crença metafísica, impossível de justificar fora do campo da referenciação a sensações subjectivas (impossíveis de partilhar com os outros na sua essência significativa, fora de um quadro de comunhão nessa mesma sensação). A prova nestes casos – em ambiente de controvérsia judicial, para identificarmos a presente situação –, formaliza-se e transfere-se para o domínio da justificação racional de uma determinada asserção, adquirindo preponderância o que poderemos identificar como a base argumentativa da prova. Assim, o processo de justificação da asserção afirmada, no sentido de recolha de elementos de apoio empírico a esta, transfere-se para a justificação racional objectivada, um pouco com o sentido que referia Karl Popper: “[…] embora nunca possamos justificar verdadeiramente uma teoria […], podemos frequentemente justificar a nossa preferência por ela em detrimento de outra teoria; por exemplo se o seu grau de corroboração é maior”[14]. Ora, o que aqui observamos, ponderando o conjunto dos – ou ponderando em conjunto os… – elementos inquestionáveis acima indicados, é uma ostensiva e esmagadora preponderância lógica – rectius, corroboração – da afirmação de pendor conclusivo alcançada por inferência (que relacionada com as anteriores assume esse pendor conclusivo) e que se expressa na resposta positiva aqui formulada ao quesito único: “[o]s RR. [todos eles] celebraram a escritura referida em 6.º com o propósito de retirar o prédio aí identificado da esfera patrimonial dos 1ºs RR. e evitar que o mesmo respondesse pelo pagamento da dívida à A.”. Com efeito, assim se alcança o que habitualmente identificamos como o limiar da prova de determinado facto em processo civil[15]. E, efectivamente, como já indicámos no Acórdão desta Relação de 06/03/2012, que expressa, aliás, a posição da exacta formação deste Tribunal que julga o presente recurso[16]: “[…] [a] consideração de um facto como provado assenta, em processo civil, num juízo de preponderância em que esse facto provado se apresente, fundamentadamente, como mais provável ter acontecido do que não ter acontecido […]” (a citação refere-se ao sumário do referido Acórdão de 06/03/2012). Estamos, importa sublinhá-lo, num quadro que lida com fontes de prova (meios de prova) sujeitos a livre apreciação, tanto quanto ao depoimento das duas testemunhas (artigo 396º do CC), como na valoração do depoimento de parte do 2º R., sendo certo que este não se traduziu em confissão, sendo embora muito sintomático[17]. E, como flui do anterior percurso expositivo, essa livre apreciação apresenta-se como racionalmente fundamentada[18], alicerçando a asserção fixada pelo Tribunal quanto à integração, por via do ponto 8º dos factos provados, dos elementos da impugnação pauliana. E, enfim, a isto não constitui obstáculo uma suposta dificuldade, insistentemente apontada pelos Apelantes – em torno da qual, aliás, constroem o seu “caso” –, em caracterizar directamente o requisito da ma fé referenciado ao 2º R., em função do carácter (aparentemente) oneroso do acto de transferência do imóvel, nos termos do artigo 612º, nº 1, primeira parte, do CC. Vale a este respeito, por absoluta igualdade de razão, o que até aqui se observou quanto à inferência probatória que se apresenta como racionalmente justificada por uma forte probabilidade. Se o requisito da má fé – que corresponde à consciência, que vai até à negligência consciente, do prejuízo que o acto causa ao credor[19] – implicasse aqui uma prova directa de um estado psicológico de conhecimento do adquirente, e fosse incompatível com a dedução desse estado de outros factos fortemente sugestivos dele, só se verificaria tal requisito nas situações (raras) de confissão do próprio. É com este sentido que vale quanto a este elemento a dedução da má fé de outros elementos expressivos. Ora, aqui, e assim justificamos a presença desse elemento, admitindo que o acto foi oneroso (como pouco plausivelmente se declarou na escritura[20]), a relação familiar estreita entre os intervenientes aponta fortemente no sentido de uma comunhão entre todos os intervenientes (nem que tenha sido “por contágio” “fraternal” dos 1ºs RR. ao 2º R) da externalidade directamente induzida pela venda relativamente ao crédito da A.. E tudo isto até esquecendo esse dado tão expressivo de toda esta situação: a mudança do dono formal da casa não se reflectiu minimamente numa mudança real da afectação dominial do imóvel expressa num outro uso desse bem. Mesmo que efectiva venda da casa tenha ocorrido, foi uma venda teleologicamente dirigida à privação do credor do acesso executivo a esse bem, quando a relação dos 1ºs RR. com esse bem permaneceu a mesma: a casa onde viviam antes é a casa onde continuam a viver. 2.3. Valem as antecedentes considerações, no seu conjunto, pela afirmação da improcedência do recurso, decisão que se formulará a rematar o presente Acórdão, depois de sumariado o antecedente percurso expositivo, em obediência ao preceituado no artigo 713º, nº 7 do CPC: III – Decisão 3. Pelo exposto, improcedendo o recurso, confirma-se integralmente a douta Sentença apelada. Custas pelos Apelantes. (J. A. Teles Pereira - Relator) (Manuel Capelo) (Jacinto Meca) [1] Estamos a indicar a data da propositura da presente acção. Marca esta circunstância de tempo a aplicação à presente instância de recurso do regime processual originariamente decorrente do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Não se aplica aqui, desta feita por estar em causa decisão recorrida (a de fls. 266/276) anterior a 1 de Setembro de 2013 (de 29/04/2013), o texto do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho (v. os respectivos artigos 7º, nº 1 e 8º, cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, 2013. p. 15). Assumimos ser discutível se a regra do artigo 7º, nº 1 da Lei nº 41/2013, a única disposição do Diploma introdutório do Novo Código de Processo Civil que se refere à instância de recurso, abrange os recursos referidos a decisões anteriores a 01/09/2013 aos quais já se aplicasse, como aqui sucede, o regime do DL nº 303/2007 – processos instaurados depois de 01/01/2008 –, sendo que quanto a estes, em rigor, não há qualquer regime transitório expressamente definido, pelo que há que entender que, em tais casos, se continuará a aplicar o regime antigo, aqui sinónimo do regime “originário” do DL nº 303/2007, até porque, se o legislador se preocupou em definir um regime para as acções instauradas antes de 01/01/2008, não tem sentido concluir que um regime idêntico também vale para as acções propostas depois dessa data, além de que a “tradição” dos nossos Diplomas introdutórias de reformas profundas do Processo Civil é tratar a instância de recurso individualizadamente. [2] Os 1ºs RR. são, respectivamente, irmão e cunhada do 2º R. [3] A situação geradora do recurso à acção pauliana por banda da A., como credora dos 1ºs RR., corresponde ao seguinte encadeamento de circunstâncias de facto: os 1ºs RR., marido e mulher, como sócios de uma sociedade (U…), prestaram aval a uma letra titulando dívidas de fornecimentos pela A. a essa sociedade. Não tendo a letra sido paga, instaurou a A., em 18/03/2004, execução, também contra esses 1ºs RR. (foram estes citados para essa execução em 10/05/2004), sendo que no decorrer da execução chegaram os RR. a um acordo de pagamento faseado da dívida com a A. (aí exequente), em 07/07/2004, acordo cujo cumprimento cessaram em Março de 2005, passando os cheques, que nesse quadro emitiram (os RR. aí executados), a ser devolvidos por falta de provisão. Prosseguindo tal execução – que estava suspensa em função do acordo de pagamento – procurou-se realizar a penhora do imóvel aqui em causa (em Maio de 2005), constatando-se que, em 18/11/2004, já na pendência da execução, os 1ºs RR. haviam vendido o imóvel ao 3º R., respectivamente irmão e cunhado deles, tendo este registado essa aquisição em 06/06/2006. [4] Utilizando, sintomaticamente, a mesma contestação, embora descontextualizada do contestante respectivo, como se percebe pela referência ao “adquirente” no artigo 3º da contestação dos dois primeiros RR. (a fls. 177) quando essa contestação provinha, tão-só, dos “alienantes” do prédio. Sublinha-se já aqui esta incidência, ilustrando (desde já) a ostensiva e sintomática actuação em conjunto e coordenadamente de todos os RR., sendo este facto um indício muito consistente de que foi correcta a valoração da Senhora juíza a quo que subjaz ao julgamento da acção, nos termos em que este julgamento é aqui posto em causa pelos RR. [5] Interessa aqui – é esse, aliás, o objecto deste recurso – a fundamentação exarada pela Senhora Juíza a quo em abono dessa resposta: “[…] [P]ara prova da factualidade em referência – se os réus, no ato da escritura, tinham plena consciência de que a compra e venda causava prejuízo à autora, sabendo que a transmissão do prédio dos 1.os réus para o 2.º réu diminuía o património daqueles susceptível de responder pelo crédito da autora e, assim, impedia a satisfação do mesmo – foram decisivas as regras da experiência comum e da normalidade da vida, sustentadas nos seguintes elementos: - os 1.os réus começaram a incumprir o acordo de pagamento prestacional firmado com a autora em Outubro de 2004 e a escritura pública de compra e venda data de Novembro de 2004; - o referido contrato de compra e venda foi celebrado entre irmãos; - a escritura foi celebrada no Cartório Notarial de …, sendo que todos os réus residiam em Ourém; - o prédio objecto desse contrato era a casa de morada de família dos 1.os réus, onde os mesmos continuaram a residir e que, actualmente, continua a ser a habitação da 1.ª ré (factualidade decorrente do depoimento do 2.º réu); - consta da escritura de compra e venda que o prédio foi vendido pelo preço de 90.000,00€, mas que naquela data só foi entregue o valor de 5.000,00€; - desconhecimento de outros bens da titularidade dos 1.os réus (factualidade decorrente do depoimento do 2.º réu); - admissão pelo 2.º réu de que a escritura foi celebrada para ajudar o 1.º réu a pagar as suas dívidas. Todos estes elementos levam o tribunal a formar a convicção segura no tocante à prova da factualidade em referência. Em face dos elementos factuais acima referidos, conjugados com as regras da experiência e da normalidade de vida, no mínimo, o 2.º réu sabia da dívida dos 1.os réus e, consequentemente, ao cooperarem na subtracção do bem do património dela, estavam a prejudicar a autora, na medida em que, assim, aumentava significativamente a sua impossibilidade de satisfazer o seu crédito. [P]rovando-se que a venda foi feita com a finalidade de impossibilitar a satisfação patrimonial da A. e todos os réus tinham consciência de que a prejudicavam, tanto basta para a confirmação da má-fé. Em resumo, demonstrando-se os pressupostos da pauliana relativamente à venda efetuada pelos 1ºs RR. (vendedores) ao 2º R. (comprador), a ação terá que ser julgada procedente. Só não procede o pedido de cancelamento do registo de aquisição da propriedade sobre o referido prédio, dada a natureza da ação, pois a consequência da pauliana não é a anulação dos atos, mas a da ineficácia, não implicando o cancelamento do registo predial. […] Face ao exposto, julgo parcialmente procedente, por provada, a ação e, em consequência: a) declaro ineficaz, em relação à A., ‘M…, Lda.’, o contrato de compra e venda celebrado por escritura pública de 18-11-2004, entre os 1ºs RR., F… e mulher Â…, e o 2º R., J…, descrito no ponto 6.º dos factos provados; b) ordeno a restituição desse imóvel de modo a que a autora se possa pagar à custa dele, podendo a A. executar o imóvel identificado no património do réu adquirente até ao limite do seu crédito. Absolvo os RR. do pedido de cancelamento do registo. [15] “[A]quilo que qualificamos como ‘limiar da prova’, referindo-nos ao limite valorativo, se assim nos podemos expressar, que suporta a afirmação de estar provado um determinado facto, corresponde, numa acção cível, a um juízo de preponderância da hipótese afirmada como provada no confronto com a afirmação contrária, em termos de se sustentar como realidade ‘mais provável do que não’ (‘more likely than not’). Vale isto pela afirmação de que não se requer aqui, contrariamente ao que sucede na valoração da prova no ambiente de um processo penal, a ultrapassagem de todos os estados de dúvida razoáveis quanto à correspondência de determinado facto à realidade (o chamado standard caracterizado como “beyond a reasonable doubt”)” (a citação é retirada do texto do Acórdão desta Relação identificado na subsequente nota). |