Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
78428/17.2YIPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
INJUNÇÃO
OPOSIÇÃO
EXCEPÇÃO
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - M.GRANDE - JUÍZO C. GENÉRICA - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 847, 848 CC,266 Nº2 C), 571 CPC, DL Nº 269/98 DE 1/9
Sumário: 1. - A compensação de créditos, figura civilística substantiva com regulação típica nos art.ºs 847.º e segs. do CCiv., uma vez operante (torna-se efetiva mediante declaração, judicial ou extrajudicial, de uma das partes à outra), determina a extinção creditória, pelo que convoca factologia extintiva do direito invocado pelo autor, assumindo-se, processualmente, como exceção perentória, assim podendo ser invocada na contestação, nesse sentido devendo interpretar-se, conjugadamente, o disposto naqueles preceitos do CCiv. e nos art.ºs 571.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv..

2. - As normas processuais devem ser interpretadas – se necessário, em termos restritivos –, na busca da coerência e harmonia do sistema jurídico, à luz do seu escopo de realização do direito substantivo, não podendo constituir entrave a tal realização.

3. - Aquela al.ª c) do n.º 2 do art.º 266.º da lei adjetiva somente estabelece que a compensação é admissível como fundamento de reconvenção – para reconhecimento judicial do direito de crédito, com valor de caso julgado –, e não que só possa vingar, processualmente, por esse meio.

4. - Em processo onde não era admissível a dedução de reconvenção ao tempo do oferecimento do articulado de oposição, razão pela qual o demandado se limitou a excecionar a compensação extintiva, com posterior transmutação para ação de processo comum, deve essa defesa por exceção ser admitida, obstando-se ao esvaziamento de um importante meio de defesa e aos inconvenientes de interposição de ação autónoma posterior, com o risco para o réu de pagamento e de futuro não recebimento.

Decisão Texto Integral:










Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

T(…), Lda.”, com os sinais dos autos,

intentou ([1]) procedimento de injunção contra

N(…), Lda.”, também com os sinais dos autos,

pedindo a notificação da R. para pagar à Demandante a quantia global de € 28.902,06, correspondente a € 25.250,18 a título de capital, € 3.498,88 de juros de mora respetivos e € 153,00 de taxa de justiça paga.

Alegou que, no exercício da sua atividade comercial (de fabricação de moldes), fabricou e forneceu à R., a pedido desta, um molde, que identifica, no valor de € 108.855,00, com emissão e aceitação da respetiva fatura e pagamento parcial, mantendo-se em dívida, porém, o capital mencionado, cujo pagamento a Demandada se recusa a efetuar, apesar de a tanto instada.

A R. deduziu oposição, concluindo pela sua absolvição do pedido, para o que alegou:

- que houve cumprimento defeituoso do contrato de empreitada (os moldes tinham defeitos), o que lhe causou prejuízos;

- que houve, entre as partes, acordo de contas/pagamento, tendo ocorrido integral pagamento;

- a compensação extintiva, referindo ter um crédito sobre a Requerente superior ao por esta invocado – com referência aos defeitos dos moldes fornecidos –, pelo que, subsidiariamente (para o caso de não proceder a exceção do pagamento), invocou a extinção do crédito da Requerente por compensação, agora declarada (por via judicial).

Concluiu, para além do mais, pela procedência da exceção de compensação, com a sua decorrente absolvição do pedido.

Por despacho de 16/05/2018 foi determinado que os autos seguissem a forma de processo comum e que fosse cumprido o disposto no art.º 575.º do NCPCiv., notificando-se a oposição à A. ([2]).

 Já por despacho de 12/11/2018 foi dada às partes a possibilidade de se pronunciarem quanto à regularidade da instância no que concerne à exceção de compensação, visto o disposto no art.º 266.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv..

Pediu então a R. que, à luz do disposto nos artºs 6.º, n.º 2, e 547.º, ambos do NCPCiv., a exceção de compensação fosse tratada como reconvenção (assim entendida e tramitada), ou, caso assim não se entendesse, que fossem as partes convidadas a aperfeiçoar os seus articulados, de acordo com a nova forma de processo.

Após o que, em sede de saneamento do processo, foi decidido não admitir a exceção perentória de compensação deduzida, por inadmissibilidade legal, prosseguindo os autos quanto ao mais ([3]).

Desta decisão (de não admissão da exceção de compensação) veio a R., inconformada, interpor o presente recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões:

«A) A Recorrente não concorda com a decisão proferida no Despacho Saneador de que se recorre e que não admitiu o pedido da Ré no que concerne à excepção de compensação formulada pela mesma aquando da apresentação da sua oposição à injunção uma vez que a presente acção se iniciou como requerimento de injunção, sendo o valor pedido de 28.749,06 €, estando sujeita ao Regime Jurídico dos Procedimentos para cumprimento de obrigações emergentes de contratos e injunção, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 269/98, de 01.9, com as alterações publicitadas.

B) o Procedimento de injunção trata-se de um procedimento especial destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 30.000,00 (cfr. artigo 1.º do diploma preambular - Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro e sendo uma providência especial tem por finalidade conferir força executiva ao requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 30.000,00€, ou das obrigações emergentes das transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, independentemente do valor (cfr. artigo 7.º do anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro), pelo que tratando-se de um processo especial, aplica-se apenas aos casos expressamente previstos na lei e rege-se pelas disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns e em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, observar-se-á o que se acha estabelecido para o processo ordinário – artigos 546.º, nº 2 e 549.º, nº 1 ambos do C.P. Civil.

C) Na tramitação deste processo especial, a lei apenas prevê a existência de dois articulados: a petição inicial e a contestação, pelo que não é admissível reconvenção, não prevendo também a réplica, nem sequer a resposta à contestação, pelo que não sendo nela admissível a Reconvenção a Requerida não a deduziu, tendo sim deduzido excepção peremptória de compensação, de acordo com o vertido pela maioria da doutrina e jurisprudência, nomeadamente no acórdão da Relação do Porto, de 23.02.2015, processo n.º 95961/13.8YIPRT.P1 publicado em , que defendem que nas acções em que não é admissível reconvenção, como as acções especiais para o cumprimento de obrigações pecuniárias, não deve ser coartado um relevante meio de defesa, como o é a compensação, devendo nesses casos a compensação ter o tratamento próprio de uma excepção peremptória.

D) Ora a presente acção deu entrada em juízo como injunção e em consequência da oposição deduzida pela ora recorrente foi distribuída como A.E.C.O.P, sendo que, posteriormente, por despacho de fls. a que foi atribuída a referência 88181052 foi ordenada a redistribuição da acção como Acção de Processo Comum.

E) Nestes casos pode e deve o Tribunal convidar as partes a aperfeiçoar os seus articulados, precisamente para os adequar ao novo procedimento, o que o Tribunal à quo não fez e deveria ter feito atento o supra referido despacho proferido, a que foi atribuída a referência 88181052 e por via do qual foi ordenada a redistribuição da acção como Acção de Processo Comum, e atento o dever de gestão processual previsto no artigo 6º nº 2 do C.P.C., que afirma precisamente que o juiz pode oficiosamente determinar actos necessários à regularização da instância, entendendo-se por via disso que atenta esta transformação da acção em processo comum, está precisamente em causa o princípio da adequação formal previsto no artigo 547º do C.P.C ao qual deveria ter sido dado cumprimento.

F) Ou seja, a partir do momento em que o processo é redistribuído como processo comum o tribunal a quo deveria ter notificado as partes para adequarem o processo e os seus articulados àquela forma de processo e deveria ter convidado as partes ao suprimento das eventuais irregularidades dos articulados em consequência da nova forma processual, dando assim à Ré a oportunidade de aperfeiçoar o seu articulado.

G) Sendo que ai sim a Ré, que antes não poderia deduzir reconvenção atenta a especialidade da acção em causa (injunção )(apenas podendo deduzir excepção de compensação) já o poderia fazer, “transformando “ a excepção de compensação antes deduzida em Reconvenção.

H) A noção legal do Dever de Gestão Processual consta do artigo 6º do Código de Processo Civil determina que : “Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.”

Ou seja, a partir do momento em que o processo é redistribuído como processo comum o tribunal a quo deveria ter notificado as partes para adequarem o processo e os seus articulados àquela forma de processo

I) O Tribunal à quo deveria ter convidado as partes ao suprimento das eventuais irregularidades dos articulados em consequência da nova forma processual.

Porquanto ainda dentro do âmbito dos poderes de adequação formal o Juiz tem o dever de adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa.

J) Uma vez que o Juiz poderá dispensar a prática de atos processuais que se revelam desnecessários. Pode também substituir atos processuais por outros, que se revelam mais adequados às especificidades da causa ou inclusive adicionar atos não previstos. Por outro lado, o Juiz tem também o dever de adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam acreditar artigo 547º cpc). A este propósito Lebre de Freitas bem refere que "a adequação formal não tem só lugar quando a tramitação legal não se adeque (em absoluto) ao caso concreto; deve ter também lugar quando, embora adequada, outra haja que melhor se adeque"

K) A omissão desse convite ao aperfeiçoamento, consubstancia a violação do princípio da cooperação e do dever de gestão processual imposto ao Tribunal, gerando uma nulidade processual que determina a anulação do despacho saneador - sentença proferido no sentido da não admissão da excepção de compensação deduzida pela Ré, obrigando o tribunal a convidar os autores e a Ré a aperfeiçoarem os seus articulados, podendo ai sim agora a Ré converter a excepção deduzida em Reconvenção.

L) Essa nulidade processual, determina a anulação do despacho saneador - sentença proferido, por força do disposto no nº 2 do citado art. 195º C.P.C. O que o Tribunal a quo não fez, violando assim o artig 6º nº 2 e 547º do CPC .

Termos em que,

deve ser dado provimento ao presente recurso, sendo revogada a decisão recorrida e, em consequência, anulada a decisão recorrida e todos os subsequentes termos do processo, tudo com as legais consequências.».

Não foi apresentada contra-alegação de recurso.


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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa do processo a este Tribunal ad quem, onde foram mantidos o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


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II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([4]) –, o thema decidendum consiste em saber:

a) Se ocorre, como invocado, omissão indevida de convite ao aperfeiçoamento – a consubstanciar violação do princípio da cooperação e do dever de gestão processual –, assim gerando nulidade processual que determina a anulação do despacho saneador-sentença quanto à não admissão da exceção de compensação e obrigando o tribunal a convidar as partes a aperfeiçoarem os seus articulados; ou

b) Se, desde logo, é admissível a invocação da compensação por via de exceção – como ocorrido nos autos –, que não, necessariamente, em veste reconvencional.


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III – Fundamentação

A) Matéria de facto

A factualidade relevante a considerar para decisão do recurso é a que consta do antecedente relatório, cujo teor aqui se dá por reproduzido.


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B) O Direito

1. - A matéria em causa no recurso, que se prende com o modo admissível de dedução processual da compensação creditória com confinado efeito extintivo (invocação como exceção perentória) – se necessariamente através de reconvenção, ou não –, tem suscitado viva controvérsia na doutrina e na jurisprudência, mormente perante a redação do art.º 266.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv..

Assim, se alguma jurisprudência e doutrina assumem a posição rígida de recusar sempre a compensação se não for apresentada pela via reconvencional, nem que seja mediante convite ao aperfeiçoamento de articulados, a polémica continua, designadamente quando o requerido pretende opor um crédito ao requerente no procedimento injuntivo, sendo certo que diversas hipóteses se abrem neste plano.

É assim que, por exemplo, no Ac. TRL de 24/05/2016 ([5]) se entendeu que: “No caso do valor de o procedimento de injunção, ainda que respeitante a transacção comercial, exceder metade da alçada do Tribunal da Relação, o mesmo deve seguir a forma comum, com a admissão do pedido reconvencional apresentado pelo opoente.” ([6]).

E no mesmo sentido se pronunciam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, argumentando que num tal caso – ação declarativa subsequente ao processo de injunção baseado no DLei n.º 62/2013, de 10-05 (transações comerciais), com valor superior a metade da alçada da Relação – “o problema não se põe, por ela seguir os termos do processo comum, como resulta do art. 10, n.ºs 2 e 3, desse diploma” ([7]).

Nesta perspetiva, pareceria ser de concordar com o Tribunal a quo quando refere que, atenta a legal transmutação do procedimento de injunção, no caso, em ação de processo comum – como efeito da dedução de oposição –, não estava vedada à parte demandada a possibilidade de dedução de reconvenção, o que manifestamente não fez (nem antes nem depois da transmutação).

É certo que esta parte poderá dizer – como diz no recurso – que, ao tempo da oposição injuntiva, não lhe era lícito deduzir reconvenção, já que, em rigor, o procedimento de injunção, enquanto tal, a não permitiria.

Porém, sempre teria de colocar-se, para quem considere obrigatória, em caso de invocação do instituto civilístico da compensação de créditos com (meros) fins extintivos, a veste reconvencional – como entendido na decisão recorrida ([8]) –, a questão (expressamente trazida ao recurso) do convite ao aperfeiçoamento do articulado de oposição (onde é manifesta a intenção compensatória, com invocação de factualidade de suporte), dentro dos poderes vinculados conferidos ao Tribunal, na ótica da gestão/adequação processual/formal ([9]).

Contudo, uma outra questão deve ser colocada a montante e que pode deixar prejudicada aquela matéria – também controversa – de “convite ao aperfeiçoamento”.

É a questão, desde logo, da (in)admissibilidade, à luz do NCPCiv., da dedução da exceção perentória de compensação de créditos, se com finalidade meramente extintiva do crédito do demandante (matéria de exceção), com operância declarativa extrajudicial (antes do processo) ou judicial (na própria oposição/contestação, como in casu), fora, pois, dos moldes reconvencionais.

Sobre esta matéria já teve o aqui Relator (enquanto 2.º Adjunto) oportunidade de tomar posição nesta mesma Relação (e Secção), posição essa que não se vê motivo para alterar.

Trata-se do Ac. do TRC de 16/01/2018 ([10]), com o seguinte sumário:

«1. A al. c) do nº 2 do artigo 266º do CPC apenas diz que a compensação é admissível como fundamento de reconvenção e não que a compensação só possa ser feita valer por esse meio.

2. A compensação opera por mera declaração unilateral de uma das partes à outra (nº 1 do artigo 848º CC), tendo a extinção dos créditos eficácia retroativa ao momento em que os créditos se tornaram compensáveis (artigo 854º CC).

3. Em processo onde seja vedada a dedução de reconvenção, ao réu terá de ser facultada a possibilidade de invocar a compensação por via de exceção, sob pena de lhe ser coartado um importante meio de defesa.».

Com efeito, foi expresso, com relevância para o caso dos autos, na fundamentação daquele acórdão, que passamos a citar ([11]):

«Na vigência do anterior Código de processo, estabelecia o artigo 274º, nº 2, al. b), que “a reconvenção é admissível (…) quando o réu se propõe obter a compensação”.

Era, já então, controvertida a questão de saber se a compensação tinha de ser invocada sempre em sede de reconvenção ou se a constituía apenas quando o crédito do réu era superior e só na medida do excesso, sendo esta última a jurisprudência maioritária.

Os defensores de que a compensação deveria ser invocada em sede de exceção, só podendo ser objeto de pedido reconvencional na parte excedente, apoiavam-se no argumento de que se a alegação de factos extintivos do direito do autor assume a natureza de exceção perentória, parecia inexistirem razões justificativas para sujeitar a compensação a diverso tratamento.

Partindo da ideia de que a compensação se efetiva através de uma mera declaração de vontade unilateral (manifestada extrajudicialmente), Vaz Serra considera que, quer na situação em que o réu tenha “declarado a compensação antes de o autor propor a ação e se defender do pedido deste invocando a compensação”, quer no caso em que o réu apenas na contestação manifesta originariamente a vontade de compensar, não há lugar a reconvenção, porquanto o réu não formula qualquer pedido contra o autor, limitando-se a alegar que o direito de crédito feito valer pelo autor se extinguiu pela compensação que ele demandado declarou.

Uma vez que o demandado, ao invocar a compensação, nada mais pretende do que a improcedência total ou parcial da ação, o meio adequado para alcançar esse efeito é a exceção perentória.

A aplicação da al. b), 2ª parte, do nº 2 do artigo 274º, restringir-se-ia aos casos em que o contracrédito seja de montante superior ao do autor e o réu peça a condenação ou a declaração do seu crédito, quanto ao excedente.

Quanto aos defensores da tese de que a compensação teria sempre de ser deduzida a título reconvencional, faziam-no com o argumento de que quando [o] réu invoca factos relativos à caducidade, ao perdão, ao pagamento ou à dação em cumprimento, tais alegações respeitam ainda, indubitavelmente, à relação jurídica sujeita à apreciação do tribunal. Quando é invocada a compensação de créditos, o direito de crédito não extingue por qualquer circunstância inerente à própria relação jurídica, mas porque o réu é, simultaneamente, credor do autor, crédito esse proveniente de uma outra relação jurídica existente entre ambos e que pode ser absolutamente distinta da apresentada pelo autor.

A revisão do CPC introduzida pela Lei nº 41/2013, de 12 de agosto, com a redação dada à alínea c), do nº 2, do artigo 266º, veio reacender a polémica:

“2. A reconvenção é admissível nos seguintes casos:

(…)

c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor”.

 A generalidade da doutrina reconhece que a redação de tal alínea revela que a intenção do legislador terá sido a de por fim à querela, assumindo a posição de que, sempre que o réu se afirme credor do autor e pretenda obter o reconhecimento do seu crédito na ação em que é demandado, deverá formular pedido reconvencional, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito do réu exceda o do autor.

Contudo, o teor de tal norma acaba por não encerrar a questão, uma vez que, em rigor, aí apenas se dispõe sobre os casos em que a reconvenção é admissível. Não versa sobre a possibilidade, ou não, de utilização de diferente meio processual para obter idêntico efeito, no caso, meramente extintivo do autor (art. 576º, nº 3).

Por outro lado, se compararmos a atual redação de tal norma com a anterior – a reconvenção é admissível (…) quando o réu se propõe obter a compensação – constatamos que a única diferença é que agora o legislador diz claramente que a reconvenção não só é admissível para obter a compensação (o que já constava da versão anterior), como também é admissível “para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor”.

De qualquer modo, a maior parte dos autores, de um modo ou de outro, acaba por defender uma interpretação restritiva, de modo a excluir da sua aplicação algumas situações que, no seu entender, tem de ser salvaguardadas sob pena de a defesa do réu ficar seriamente prejudicada.

(…)

No entender de Rui Pinto, o reconhecimento do crédito, com valor de caso julgado, parece ser condição tanto de compensação – com eficácia extintiva –, como do pagamento do valor excedente sobre o crédito do autor; contudo, alvitra que continuará a estar no âmbito da disponibilidade do réu pretender o reconhecimento de um crédito para obter a compensação. Se ele não pretender esse reconhecimento, pode deduzir a compensação, embora sem valor de caso julgado, nos termos do artigo 91º.

Sendo de opinião de que não haverá razões que justifiquem um tratamento diferenciado entre a compensação já efetuada por declaração extraprocessual e a que opere processualmente, Maria Gabriela Cunha Rodrigues sustenta que nas ações em que não é admissível reconvenção, como as especiais para o cumprimento de obrigações pecuniárias, previstas no DL 269/98, de 1 de setembro, ou nas ações em que seja inadmissível a dedução da compensação quando a apreciação do contracrédito não seja da competência do tribunal judicial (art. 91º, nº1), a interpretação deste preceito não nos deve conduzir a efeitos tão restritivos, não devendo ao reu ser coartado este relevantíssimo fundamento de defesa.

(…)

Por fim, chegamos à posição assumida por José Lebre de Freitas, segundo a qual, apesar da intenção do legislador de 2013, a melhor interpretação a fazer do atual regime é a de que nada mudou, permanecendo a reconvenção fundada em compensação meramente facultativa.

Para tal autor, em primeiro lugar, a lei não diz que a compensação só pode ser feita valer em reconvenção, mas sim que esta é admissível como fundamento de reconvenção. O termo “pretende” apoia igualmente a interpretação de a reconvenção se matem facultativa. (…)

Esta tese de que a via da reconvenção permanece facultativa ou de que ao réu deverá sempre ser facultada a invocação da compensação (por uma via ou por outra) é a que melhor se coaduna com o regime substantivo da compensação introduzido pelo Código Civil de 1966 – compensação por mera declaração unilateral de uma das partes à outra (nº 1 do artigo 848º CC), extinção dos créditos com eficácia retroativa ao momento em que os créditos se tornaram compensáveis (artigo 854º CC).

Por fim, salientamos, tão só, que nas ações em que seja admissível a reconvenção, o interesse desta querela é meramente formal – quer a compensação seja deduzida como defesa por exceção, seja a título de reconvenção, sempre ao autor haverá de ser dada a possibilidade de resposta, por respeito ao princípio do contraditório; por outro lado, quer seja trazida ao processo por meio de exceção quer o seja através da dedução de pedido reconvencional, a invocação da compensação nunca altera o valor da causa.

(…)

Como salientava Adriano Vaz Serra, declarada a compensação pela parte (extrajudicial ou judicialmente), o tribunal não pode decidir, sem mais, que o demandado deve pagar o crédito do autor (e ainda que o crédito daquele seja ilíquido), já que o demandado tem o direito de não pagar, na medida em que a sua dívida se compense com uma dívida do autor para com ele.

Já então, tal autor alertava que, se devido à diversidade da forma de processo, não for admissível a reconvenção e a liquidação do contracrédito não for possível através de reconvenção, nem por isso pode o demandado ficar privado do direito à compensação – se o demandado declarar a compensação com um contracrédito cuja apresentação deva ser feita em processo com outra forma ou por outro tribunal, a invocação da compensação faz-se por exceção perentória.» (destaques aditados).

Veja-se também, desta mesma Relação e Secção, entre outros, o Ac. TRC de 26/02/2019, Proc. 2128/18.1YIPRT.C1 (Rel. Carlos Moreira), também em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «I - A compensação assume-se, substantivamente, como figura autónoma -exceção perentória - e, como tal, e até ao valor do contra crédito, pode, adjectivamente, ser invocada na contestação – artºs 847º do CC e 571º do CPC. // II - É que o artº 266º nº 2 al. c) do CPC apenas estatui que a reconvenção é admissível se se quiser invocar a compensação; e não que esta, até ao valor do contra crédito, apenas pode ser invocada via reconvencional.».

2. - No caso dos autos, haverá de reconhecer-se que, enquanto procedimento injuntivo – era essa a natureza dos autos ao tempo da dedução da oposição, só depois, na sequência, se transmutando em ação de processo comum –, não havia previsão legal, aquando da apresentação da defesa, que permitisse a dedução de reconvenção ([12]), pelo que se compreende que a parte requerida se tenha limitado a excecionar a compensação extintiva.

Acresce que o contracrédito de que a parte demandada se socorre se movimenta ainda, de algum modo, dentro do mesmo relacionamento jurídico, posto a parte demandante pretender cobrar parte do preço de fabrico e fornecimento, a pedido da R., de um molde, e esta última pretender, por sua vez, que ocorreu cumprimento defeituoso do respetivo contrato de empreitada, por os moldes terem defeitos, o que lhe causou prejuízos, nesse âmbito invocando a compensação, referindo ter um crédito sobre a A. superior ao por esta invocado, a ocasionar a extinção do crédito da Demandante.

Conclui-se, assim, que, no caso dos autos, deve ser “permitido ao réu defender-se mediante a invocação da compensação, sob pena de tal meio de defesa lhe ficar definitivamente vedado – com efeito, ainda que não se encontre impedido de, em ação a instaurar posteriormente, vir a pedir o reconhecimento do seu crédito, tal reconhecimento não ocorrerá a tempo de o poder contrapor ao crédito do autor, sendo que, se o autor vier a propor ação executiva, dificilmente logrará o reconhecimento da compensação mediante a dedução de embargos de executado. Ou seja, vedando-lhe a invocação do contracrédito na presente ação, significará que, na prática, ainda que possua (no âmbito dessa mesma relação), um contracrédito contra o autor, o réu será obrigado a, em primeiro lugar, satisfazer o crédito do autor, correndo o risco de o seu contracrédito não vir a ser satisfeito” ([13]), mormente em caso de insolvência da contraparte, sendo sabido que as normas processuais devem ser interpretadas – se necessário, em termos restritivos –, na busca da coerência e harmonia do sistema jurídico, à luz do seu escopo de realização do direito substantivo, não podendo constituir entrave a tal realização.

Donde que a apelação deva, salvo sempre o devido respeito por diverso entendimento, proceder, sendo de admitir a deduzida exceção perentória extintiva da compensação, com as legais consequências processuais, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas pela Recorrente.

Cabe, pois, revogar a decisão recorrida para que o Tribunal a quo possa, se a tal nada mais obstar, apreciar a pretensão da R. a ver compensados os créditos invocados.

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - A compensação de créditos, figura civilística substantiva com regulação típica nos art.ºs 847.º e segs. do CCiv., uma vez operante (torna-se efetiva mediante declaração, judicial ou extrajudicial, de uma das partes à outra), determina a extinção creditória, pelo que convoca factologia extintiva do direito invocado pelo autor, assumindo-se, processualmente, como exceção perentória, assim podendo ser invocada na contestação, nesse sentido devendo interpretar-se, conjugadamente, o disposto naqueles preceitos do CCiv. e nos art.ºs 571.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv..

2. - As normas processuais devem ser interpretadas – se necessário, em termos restritivos –, na busca da coerência e harmonia do sistema jurídico, à luz do seu escopo de realização do direito substantivo, não podendo constituir entrave a tal realização.

3. - Aquela al.ª c) do n.º 2 do art.º 266.º da lei adjetiva somente estabelece que a compensação é admissível como fundamento de reconvenção – para reconhecimento judicial do direito de crédito, com valor de caso julgado –, e não que só possa vingar, processualmente, por esse meio.

4. - Em processo onde não era admissível a dedução de reconvenção ao tempo do oferecimento do articulado de oposição, razão pela qual o demandado se limitou a excecionar a compensação extintiva, com posterior transmutação para ação de processo comum, deve essa defesa por exceção ser admitida, obstando-se ao esvaziamento de um importante meio de defesa e aos inconvenientes de interposição de ação autónoma posterior, com o risco para o réu de pagamento e de futuro não recebimento.

V – Decisão

Termos em que se acorda em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e ordenando, se a tal nada mais obstar, o prosseguimento dos autos para apreciação e decisão também quanto à excecionada compensação creditória.

Custas da apelação pela parte vencida a final.

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Coimbra, 10/12/2019

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (Relator)

          Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Em 07/08/2017. 
([2]) Assim se corrigindo anterior distribuição como AECOP.
([3]) Decisão datada de 25/01/2019 (fls. 62 e segs. do processo físico destes autos de recurso em separado).
([4]) Cfr. art.º 8.º daquela Lei n.º 41/2013.
([5]) Proc. 101387/15.0YIPRT-A.L1-7 (Rel. Luís Espírito Santo), em www.dgsi.pt.
([6]) Trata-se, como se infere, de pedido reconvencional formulado pelo opoente no articulado de oposição à injunção.
([7]) Cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 536.
([8]) Na senda de parte relevante da jurisprudência (inter alia, a citada na própria decisão recorrida) e da doutrina (cfr., entre outros, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, ps.304 e seg.).
([9]) No sentido, todavia, da inviabilidade “do princípio da adequação formal para admitir a reconvenção nas formas de processo em que não é admissível”, cfr. Manuel Eduardo Bianchi Sampaio, no seu artigo “A compensação nas formas de processo em que não é admissível reconvenção”, em Julgar Online, maio de 2019, ps. 9 e segs.. Argumenta assim este autor:
«Compreendemos esta solução porque permite alcançar um resultado positivo, possibilitando ao réu invocar a compensação nas situações em que apenas está em causa impedir o efeito jurídico do crédito que era reclamado pelo autor. Porém, o princípio da adequação formal destina-se a ser aplicado em situações específicas que, pelas suas excecionais particularidades, impõem a adoção de uma solução diversa da que foi prevista pelo legislador. Trata-se de um princípio de utilização pontual, para uma determinada situação concreta, que não pode ser utilizado para alterar genericamente um instituto jurídico ou o quadro legal relativo à tramitação de uma forma de processo, introduzindo uma alteração que apenas o legislador poderia introduzir. Como se afirma no Ac. da Relação de Coimbra de 14 de outubro de 2014, 'o princípio da adequação formal, consagrado no artigo 547.º do Código de Processo Civil, não transforma o juiz em legislador'.
Acresce que utilizar o princípio da adequação formal nesta matéria comporta uma contradição. Na verdade, ou se considera que a intenção do legislador foi que a obrigatoriedade de invocar a compensação através de reconvenção e as consequências desta opção fossem aplicáveis a todas as formas de processo, incluindo as que não admitem reconvenção, e então o princípio da adequação formal não pode ser utilizado para afastar esta solução, uma vez que se trata de uma opção legislativa, ou se considera que o legislador não pretendeu que a obrigatoriedade de invocar a compensação através de reconvenção fosse aplicável às formas de processo que não admitem reconvenção, porque não foi esta a sua intenção ou não ponderou esta possibilidade, e então a questão é de interpretação da lei e determinação do seu exato sentido e alcance, o que é prévio à adequação formal. (…)
Na perspetiva da adequação formal, não existe nenhuma razão para admitir a possibilidade de o réu deduzir reconvenção quando pretende invocar a compensação e recusar esta possibilidade quando pretende invocar um dos restantes fundamentos, designadamente quando está em causa a formulação de um pedido que emerge de um facto que serve de fundamento à ação ou à defesa, nos termos do artigo 266.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil. Se a adequação formal permite que o réu possa deduzir reconvenção para invocar a compensação, adequando-se a tramitação do processo a esta pretensão, também devia permitir que pudesse formular um pedido que emerge de um facto que serve de fundamento à ação ou à defesa, uma vez que a alteração que era introduzida na tramitação do processo era exatamente a mesma. Sucede que a razão para a existência de formas de processo que não admitem reconvenção é a sua maior simplicidade e celeridade.
Era isto que justificava o processo sumaríssimo e é isto que justifica atualmente o procedimento de injunção e a ação declarativa comum do processo laboral. Esta maior simplicidade e celeridade é garantida através da limitação do objeto do processo e de uma tramitação menos exigente. Admitir a possibilidade de o réu deduzir reconvenção para formular um pedido que emerge de um facto que serve de fundamento à ação ou à defesa punha em causa irremediavelmente esta maior simplicidade e celeridade.
O que distingue a compensação é a circunstância de o réu pretender apenas que seja reconhecida a existência do seu crédito na parte em que não excede o crédito do autor para impedir o efeito jurídico deste crédito. Ao contrário dos restantes fundamentos da reconvenção, nesta situação o réu pretende apenas exercer o seu direito de defesa. É este o motivo porque se aceita facilmente que o réu não possa deduzir reconvenção invocando qualquer um dos restantes fundamentos e não se compreende que lhe seja vedado invocar a compensação.
Porém, isto só demonstra que, verdadeiramente, não está em causa a reconvenção, mas a defesa por exceção.».
([10]) Proc. 12373/17.1YIPRT-A.C1 (Rel. Maria João Areias), tirado por unanimidade, disponível em www.dgsi.pt.
([11]) Quanto à questão de saber “se a compensação poderá ser deduzida enquanto defesa por exceção ou se, necessariamente, através de pedido reconvencional formulado contra o autor, ainda que o contra crédito seja invocado apenas como meio de provocar a extinção do crédito do autor e sem que o réu peça a condenação do autor no valor excedente”.
([12]) Embora ela pudesse ter sido logo apresentada para a hipótese de transmutação. E é certo, por outro lado, que a ação transmutada já permitia o oferecimento de reconvenção, que a parte poderia ter apresentado espontaneamente, uma vez notificada da decisão de transmutação.
([13]) Cfr. ainda o aludido Ac. TRC de 16/01/2018.