Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
525/09.2 TBTND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: EXECUÇÃO
LITISCONSÓRCIO NÃO NECESSÁRIO
LEGITIMIDADE PASSIVA
OPOSIÇÃO
PENHORA
EMBARGOS DE TERCEIRO
Data do Acordão: 05/28/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TONDELA 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 56.º, N.º 2, 828.º, N.ºS 2 E 5 E N.º 2 DO ART.º 825.º, TODOS DO CPC.
Sumário: I. No âmbito das acções executivas podm ocorrer modificações subjectivas da instância pela intervenção de novas partes, quer do lado activo, quer do lado passivo.

II. A lei admite expressamente o litisonsórcio voluntário passivo sucessivo nas situações preistas nos artigos 56.º, n.º 2, 828.º, n.ºs 2 e 5 e n.º 2 do art.º 825.º, todos do CPC.

III. Assumida a dívida na pendência da execução por terceiro, que intervém nos autos permitindo a penhora de bens próprios, em ordem a garantir o pagamento da quantia exequenda, pode o exequente fazer prosseguir os autos também contra este novo obrigado, ao lado do devedor originário, sem necessidade de contra ele instaurar processo autónomo, por aplicação analógica do disposto no n.º 5 do art.º 828.º do CPC.

IV. Não pode, neste caso, o interveniente opor-se à penhora realizada mediante embargos de terceiro, por não ser estranho à execução.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
No Tribunal Judicial de Tondela, por apenso aos autos de acção executiva que A... , residente na ..., Alcobaça, move a B..., solteiro, maior, residente em Esmoriz, e com domicílio profissional na ..., Valongo, para cobrança coerciva da quantia de € 20 107,14 (vinte mil, cento e sete euros e catorze cêntimos), vieram C... e mulher, D..., residentes na ... Tondela, deduzir os presentes embargos de terceiro, tendo em vista o levantamento da penhora efectuada sobre os bens identificados no auto datado de 23/1/2009, e a condenação do exequente a reconhecer o direito de propriedade dos embargantes sobre o imóvel que identificam no art.º 1.º.
Em fundamento alegaram, em síntese, que são os donos, por os terem adquirido por compra, dos bens móveis penhorados, os quais vêm usando e fruindo desde há mais de 10 e 15 anos de forma pacífica, pública e de boa fé, caracteres da posse que sobre eles vêm exercendo conducente à sua aquisição por usucapião, que expressamente invocam. Deste modo, por serem em tudo estranhos à dívida exequenda e porque o seu direito de propriedade e posse resultaram ofendidos pela diligência efectuada, deve este mesmo direito ser reconhecido e os bens ser-lhes restituídos.
Mais alegaram que a declaração de assunção de dívida por banda do embargante marido que do mesmo auto ficou a constar lhe foi extorquida sob a ameaça da remoção da totalidade dos bens que constituíam o recheio da sua casa de habitação, sendo assim nula e de nenhum efeito por via do disposto no art.º 255.º, n.º 1 do Código Civil, dispositivo legal que também convocam.
                                                    *
Regularmente notificados os embargados, apenas o exequente deduziu oposição, peça na qual impugnou os factos alegados pelos embargantes, reiterando ter o embargante marido assumido a dívida do executado seu filho nos precisos termos que ficaram a constar do auto de penhora, sob alegação de que era um “homem cumpridor das suas obrigações” e não queria prejudicar o executado B..., tendo a penhora sido efectuada para garantir o cumprimento do compromisso então assumido.
Conclui pela improcedência dos embargos, pedindo ainda a condenação dos embargantes como litigantes de má fé, uma vez que trouxeram aos autos uma versão que bem sabiam não corresponder à verdade dos factos.
Os embargantes responderam, mantendo o anteriormente alegado.
                                               *
Prosseguiram os autos com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, peças que se fixaram sem reclamação das partes.
Teve lugar audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo que da acta consta e nela, tendo sido suscitada pelos embargantes a nulidade do depoimento a prestar pela Sr.ª agente de execução, por violador do sigilo profissional a que, por força do disposto no art.º 110.º n.º 1, al. a) do Estatuto dos Solicitadores se encontra vinculada, o que constitui impedimento para depor, foi o assim requerido indeferido e a mesma testemunha admitida a depor.
O Tribunal proferiu a final decisão sobre a matéria de facto nos termos que constam de fls. 118 a 120, respostas não reclamadas.
De seguida foi proferida a sentença exarada de fls. 122 a 129 dos autos, que julgou improcedentes os embargos deduzidos, determinando o prosseguimento da execução.
Inconformados, interpuseram os embargantes o presente recurso e, tendo apresentado as pertinentes alegações, delas extraíram as seguintes conclusões, que se transcrevem:
I. A embargante mulher e ora recorrente não assumiu a dívida exequenda porquanto não interveio, nem a fez sua, na declaração constante do auto de penhora de fls., referenciada no ponto 27.º da fundamentação de facto da sentença recorrida.
II. A questão da propriedade dos bens objecto dos presentes embargos de terceiro encontra-se claramente definida como sendo pertença exclusiva dos embargantes.
III. Com vista à demonstração da titularidade do seu direito de propriedade sobre tais bens, conseguiram na verdade os embargantes alegar e provar toda a factualidade conducente, quer à demonstração da respectiva aquisição derivada, quer à demonstração da aquisição originária dos mesmos bens, assentes na posse pública, pacífica e de boa fé, prolongada no tempo de mais de 15/16 anos e que lhes determinou a aquisição do respectivo direito real da propriedade por usucapião.
IV. Nos presentes autos de embargos de terceiro, enquanto acção declarativa autónoma, os embargantes deduziram o pedido de condenação dos embargados no reconhecimento do seu direito de propriedade sobre todos os bens apreendidos no auto de penhora de fls. elaborado nos autos de execução apenso.
V. Assim e porque a declaração inserta neste referenciado auto de penhora, através do qual o embargante marido e ora recorrente declarou ter assumido a dívida, não pode ser considerada excepção que obste à produção do efeito jurídico pretendido pelos embargantes, de ver reconhecido o seu direito de propriedade, não podia o Meritíssimo Juiz a quo deixar de se pronunciar e de resolver esta concreta questão.
VI. A par de toda a factualidade demonstrada nos autos e conducente à definição do direito de propriedade dos embargantes sobre os bens móveis apreendidos nos autos, resultou igualmente demonstrado que o ato de penhora realizado nos autos ofendia o seu direito de propriedade, na medida em que estes não são parte na causa principal, estando assim preenchidos os requisitos legais que possibilitavam a defesa do seu direito nos termos dos artigos 351º e 358º do CPC o que a sentença recorrida lhes negou.
VII. Os embargantes/ora recorrentes não são parte na acção executiva principal, não figurando assim como devedores no título dado à execução.
VIII. Não sendo os embargantes partes na acção executiva nem figurando como devedores no respectivo título não podem os mesmos ser chamados à acção e aí intervir, sob pena de violação do princípio da estabilidade da instância e da legitimidade das partes prevista nos artigos 55.º e seguintes do CPC.
IX. A embargante mulher não figura em qualquer título, seja no dado à execução, seja nos subsequentemente formados, nomeadamente na já citada declaração inserta no auto de penhora de fls., razão por que, em qualquer circunstância, os bens apreendidos nos presentes autos, e que lhe pertencem, nunca poderiam responder pelo cumprimento da obrigação exequenda.
X. Com a decisão proferida violou o Meritíssimo Juiz a quo entre outras as normas dos artigos 55º; 156º, nº 1; 351.º, n.º 1; 358.º e 660.º n.º 2, todos do código de processo civil, e artigo 601º do código civil.”.
Com tais fundamentos pretendem a revogação da decisão proferida e sua substituição por uma outra que conclua pela procedência dos embargos e consequente levantamento da penhora.
O embargado A... contra alegou, pugnando naturalmente pela manutenção do decidido.
                                                   *
Sabido que o objecto do recurso se define e limita pelas conclusões insertas nas alegações do recorrente, como resulta do preceituado nos art.ºs 684 n.º 3 e 685.º-A, ambos do CPC, constitui única questão a decidir indagar se os embargantes detêm a qualidade de terceiros, em ordem à procedência dos presentes embargos.
                                                 *
II. Fundamentação
De facto
Não tendo sido impugnada a matéria de facto, e não sendo caso de proceder à sua alteração oficiosa, são os seguintes os factos a considerar:
1. Os embargantes são donos de uma casa de habitação com anexos e logradouro, sita à ... Tondela, inscrita na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., onde se encontra inscrita a seu favor pela apresentação 1 de 1994/10/24.
2. Os Embargantes adquiriram o terreno onde edificaram a casa identificada em 1. por compra formalizada por escritura celebrada no dia seis de Julho de 1988, lavrada de fls. 42 a fls. 43 do Livro 230-C do Cartório Notarial de Tondela, de E...e marido, F....
3. Após esta aquisição logo os Embargantes iniciaram aí a construção da referenciada casa, a qual concluíram no verão de 1998.
4. Data a partir da qual aí instalaram o seu domicilio.
5. E na qual têm vivido desde então com carácter de estabilidade.
6. Aí confeccionando diariamente as suas refeições, aí dormindo, e aí procedendo a todos os trabalhos de manutenção da casa e jardinagem de toda a zona envolvente.
7. Os Embargantes, por si e ante possuidores, há mais de 20-30 ou mais anos que deste identificado prédio têm tirado todas as vantagens de que ele é susceptível.
8. E isto sempre o têm feito, de forma ininterrupta à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, como se de coisa própria se tratasse e na convicção de que não ofendiam direitos de terceiros.
9. Antes de os embargantes terem transferido o seu domicílio para a sua identificada casa, residiam na ... em Campo de Besteiros, deste concelho e comarca, num apartamento habitacional tipo T3.
10. Logo após esta mudança de domicílio os embargantes venderam o apartamento referenciado no número anterior tendo, no entanto, reservado para si todo o mobiliário que o equipava, o qual transferiram para o seu novo domicílio e que integra o mobiliário da sua casa.
11. O prédio dos embargantes identificado em 1. encontra-se devidamente tapado através de muros e portões que impedem o acesso de terceiros.
12. No dia 13 de Janeiro de 2009, no período da manhã, o embargado A... acompanhado da Senhora Agente de Execução nomeada nos autos principais, de que estes são apenso, e de dois Agentes da G.N.R., dirigiram-se à residência referida em 1.
13. Já no interior da residência, a embargante mulher desde logo referiu aos seus interlocutores que o executado e ora embargado B... era efectivamente seu filho, mas que não tinha domicílio em sua casa.
14. Mais lhes referindo que este seu filho trabalha na zona de Valongo há cerca de dois anos.
15. Na presença do embargante marido, os embargantes referiram ao embargado A... e, bem assim, à Senhora Agente de Execução que a casa era exclusivamente sua, bem assim como todo o seu recheio; que o seu filho B... nada aí tinha.
16. Em 13-01-2009 a Senhora Agente de Execução nomeada procedeu à penhora de todos os bens móveis identificados nas verbas n.ºs I a XXVIII, do auto de penhora dos autos principais, a saber:
I – Móvel de sala de jantar em madeira de cerejeira com 4 portas, com vidros, 4 gavetas, 4 portas de madeira, no valor de € 100,00;
II – Mesa extensível oval com cerca de 2,5 m, 6 cadeiras com estofo bege, com queimaduras de cigarro no estofo, no valor € 100,00;
III – Um aparador móvel com cerca de 1,10 m altura com 4 gavetas e 4 portas em madeira cromado, no valor de € 50,00;
IV – Dois sofás de 2 lugares cada em tecido bege em mau estado de conservação, no valor de €20,00;
V – Mesa de apoio rectangular com tampo em vidro e móvel para TV com cerca de 2 m com 50 cm de altura com 2 prateleiras, no valor € 20,00;
VI – Uma televisão Samsung tipo plasma, no valor de € 50,00;
VII – DVD Match Show View LX 9000R, no valor de € 20,00;
VIII – Um microondas Ariston, de cor preta, no valor de € 20,00;
IX – Um conjunto de 3 cadeiras em verga, uma de 2 lugares 2 de um lugar cada, uma mesa de apoio redonda em verga com tampo em vidro, no valor de € 20,00;
X – Móvel de hall com 5 gavetas, 5 portas em madeira escura, com cantos redondos tipo sapateira, no valor de € 20,00;
XI – Dois cadeirões em pele castanha, com pés em madeira, mesa redonda pequena de apoio, no valor de € 50,00;
XII – Cómoda com 3 gavetões, 2 gavetas com espelho em meia-lua, uma cadeira com flores, 2 mesas-de-cabeceira, tipo camiseiro com 3 gavetas, no valor de € 100,00;
XIII – Duas carpetes com cerca de 3/2,5 m com tons (Termo imperceptível) e azul, no valor de € 20,00;
XIV – Quarto de casal composto de cama, cómoda, 2 mesas-de-cabeceira, 2 cadeiras e espelho, no valor de € 100,00;
XIV – Móvel tipo estante com 4 portas de madeira, 2 portas de vidros com 4 prateleiras em madeira de cerejeira, no valor de € 100,00;
XV – Móvel tipo estante com 4 portas de madeira, 2 portas de vidro e 4 prateleiras em madeira cerejeira, no valor de €100,00;
XVI – Pele de animal curtida que serve de carpete em tons castanhos, mesa de apoio oval em madeira, no valor de € 20,00;
XVII – Sofá em pele de 3 lugares castanho já bastante usado, cadeira de balouço em madeira e pele com banco com pés, no valor de € 50,00;
XVIII – Televisor com suporte incluído Philips com cerca de 1 m, no valor de € 10,00;
XIX – Mobília de quarto de casal, composto de cama, 2 meses de cabeceira com 3 gavetas cada, cómoda com espelho e 4 gavetas, escrivaninha com 2 gavetas e 4 prateleiras cada, no valor de € 200,00;
XX – Televisor Philips pequeno de cor preta, no valor de € 10,00;
XXI – Cama preta e castanha, 2 mesas-de-cabeceira com 2 gavetas cada, preto e castanha, 2 Pufs amarelos no valor de € 100,00;
XXII – Vídeo Bluelaser DVG 888U, no valor de € 20,00;
XXIII – Mesa de apoio quadrada com tampo e vidro, espelho rectangular com cerca de 2 metros, no valor de € 20,00;
XXIV – Um condicionado da marca Samsung, no valor de € 50,00;
XXV – Duas carpetes com cerca de 3m/2,5m com algumas manchas, no valor de € 5,00;
XXVI – Móvel tipo sapateira com duas portas e 2 gavetas cor pinho mel, no valor de € 10,00;
XXVI – Frigorífico da marca Whirlpool com 2 portas, de cor cinza, no valor de €200,00;
XXVII – Televisor Kolon em mau estado, sem parte da tampa de comandos, no valor de €20,00.
17. O oponente adquiriu, onerosamente, à sociedade G..., Lda. com sede na G...Viseu, o bem móvel identificado na verba V do auto de penhora, em 30 de Julho de 2002.
18. Em 20 de Fevereiro de 2007, a embargante F... adquiriu, na loja Worten, em Viseu, a televisão identificada na verba VI do mesmo auto.
19. Em 19 de Setembro de 1999 o embargante C... adquiriu nas lojas da H..., S.A., no ... Viseu, os bens móveis identificados nas verbas XVIII e XXII do referido auto.
20. Em 27 de Julho de 2009 a embargante F... adquiriu, nas lojas I..., Lda., no I...Viseu, o bem móvel identificado na verba XXI do auto de penhora.
21. Em 25 de Novembro de 2000, o embargante C... havia adquirido na loja do J..., no ..., em Viseu, o bem móvel identificado na verba XV do auto de penhora.
22. Em 3 de Agosto de 2004, o embargante C... havia adquirido na mesma loja do J..., no ..., em Viseu, o frigorifico identificado na verba XXVII do auto de penhora.
23. E 2 de Julho de 1999 o embargante C... havia também adquirido à sociedade L..., com sede na ..., nesta cidade de Tondela o microondas da marca Ariston, identificado na verba VIII do mesmo auto de penhora.
24. O demais bens móveis identificados nas verbas I a IV; VII; IX a XIV; XVI e XVII; XIX e XX; XXIII a XXVI e XXVIII, do auto de penhora anexo são bens que os embargantes haviam já comprado por volta de 1994/1995, quando ainda residiam no apartamento de Campo de Besteiros, e que constituíam então todo o mobiliário desta sua antiga casa.
25. Tais bens têm sido por si detidos e usados na habitação há mais de 15/16 anos que de tais bens tem tirado todas as utilidades de que eles são susceptíveis, usando-os para os respectivos fins para que foram concebidos.
26. À vista de toda a gente, de forma ininterrupta, como se de coisa própria se tratasse, sem oposição de quem quer que fosse e na convicção de que assim não ofendiam direitos de outrem.
27. No mesmo auto de penhora foi escrito pelo punho da Sr.ª agente de execução, o seguinte:
“…Posteriormente o Senhor C..., casado, residente na ...Campo de Besteiros, pai do executado, assumiu pessoalmente e solidariamente o pagamento da dívida exequenda, juros e demais encargos que se taxou nesta data em € 23.088,35 (vinte e três mil e oitenta e oito euros e trinta e cinco cêntimos), e comprometendo-se nesta data a pagar em 23 prestações mensais e sucessivas, sendo que a primeira no valor de € 1.088,35 (mil e oitenta e oito euros e trinta e cinco cêntimos) entregue nesta data através de cheque sacado sobre o BPI datado de 13/01/2010 com o n.º ... e as restantes no valor de € 1.000,00 (mil euros) serão pagos por transferência bancária para a conta do A. E. aberta no Millennium BCP com o NIB ... até ao dia 15 de cada mês, com início no mês de Fevereiro de 2010. Mais declarou o Senhor C... que o não pagamento de uma das prestações desde já dá autorização à exequente para remoção dos bens ora penhorados e que servem de garantia para o bom cumprimento do acordo ora formalizado e de que ele é fiel depositário”.
28. O embargante, no acto de penhora, propôs o pagamento faseado em 22 prestações de € 1.000,00 cada, assumindo pessoalmente a dívida exequenda e demais encargos com o processo.
29. Foi o próprio embargante quem propôs à mandatária do exequente, Dr.ª Inês Alexandre, penhorar os bens móveis, sem que houvesse remoção, de modo a garantir o bom cumprimento do acordado no auto de penhora.
                                               *
De Direito
Do fundamento dos embargos: da titularidade do direito de propriedade e da posse sobre os bens penhorados
Nos termos do disposto no art.º 351.º do CPC (diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem) “se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não seja parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.
Resulta dos termos do preceito legal acabado de transcrever que os embargos são hoje meio de defesa da posse ameaçada ou violada, mas não só. Assim, para além do possuidor, também o titular de qualquer outro direito, desde que incompatível com a realização ou âmbito da diligência, pode defendê-lo por meio de embargos.
No caso vertente defenderam os embargantes, em primeira linha, que são os titulares do direito de propriedade sobre os bens móveis penhorados, os quais adquiriram por usucapião, que expressamente invocaram, sendo certo que, mesmo a assim não se entender, sempre seriam os possuidores dos mesmos.
No que concerne à questão da titularidade do direito de propriedade sobre os bens penhorados, tal como se afirma na decisão recorrida, recebeu a mesma resposta positiva por banda do Tribunal “a quo”, estando assente que foram adquiridos pelos embargantes por via de negócios de compra e venda, que é modo aquisitivo válido, como resulta do disposto no art.º 1316.º do Código Civil. Ademais, tendo ficado igualmente comprovado que os embargantes sobre a maior parte de tais bens vêm exercendo actos de posse pública, pacífica e de boa fé que perduram desde há mais de 3 e até 6 anos, estamos perante posse conducente à sua aquisição por usucapião, tal como invocaram (cf. art.ºs 1287.º e 1299.º do mesmo diploma).
A sentença recorrida, assim tendo concluído, veio contudo a julgar improcedentes os embargos deduzidos, decisão assente no pressuposto básico de que os embargantes não detêm a qualidade de terceiros. Com efeito, tendo qualificado como contrato de transacção com assunção de dívida por banda do embargante marido o acordo que do auto de penhora ficou a constar, e concluindo pela desnecessidade da instauração de uma outra acção executiva, julgou improcedentes os embargos, assim legitimando o prosseguimento da execução e a subsistência da penhora sobre os bens comprovadamente pertença dos embargantes.
                                                   *
Da qualidade de terceiros dos embargantes
O aqui embargado instaurou acção executiva contra B..., dando à execução uma letra de câmbio por este subscrita na qualidade de avalista.
Dispondo sobre a legitimidade na acção executiva, o art.º 55.º formula uma regra de fácil apreensão e aplicação: têm legitimidade como exequente e executado, respectivamente, quem no título figura como credor e devedor. Deste modo, é terceiro em relação à execução quem não figure no título em nenhuma daquelas qualidades, nem seja representante de alguma das partes, tal como assim deverá ser considerado aquele que, embora obrigado no título conjuntamente com o executado, não haja sido demandado na execução.
Todavia, também no âmbito das acções executivas podem ocorrer modificações subjectivas da instância pela intervenção de novas partes, quer do lado activo, quer do lado passivo, sendo certo que ao caso que nos ocupa apenas interessa esta última hipótese.
No que se refere ao litisconsórcio voluntário passivo sucessivo, a lei admite-o expressamente em quatro casos, a saber: i. quando o exequente demande apenas o proprietário dos bens onerados pode, mais tarde, demandar o devedor caso os bens que garantem o cumprimento da obrigação se venham a revelar insuficientes, hipótese prevista no art.º 56.º, n.º 2; ii. tendo instaurado a acção apenas contra o devedor principal, revelada a insuficiência do património deste, pode o exequente demandar o devedor subsidiário, como prevenido no n.º 5 do art.º 828; iii. instaurada execução contra o devedor subsidiário que invoque o benefício da excussão, pode o exequente demandar o devedor principal (art.º 828.º, n.º 2); iv. derradeira hipótese, instaurada a execução contra o devedor obrigado no título e citado o cônjuge, a requerimento do exequente, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do art.º 825.º, quando a dívida for considerada comum, a execução prossegue também contra este, daqui resultando a formação, no próprio processo pendente e apenas neste caso específico, dum outro título executivo[1].
No caso que nos ocupa, considerou o Mm.º juiz “a quo” que a declaração constante do auto de penhora consubstanciava “um contrato de transacção, com assumpção de garantia do cumprimento de uma dívida por parte do embargante marido, dívida essa de um filho, com a anuência do credor, o que configura uma transmissão de dívida, tal qual é tal qual é definida no artigo 595.º, n.º 1 al., b) do Código Civil, com a consequente transmissão da obrigação, e a constituição de uma garantia de pagamento, para cumprimento do contrato num prazo negociado e acordado entre os sujeitos da transacção”.
A propósito desta qualificação jurídica do acto dir-se-á que não a sufragamos em toda a sua extensão. Vejamos:
O art.º 1248.º do Código Civil define transacção como o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões (vide n.º 1 do preceito, sendo nosso o destaque).
O fim deste contrato é prevenir ou terminar um litígio, admitindo portanto a lei que a sua celebração ocorra, não só na pendência de uma acção judicial, como antes da sua propositura (transacção preventiva prevista e regulada no art.º 1350.º). Todavia, indispensável à caracterização do contrato como transacção é ter por objecto recíprocas concessões[2].
Ora, visto o acordo que ficou consignado no auto de penhora, logo resulta evidente que nele não intervieram as “partes” no litígio, posto que o embargante marido era estranho à acção executiva, sendo certo ainda que dele não constam quaisquer recíprocas concessões, tanto bastando para se afastar tal qualificação. Ademais, a transacção celebrada em acção executiva, ainda que condicional, sendo homologada por sentença conduz sempre à extinção da instância, sem possibilidade da sua renovação[3]. Daí que a revisão do Código tenha vindo consagrar inovadoramente a possibilidade da celebração de um acordo de pagamento em prestações da dívida exequenda, fora do esquema da transacção (cf. art.º 882.º).
Afastada assim a qualificação do acto jurídico em causa como contrato de transacção, não há no entanto qualquer dúvida de que, mediante a declaração efectuada, quis o agora embargante marido obrigar-se ao cumprimento da obrigação exequenda.[4] Face ao declarado, cabe indagar se apenas se assumiu como garante do cumprimento da obrigação que para o executado seu filho resultava do aval prestado, ou antes assumiu a dívida deste.
A assunção de dívida, prevista no art.º 595.º do Código Civil, consiste na transmissão a título singular de uma dívida, podendo verificar-se, para o que aqui importa considerar, “Por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor” (vide al. b) do nº 1). Nos termos do n.º 2 do preceito a transmissão só exonera o antigo devedor havendo declaração expressa do credor; de contrário, o antigo devedor responde solidariamente com o novo obrigado (assunção cumulativa).
Apresentando afinidades com aquele instituto no seu aspecto funcional, a relação de fiança apresenta todavia diferenças substanciais, sucedendo, porém, que a sua proximidade naquele aspecto “(…) torna, na prática, por vezes extremamente difícil saber se o terceiro quis, na verdade, chamar a si obrigação que recai sobre o devedor ou pretendeu apenas afiançá-lo”[5]. E não é de todo indiferente que estejamos perante uma assunção cumulativa de dívida ou antes uma fiança: com efeito, para além desta ser, em princípio, uma obrigação subsidiária (cf. n.º 1 do art.º 638.º), o fiador responde sempre por uma dívida alheia; inversamente, o assuntor é devedor principal conjuntamente com o primitivo devedor, respondendo por uma dívida própria. Distinguir entre uma e outra figuras é, muitas vezes, uma questão de interpretação da declaração negocial, a levar a cabo de acordo com as regras dos art.ºs 236.º a 238.º[6].
E é precisamente fazendo apelo às regras da interpretação dos negócios jurídicos, valendo a declaração negocial com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real, possa deduzir do comportamento do declarante, que se nos afigura ter o ora embargante marido assumido a dívida exequenda, assunção cumulativa que o coloca a responder pela dívida solidariamente com o executado. Com efeito, e apesar das dificuldades de distinção entre este negócio e a fiança se agravarem quando, nesta, o fiador renuncie ao benefício da excussão, a verdade é que o embargante logo chamou a si a consolidação do montante em dívida, acordando com o credor o pagamento em prestações, procedendo inclusivamente à entrega de um cheque destinado ao pagamento da primeira prestação acordada e oferecendo os seus bens em garantia através da realização da penhora em que expressamente consentiu.
Deste modo, e porque a conduta das partes, nomeadamente do ora embargante, se afasta do que seria suposto no caso das partes terem querido a prestação de uma mera garantia, o acordo celebrado com o embargado é de qualificar como contrato de assunção de dívida.
A assunção de dívida opera uma mudança na pessoa do devedor mas não altera, nem o conteúdo, nem a identidade da obrigação, que continua a ser uma e a mesma, apenas se junta mais um obrigado, podendo o credor exigir o cumprimento a qualquer um deles e podendo satisfazer o seu crédito à custa do património de ambos. E por assim ser, apesar da diversidade de títulos -e aqui, mais uma vez, não se acompanha a sentença recorrida quando defende a inexistência de um novo título-, porque a obrigação emergente do referido acordo não é uma obrigação nova, a intervenção do -este sim, novo- obrigado, inscreve-se na figura do litisconsórcio voluntário sucessivo[7].
Flui do exposto que o embargante surge aqui como novo obrigado, traduzindo a assunção de dívida a prestação de uma garantia adicional (em sentido lato ou impróprio) a favor do exequente, como permitido pelo art.º 883.º, garantia reforçada pela penhora dos bens, cuja efectivação desde logo autorizou (vide n.º 1 do mesmo preceito).
Deste modo, razão não se vê para não permitir que a execução prossiga contra este obrigado, que interveio na execução de forma voluntária e como devedor solidário, situação análoga à prevista na al. a) do n.º 3 do art.º 828.º do CPC, a demandar o mesmo tratamento[8].
Atento o que se deixou exposto, e embora com diversa fundamentação, não é de reconhecer ao embargante marido a qualidade de terceiro, donde não procederem, quanto a ele, os presentes embargos.
Situação diferente é, todavia, a da embargante mulher, que não emitiu qualquer declaração assumptiva da dívida do executado seu filho, não se podendo extrair tal conclusão da mera circunstância de ter estado presente e assinado o auto de penhora, conforme pretende o exequente, uma vez que não se trata de comportamento que, de forma concludente, aponte nesse sentido[9].
Nos termos do art.º 352.º do CPC, o cônjuge que tenha a posição de terceiro pode, sem autorização do outro, defender por meio de embargos os direitos relativamente aos bens próprios e aos bens comuns que hajam sido indevidamente atingidos pela diligência prevista no artigo anterior.
Ao embargante cabe assim provar a natureza dos bens penhorados: sendo próprios do cônjuge embargante, a penhora não pode subsistir (e isto ainda que, em termos substantivos, respondessem pela dívida, uma vez que o embargante não é executado); tratando-se de bens comuns, a execução não prossegue quanto a tais bens quando, existindo bens próprios do cônjuge devedor, não actue a responsabilidade subsidiária, e ainda quando o cônjuge não executado não tenha sido citado nos termos do n.º 1 do art.º 825.º.
Sintetizando: ao cônjuge que não seja parte na lide, tendo sido penhorados bens próprios, por não integrados na comunhão (artigos 1722.º e 1723.º do Código Civil), é-lhe permitido desde logo deduzir embargos de terceiro; sendo os bens comuns, fundamento dos embargos é não ter sido citado nos termos do n.º 1 do artigo 825.º.
No caso em apreciação, tendo sido penhorados bens comuns do casal -ou assim se presumem, atento o disposto nos art.ºs 1721.º e 1725.º, ambos do Código Civil- a verdade é que a embargante mulher não invocou como fundamento dos embargos a circunstância de não ter sido dado cumprimento, como se impunha, ao disposto no n.º 1 do art.º 825.º. No entanto, porque a falta de citação do cônjuge do executado, a concretizar nos termos e prazos prescritos na al. a) do n.º 3 do art.º 864.º, tem o mesmo efeito que a falta de citação do réu, consoante prevê o n.º 11 do preceito, trata-se de nulidade de conhecimento oficioso, podendo ser suscitada a todo o tempo enquanto não deva considerar-se sanada, a determinar a anulação dos actos subsequentes è penhora[10], tudo conforme resulta dos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 194.º, al. a), 195.º, 202.º e 206.º, n.º 1.
*
III. Decisão
Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em:
a) julgar improcedente o recurso confirmando, embora com fundamentação parcialmente diversa, a sentença recorrida;
b) conhecer oficiosamente da nulidade decorrente da falta da citação da embargante mulher, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 825.º, n.º 1 e 864.º, n.º 3, al. a), anulando os actos subsequentes à penhora e determinando seja dado cumprimento aos citados dispositivos legais.
Custas a cargo dos apelantes.
                                                               *

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Hélder Almeida


[1] V., seguido de perto na exposição feita, Lebre de Freitas, “A acção executiva depois da reforma da reforma2, Coimbra Editora, pág. 139.
[2] Cf. Pires de Lima e A. Varela, CC anotado, vol. II, anotação ao preceito em referência.
[3] Neste sentido, lebre de Freitas, ob. cit., nota 9 à pág. 351.
[4] Esta generosa assunção de responsabilidade alheia, mesmo tratando-se de um descendente, poderá ter sido motivada pelas particulares circunstâncias em que os embargantes então se encontravam. Todavia, tendo alegado na petição de embargos a ilegalidade da penhora, por inobservância do disposto no art.º 822.º, al. f) (hipótese que custa aceitar dada a intervenção qualificada da Sr.ª agente de execução) e também um vício de vontade, a verdade é que tais questões, embora decididas em seu desfavor, não foram suscitadas em sede de recurso, pelo que hão-se ser tidas como definitivamente arredadas da decisão a proferir.
[5] Prof. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. II, pág. 352.
[6] v. Ac. STJ de 11/11/2003, processo 04B1317, disponível em www.dgsi.pt).

[7] E não na figura da coligação passiva que, pressupondo uma pluralidade de pretensões, só é admitida no caso da execução ter por base, quanto a todos os pedidos, o mesmo título executivo (cf. art.º 58.º, n.º 1, al. b).
[8] V., neste sentido, aresto desta mesma Relação de Coimbra de 1/6/2010, processo n.º 2640/05.2 TBACB.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[9] O exequente/embargado, partindo da consideração de que a embargante mulher assistiu às negociações e assinou o auto de penhora, daí retira, em contrário do que resulta do elenco factual assente na sentença recorrida, mormente nos factos 27. a 29., ter esta, “juntamente com o embargante marido, proposto o pagamento em prestações, acordado os montantes e autorizado a penhora dos bens sem remoção, para garantir o cumprimento da obrigação”, para atingir a conclusão de que também esta assumiu a dívida do filho. Tal raciocínio, porém, parte de factualidade que nem ao de leve resultou demonstrada pelo que, sem qualquer suporte fáctico, é de desconsiderar.
[10] No sentido de que a falta de citação do cônjuge do executado nos termos do art.º 864º, nº 3, al. a), do CPC, não determina a nulidade e o levantamento da penhora efectuada, v. aresto Rel. Porto de 29/3/2007, processo n.º 0730804, acessível em www.dgsi.pt