Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
41/08.0TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: MANDATO JUDICIAL
CONTRATO
USUCAPIÃO
POSSE
HERDEIRO
Data do Acordão: 07/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1255º, 1260º E 1294º DO C. CIVIL; 36º E 37º DO CPC.
Sumário: I – Num contrato de mandato forense não é permitido ao procurador proceder extrajudicialmente e fora do processo para o qual foi constituído à venda de um quinhão hereditário pertencente aos constituintes quando no instrumento de procuração consta concederem “os mais amplos poderes forenses em direito permitidos com os de substabelecer e ainda poderes especiais para intervir no inventário obrigatório que corre …, podendo aceitar notificações, assinar recibos, acordar, transigir, licitar e tudo o mais que se tome necessário ao referido inventário, incluindo aceitar a respectiva herança”.

II - Ter poderes para acordar, transigir, licitar e tudo o mais que se tome necessário ao referido inventário não é equivalente a ter-se poderes para vender o quinhão hereditário dos constituintes.

III - Dispondo o art. 1255º do Código Civil que por morte do possuidor a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa, não se exigindo que o sucessor mortis causa precise de exercer qualquer acto material sobre a coisa possuída, para a referida posse, este preceito impõe que o sucessor para invocar uma posse capaz de o fazer adquirir o direito de propriedade por usucapião sobre bens da herança, tenha de alegar e provar que inverteu esse título de posse como herdeiro ou co-herdeiro.

IV - Esta inversão tem de se traduzir na alegação e prova de factos concretos de onde decorra uma nova posse diferente da de herdeiro, com características explícitas e inequívocas de exclusividade e com animus de proprietário.

V - A existência de um contrato de compra e venda de quinhão hereditário, titulado por escritura pública, que foi declarado ineficaz com base na venda de bem alheio, não permite ao adquirente que ao fim de 10 anos reclame a propriedade dos bens da herança com base na usucapião com base em posse titulada e de boa-fé.

VI - Se bem que uma venda a non domino titulada por escritura pública que foi registada e que veio a ser declarada nula (por esse motivo de venda de coisa alheia) possa valer como título para caracterizar uma posse adquirida por esse meio como titulada, o simples título e registo não equivalem nem fazem presumir que a posse do adquirente seja apta a usucapir, o que tem de ser alegado e provado pelo adquirente.

VII - A existência de título e registo e bem assim a boa-fé possessória que se presume da existência de título e registo (art. 1260º, nº 2 do CC) não dispensam a indagação das características de facto da posse nos seus elementos de corpus e animus de forma a concluir-se que se trata de uma posse boa para usucapião, valendo esse título, registo e boa-fé para determinar, depois de se ter certificado a posse boa, qual o prazo necessário ao decurso dessa posse para se decretar a usucapião (art. 1294º do CC).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

M… e G… instauraram a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra R… e I…, Lda., pedindo:

a) Se declare ineficaz em relação aos autores a compra e venda dos quinhões hereditários a que se refere o artigo 12º da petição inicial;

b) Declarar-se nula a compra e venda dos prédios urbanos a que alude o artigo 11º da petição inicial, ou seja do prédio urbano sito na …;

c) Que a ré I…, Lda. seja condenada a restituir à herança ilíquida e indivisa aberta por morte de M… aqueles prédios urbanos identificados no artigo 11º da petição inicial;

d) Que a ré I…, Lda. seja condenada a restituir os mesmos prédios livres de pessoas, bens, ónus, encargos e quaisquer responsabilidades, designadamente, quanto ao prédio urbano sito em …, expurgando-o da hipoteca constituída a favor do Banco …;

e) Se declare nulos e de nenhum efeito os registos de aquisição efectuados na respectiva Conservatória do Registo Predial sobre os mesmos prédios com base nos referidos negócios de compra e venda dos quinhões hereditários dos prédios em causa;

f) Em relação ao autor G…, seja ordenada a restituição à herança aberta por óbito de F…, dos direitos na herança ilíquida e indivisa a que aquela terá direito por óbito de M… e da qual fazem parte os prédios urbanos a que alude o artigo 11º da petição inicial.

Alegou …

Regularmente citados, todos os réus apresentaram as suas contestações, nos termos seguintes: …

Em reconvenção, pediram:

Se declare que, quando alienaram os imóveis, os réus eram os legítimos proprietários dos mesmos, em virtude de os terem adquirido por usucapião e, quando assim se não entenda, deve ser declarada a acessão na posse, por parte da ré I…, Lda.

Para o efeito, alegaram, em síntese, o seguinte: …

Na réplica, os autores responderam à excepção dilatória da ilegitimidade, com o argumento de que o quinhão hereditário da falecida F… só se materializou e apurou com a partilha dos bens da herança deixada por óbito de M…, daí que o autor G… seja parte legítima, nos termos do art. 2075º nº 1 do CC;

Findos os articulados, realizou-se a audiência preliminar, em cujo decurso as partes debateram a excepção dilatória da ilegitimidade invocada pelos réus, tendo todas as partes chegado a um consenso, no sentido de que a posição processual de G… ser a de único herdeiro da herança aberta por óbito de sua ex cônjuge, F...

Mais foi por todas as partes acordado em ser efectuado o aperfeiçoamento dos pedidos formulados na petição inicial, no sentido de todos os direitos que o autor G… pretende fazer valer, na presente acção serem relativos à herança deixada por morte de F… e, ainda, ode aditarem um novo pedido à petição inicial, o acima identificado sob a alínea f), ou seja, o de que:

f) Em relação ao autor G… seja ordenada a restituição à herança aberta por óbito de F…, dos direitos na herança ilíquida e indivisa a que aquela terá direito por óbito de M… e da qual fazem parte os prédios urbanos a que alude o artigo 11º da petição inicial.

Mais, foi determinada a prolação, por escrito do despacho saneador, no qual, como consta de fls. 359 e seguintes, foi admitida a reconvenção, foi relegada para a sentença a decisão da excepção peremptória da prescrição, organizados a matéria assente e a base instrutória, que não foram objecto de reclamações.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença em que se fez constar:

“ julgo a acção parcialmente provada e procedente e, em consequência:

Declaro ineficaz em relação aos autores a compra e venda, celebrada por escritura pública outorgada em 07.02.1997, através da qual o J…, na qualidade de procurador de M…, declarou vender, pelo preço de 4.000 contos, que declarou receber, a M…, os quinhões hereditários a que têm direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de M…;

Declaro nula e de nenhum efeito, em relação aos réus a compra e venda outorgada por escritura pública outorgada em 28.02.2007, através da qual … declararam vender a I…, Lda., que declarou comprar, os seguintes prédios: …

Condeno a ré I…, Lda. a restituir à herança ilíquida e indivisa aberta por morte de M… aqueles prédios urbanos, livres de pessoas e bens e, em relação ao autor G…, a restituir a à herança aberta por óbito de F…, os direitos na herança ilíquida e indivisa a que aquela terá direito por óbito de M… e da qual fazem parte os mesmos prédios urbanos;

Declaro nulos e de nenhum efeito os registos de aquisição efectuados na respectiva Conservatória do Registo Predial sobre os mesmos prédios com base nos referidos negócios de compra e venda dos quinhões hereditários dos prédios em causa, concretamente, os seguintes:

Determino o cancelamento de todos estes registos.

Absolvo os réus do restante pedido.

Julgo a reconvenção não provada e improcedente e dela absolvo os autores.

Inconformados com esta decisão dela interpuseram recurso os réus concluindo que:

Os recorridos não contra alegaram.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

… …

Fundamentação

O tribunal recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto:

… …

Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, nem criar decisões sobre matéria nova, a Apelação pretende:

- a alteração da sentença recorrida no sentido de ser reconhecido que os Apelantes à data em que alienaram os imóveis em apreço nos autos, eram donos e legítimos proprietários dos mesmos por o terem adquirido por usucapião, devendo ser consideradas as escrituras de compra e venda celebradas em 7/2/1997 e 28/2/2007, válidas e eficazes tanto nas relações dos RR. entre si, quanto destes para com os AA., bem como relativamente a terceiros, mantendo-se todos os actos registrais que se reportam a essas transmissões patrimoniais.

- que se considere que o mandato conferido a J… por M… no sentido de poder “assinar recibos, acordar, transigir, licitar e tudo o mais que se torne necessário ao referido inventário, incluindo aceitar a respectiva herança”, permitia dispor, no sentido de alienar e onerar, dos bens da herança ou da própria herança.

… …

Na apreciação das duas questões suscitadas no recurso podemos desde já referir que a sentença recorrida lhes deu resposta e uma resposta que temos por não merecedora de censura, razão para que, e no essencial, os argumentos que firmaremos para as decidir nesta Apelação sejam os mesmos que se encontram vertidos na sentença ainda que, no que se refere à matéria da usucapião invocada pelos apelantes haja necessidade de produzir algumas considerações suplementares que temos por relevantes. 

Começamos pela última questão suscitada no recurso e que é a de saber se a procuração conferida a J… por M… e F… continha poderes para que ele pudesse vender o quinhão hereditário destes na herança de M...

Neste domínio ficou provado que “Por instrumento notarial lavrado a 10 de Novembro de 1992, M… e F… declararam constituir seu bastante procurador o Sr. J…, “a quem concedem os mais amplos poderes forenses em direito permitidos com os de substabelecer e ainda poderes especiais para intervir no inventário obrigatório que corre …, podendo aceitar notificações, assinar recibos, acordar, transigir, licitar e tudo o mais que se tome necessário ao referido inventário, incluindo aceitar a respectiva herança”.

Ora, foi munido desta procuração que J…, na escritura pública outorgada em 07.02.1997, e na qualidade de procurador de M… e F…, declarou vender, pelo preço de 4.000 contos, que declarou receber, a M…, os quinhões hereditários a que têm direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de M...

Tornando aqui presente toda a exaustiva fundamentação constante da sentença quanto ao tipo de relação jurídica estabelecida entre o Sr. J… e M… e F…, bem como, quanto ao instrumento notarial lavrado a 10 de Novembro de 1992, através do qual M… e F… declararam constituir seu bastante procurador aquele J…, matéria esta que não sofreu nenhuma censura no recurso, indagaremos então e apenas a interpretação do texto da procuração para decidir se a mesma tem o alcance reclamado pelos recorrentes.

Sendo pacífico que o que estava em causa, com a emissão e outorga daquela procuração, era a prática de uma sucessão de actos jurídicos por parte do procurador, em ordem à prossecução de interesses próprios dos constituintes, que não do procurador-mandatário, tal consubstancia como a sentença o qualificou, um mandato judicial ou forense.

A especificidade deste contrato de mandato forense remete para o disposto no nº 1 do art. 36º do CPC, segundo o qual os poderes do mandatário são aqueles que se referem à representação da parte, «em todos os actos e termos do processo principal e respectivos incidentes, mesmo perante os tribunais superiores, sem prejuízo das disposições que exijam a outorga de poderes especiais por parte do mandante», incluídos nos poderes que a lei presume conferidos ao mandatário, «o de substabelecer o mandato», nos termos do nº 2 do mesmo normativo.

Mas mais significativamente, quanto a nós, o art. 37º do CPC adverte que «quando a parte declare na procuração que dá poderes forenses ou para ser representada em qualquer acção, o mandato tem a extensão definida no artigo anterior».

Sublinhamos este inciso legislativo porque ele constitui um primeiro elemento interpretativo quanto ao alcance dos poderes conferidos a J…, que, como vimos, eram reportados a uma acção judicial, ou seja, para intervir no inventário obrigatório que corria na …, por óbito de M...

Atendendo às regras de interpretação que são também convocadas pelos recorrentes, como declaração negocial a procuração há-de ser interpretada de acordo com as regras contidas nos arts. 236º a 238º do C. Civil, prevalecendo a «vontade real do declarante», sempre que for conhecida do declaratário – art. 236º nº 1 do CC. E faltando esse conhecimento, «a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele» (art. 236º nºs 1 e 2 do CC).

Quando o Sr. J…, na escritura pública outorgada em 07.02.1997, na qualidade de procurador de M… e F…, declara vender os quinhões hereditários que estes têm direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de M… aquilo que ele está a realizar é um negócio jurídico, dito em representação, mas fora do âmbito de qualquer processo judicial, maxime, do inventário identificado na procuração.

Como se refere, em síntese de exposição na sentença recorrida “ [A]gindo em execução de um mandato judicial, não havendo dúvida de que a celebração desta compra e venda constitui um acto jurídico, tendo o Sr. J… declarado que vendia os quinhões hereditários de M… e de F… na herança de M…, seria como se tivessem sido estes próprios, directa e pessoalmente, a emitir tais declarações negociais.

Seria, se a procuração com base na qual o Sr. J… emitiu a declaração negocial de venda daqueles quinhões hereditários lhe atribuísse poderes para esse fim, o que não acontece.”

No esclarecimento desta conclusão a sentença apelada identifica desde logo, de forma que nos parece decisiva, a circunstância de os poderes conferidos serem funcionalmente dirigidos à partilha da herança de M… a realizar através de um processo judicial de inventário e não para vender os direitos àquela herança de que os seus constituintes eram titulares, através de um contrato de compra e venda. E com grande sentido de evidência faz-se notar que “ (…) contrariamente ao que os réus argumentaram, ter poderes para transigir em sede de processo de inventário não é o mesmo que ter poderes para vender o quinhão hereditário dos constituintes, nem inclui estes últimos.

Em face do texto da procuração, os únicos negócios jurídicos que o Sr. J… estava autorizado a celebrar, em representação de M… e de F…, eram «acordar, transigir, licitar e tudo o mais que se tome necessário ao referido inventário, incluindo aceitar a respectiva herança» o que não pode deixar de significar os poderes necessários à representação dos seus constituintes na conferência de interessados, a realizar no âmbito do tal processo de inventário (…).”

Ora, os restantes poderes que vemos incluídos na procuração, cremos que são os complementares daqueles outros mencionados e com a finalidade de num momento ulterior do inventário, e daquela fase da conferência de interessados, permitirem satisfazer a necessidade de realizar os registos resultantes da aquisição do direito de propriedade sobre os imóveis que viessem a caber aos constituintes, em resultado dessa partilha e ao pagamento dos impostos legalmente devidos; outros, às relações a estabelecer com outras entidades, como sejam o ...

Estas são as razões pelas quais não cremos que tenha fundamento a invocação de uma interpretação analógica ou extensiva do mandato e da procuração segundo a qual quem pode assinar recibos, acordar, transigir, e licitar também poderia alienar os bens da herança ou a própria herança, como o pretendem os recorrentes, os quais mais que isso, sustentam a possibilidade de o procurador com base naquela procuração poder praticar actos de oneração e disposição dentro e fora do processo.

Afirmar este entendimento julgamos que é esquecer em absoluto a especificidade funcional do mandato forense expresso e delimitado na procuração e que a atribuição de todos esses poderes se inscrevem, conforme o próprio texto da procuração o estabelece, na medida em que o processo de inventário o tornasse necessário. E nesta medida os termos da própria procuração indicam uma certa forma de blindagem à prática de quaisquer poderes fora do âmbito do processo de inventário, sendo aliás pela natureza e finalidade deste mesmo processo (de inventário) que nos devemos guiar na interpretação da procuração. 

Por esta razão tem todo o sentido jurídico dizer-se como a sentença o faz que “[E]m lugar algum daquela procuração referida em E) da matéria assente está prevista a possibilidade de o Sr. J… vender os direitos à herança de M… que os seus constituintes tinham, não havendo no seu texto qualquer alusão, por mais ténue ou imperfeitamente expressa que seja, a tal possibilidade, pelo que, em virtude do seu carácter de negócio jurídico formal e por aplicação do disposto no art. 238º do CC, é forçoso concluir que, quando outorgou aquela escritura de compra e venda em 07.02.1997, o Sr. J… não tinha quaisquer poderes para vender como vendeu aos outros co-herdeiros, os quinhões de M… e de F…, naquela herança.”.

Mas mais, na observação do teor da procuração com a especificidade do processo de inventário colhe todo sentido o acrescento interpretativo que a sentença realiza e no qual faz constar que “ (…) além disso, analisando o tipo de poderes atribuídos ao Sr. Advogado em questão, no que se refere, quer à tramitação do processo de inventário judicial destinado a partilhar a herança de M…, quer aos actos a praticar, junto …, em representação de M… e de F…, revelam que estes constituintes pressupuseram justamente oposto, ou seja, estavam convencidos de que iriam ficar titulares do direito de propriedade sobre bens concretos (móveis e imóveis) daquela herança e não que tal procuração pudesse funcionar como instrumento para receberem uma determinada importância monetária, como contrapartida pela cessão dos seus direitos aos bens daquela herança, com o seu consequente afastamento da partilha desses bens.

Convencimento este que, de resto, correspondia a um seu direito.”

Decidida desta forma, com a confirmação do decidido, a questão suscitada no recurso quanto à extensão dos poderes do Sr. J…, ela implica a manutenção do decidido quanto à declaração de ineficácia em relação aos autores da compra e venda dos quinhões hereditários a que se refere o artigo 12º da petição inicial e a declaração de nulidade da compra e venda dos prédios urbanos a que alude o artigo 11º da petição inicial. Aliás a ineficácia e nulidade desses negócios jurídicos não foi directamente questionada pelos recorrentes nas suas alegações/conclusões de recurso e a que, indirectamente, e só pela via do protesto quanto aos poderes da procuração do Sr. J…, que eles sustentavam suportarem a prática daquela escritura de venda do quinhão, aludiram.

Assim, passamos a conhecer da questão principal trazida a recurso pelos apelantes e que é a de, independentemente da ineficácia ou da nulidade daqueles negócios jurídicos resultantes da inexistência de poderes de disposição do Sr. J…, eles se afirmarem proprietários exclusivos (por usucapião) dos imóveis que venderam e como tal, nesse reconhecimento as vendas que realizaram deverem ser consideradas válidas e bem como assim os actos de registo.

Num resumo breve, o fundamental desta argumentação reclama que à data em que alienaram os imóveis em apreço nos autos, os recorrentes eram donos e legítimos proprietários dos mesmos por terem uma posse titulada e registo que contavam mais de 10 anos, circunstância que havia consolidado na sua esfera jurídica, e por força da ininterruptibilidade e continuidade dos actos possessórios, a usucapião; e que esta usucapião já se verificava à data da celebração do contrato de compra e venda a favor da ré I…, Lda mas, mesmo que assim não fosse, deveria ser declarada a acessão na posse por banda da I…, Lda, tendo-se também nesta ré consolidado a posse dos ora apelantes, continuada e com iguais características, em usucapião.

Neste domínio os recorrentes referem que a sentença apelada estabeleceu uma incorrecta e legalmente inadmissível relação entre (a decisão sobre) a ineficácia da venda do quinhão hereditário e a nulidade da compra e venda dos imóveis pertencentes à herança, retirando da ineficácia e da nulidade declaradas o fundamento para afastar a propriedade adquirida por usucapião por parte dos apelantes, quando se deveria antes entender, em seu critério, que a partir da data da escritura que titula a venda dos quinhões julgada ineficaz, independentemente dessa ineficácia, eles passaram a ser possuidores numa perspectiva usucapível, devendo contar-se a partir desse momento a sua posse e o respectivo prazo de aquisição originária por usucapião.

De facto, a sentença refere que “ Depois da venda do quinhão hereditário na herança de M… de que eram titulares os sobrinhos desta, em representação de seu irmão uterino préfalecido …, os interessados na partilha daquela herança passaram a ser apenas aqueles herdeiros compradores de tal quinhão.

Assim, se a escritura de compra e venda a que se refere a alínea F) da matéria assente também fosse eficaz, o universo dos herdeiros de M… teria ficado restringido a …, dado o seu efeito translativo dos quinhões de M… e de F…, na herança da mesma M…, com a consequente aquisição dos mesmos pelos compradores e seus sucessores.

A validade e eficácia daquela escritura pública mencionada em F) da matéria assente e a conversão da comunhão hereditária em compropriedade na esfera jurídica daqueles vendedores, por efeito da partilha da herança em que aqueles imóveis estão integrados eram as condições essenciais de que dependia a existência de legitimidade substantiva dos vendedores … para venderem válida e eficazmente à ré I…, Lda. aqueles dois prédios da herança de M...

Foi partindo destes pressupostos que os réus … pediram em reconvenção, que se declare que, quando alienaram os imóveis, os réus eram os legítimos proprietários dos mesmos, em virtude de os terem adquirido por usucapião e, quando assim se não entenda, deve ser declarada a acessão na posse, por parte da ré I…, Lda.”.

A isto opõem os recorrentes que a compra e venda constante da escritura pública que os ora Apelados viram ser declarada ineficaz relativamente a si, e que consagra a compra de dois quinhões hereditários, foi outorgada no Cartório Notarial de …, em 7/2/1997 tendo a aquisição sido registada nas Conservatórias do Registo Predial da área onde encontram situados os dois imóveis.

E se o imóvel urbano pertencente à freguesia de Santos-o-Velho, em Lisboa, viu o registo acontecer em 3/3/1997; e o outro imóvel urbano sito na freguesia de Alcântara, concelho de Lisboa, viu a aquisição registada em 6/3/1997, então os apelantes/reconvindes entre as datas em que registaram a sua aquisição e aquela data em que a Ré I…, Lda., registou a sua compra, foram possuidores, donos e legítimos proprietários dos referidos imóveis e com uma posse titulada e de boa fé, conforme consagrado no artigo 1294ºalínea a) do Código Civil.

Na defesa desta posição reclamam que a boa fé consiste no desconhecer-se sem culpa que se está a lesar ou perturbar o direito e que eles actuaram na convicção (positiva) de que se estavam a exercer um direito próprio, adquirido por título válido e por desconhecerem, precisamente os vícios da aquisição devendo considerar-se que o conceito de boa-fé é puramente psicológico residindo na simples circunstância de se ignorar que se lesam direitos alheios, e também o princípio de que toda a posse titulada é de boa fé (artigo 1260º, nº 2 do C. Civil).

Por outro lado, os apelantes sustentam em seu abono que confiaram a prática de todos os actos que conduziram à aquisições hereditários, bem como a realizam dos competentes registos e a preparação da outorga das escrituras a um profissional do foro; compraram, pagaram, e venderam e receberam – ignorando, sem culpa, se acaso os negócios enfermavam de vício que os lesasse a si ou a terceiros.

No que refere ao próprio título, defendem que independentemente da sua ineficácia a escritura de venda do quinhão hereditário funciona sempre como título válido para efeitos do art. 1259º, nº 1 do C. Civil e isto porque, invocando o Prof. Orlando Carvalho, para haver pose titulada é necessário que exista um título de aquisição do direito em termos do qual se possui e que não existam vícios formais nesse mesmo negócio[1].

Aplicado ao caso em decisão estes argumentos reverteriam em que, como a procuração outorgada ao Sr. J… padece de vícios de substância e não formais, continuaria a existir título e posse titulada por parte dos apelantes e demais réus porquanto o artigo 1259º/1 esclarece que, nem a falta do direito do transmitente, nem a falta de validade substancial do negócio jurídico excluem o título admitindo-se que no caso de transmissão a non domino esse título existe[2].

Iniciando agora o percurso decisório depois de exposta a argumentação dos apelantes por oposição à constante da decisão recorrido, cremos que a resposta se encontra vertida na própria sentença, se bem que com um enfoque um pouco diferente.

Aceitamos que existe razão na observação dos recorrentes quando enunciam que a decisão apelada “prende” a fundamentação da improcedência do pedido reconvencional à declaração de ineficácia do negócio jurídico de venda do quinhão hereditários aos apelados e que, essa mesma decisão, não problematiza a questão de uma venda a non domino, titulada por escritura pública, julgada ineficaz poder constituir título para efeitos do disposto no art. 1259 nº1 do CC, isto é para conferir a característica de titulação a uma posse.

Porém, cremos que mais importante e decisivo que tudo isto, no sentido da solução para esta questão, é o que a sentença expende quando analisa a matéria de facto no âmbito da caracterização da posse dos apelantes.

Observemos:

Temos presente que a usucapião se funda num facto natural e humano, qual seja, a posse e a invocação do seu decurso (art. 1287 CC). E importante no quadro da nossa decisão é igualmente não esquecer que a aquisição do direito por usucapião não é automática pois o preceito citado confere ao possuidor a faculdade de adquirir e não prescreve uma consequência automática de com a posse se adquirirem direitos.

A implicação é a de que, para ser eficaz, a usucapião deve ser invocada, judicial ou extra-judicialmente, estando dependente da manifestação de vontade por parte da pessoa a quem aproveita (art. 1292º do CC) sendo como se o possuidor tivesse entrado na titularidade do respectivo direito, no momento da posse boa para usucapião (arts. 1288º e 1317º al. c) do CC). E é precisamente nesta “posse boa para usucapião” a que alude e de que se ocupa a sentença recorrida que devemos procurar a solução para a questão em discussão.

Dispensando desnecessários comentários sobre a noção da posse e os seus elementos constitutivos de corpus e animus, pois que sobre eles não existe controvérsia, lembramos simplesmente que o corpus consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela, ou na possibilidade física desse exercício; e o animus, na intenção de exercer sobre a coisa como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto.

Por esta razão se aceita como rigoroso que para ocorrer a posse se exija «uma intensidade particular da actuação material sobre a coisa. Assim, a necessidade de a prática de actos materiais ser reiterada significa, não só uma certa repetição da actuação material sobre a coisa, mas também, e sobretudo, a necessidade de ela ser significativa da intenção de se apoderar dela»[3].

É neste momento que devemos introduzir no argumentário um elemento que nos parece de incontornável relevância e até decisivo, já referido na sentença com um contexto que se aproxima e responde à questão suscitada pelos recorrentes de a sua posse, posterior à compra do quinhão hereditário, ao fim de 10 anos admitir a aquisição do direito por usucapião.

E esse argumento é o seguinte: o art. 1255º do Código Civil dispõe que por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa, isto é, não se exige que o sucessor mortis causa precise de exercer qualquer acto material sobre a coisa possuída, para a referida posse. Ou como afirmam Pires de Lima e A. Varela «Continuando a posse do de cujus no sucessor, há que admitir como consequência necessária, que o sucessor não precisa de praticar qualquer acto material de apreensão ou de utilização da coisa, como expressamente se declara neste artigo e se repete na parte final do nº 1 do art. 2050º para ser havido, para todos os efeitos legais, como possuidor; ele pode inclusivamente ignorar a existência da nova posse.

Em segundo lugar, há que concluir que a posse não é nova. A posse continua a ser a antiga com todos os seus caracteres»[4].

Aplicando estas observações à situação em decisão, com a morte de M… todos os herdeiros desta passaram a ser possuidores dos bens que faziam parte daquela herança (por força desse normativo citado) como herdeiros, esclarecendo-se (ainda que desnecessário) que esta posse passou a ser igual nas suas características para os ora apelantes bem como para os outros herdeiros, entre os quais M… e F…, ...

Ora, para que a posse assim adquirida pelos herdeiros, por força da morte do possuidor, passasse a ser diferente da posse dos demais (por pessoal e exclusiva) e com novas e distintivas características seria necessário que aquele que a invocasse conseguisse provar, no caso, que invertera o título da posse (vd. art. 1265 do CC).

De facto, se quando a sucessão na posse opere por título diverso da sucessão por morte, o transmitente pode valer-se da acessão da posse e, portanto, juntar à sua a posse do antecessor (artº 1256 nº 1 do Código Civil), a exegese deste normativo impõe que se conclua que na sucessão da posse fundada na sucessão por morte, o transmitente não pode valer-se da posse que tem como herdeiro mas terá de configurar uma nova posse, diferente e autónoma dessa e boa para usucapião, como aliás os recorrentes aceitam e defendem quando fazem a contagem da sua posse para invocarem a usucapião.

Como já se decidiu[5] a inversão do título de posse (a interversio possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio, não bastando que a detenção se prolongue para além do termo do título que lhe servia de base ou, até, que outro título passe a existir, sendo necessário que o detentor expresse directamente junto da pessoa em nome de quem possui, (ou com quem conjuntamente possui) a sua intenção de actuar como titular do direito.

Quer isto dizer, no caso em decisão, que para os apelantes fazerem valer o argumento de que a partir da venda do quinhão hereditário julgada ineficaz passaram a ser possuidores exclusivos e de forma a poderem reclamar a usucapião, não lhes bastava invocar a sua boa-fé ou a existência de título (um titulo diferente da qualidade de herdeiro) mas seria, quanto a nós, absolutamente necessário que demonstrassem que a sua posse passou a ser diferente da que tinham como herdeiros do possuidor, como todos os outros herdeiros, na decorrência do art. 1255 do CC. Não é o título, o negócio jurídico titulado por escritura pública (mesmo que ineficaz) que confere a posse mas é antes a invocação de um poder de facto sobre a coisa de forma exclusiva e com o animus correspondente que pode fazer reclamar que ao fim de 10 anos desse poder o direito se poderia usucapir por esse poder de facto ser titulado e de boa fé.

Só que a análise da posse, no que esta tem de fáctico e corpóreo, é independente, autónomo e até prévio a verificar-se a existência de título e da boa-fé que, como vimos, são invocáveis para o estabelecimento do prazo exigido para a usucapião.

A posse que faculta a aquisição originária do direito real deve ser pacífica e pública, i.e., uma posse que tenha sido adquirida sem violência e que seja exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artºs 1261 nºs 1 e 2 e 1262 do Código Civil). Note-se que a violência referida tem de ser exercida sobre as pessoas e não apenas sobre coisas que constituem um obstáculo à privação da posse e que para qualificar a posse o que interessa é o momento da aquisição desta (artºs 255, ex-vi artº 1261, 1267 nº 2, in fine, e 1297 do Código Civil).

Só uma tal posse é boa para usucapião, visto que a primeira condição para que esta opere é a de que haja posse com as características da pacificidade e da publicidade; faltando estas qualidades, os prazos para a usucapião não se contam (artºs 1297 e 1300 nº 1 do Código Civil).

Na consulta da prova existente nos autos, no domínio desta questão, (a das características e natureza da posse dos apelantes) têm total acolhimento as observações da sentença que aqui reproduzimos por inteiro e onde se refere que “nos nºs 4 a 16 da base instrutória, correspondendo às alegações daqueles réus, perguntavam-se factos atinentes ao pagamento dos impostos, sobre os imóveis objecto da escritura pública de compra e venda aludida em G) da matéria assente, sobre o recebimento das rendas provenientes de arrendamentos sobre esses imóveis, sobre tomadas de decisão sobre tais arrendamentos, sobre o seu relacionamento, quer com a Câmara Municipal de Lisboa, no que se refere a vistorias, avaliações, pagamentos de taxas e emolumentos, quer com a Associação Lisbonense de Proprietários, com vista à demonstração de que passaram a comportar-se em relação àqueles imóveis, como se fossem seus exclusivos comproprietários, portanto, com exclusão dos autores e sem oposição destes, à vista de toda e gente e desde 1997, até 28 de Fevereiro de 2007, quando venderam os prédios em causa à ré I…, Lda.

Todavia, o que resultou da discussão da causa, foi que a ré M… procedeu ao pagamento da sua quota-parte nas contribuições autárquicas e no IMI referentes aos imóveis descritos em G), ao longo de cerca de dez anos (resposta ao nº 4 da base instrutória); liquidou de IMI, e relativo aos anos de 2004, 2005 e 2006, respectivamente as quantias de € 743,55, € 721,12 e € 691,16 (resposta ao nº 5 da base instrutória); que os réus … procederam ao pagamento à Câmara Municipal de Lisboa das suas quotas-partes nas taxas devidas pela conservação dos esgotos dos imóveis identificados em G) da matéria assente (resposta ao nº 7 da base instrutória); que … recebiam as suas quotas-partes de 25% cada uma, nas rendas pagas pelos inquilinos dos imóveis a que alude a alínea G) da matéria assente (respostas aos nºs 9 e 11 da base instrutória) e que a ré M… encontrava-se inscrita na Associação Lisbonense de Proprietários, como sócia nº …, e era por ali que recebia a sua quota parte de 25% das rendas e liquidava encargos, tendo de pagar uma avença à Associação pelo serviço que esta lhe prestava (resposta ao nº 10 da base instrutória).

Perguntava-se no nº 8 da base instrutória, se «desde Março de 1997 até 28.02.2007 (data em que foi celebrada a escritura dita em G supra), que os quatro primeiros réus, quer por si quer por anteriores possuidores, têm vindo a dispor dos imóveis como bem entendem, pagando contribuição autárquica e posteriormente Imposto Municipal sobre Imóveis e liquidando todas as obrigações, taxas e demais encargos cobrados pelo Município de Lisboa».

Ao que foi respondido «provado o que consta das respostas aos nºs 4, 5 e 7, ou seja que o que aqueles réus fizeram foi pagar as suas quotas-partes de contribuições autárquicas e bem assim das taxas devidas pela conservação dos esgotos dos imóveis identificados em G) da matéria assente.

Também o mesmo tem de dizer-se das circunstâncias constantes da resposta ao nº 19 da base instrutória de que … e sucessores desta, praticaram todos os actos acima descritos de forma continuada, e foram sempre tratadas pelas referidas entidades públicas como comproprietárias dos prédios descritos em G), e a elas responderam em igual qualidade (sendo certo que a pergunta feita naquele nº 19 se referia à qualidade daquelas como «proprietárias», na mesma linha de raciocínio de afastar os autores da disponibilidade de uso, fruição e administração dos prédios ou do aproveitamento das suas utilidades).

Se, por um lado, as entidades públicas não têm de saber das características específicas da contitularidade por várias pessoas de direitos de propriedade sobre o mesmo imóvel ou um conjunto de imóveis – se se trata de uma herança indivisa a que concorrem vários herdeiros ou, diversamente, de uma compropriedade – e, nas relações com terceiros, tanto uma como outra, sendo embora formas diferentes de comunhão, podem aparentar ser uma e a mesma coisa; por outro lado, para efeitos de qualificação de uma determinada actuação ou exercício de poderes de facto sobre uma coisa, como posse, no sentido que acima ficou exposto e que é aquele que deve ser tomado em conta para a usucapião, nada interessa como é que as outras pessoas interpretam essa actuação, pois que o animus da posse tem de se verificar é no espírito daquele que a invoca.

E, no espírito daqueles que invocaram a usucapião, nesta acção, a convicção que terão, a avaliar pela parte final da resposta àquele nº 19 da base instrutória é a de que são comproprietários dos imóveis, o que por si só, nem sequer afasta os autores das faculdades de aproveitamento das utilidades dos imóveis, pela forma correspondente ao direito e convencidos de serem dele também titulares, em que se traduz a posse.

Por fim no nº 20, perguntava-se, na sequência e em conjugação com a redacção do nº 19 se M… e sucessores desta, foram sempre tratadas pelas referidas entidades públicas como verdadeiras proprietárias e a elas respondiam nessa qualidade, «sempre e ao longo de todo este tempo sem qualquer oposição, muitos menos da F… enquanto foi viva, do autor G… ou do autor M…, e na convicção de que exerciam um direito próprio, sem lesarem qualquer direito de outrem».

E a este nº 20 foi dada resposta de não provado.”

Desta observação referente aos apelantes, nada mais resulta em nosso entender também, que não um exercício das “faculdades de uso, fruição e administração e a correspondente actuação e o cumprimento de deveres inerentes à qualidade de herdeiros da universalidade de bens em que tais imóveis se encontram integrados, mas não de proprietários exclusivos ou comproprietários, com exclusão dos autores, sobre aqueles concretos dois prédios urbanos”. E menos ainda que, a partir da data compra e venda do quinhão hereditário julgada ineficaz, a posse dos apelantes tenha passado a ser diferente dessa que antes já tinham em conjunto com os autores, na qualidade de herdeiros.

Para que essa alteração/inversão se pudesse considerar verificada era necessário que o detentor tornasse directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de actuar como titular do direito, quer judicial, quer extra-judicialmente, sendo para isso necessário um comportamento que traduzisse em actos materiais ou jurídicos, explícitos e inequívocos, que revelem que o detentor quer, a partir da oposição, passar a actuar como titular exclusivo do direito real que, até então, considerava ser pertencente a outrem (ou também a outrem), actos estes que deveriam ser praticados na presença, ou com o consentimento daquele a quem é efectuada a oposição[6].

A ausência de prova demonstrativa de ter havido inversão deste título de posse (como herdeiros) para um outro de possuidores exclusivos afastando dessa posse a que os autores detinham em paridade com os apelados, retira, pois, a possibilidade de o pedido reconvencional ser julgado procedente.

Outra seria a solução se acaso a partir desse assinalado momento (o da venda do quinhão hereditário) a posse dos apelantes, nos termos sobreditos, pudesse ser considerada nas suas características como posse correspondente à de um proprietário exclusivo com diferenças opostas à da posse que tinha até aí e que conduzissem a essa conclusão. E esta apreciação das características fácticas do exercício de poder sobre a coisa, repetimo-lo, é independente e autónoma de saber se existe título e até boa-fé pois não é a existência nem de um nem de outra que evidencia que posse no sentido de poder de facto se exerce sobre a coisa.

E se assim é, como o julgamos ser, cremos não se pode falar em acessão na posse, por efeito da celebração da escritura pública de compra e venda de 28 de Fevereiro de 2007, pois a posse que os apelantes tinham para transferirem para a ré I…, Lda. era que resultava da qualidade de herdeiros e que não conseguiram provar que alguma vez tivessem invertido/alterado para uma outra de características pessoais, próprias e exclusiva.

Em síntese, as conclusões de recurso dos apelantes quanto à invocação de terem adquirido a propriedade dos prédios por usucapião devem improceder, não porque a venda do quinhão hereditário tenha sido julgada ineficaz e a venda dos prédios à I…, Ldª tenha sido julgada nula, mas porque os recorrentes não provaram na acção que tinham uma posse capaz de os habilitar a adquirir o direito de propriedade dos imóveis discutidos nos autos. E só depois de se decidir se essa posse era uma “posse boa para usucapião” é que importaria saber se esta era titulada e de boa fé para fixar o prazo necessário á aquisição, tendo nisso razão os apelantes quando protestam nas alegações que “(…) não podemos esquecer que estamos a invocar actos de posse e não a titularidade de um direito” e é nesses actos de posse que não revimos uma boa para usucapião.

Diga-se ainda que esta decisão sobre a posse dos apelantes invalida o ter de se apurar se a sentença violou o trato sucessivo e a presunção do art. 7º do CRP para se manterem os registos efectuados, pois que esta matéria supunha a existência por aqueles de uma posse titulada e de boa fé, e a consequente decisão sobre a aquisição do direito por usucapião. Ora, sem a caracterização da posse dos apelantes como boa para usucapião improcedem essas pretensões, quer de declaração do direito de propriedade adquirido por usucapião quer o da manutenção dos registos efectuados com base nas escrituras mencionadas.

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a Apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos Apelantes.

Manuel Capelo (Relator)

Jacinto Meca

Falcão de Magalhães

[1] In Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 122, nº 3787, p. 292.

[2] Os apelantes retiram esta argumentação citando a lição do Prof. Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, p. 101 e 102)

[3] Carvalho Fernandes, Direitos Reais, 4ª ed., Lisboa, 2003, pág. 297

[4] Código Civil anotado, I, anotação ao art. 1255º, 2ª ed. pág. 13).
[5] Ac. R.C. de 17-11-2009 no proc.  106/06.2TBFCR.C1, in dgsi.pt
[6] Ac. do STJ de 16.06.2009, in http://www.dgsi.pt.