Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2963/05.0TBPBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
SENTENÇA
Data do Acordão: 01/31/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 46.º N.º 1 A) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: A sentença que reconheceu que os exequentes "adquiriram por usucapião, o direito de servidão de passagem, em benefício do seu prédio, à custa dos" executados, a qual se exerce sobre uma faixa de terreno que se identifica, é meramente declarativa. Assim, não tendo a natureza condenatória exigida no artigo 46.º n.º 1 a) do Código de Processo Civil, não constitui título executivo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... e B... instauraram, na comarca de Pombal, a presente execução para prestação de facto contra C... e D..., requerendo que os executados procedam à "desobstrução da passagem" na servidão que existe em benefício do seu prédio e a condenação destes "a 50,00 €, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de incumprimento, na desobstrução da servidão de passagem".

Alegam, em síntese, que por acórdão proferido no processo apenso, já transitado em julgado, foi declarado que adquiriram por usucapião o direito de servidão de passagem, em beneficio do seu prédio e à custa do dos aqui executados, a qual se exerce sobre a faixa de terreno que se identifica nesse aresto, e que estes "ocupam a servidão".

A Meritíssima Juíza proferiu despacho em que decidiu que:

"Nestes termos, ao abrigo das normas citadas, por manifesta falta do título executivo, indefere-se liminarmente o presente requerimento executivo, e, em consequência extingue-se a execução".

Inconformados com tal decisão, os exequentes dela interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

- A acção interposta foi declarativa de condenação.

- O douto acórdão veio a deliberar: por outra que declara que os réus adquiriram, por usucapião, o direito de servidão de passagem, em beneficio do seu prédio, à custa do dos autores, a qual se exerce sobre a faixa de terreno identificada nos itens 28 e 29 dos factos dados como provados na sentença recorrida;

- O acórdão tem exequibilidade para prestação de facto.

- Foram violadas as normas do art. 4.º, n.º 2 do C.P.C, art. 46.º, n.º 1 a) do CPC, art. 47.º, n.º 1 do CPC.

Terminam afirmando que "deve ser admitido o presente recurso, admitindo-se a execução como vertido na acção respectiva".

Os executados não contra-alegaram.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil[1], as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se os exequentes têm título executivo.


II

1.º


Para a decisão do presente recurso importa ter em consideração os seguintes factos:

a) na acção declarativa, a que está apensa esta execução, foi proferido, em 12-1-2010, acórdão desta relação, já transitado em julgado, em que se decidiu:

"Julgar parcialmente procedente a presente apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, na parte em que condenou os réus a reconhecerem que sobre os prédios dos autores não se acha estabelecida uma servidão de passagem a favor do prédio dos réus, substituindo-a, nessa parte, por outra que declara que os réus adquiriram, por usucapião, o direito de servidão de passagem, em benefício do seu prédio, à custa do dos autores, a qual se exerce sobre a faixa de terreno identificada nos itens 28 e 29 dos factos dados como provados na sentença recorrida;[2]

Igualmente se revoga a mesma, na parte em que condenou os réus a pagar aos autores uma indemnização por danos não patrimoniais, da qual vão absolvidos,

Mantendo-se a mesma quanto ao mais."

b) na petição inicial desta execução os exequentes dizem que "os executados ocupam a servidão" a que se refere a decisão mencionada em a) e que "pretendem (…) a desobstrução da passagem".


2.º

Como é sabido no artigo 45.º n.º 1 consagra-se o princípio de que "toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva".

E o artigo 46.º n.º 1 a) estabelece que "à execução (…) podem servir de base as sentenças condenatórias". Ao conferir-se força executiva apenas às sentenças condenatórias isso significa, obviamente, que nem todas as sentenças têm a natureza de título executivo, ou seja, há sentenças que não constituem título suficiente para instaurar uma execução.

É condenatória "toda a sentença que, reconhecendo ou prevenindo o inadimplemento duma obrigação (cuja existência certifica ou declara), determina o seu cumprimento; é a que contém uma ordem de prestação"[3]. Têm tal qualidade "todas as sentenças em que o juiz, expressa ou implicitamente, imponha a alguém uma obrigação"[4]. Não é necessário que a sentença "condene no cumprimento de uma obrigação; basta que essa obrigação fique declarada ou constituída por"[5] ela.

Sendo assim, pode afirmar-se que "quanto às sentenças de mérito proferidas em acções de simples apreciação, é pacífico que não se pode falar de título executivo. Efectivamente, ao tribunal apenas foi pedido que apreciasse a existência dum direito ou dum facto jurídico e a sentença nada acrescenta quanto a essa existência, a não ser o seu reconhecimento judicial. Pela sentença, o réu não é condenado no cumprimento duma obrigação pré-existente, nem sequer constituído em nova obrigação a cumprir. Vigorando o princípio dispositivo, compreende-se que tal sentença não possa ser objecto de execução"[6]. Na verdade, como bem observa a Meritíssima Juíza a quo, "uma sentença que apenas declare a existência ou inexistência de um direito, não impõe, mesmo implicitamente, no que respeita ao mérito, o cumprimento de qualquer prestação".

Ora, no caso dos autos, a decisão que se quer executar é meramente declarativa, pois limitou-se a reconhecer que os aqui exequentes "adquiriram por usucapião, o direito de servidão de passagem, em benefício do seu prédio, à custa dos autores, a qual se exerce sobre a faixa de terreno identificada nos itens 28 e 29 dos factos dados como provados na sentença recorrida". Nela não se impôs, mesmo indirectamente, aos executados o cumprimento de uma qualquer obrigação que agora se diga não estar a ser cumprida.

Para que pudéssemos estar na presença de um sentença condenatória era necessário que fosse possível encontrar no acórdão a imposição de não se praticar algum facto que, nesta execução, se dissesse ter sido praticado e que, por isso mesmo, havia sido violada a "obrigação do devedor" a que se refere o n.º 1 do artigo 941.º[7]. "A violação da obrigação negativa que está na base da execução para prestação de facto regulada nos arts. 940º e 941º não é a obrigação geral e abstracta derivada" de uma norma legal (...). "Mas é sim a violação da obrigação concreta de não" praticar determinado facto definida "na sentença proferida na acção declarativa"[8]. Não há dúvida de que, face ao n.º 1 do artigo 941.º, "a obrigação do devedor (…) em não praticar certo facto", que em sede de execução se diz ter sido violada, tem que figurar no título que se pretende executar.

Os exequentes alegam que "os executados ocupam a servidão" e, em virtude disso, "pretendem (…) a desobstrução da passagem". Independentemente de a expressão "ocupam a servidão" ser conclusiva e de, por isso mesmo, ela não permitir apreender, de forma tão clara quanto desejável, o que, efectivamente, terá sido feito pelos executados, a verdade é que na decisão que se quer executar não se condenou estes a não ocuparem a servidão. Se a alegada ocupação colide com o direito de servidão de passagem que se reconheceu existir em favor do prédio dos exequentes, e provavelmente colidirá[9], então estes têm que, em acção declarativa, obter a condenação dos executados a não a ocuparem; a alegada violação do seu direito, através de tal conduta, precisa ainda de ser discutida, reconhecida e declarada[10]. Com efeito, não estando a obrigação declarada na sentença, é preciso averiguar se o facto viola o direito que foi reconhecido.

Aqui chegados, dúvidas não restam de que, tal como concluiu a Meritíssima Juíza a quo, os exequentes não têm título executivo.


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelos exequentes.

                                                           António Beça Pereira (Relator)

                                                                Nunes Ribeiro

                                                               Hélder Almeida


[1] São deste código todos os artigos adiante mencionados sem qualquer outra referência.
[2] Sublinhado nosso.
[3] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 62.
[4] Jorge Barata, Acção Executiva Comum Noções Fundamentais, 1980, pág. 39. Neste sentido veja-se Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 91 e 92.
[5] Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva com apresentação de Antunes Varela, pág. 43.
[6] Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma, 5.ª Edição, pág. 39. Neste sentido pode igualmente ver-se Anselmo de Castro, A Acção Executiva, 1973, pág. 16-17.
[7] Parece ser pacífico que está fora de causa poder enquadrar-se a situação em apreço numa execução para prestação de facto positivo, uma vez que nada se alega no sentido de que os executados estavam obrigados "a prestar um facto em prazo certo". Cfr. artigo 933.º.
[8] Ac. Rel. Porto de 8-3-2007 no Processo 199/07 (Ref. 7827/2007), em www.colectaneade jurisprudencia.com.
[9] Mas não necessariamente. Se por hipótese aí for colocado um portão e se aos exequentes for dada chave do mesmo, pode dizer-se que há, em termos materiais, uma ocupação, mas o direito de passagem não está afectado.
[10] Dentro desta linha de raciocínio veja-se o Ac. STJ de 21-4-2004 no Proc. 04B3043, em www.gde.mj.pt, e o já citado Ac. Rel. Porto de 8-3-2007.