Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
150/12.0EACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: NEGLIGÊNCIA
NEGLIGÊNCIA CONSCIENTE
NEGLIGÊNCIA INCONSCIENTE
Data do Acordão: 09/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 15.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I- A negligência é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa.

II- O tipo objetivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a violação de um dever objetivo de cuidado; a possibilidade objetiva de prever o preenchimento do tipo; e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado.

III- A violação pelo agente do cuidado objetivamente devido é concretizada com apelo às capacidades da sua observância pelo “homem médio”.

IV- A não observância do cuidado objetivamente devido não torna perfeito, por si própria, o tipo de ilícito negligente, antes importa que ela conduza a uma representação imperfeita ou a uma não representação da realização do tipo.

V- Para que exista culpa negligente, com preenchimento do tipo-de-culpa, necessário é ainda que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado.

VI- Enquanto na negligência consciente o agente representou como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade do preenchimento do tipo pela sua conduta.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

       Relatório

            Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Ansião, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção de tribunal singular, os arguidos

            A..., Lda, NIPC (...), com sede na (...), Ansião

            B... , filho de (...) e de (...), natural de (...), nascido a 31.05.1958, divorciado, empresário, residente na (...), Vale Mosteiro, e;

            C... , filho de (...) e de (...), natural de (...), Covilhã, nascido a 30.07.1977, casado, chefe de loja, residente da (...), Avelar;

imputando-se-lhes a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de especulação praticado por negligência, previsto e punido:

- Quanto à sociedade arguida, pelos artigos 3.º, 7.º e 35.º, nºs 1, al.c), e 3, 4 e 5 do  DL 28/84, de 20.01;

- Quanto ao arguido B... pelos artigos 2.º e 35.º, nºs 1, al.c), e 3, 4 e 5 do  DL 28/84, de 20.01; e

- Quanto ao arguido C... , pelos artigos 2.º e 35.º, n.ºs 1, al.c), e 3, 4 e 5 do  DL 28/84, de 20.01.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença de 13 de Fevereiro de 2013, decidiu julgar a acusação pública procedente, por provada e, em consequência:

- Condenar a arguida A... , Lda, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de €10,00 (dez euros), o que perfaz a quantia global de € 1.200,00 (mil e duzentos euros) pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de especulação – nos termos conjugados dos arts 3º, 7º e 35º, nºs 1, al.c), e 3, 4 e 5 do  DL 28/84, de 20.01

- Condenar o arguido B... na pena única de 320 (trezentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de €7,5 (sete euros e cinquenta cêntimos) – o que perfaz a quantia de €2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros) – pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de especulação p. e p. pelos arts. artº 2º e 35º, nºs 1, al.c), e 3, 4 e 5 do  DL 28/84, de 20.01.; e

- Condenar o arguido C... na pena única de 260 (duzentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros) – o que perfaz a quantia de €1.560,00 (mil quinhentos e sessenta euros) – pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de especulação p. e p. pelos arts. 2º e 35º, nºs 1, al.c), e 3, 4 e 5 do  DL 28/84, de 20.01.

           Inconformados com a douta sentença dela interpuseram recurso os arguidos “ A... , Lda”, B... e C... , concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1.° Efectivamente, duvidas não restam que no seguimento de uma acção inspectiva foram detectados dois produtos cujo preço afixado no linear não correspondia ao preço que passava na caixa, o Bloco Sanitário Deo Liq Fresh 50 M WC Pato estar marcado com o preço de 2,59€ e passar na caixa a €2,69, e o Lipton Ice Tea Pêssego, 11, estar marcado no linear a 1,14€ e passar na caixa a 1,19, pelo que desde logo, há uma questão que tem que se colocar:

2.° De quem é essa responsabilidade?

3.° Entende o Tribunal a quo que a responsabilidade é do sócio-gerente da empresa, o arguido B... e do responsável de loja, o arguido C... .

4.° Mas estará esta interpretação correcta, face à prova produzida em sede de audiência de julgamento e supra descrita?

5.° Não será a responsabilidade dos trabalhadores das respectivas secções que sabem quais as funções a desempenhar quando cessa uma promoção?
6.º Ouvimos as testemunhas D... , E... e F... , dizer que não é o sócio gerente que anda na loja a confirmar o trabalho dos trabalhadores, por não ser essa a sua função, e que é impossível ao responsável de loja, C... , verificar todos os preços.
7.º Se, efectivamente, no que respeita ao arguido C... , alguma responsabilidade lhe podia ser imputada, o mesmo não se pode entender relativamente ao arguido B... .
8.º Face ao exposto, nunca o arguido B... devia ter sido condenado pela prática de um crime de especulação porquanto,

9.º Formulando o juízo normativo de negligência, inicialmente referido no presente Recurso, designadamente, por comparação da conduta que devia ser adoptada por um homem razoável e prudente, munido dos conhecimentos do agente e colocado na sua posição, e a conduta que este efectivamente adoptou, não seria exigível ao arguido a verificação da conformidade dos preços afixados de todos os produtos à venda no estabelecimento.

10.º Entendendo-se em consequência, inexistir qualquer violação do dever objectivo de cuidado ao arguido, devendo, igualmente, entender-se pela inexistência de crime, considerando a impossibilidade de identificar a quem em concreto caberia aquela tarefa de verificar os preços e alterá-los.

11.° A mesma argumentação vale para o arguido C... , se bem que, no que respeita a este arguido, entendendo-se, no limite, que por ser responsável de loja sempre teria alguma responsabilidade no controlo do desempenho das funções dos colegas de trabalho, apesar de ter resultado provável que esse controlo é impossível, nunca o mesmo deveria ter sido condenado, havendo o instituto da suspensão provisória do processo que satisfaria as necessidades em apreço, ou ainda no limite, sendo bastante para as necessidades de prevenção que geral e especiais, in casu, a admoestação.

Termos em que e nos melhores de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, devendo os arguidos B... , C... e A... , Lda, serem absolvidos pela prática do crime de especulação em que foram condenados por não o terem praticado, sendo certo que, relativamente ao arguido C... , a entender este Tribunal ad quem, que de facto lhe assistiria sempre um dever de cuidado que o mesmo violara, a pena não pode nunca ser deixar de a Admoestação, sempre se entendendo que ao caso, no limite, caberia a suspensão provisória do processo, só se assim se logrando fazer a Acostumada Justiça!

O Ministério Público na Comarca de Ansião respondeu ao recurso interposto pelos arguidos, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

            Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P..

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respectiva motivação constantes da sentença recorrida é  a seguinte:

            Factos provados

Da acusação:

1º) - No dia 23 de Julho de 13, pelas 14h30, no supermercado Intermarché de Ansião, sito na (...), Ansião, propriedade da firma A... , Lda, estavam expostos, entre outros, os seguintes produtos:

- duas unidades de Bloco Sanitário Deo Liq Fresh 50M WC Pato, marcado com o preço de venda ao público de €2,59 cada;

- catorze unidades de Lipton Ice Tea Pêssego, 1L, marcado com o preço de venda ao público de €1,14 cada.

2º) - No entanto, o preço que era cobrado na caixa registadora a quem adquirisse tais produtos era:

- €2,69 quanto ao Bloco Sanitário Deo Liq Fresh 50M WC Pato; e

- €1,19 quanto ao Lipton Ice Tea Pêssego, 1L.

3º) - A etiqueta do preço do Bloco Sanitário WC Pato Fresh foi emitida em 11.01.2012, correspondendo a um período promocional entre 11.01.2012 e 17.01.2012. A partir de 18.01.2012 o preço de tal produto passou a ser €2,69.

4º) - Desde 17.01.2012 e até à data da inspecção, 25.07.2012, foram vendidas nove unidades daquele produto, o que corresponde a um proveito de €0,90.

5º) - A etiqueta do preço do Lipton Ice Tea Pêssego, 1L foi emitida em 11.07.2012, correspondendo a um período promocional entre 11.07.2012 e 17.07.2012. A partir de 18.07.2012 o preço de tal produto passou a ser €1,19.

6º) - Desde 18.07.2012 e até à data da inspecção, 25.07.2012, foram vendidas catorze unidades, o que corresponde a um proveito injustificado e abusivo de €0,70.

Perfaz, assim, o total de €1,60 (um euro e sessenta cêntimos) o valor recebido pelos arguidos, no referido período, para além daquele que devia ter sido, efectivamente, recebido.

7º) - Na data supra referida os fiscais adquiriram aleatoriamente dez produtos naquele estabelecimento: em dois destes os preços expostos eram diferentes dos cobrados em caixa e, em ambos os casos o preço cobrado em caixa era superior ao exposto.

8º) - Tais factos ocorreram por não se encontrar implementado um sistema claro, eficaz e seguro de alteração de preços. O sistema existente permite que os preços sejam alterados em caixa sem que sejam alterados nas respectivas prateleiras e sem que haja confirmação dessa alteração no expositor. É impossível identificar o sujeito que alterou e/ou devia ter alterado os preços, porquanto não há qualquer registo dessa acção/omissão, e existe uma deficiente fiscalização e controle dos preços expostos/cobrados por parte dos responsáveis pelo estabelecimento: o gerente e Encarregado de Loja.

9º) - Durante o período de tempo supra referido B... era o único gerente da sociedade arguida A... que explorava o estabelecimento comercial em questão, tendo sempre agido em nome e no interesse desta bem como no seu próprio interesse.

10º) - C... , por seu turno, era trabalhador da sociedade arguida A... , com a categoria de Encarregado de Loja B, sendo assim o trabalhador a quem competia, com a necessária autonomia, gerir e dirigir aquela unidade comercial.

11º) - Ao actuar da forma descrita, agiram os arguidos B... e C... de forma livre, voluntária e consciente, em seu nome e em representação da sociedade arguida, e/ou por conta desta, bem sabendo que o sistema por si implementado para a actualização do preço dos produtos vendidos naquele estabelecimento era um sistema inadequado que permitia que o preço cobrado em caixa fosse superior ao exposto, porquanto a alteração se produzia de forma automática a partir do momento em que eram emitidas novas etiquetas sem exigir qualquer confirmação de que estas se encontravam afixadas. Sabiam ainda que de acordo com o sistema implementado não é sequer possível apurar quem foi o funcionário que colocou as novas etiquetas e que, além do mais, inexiste qualquer funcionário que verifique e fiscalize se os preços expostos são os cobrados.

12º) - Ao agir da forma descrita, sem cuidar de fixar um sistema que garanta de forma eficaz que os preços expostos são os cobrados, agiram os arguidos de forma desatenta e descuidada, agindo sem observar a prudência e diligência a que estavam obrigados e de que eram capazes, e omitindo a prudência que o exercício do comércio exige, com desrespeito pelas mais elementares regras comerciais, que conheciam, tinham obrigação de observar e podiam e deviam ter adoptado de modo a evitar um resultado que podiam e deviam prever, mas que não previram, e que teve por consequência que a arguida vendesse produtos por valor superior ao afixado.

13º) - Sabiam ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Da contestação:

14º) – Os arguidos não são responsáveis pela elaboração dos preços dos produtos.

Mais se provou:

15º) – O arguido B... , é sócio gerente, entre outros, da sociedade arguida, auferindo rendimento mensal de cerca de €3.300,00;

16º) - Vive em casa própria, pagando mensalmente, a título de amortização de empréstimo à aquisição de habitação, cerca de €1.300,00;

17º) - Tem duas filhas a estudar no ensino superior, referindo que gasta o montante que recebe para suportar as despesas das mesmas;

18º) – O arguido é considerada pessoa séria, honesta e filantrópica;

19º) – O arguido C... aufere mensalmente o montante de cerca de €1.200,00;

20º) – Paga mensalmente, a título de renda de casa, o montante de cerca de €350,00 e o valor de cerca de €333,00, a título de amortização de empréstimo à aquisição de viatura;

21º) – Do certificado do registo criminal do arguido B...   constam as seguintes condenações:

- Por decisão de em 01-03-2007, pela prática, em 08-07-2005, de crime de condução especulação p.e p. pelo artº 35º, nº 1, do Dec.-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, na pena única de multa, no âmbito do processo comum singular nº 182/05.5GAALJ, que correu termos no Tribunal Judicial de Alijó;

- Por decisão de em 14-06-2006, pela prática, em 10-06-2006, de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artº 292º, nº 1, do C.Penal, na pena de 50 dias de multa e 3 meses de pena acessória, no âmbito do processo sumário nº 125/06.9GTVIS, do 1º Juizo do Tribunal de Viseu;

22º) – Do certificado do registo criminal do arguido C... nada consta.

Factos não provados

Não se apurou, com relevo para a decisão final, que :

- Que os arguidos não sejam responsáveis pela afixação e supervisão dos preços, quer nos lineares, quer nas caixas.

Motivação

O Tribunal formou a sua convicção conjugando e entrecruzando os vários meios de prova, designadamente, as declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pelos arguidos e o depoimento das testemunhas ouvidas na medida em que estas revelaram conhecimento pessoal, directo e os seus depoimentos se afiguraram credíveis. Valorou-se ainda a prova documental e os certificados do registo criminal dos arguidos juntos aos autos.

Todos os elementos de prova supra referidos foram apreciados à luz do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, ou seja, segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador-segundo o bom senso e a experiência de vida, claro está, tendo em mente a capacidade crítica e o distanciamento e ponderação que se impõem.

Assim, a formação da convicção do Tribunal dependeu essencialmente de duas operações: de um lado a actividade cognitiva de filtragem de informações dadas e sua relevância ético-jurídica; de outro lado, elementos racionalmente não explicáveis – ou, pelo menos, de explicação menos linear-como a credibilidade que se concede a um certo de meio de prova em detrimento de outro, já que não é quantidade de prova produzida que releva, mas antes a qualidade de tal prova, ou seja, o juízo que é feito quanto à veracidade e autenticidade de um depoimento – juízo este que depende, desde logo, do contacto oral directo com os declarantes e da forma como estes transmitem a sua versão dos factos – postura e comportamento, características de personalidade reveladas, carácter e probidade (neste sentido, vide Acórdão da Relação de Coimbra, n.º 308/2004, Processo n.º 4116/04-5.ª).

Acresce que, e não pode o Tribunal deixar de frisar, se via de regra um depoimento surge ao olhos do julgador de forma incíndivel – conferindo-se-lhe credibilidade ou não in totum – circunstâncias há em que, atenta a dinâmica da factualidade em apreço e o contexto psicológico e emocional em que os factos ocorrem, um depoimento pode revelar-se parcialmente credível – permitindo ao Tribunal, desde logo conjugando tal depoimento com os demais meios de prova, formar uma convicção de veracidade apenas quanto a parte de tal testemunho.

Ora, como se escreve no Ac. R. Guimarães de 20.03.2006 [in www.dgs.pt], “a função do julgador não é a de achar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos. Nem, tão pouco, tem o juiz que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe, antes, a espinhosa missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece crédito. Como, aliás, já há muito ensinava o Prof. Enrico Altavilla "o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" - Psicologia Judiciária, voI. II, 3ª ed. pág. 12”.

Concretizando.

O Tribunal fundou-se nas declarações dos arguidos B... e C... quanto às funções desempenhadas por cada um deles na sociedade arguida e obrigações inerentes às mesmas, ao facto de ter estado no estabelecimento da sociedade arguida da fiscalização da ASAE, apesar de no dia em que tal ocorreu não se encontrarem no referido estabelecimento.

Referiram a forma como efectuam as alterações de preços decorrentes designadamente de promoções, não deixando de admitir que não conseguem identificar quem terá tido a responsabilidade de colocar as etiquetas que são automaticamente impressas, e que não conseguem saber quem dos funcionários terá falhado, referindo-se à hierarquia de funções.

Confirmaram os valores da diferença de preços-preços nas caixas e nas etiquetas-duas- e o que teria sido vendido no período em causa, falando mesmo em descuido e “negligência”, mas desculpando-se que se torna quase impossível fazer um controlo em virtude de terem no estabelecimento mais de 14 mil produtos, bem como o facto de não ser significativa no volume de vendas na empresa.

No teor dos depoimentos das testemunhas D... E... , e F... , funcionários da 1ª arguida, os quais explicitaram o modo como são impressas as novas etiquetas face a alterações de preço de produtos, impressão essa operada pelo sistema informático da loja, ficando disponíveis no computador da caixa central.

Referiram a hierarquia de funções e como funciona a impressão, entrega das etiquetas, quem as deve colocar e a forma como se dá tal alteração às caixas, e em última instância quem são os responsáveis máximos-os arguidos, pessoas singulares.

Não conseguiram identificar quem, nos respectivos dias, teria a responsabilidade de colocar, se colocaram, quem estava de folga, se foi, ou não, verificado tal alteração, sendo certo que se ficou ciente que o valor da alteração é enviado às caixas sem previamente quem procede à colocação das etiquetas nos lineares comunicar que já tal se encontra efectuado para iniciar tal alteração nas referidas caixas de pagamento.

As testemunhas I... e J..., inspectores da ASAE que efectuaram a acção inspectiva no estabelecimento da sociedade arguida e relataram, de uma foram isenta, sem hesitações como correu a mesma e que vai de encontro com a factualidade exarada na acusação, referindo expressamente que fizeram uma selecção de 10 produtos e desses 10, em dois produtos-Bloco Sanitário WC-Pato Fresh e Lipton Ice Tea Pêssego, de 1 litro- havia divergências entre o preço exarado na etiqueta e nas caixas, e de acordo com o constante da acusação-apesar de num haver uma etiqueta num sitio com o preço em conformidade com as caixas e em outro local mais alto, tendo em confronto com a documentação junta pela 1ª arguida referido qual seria o lucro total, bem como o período em que permaneceram tais etiquetas em divergência com o preço nas caixas.

A testemunha G... , técnico oficial de contas da 1ª arguida, referindo que não esteve presente na acção inspectiva levada a cabo, explanou a forma como ocorrem as alterações de preços e a sua posição sobre a forma de controlo dos preços nas etiquetas com os das caixas, e da dificuldade, na sua perspectiva em controlar, mas acabando por referir que não lhe chega ao conhecimento qualquer questão relativa à alteração de preços.

Referiu-se à forma como considerada o arguido B... .

Ora, resulta da prova produzida que fazia parte das funções dos arguidos– como o por eles próprio admitido - providenciar e fiscalizar pela substituição das etiquetas que, de forma incorrecta, identificava o preço dos produtos em apreço, o que não fizeram, omissão essa ocorrida em nome e representação da arguida sociedade.

Os arguidos afirmaram desconhecer a discrepância entre os preços etiquetados e os efectivos para venda ao público, o que se aceitaram como verdadeiro, dado que, face às regras de experiência comum, é de crer que aqueles sofreriam maior prejuízo, quer na sua própria imagem profissional quer na imagem do estabelecimento que representavam, do que lucro que obteriam face a tal erro de marcação de preço por si conhecido e mantido.

Contudo, face aos cargos que ocupavam e correlativas funções que desempenhavam no estabelecimento, era-lhes exigível que se tivessem apercebido do aludido erro de etiquetagem, tanto mais que na loja existe um número considerável de produtos, sendo que, conforme referido existe de tempos em tempos campanhas promocionais, e que consubstanciam uma alteração das etiquetas utilizadas e é normal existir alteração do preço dos produtos expostos para venda ao público.    

Assim, só se compreende a manutenção das etiquetas as indicar os preços dados como provados quando estes já tinham sido alterados por descuido, negligência dos arguidos em alterá-la e certificarem-se dessa alteração em conformidade com a dita alteração do preço de venda ao público - veja-se que a etiqueta do preço do Bloco Sanitário WC Pato Fresh foi emitida em 11.01.2012, correspondendo a um período promocional entre 11.01.2012 e 17.01.2012. A partir de 18.01.2012 o preço de tal produto passou a ser €2,69, tendo a acção inspectiva decorrido no dia 23 de Julho de 13, pelas 14h30.

De facto, retira-se do já exarado aliado às regras da experiência que ao actuar da forma descrita, agiram os arguidos B... e C... de forma livre, voluntária e consciente, em seu nome e em representação da sociedade arguida, e/ou por conta desta, bem sabendo que o sistema por si implementado para a actualização do preço dos produtos vendidos naquele estabelecimento era um sistema inadequado que permitia que o preço cobrado em caixa fosse superior ao exposto, porquanto a alteração se produzia de forma automática a partir do momento em que eram emitidas novas etiquetas sem exigir qualquer confirmação de que estas se encontravam afixadas. Sabiam ainda que de acordo com o sistema implementado não é sequer possível apurar quem foi o funcionário que colocou as novas etiquetas e que, além do mais, inexiste qualquer funcionário que verifique e fiscalize se os preços expostos são os cobrados.

Ao agir da forma descrita, sem cuidar de fixar um sistema que garanta de forma eficaz que os preços expostos são os cobrados, agiram os arguidos de forma desatenta e descuidada, agindo sem observar a prudência e diligência a que estavam obrigados e de que eram capazes, e omitindo a prudência que o exercício do comércio exige, com desrespeito pelas mais elementares regras comerciais, que conheciam, tinham obrigação de observar e podiam e deviam ter adoptado de modo a evitar um resultado que podiam e deviam prever, mas que não previram, e que teve por consequência que a arguida vendesse produtos por valor superior ao afixado.

Em conjugação com as declarações dos arguidos, a prova testemunhal e as regras da experiência teve-se em consideração a análise dos documentos juntos a fls,.67 a 80, 88, 137 a 141, 213 a 216.

Consideraram-se as próprias declarações dos arguidos no que respeita à sua condição sócio-económica, e ainda quanto à caracterização do arguido B... ainda do depoimento das testemunhas ouvidas, G... e H... , Comandante dos Bombeiros Voluntários de Ansião, que conhece o arguido pelas acções de humanidade e ajuda que o arguido tem levado a cabo em representação da arguida sociedade que, pela forma séria e sensata como prestaram o respectivo depoimento mereceram a convicção deste tribunal quanto à referida caracterização.

Por último, o teor dos CRC’s juntos aos autos a fls.252 a 255 quanto à ausência de e antecedentes criminais.

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                                                                        *
                                                  
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação dos recorrentes “ A... , Lda”, B... e C... as  questões a decidir são as seguintes:

- se do depoimento das testemunhas D... , E... e F... resulta que não é o sócio-gerente, B... , que anda na loja a confirmar o trabalho dos trabalhadores, por não ser essa a sua função e que é impossível ao responsável da loja, C... , verificar todos os preços, pelo que a diferença de preços afixados e que passam na caixa não é da sua responsabilidade; e

- se, consequentemente, devem os arguidos ser absolvidos ou, a entender-se que o arguido C... sempre teria alguma responsabilidade no controlo do desempenho das funções dos colegas de trabalho, nunca o mesmo deveria ter sido condenado, pois o instituto da suspensão provisória do processo  satisfaria as necessidades em apreço ou, ainda no limite, era bastante a aplicação da pena de admoestação.

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            Primeira questão

O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito ( art.428 do C.P.P.).

Porém, sem prejuízo dos vícios aludidos no art.410.º do C.P.P., o tribunal de recurso apenas pode modificar a matéria de facto quando, nos termos do art.431.º do Código de Processo Penal, se verifiquem os seguintes requisitos:
  « a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
     b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou
     c) Se tiver havido renovação de prova.”.
A situação prevista na alínea a), do art.431.º, do C.P.P. está excluída quando a decisão recorrida se fundamenta, não só em prova documental, pericial ou outra que consta do processo, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento. 
Também a possibilidade de modificação da decisão da 1.ª instância ao abrigo da al.c) do art.431.º, do C.P.P., está afastada quando não se realizou audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento dos vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P..
A situação mais comum de impugnação da matéria de facto é a que respeita à alínea b) do art.431.º do C.P.P. e foi a que os recorrentes pretenderam utilizar para impugnar a matéria de facto.
Esta alínea b) do art.431.º do C.P.P., conjugada com o art.412.º, n.º3 do mesmo Código, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar:

  « a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;

     b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
     c) As provas que devam ser renovadas

O n.º 4 deste art.412.º, acrescenta que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação

O recorrente deverá indicar a sessão de julgamento em que as declarações ou depoimentos constam e localizar a passagem em causa na gravação, entre os minutos em que produziu prova oralmente, de modo a deixar claro qual a parte da declaração ou depoimento que se quer que o Tribunal de recurso ouça ou aprecie.[4]
Nos termos do n.º 6 do art.412.º do C.P.P., o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e, ainda, de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

No presente caso, os arguidos não especificam, nas conclusões da motivação, os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, e embora indiquem as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, não indicam as concretas passagens em que fundam a impugnação, através da indicação da sessão de julgamento em que os depoimentos constam e localização da passagem na gravação.
Os recorrentes indicam, porém, na motivação do recurso, que consideram incorrectamente julgados os factos que constam dos pontos n.ºs 8, 11 e 12 da factualidade dada como provada na sentença recorrida e procedem à localização, na acta de julgamento, das passagens dos depoimentos em que fundam a impugnação, transcrevendo os respectivos segmentos, pelo que o Tribunal da Relação considera que os mesmos deram cumprimento mínimo ao estabelecido no art.412.º, n.ºs 3, al. b) e 4 do C.P.P. e, por uma questão de economia processual, mesmo sem convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, julga-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, se concluir pela existência de erro de julgamento.
Antes de passar ao conhecimento directo da questão, importa realçar que a documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse. É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal, que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

As normas da experiência, a que se deve atender na apreciação da prova, são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.»[5].

Quanto à livre convicção do juiz, nessa apreciação da prova, ela não pode esta deixar de ser “... uma convicção pessoal -  até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais  -  , mas em todo o caso , também ela ( deve ser) uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros.”[6].

Na livre apreciação da prova o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Observa, a este respeito, o Prof. Germano Marques da Silva, que « Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente ( v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza  a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem essencialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio, que há-de fundar-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.».[7]     

O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art.355.º do Código de Processo Penal. È ai, na audiência de julgamento, que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova e se assegura o princípio do contraditório, garantido constitucionalmente no art.32.º, n.º5.

Reportando-se aos princípios da oralidade e imediação diz o Prof. Figueiredo Dias, que « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos  e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) . Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.”.[8]

Na verdade, a convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.

Uma vez, porém, que o princípio da livre apreciação da prova tanto vincula o tribunal de 1.ª instância como o tribunal de recurso, e que a reforma do Código de Processo Penal de 1998 deixou inequívoco que se quis assegurar um recurso efectivo da matéria de facto, o Tribunal da Relação, na reapreciação da matéria de facto a que se procede nos termos do art.412.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.P., deve proceder a uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, avaliando se as provas indicadas por este impõem decisão diversa da recorrida.

Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova resulta o acerto dessa opção sobre a matéria de facto impugnada, nos termos do art.127.º do C.P.P., deve manter a decisão recorrida.

Os recorrentes consideram incorrectamente julgados os factos que constam dos pontos n.ºs 8, 11 e 12 da factualidade dada como provada na sentença recorrida alegando para o efeito e em síntese o seguinte:

- dos depoimentos das testemunhas D... , E... e F... , cujos segmentos transcreve na motivação, resulta que não é o sócio gerente que anda na loja a confirmar o trabalho dos trabalhadores, por não ser essa a sua função, e que é impossível ao responsável de loja, C... , verificar todos os preços. O trabalho é desenvolvido por pessoas que, porque trabalham, são susceptíveis de cometimento de erros, tendo por isso que assumir as suas responsabilidades;

- foi devidamente explicado quer pelo arguido B... , quer pelas testemunhas D... E... e E... , a forma como se processam as alterações de preços dos produtos antes e após uma campanha promocional e resulta do depoimento da testemunha F... que as referidas alterações são efectuadas pelos trabalhadores que sabem quando têm de alterar os preços dos produtos e como devem fazê-lo.   

Vejamos.

O Tribunal da Relação procedeu à audição da gravação dos depoimentos das testemunhas indicadas pelo recorrente, e mesmo das declarações do arguido B... e dela resulta que os segmentos transcritos na motivação do recurso estão longe de corresponder a uma transcrição modelar, desde logo porque frequentemente não reproduzem exactamente o que foi perguntado ou respondido e não se faz qualquer menção ao hiato que com razoável regularidade existe entre vários segmentos transcritos.

Posto isto diremos, como bem assinala o Ex.mo PGA neste Tribunal da Relação, que os recorrentes centram o recurso na questão da responsabilidade pela alteração dos preços e respectivas comunicações, que afirmam não lhes pertencer, mas sim a trabalhadores que não sabem identificar, quando os factos que lhes são imputados respeitam à violação do dever de cuidado dos arguidos/recorrentes pela não implementação de um sistema que permitisse detectar e obstaculizar a que os preços fossem diferentes no expositor e na caixa, com responsabilização por tal facto de alguém dentro da empresa.

Nem as singelas declarações transcritas das declarações do arguido B... , nem os segmentos transcritos dos depoimentos das testemunhas  D... E... , E... e F... , permitem concluir que o sistema implementado no estabelecimento de supermercado para a actualização do preço dos produtos neles vendidos era um sistema adequado que permitia que o preço cobrado em caixa não fosse superior ao exposto, e tornava possível apurar quem foi o funcionário que colocou as novas etiquetas.

Pelo contrário, porquanto a alteração dos preços se produzia de forma automática a partir do momento em que eram emitidas novas etiquetas sem exigir qualquer confirmação de que estas se encontravam afixadas, inexistindo qualquer funcionário que verifique e fiscalize se os preços expostos são os cobrados, é perfeitamente racional concluir que o sistema implantado de alteração dos preços é inadequado e ineficaz.

Só assim se percebe que em apenas 10 produtos fiscalizados pela ASAE, 2 produtos passem na caixa com um preço superior àquele que consta dos expositores de venda ao público e que um deles se encontre à venda nesta situação há vários meses.

Sendo pacífico, por não impugnado, que no período de tempo em causa o arguido B... era o único gerente da sociedade arguida A... , que explorava o estabelecimento comercial em questão, tendo sempre agido em nome e no interesse desta bem como no seu próprio interesse ( ponto n.º 9 ) e que o arguido C... era o trabalhador da sociedade arguida A... , a quem competia com a necessária autonomia, gerir e dirigir aquela unidade comercial ( ponto n.º 10), é racional e não viola as regras da experiência comum e a livre convicção do Tribunal dar-se como provado que os arguidos não observaram a prudência e diligência a que estavam obrigados e de que eram capazes, omitindo a prudência que o exercício do comércio exige de evitar um resultado, que podiam e deviam prever, mas que não previram, e que teve por consequência que a arguida “ A... , Lda”, vendesse produtos por valor superior ao afixado.

Em suma, reapreciada a prova indicada pelos recorrentes nas conclusões do recurso, conclui o Tribunal da Relação que a convicção a que o Tribunal a quo chegou mostra-se objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbra qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.

Assim, não se impondo uma decisão diversa da recorrida, designadamente no que respeita à matéria constante dos pontos n.ºs 8, 11 e 12 da factualidade dada como provada na sentença, mais não resta que confirmar a decisão recorrida relativamente à matéria de facto.

-

            Passemos agora a conhecer da segunda questão.

            Os recorrentes defendem que devem ser absolvidos da prática do crime de especulação, sob a forma negligente, pelo qual foram condenados, uma vez que não se conformam com a factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 8, 11 e 12 da sentença, pois não é ao sócio-gerente que cabe controlar o trabalho dos trabalhadores, nem confirmar se é devidamente executado, e que é impossível ao responsável de loja C... verificar todos os preços.  E, de todo o modo, a entender-se que o arguido C... sempre teria alguma responsabilidade no controlo do desempenho das funções dos colegas de trabalho, nunca o mesmo deveria ter sido condenado, pois o instituto da suspensão provisória do processo  satisfaria as necessidades em apreço ou, ainda no limite, era bastante a aplicação da pena de admoestação.

Vejamos.

O art.35.º, nº1, al. c), do DL 28/84, de 20.01 estabelece que será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa não inferior a 100 dias quem...« vender bens ou prestar serviços por preço superior ao que conste de etiquetas, rótulos, letreiros ou listas elaborados pela própria entidade vendedora ou prestadora de serviços».

O nº3, do mesmo preceito, acrescenta que « Havendo negligência, a pena será a de prisão até 1 ano e multa não inferior a 40 dias

O art.15.° do Código Penal estabelece, quanto à negligência, o seguinte:

« Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que segundo as circunstâncias , está obrigado e de que é capaz:

   a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com a sua realização; ou 

   b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.».

A negligência é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa.

O tipo objectivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a violação de um dever objectivo de cuidado; a possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo; e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado.

A violação pelo agente do cuidado objectivamente devido é concretizada com apelo às capacidades da sua observância pelo “homem médio”.

A não observância do cuidado objectivamente devido não torna perfeito, por si própria, o tipo de ilícito negligente, antes importa que ela conduza a uma representação imperfeita ou a uma não representação da realização do tipo.

Na negligência consciente o tipo subjectivo residirá na deficiente ponderação do risco de produção do facto, na inconsciente ausência de pulsão para a representação do facto.”.[9]

Para que exista culpa negligente, com preenchimento do tipo-de-culpa, necessário é ainda que  agente possa , de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado.

Enquanto na negligência consciente o agente representou como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade do preenchimento do tipo pela sua conduta.

Ao contrário do defendido pelos recorrentes o Tribunal a quo deu como provada a factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 8, 11 e 12 da sentença e dela resulta, como se assinala na douta sentença recorrida, que a arguida A... , Lda, enquanto proprietária do supermercado, o arguido B... como único gerente da sociedade arguida sempre agido em nome e no interesse desta bem como no seu próprio interesse e o arguido C... enquanto trabalhador da sociedade arguida A... , a quem competia com a necessária autonomia, gerir e dirigir aquela unidade comercial, violaram o dever de cuidado que sobre eles impendia e que conduziu a que os preços de dois produtos fossem alterados em caixa sem que sejam alterados na respectiva prateleira. Esse resultado era previsível e evitável não só para uma pessoa prudente, dotado de capacidades do “homem médio”, como podia ter sido evitado pelas capacidades pessoais dos arguidos, dada a sua formação e experiência de vida.

Consideramos, deste modo, que não merece censura a responsabilização criminal dos arguidos, a título de negligência, pelo crime de especulação, pelos quais foram condenados.

Quanto à pretendida aplicação ao arguido C... do instituto da suspensão provisória do processo, porquanto no seu entender satisfaria as necessidades em apreço, diremos apenas o seguinte:

Concluídas as diligências de investigação e recolhidas as provas sobre a notícia do crime, encerra-se a fase de inquérito.

O encerramento do inquérito ocorre mediante despacho de arquivamento ( artigos 276.º, n.º1 e 280.º do C.P.P.); dedução de acusação pelo Ministério Público (artigos 276.º, n.º1  e 283.º do C.P.P.) ou pelo assistente nos crimes particulares ( art.284.º do C.P.P.); ou através da suspensão provisória do processo ( art.281.º do C.P.P.).      

A suspensão provisória do processo é aplicável, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, sempre que o Ministério Público o determine, com a concordância do juiz de instrução e, se verifiquem os seguintes pressupostos: concordância do arguido e do assistente; ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza; ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza; não haver lugar a medida de segurança de internamento; ausência de um grau de culpa elevado e, ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.

Não sendo aplicada esta justiça de consenso, entre o Ministério Público, o Juiz de Instrução, o arguido e o assistente, no encerramento do inquérito, a suspensão provisória do processo pode ainda vir a ser proposta e decidida durante a instrução.

Tal resulta expressamente do n.º2 do art.307.º do Código de Processo Penal, ao estabelecer que « É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 281.º, obtida a concordância do Ministério Público.».

Fora destas fases processuais não pode o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento, vir a propor a suspensão provisória do processo.  

No caso em apreciação, o Ministério Público não propôs a suspensão provisória do processo ao arguido C... em qualquer daquelas fases processuais. A pretensão do seu uso por parte do mesmo arguido na fase de recurso da sentença condenatória é, assim, extemporânea, para além de não reunir todos os pressupostos exigidos para aplicação daquele instituto que visa evitar a realização do julgamento.

Por fim, e quanto à pretendida aplicação da pena de admoestação, resulta do art.60.º do Código Penal que ela é proferida se dever ser aplicada uma pena de multa em medida não superior a 240 ( n.º1), mas « …só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.». 

Analisando a factualidade dada como provada não resulta da mesma que o arguido C... , trabalhador da sociedade arguida A... , Lda, a quem competia com a necessária autonomia, gerir e dirigir aquela unidade comercial, haja reparado o dano causado com a prática do crime de especulação.

Por outro lado, pese embora seja diminuto o acréscimo de preço existente entre o efectivamente cobrado e o preço que constava da respectiva etiqueta, cremos, tal como o Tribunal a quo, que são elevadas as exigências de prevenção geral neste tipo de crimes, em que os consumidores surgem frequentemente impotentes para fazer face a determinados abusos praticados por comerciantes e seus agentes, traduzidos designadamente no pagamento pelos consumidores de valores superiores aos que constam expostos nos expositores das mercadorias.

Também as exigências de prevenção especial não são despiciendas uma vez que não resulta dos factos provados que o arguido C... haja interiorizado o desvalor da sua conduta.

Assim, não se verificando todos os pressupostos para a aplicação ao arguido C... da pena de admoestação, não merece censura a douta decisão recorrida por não haver ao ora recorrente a pena de admoestação.

Improcede, assim, também esta questão e, consequentemente, o recurso interposto pelos arguidos.

            Decisão

       

             Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos “ A... , Lda”, B... e C... e manter a douta sentença recorrida.

             Custas pelos recorrentes, fixando em 4 Ucs a taxa de justiça, a cargo de cada um deles.

                                                                            *

Coimbra, 17 de Setembro de 2014-09-19

(Orlando Gonçalves - relator)

(Alice Santos - adjunta)


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.

[4] O STJ, pelo acórdão de fixação de jurisprudência n.º 3/2012, decidiu, sobre esta matéria, que « Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/enxertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações.».

[5]   cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300. 
[6]  cfr. Prof. Figueiredo Dias , “Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.
[7] Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 5.ª edição, pág.186
[8] Obra citada, páginas 233 a 234

[9]  Cfr. Prof. Figueiredo Dias , in “Direito Penal”, Tomo I, pág.656.