Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
141/11.9TBAMM.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO CONFINANTE
REGIME
EMPARCELAMENTO
PRÉDIO RÚSTICO
Data do Acordão: 05/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
COMARCA DE VISEU - LAMEGO - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1376º E 1380º C.CIVIL; 27º DL 73/2009, DE 31/03; PORTARIA 202/70, DE 21/04.
Sumário: I – Para efeitos de fraccionamento, as dimensões da unidade de cultura mínima para cada região do País, fixadas pela Portaria nº 202/70, de 21/4, passaram para o triplo nas zonas da RAN, nos termos do art. 27º do DL 73/2009, de 31/3.

II - Os artigos 1376º e 1380º do CC concretizam «a mesma intenção legislativa de evitar e combater, por razões de ordem económica, a pulverização da propriedade rústica, no propósito de garantir a sua melhor rentabilidade», objectivo também salientado pelo preâmbulo do regime de emparcelamento e fraccionamento de prédios rústicos (DL 384/88 de 25/10).

III - Atendendo à unidade do sistema jurídico, impõe-se que as questões suscitadas pelo exercício do direito de preferência consagrado no art. 1380º do CC sejam analisadas à luz do conjunto das normas relativas ao regime de emparcelamento e fraccionamento de prédios rústicos e de explorações agrícolas, em que aquele artigo se integra.

IV - Nesse exercício, mais do que a satisfação do interesse privado do proprietário confinante em aumentar o seu domínio fundiário, estão em causa, sobretudo, relevantes interesses de ordem pública, de natureza económica e social.

V - Sendo a unidade económica e produtiva que os terrenos representem o que realmente se procura, é irrelevante a sua identificação matricial ou que a sua extensão, desde que contínua, seja fiscalmente identificada por mais do que um artigo matricial.

VI - Não pode deixar de ser tido como inconciliável com o objectivo prosseguido pela lei o exercício da preferência sobre uma só parcela da alienada unidade predial, já constituída como base viável para uma exploração agrícola, ainda que identificada por mais do que um artigo matricial.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

M... e mulher, P... intentaram a presente acção contra (1ª) Banco I..., SA e (2ºs) F... e mulher, N..., pedindo que estes sejam condenados a reconhecer que lhes assiste, enquanto proprietários do prédio que identificam, o direito de preferirem e de se substituírem aos 2ºs RR na compra do prédio, que também identificam, com aquele confinante, e de o haverem para si pelo preço de € 2.217,97, livre de pessoas e bens, ordenando-se o cancelamento da sua inscrição no registo a favor dos 2ºs RR. Para tanto, alegaram, em síntese: ambos os prédios são aptos ao mesmo tipo de cultura e têm áreas inferiores à unidade de cultura da região; o 1º R não os informou do projecto de venda, designadamente, do nome dos compradores, data da escritura, preço, condições e prazos do seu pagamento.

Os RR contestaram, alegando, em síntese: a compra e venda abrangeu um conjunto de artigos da matriz predial (seis rústicos e um urbano), neles incluído aquele em cuja aquisição os AA pretendem preferir, que formam um único prédio rústico, uma quinta ou uma exploração agrícola de tipo familiar; o preço global da venda foi de € 350.000, sendo que, na escritura, foram individualizados os preços por uma mera formalidade notarial, mas sem correspondência efectiva com o preço venal de cada um deles, que não foi apurado individualmente; a R nunca teve o objectivo de os vender individualmente e os mesmos estavam à venda no seu conjunto, do que os AA tiveram conhecimento, assim como do preço, mais de um ano antes, mas nunca quiseram comprar.

Os 2ºs RR alegaram, ainda: a 1ª R só aceitava (e só aceitou) propostas com um preço pela totalidade dos prédios; o preço que na escritura se fez constar para cada prédio não é proporcional ao valor real de cada um nem corresponde à vontade das partes e o prédio sobre o qual os AA pretendem preferir vale mais de € 50.000; os AA tiveram conhecimento de que os prédios estavam à venda e pretendem agora aproveitar-se de um preço que não corresponde à verdade.

Na sentença, a Sra. Juíza, julgando a acção procedente, condenou os RR a reconhecer aos AA o direito de preferência na compra do dito prédio rústico, substituindo-se os 2ºs RR pelos AA no contrato de compra e venda, mediante o pagamento do preço de € 2.217,97, e a abrir mão do mesmo prédio, entregando-o aos AA livre de pessoas e bens.

Inconformados, os 2ºs RR apelaram, delimitando o seu recurso com conclusões algo emaranhadas em que se destrinçam as seguintes questões (por ordem lógica):

...

Importa apreciar as questões enunciadas e decidir.

1. A matéria de facto.

...

2. O direito exercido pelos AA.

 Cumpre começar por verificar se os AA demonstraram os pressupostos do direito de preferência, que exerceram ao abrigo do art. 1380º do CC ([1]), na alienação que motiva os presentes autos.

Na sentença, a Sra. Juíza considerou que sim, mas os apelantes objectaram que a compra e venda teve por objecto um conjunto de terrenos contíguos, que, por um lado, formam uma única unidade predial – porque, apesar de o terreno ser composto por prédios distintos, deve considerar-se como um só prédio, nos termos do art. 1376º nº 3 – e que, por outro, têm sido objecto de uma exploração do tipo familiar, sendo que os AA não exerceram o invocado direito sobre esse conjunto, tal como impõe o art. 417º do CC.

Vejamos, num breve percurso, o enquadramento jurídico da questão.

Aquele art.1380º prescreve:

«Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente de direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante». Entretanto, o DL nº 384/88 de 25/10, que veio estabelecer o novo regime de emparcelamento e fraccionamento de prédios rústicos e de explorações agrícolas ([2]), passou a dispor no seu art. 18º nº 1 que os proprietários de terrenos confinantes gozam de tal direito «ainda que a área daqueles seja superior à unidade de cultura».

Por seu tuno, a Portaria nº 202/70 de 21/4, mantida em vigor pelo art. 53° do DL 103/90 de 22/3 (que regulamentou o citado DL 384/88), estabelecera que a área da unidade de cultura para a região de Viseu (a que pertence o concelho de Armamar, onde se situam os prédios desta acção) é de 2 hectares para os terrenos de sequeiro e, para os terrenos de regadio, é de 2 hectares ou 0,5 hectare, consoante as respectivas culturas sejam arvenses ou hortícolas, respectivamente. Para efeitos de fraccionamento, as dimensões da unidade de cultura mínima para cada região do País, nas Zonas da RAN (Reserva Agrícola Nacional), passaram para o triplo, nos termos do art. 27º do DL 73/2009 de 31/3, mas não se sabe se é essa a situação dos prédios da causa porque também esta questão passou à margem dos temas abordados na acção ([3]), por falta de percepção dos interesses e valores que subjazem ao direito nela exercido, a que passamos a aludir.

Este novo regime de emparcelamento e fraccionamento veio impor que ao fraccionamento e à troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal se aplicam, além das regras dos artigos 1376° e 1379° do CC, as suas próprias disposições, entre as quais o art. 20°, que, sob a epígrafe «Fraccionamento de exploração agrícola», preceitua:

«1 - A divisão em substância de prédio rústico ou conjunto de prédios rústicos que formem uma exploração agrícola economicamente viável só poderá realizar-se:

a) Para efeitos de redimensionamento de outras explorações, operada nos termos da presente lei;

b) Para reconversão da própria exploração ou se a sua viabilidade técnico-económica não for gravemente afectada;

c) Se da divisão resultarem explorações com viabilidade técnico-económica;

d) Se do fraccionamento não resultar grave prejuízo para a estabilidade ecológica.».

O art. 44º nº 1 do DL 103/90 de 22/3, que procedeu à regulamentação daquele DL 384/88, veio explicitar que, para os efeitos do disposto no citado artigo 20º do mesmo DL, «considera-se exploração agrícola o prédio rústico ou o conjunto de prédios rústicos contíguos explorados em comum por uma pessoa singular ou colectiva».

O objectivo prosseguido com o art. 1380º é o de evitar fragmentação excessiva da propriedade rústica ([4]), fomentando «o emparcelamento de terrenos minifundiários, criando objectivamente as condições que, sob o ponto de vista económico, se consideram imprescindíveis à constituição de explorações rendíveis» ou de facilitar a extinção de situações que não são as mais consentâneas com a boa exploração económica dos bens, podendo o proprietário do conjunto após o exercício do direito proceder a uma reconversão cultural que de outra forma não teria viabilidade ([5]).

E para que não se omita a outra face do direito inscrito no citado art. 1380º, lembra-se que, nos termos dos arts. 1376° nºs 1 e 3 e 1379º, os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior à unidade de cultura fixada para cada zona do País, proibição que abrange todo o terreno contíguo pertencente ao mesmo proprietário, embora seja composto por prédios distintos.

Com efeito, os artigos 1376º e 1380º concretizam «a mesma intenção legislativa de evitar e combater, por razões de ordem económica, a pulverização da propriedade rústica, no propósito de garantir a sua melhor rentabilidade» ([6]).

O próprio preâmbulo do novo regime de emparcelamento e fraccionamento de prédios rústicos (DL 384/88) salienta que se pretende orientar, por um lado, «o progresso da agricultura portuguesa» «no sentido aumentar a produção» «em ordem a satisfazer as necessidades do País e a reduzir o volume dos bens importados e, por outro lado, de modo a rendibilizar os meios de produção para que a actividade agrícola aumente a sua competitividade e proporcione à população rural um nível de vida mais aproximado dos padrões verificados noutros sectores de actividade».

Portanto, no direito exercido nestes autos, mais do que a satisfação do mero interesse privado do proprietário confinante em aumentar o seu domínio fundiário, estão em causa, sobretudo, relevantes interesses de ordem pública, de natureza económica e social. No actual estádio da nossa cultura jurídica sobre o domínio dos bens, cada vez mais se acentua a função social do direito de propriedade.

O que implica que é à luz dos interesses prosseguidos pelo regime jurídico do emparcelamento e (da proibição) do fraccionamento de prédios rústicos, subjacente ao instituto da preferência invocado, que o conteúdo e limites deste terão de ser encontrados, ainda que em articulação com o regime de direito privado, referente aos direitos reais sobre imóveis. Mas sempre sem olvidar que nos movemos no campo mais vasto do ordenamento da propriedade rústica, pelo que as disposições legais ao mesmo atinentes revestem carácter imperativo, vinculando o Estado e demais entidades públicas, bem como os particulares, uma vez que subjaz às mesmas a protecção de interesses de ordem pública consagrados constitucionalmente [cf. arts. 9º al. e) e 66º nº 2, als. b) e d) da CRP], não podendo, pois, ser ignoradas pelos tribunais.

Considerando que o intérprete deve atender à unidade do sistema jurídico (cf. art. 9º), esta primeira aproximação ao regime de emparcelamento e fraccionamento de prédios rústicos e de explorações agrícolas serve apenas para registar que essa unidade impõe que as questões suscitadas no recurso sejam analisadas à luz do conjunto das normas relativas àquele regime – em que, obviamente, se integram os artigos correspondentes ao direito de preferência aqui exercido (1380º e 1381º) –, nomeadamente quanto à classificação predial nele contida, afinal o elementar ponto de partida para tal análise.

Ora, se o que se pretende é conseguir que o todo seja mais que a soma das partes, pondo termo à fragmentação e dispersão dos prédios rústicos com o fim de melhorar as condições técnicas e económicas da exploração agrícola ([7]), não pode deixar de ser tido como inconciliável com o objectivo prosseguido um fraccionamento ou parcelamento de uma determinada unidade predial, já constituída como base viável  para uma exploração agrícola, ou seja, de um terreno apto para cultura ([8]) e que se mantenha para esse fim, independentemente da sua diversidade, dentro de certos limites.

Realmente, o que se procura é a unidade económica e produtiva que os terrenos representem ([9]), sendo completamente irrelevante a sua identificação matricial e/ou registral. Daí que o legislador não se tenha preocupado em distinguir se qualquer dos terrenos confinantes abrange mais que um artigo matricial, porquanto, uma vez que exista um terreno nas e para as condições indicadas, não interessa que a sua extensão, desde que contínua, seja fiscalmente identificada por mais do que um artigo matricial ([10]).

É certo que a legislação tributária, numa das peculiaridades do nosso sistema, estabelece conceitos especiais neste âmbito: “Dando sequência à anterior legislação de tributação imobiliária, o actual C. do IMI, além de manter em vigor o conceito de «prédio misto» (que carece de fundamento nos termos da lei geral, definida pelos C. Civil) estabelece novos conceitos do que são os prédios rústicos e os prédios urbanos, embora apenas aplicáveis para efeitos fiscais, divergindo dos conceitos anterior e basilarmente instituídos pelo C. Civil, que o antecede em termos temporais, mas, essencialmente, em termos jurídicos” ([11]).

No entanto, se a identidade matricial (de imóveis) tem de ser apurada com base nos documentos dos serviços de finanças, a identidade física do prédio há-de apurar-se pela restante prova produzida, desde logo pela averiguação da existência de um qualquer outro prédio que com aquele possa ser correlacionado. «A inscrição matricial é apenas um elemento de identificação para o recenseamento fiscal dos imóveis, o qual pode até nem existir e nem por isso o prédio deixa de ter existência real» ([12]). Como esclarece o próprio do C. do IMI (art. 12º), «as inscrições matriciais só para efeitos tributários constituem presunção de propriedade», mesmo que estas sejam a forma usual de identificação das propriedades e a base adoptada para qualquer negócio. Aliás, é por esta última razão que alguns proprietários de prédios rústicos constituídos por uma realidade substancial unitária mas fiscalmente identificados por mais do que um artigo matricial mantêm artificialmente esta situação para poderem, se lhes convier, contornar os imperativos decorrentes da proibição do fraccionamento, contando com o eventual laxismo da intervenção dos poderes-deveres impostos pelo art. 1379º ([13]).

De todo o modo, o conceito de prédio para estes casos tem de ser buscado no C. Civil ([14]), a base do direito civil, cujo art. 204º nº 2 determina: «Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica». Sendo indiferente, para efeitos de qualificação civil, a inscrição matricial, tem sido defendido, neste âmbito, o critério da afectação económica, que pondera o fim do aproveitamento do prédio ou a utilização do terreno.

Por fim, deve considerar-se que a atribuição do mencionado direito de preferência constitui, tal como nos demais casos de preferência legalmente previstos, uma limitação ao carácter tendencialmente pleno do direito de propriedade, no qual se inclui a livre disposição dos bens sobre que o direito incide (art. 1305º) ([15]), bem como uma excepção ao princípio da liberdade negocial, decorrente do da autonomia privada, consagrado no art. 405º. Assim, dada essa sua natureza excepcional ou restritiva, tal direito só pode ser reconhecido quando se concluir, seguramente, que seu exercício satisfaz o escopo que lhe é assinalado pelo regime do emparcelamento e fraccionamento de prédios rústicos e de explorações agrícolas, ou seja, nos termos e dentro dos limites em que se encontra legalmente previsto.

Não é o que sucede neste caso.

Na verdade, os terrenos que os 2ºs RR adquiriram em conjunto à 1ª R ([16]), embora com artigos matriciais diferentes, são todos contíguos, sendo apenas (parte deles) separados ou atravessados por caminhos de acesso quer aos mesmos quer a outros e interpondo-se entre dois deles, desde 1/7/2010, uma estrada que liga a vila à respectiva zona industrial, mas sem hiatos constituídos por prédios alheios.

Por outro lado, esse conjunto fora já assim adquirido, pelo menos, pelo anterior proprietário que o transmitiu à 1ª R e foi explorado, como uma quinta ou casal, com o trabalho dos seus proprietários ou locatários e trabalhadores eventuais, desde, pelo menos, o proprietário que antecedeu o que os vendeu à mesma R.

Parece-nos evidente que não obsta àquela contiguidade e a que esse conjunto seja encarado como uma realidade substancial unitária a existência de caminhos de acesso ou a (actual) interposição de uma estrada entre dois desses terrenos. Realmente, qualquer uma dessas vias de acesso não só não suprime como algumas delas até serão imprescindíveis ao bom aproveitamento da unidade económica e produtiva que os terrenos representam.

Assim sendo, da substituição dos 2ºs RR (adquirentes) pelos AA resultaria a ablação, tão-só, de uma parcela de uma unidade predial já constituída como base viável para uma exploração agrícola, com potencial eficácia para a obtenção da rentabilidade visada pelo regime do emparcelamento. E como contrapartida desse fraccionamento, patentemente indesejado pelo legislador, adviria um prédio com a área de, apenas, cerca de 1 hectare, em qualquer caso, muito distante da unidade de cultura fixada e sem que algo indicie que os AA, até agora proprietários absentistas, nele pudessem radicar uma qualquer exploração economicamente rentável para, assim, ser alcançado o objectivo perseguido pela lei.

Por conseguinte, visando o emparcelamento, em geral, estimular os proprietários a promover a fusão dos seus prédios em prédios de áreas maiores, tendencialmente mais rendíveis, no caso, o muito duvidoso êxito da união alegadamente pretendida impor-se-ia à custa dum resultado proibido. Com efeito, a desafectação de uma parcela da unidade predial dos RR, já constituída e com condições para uma exploração agrícola viável, frustraria, em concreto, o relevante instrumento de utilidade pública criado pelo falado regime do emparcelamento e do fraccionamento.

Neste contexto, perante os valores e interesses em presença, não faz qualquer sentido trocar o certo pelo incerto: não deve admitir-se a intervenção de um mecanismo de natureza excepcional que não só não alcançaria o seu próprio escopo, com suficiente margem de segurança, como o seu resultado, qualquer que ele viesse a ser, seria, garantidamente, atingido em detrimento da exploração agrícola dos RR, potencialmente rentável.

Nesses termos, não deve ser reconhecido o direito exercido pelos AA.

Não se verificando os pressupostos para o exercício do direito de preferência, fica prejudicada a apreciação da matéria da excepção invocada ao abrigo do art. 1381º b) e das questões do abuso de direito e da ampliação da matéria de facto, também suscitadas pelos RR nas suas conclusões do recurso.

Síntese conclusiva:

1ª - Para efeitos de fraccionamento, as dimensões da unidade de cultura mínima para cada região do País, fixadas pela Portaria nº 202/70, de 21/4, passaram para o triplo nas zonas da RAN, nos termos do art. 27º do DL 73/2009, de 31/3.

2ª - Os artigos 1376º e 1380º do CC concretizam «a mesma intenção legislativa de evitar e combater, por razões de ordem económica, a pulverização da propriedade rústica, no propósito de garantir a sua melhor rentabilidade», objectivo também salientado pelo preâmbulo do regime de emparcelamento e fraccionamento de prédios rústicos (DL 384/88, de 25/10).

3ª - Atendendo à unidade do sistema jurídico, impõe-se que as questões suscitadas pelo exercício do direito de preferência consagrado no art. 1380º do CC sejam analisadas à luz do conjunto das normas relativas ao regime de emparcelamento e fraccionamento de prédios rústicos e de explorações agrícolas, em que aquele artigo se integra.

 4ª - Nesse exercício, mais do que a satisfação do interesse privado do proprietário confinante em aumentar o seu domínio fundiário, estão em causa, sobretudo, relevantes interesses de ordem pública, de natureza económica e social.

5ª - Sendo a unidade económica e produtiva que os terrenos representem o que realmente se procura, é irrelevante a sua identificação matricial ou que a sua extensão, desde que contínua, seja fiscalmente identificada por mais do que um artigo matricial.

6ª - Não pode deixar de ser tido como inconciliável com o objectivo prosseguido pela lei o exercício da preferência sobre uma só parcela da alienada unidade predial, já constituída como base viável para uma exploração agrícola, ainda que identificada por mais do que um artigo matricial.

Decisão.

Nos termos expostos, julgando procedente o recurso, decide-se revogar a sentença recorrida e, por consequência, absolver os RR dos pedidos formulados pelos AA.

         Custas pelos apelados em ambas as instâncias.

       Coimbra, 27/05/2015 

Alexandre Reis (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo

[1] Diploma a que pertencerão as normas que posteriormente forem citadas, sem indicação de proveniência.

[2] Derrogando a Lei 2116 de 14/8/1962, que consagrara no nosso ordenamento o aqui discutido direito de preferência do proprietário confinante.

[3] E assim terá de permanecer porque as regras que disciplinam o conhecimento dos recursos o impõem.

[4] Como, persistentemente, anota o STJ (p. ex., Acs de 11/7/1991, BMJ, 409º-803, e de 3/7/1986, BMJ 359º-706.

[5] Como melhor explanam P. Lima e A.Varela in CCivil Anot., III, p. 271 e I, p 389.

[6] Ac. do STJ de 15/12/1998 (98A971-Ferreira Ramos, também in BMJ 482º/235): «Assim, enquanto o direito de preferência consignado naquele artigo 1380º arranca da constatação de que a exploração agrícola encontra o seu nível satisfatório de rentabilidade a partir de uma determinada área mínima, variável em função das características dos solos e do tipo de culturas que se praticam, o artigo 1376º, ao proibir a divisão dos terrenos em parcelas de área inferior a essa área mínima, traduz essa mesma preocupação - ambas as normas têm, pois, a finalidade de garantir a melhor rentabilidade da propriedade rústica (cfr. acórdão do Supremo de 26.11.96, Proc. nº 293/96, 1ª Secção, e Henriques Mesquita, parecer de Janeiro de 1990, in CJ, ano XVI, tomo II, 1991, pp. 36-39).». Também segundo o Ac. da RP de 9/3/1973, BMJ 226º-276, o preceito do art. 1380º, que consagra o direito de preferência aos proprietários de terrenos confinantes, «deve ser interpretado com a achega do art. 1376º que proíbe o fraccionamento».

[7] Objectivo já perseguido com a citada Lei 2116 de 14/8/1962, como anotaram P. Lima e A. Varela in CCAnot. III, p. 278.

[8] Não, necessariamente, única, pois o «normal até é que numa exploração bem dimensionada, se pratiquem culturas diversificadas e escalonadas, que propiciem a ocupação do proprietário ao longo de todo o ano» (P. Lima e A. Varela in CCAnot. III, p. 271). Aliás, também ao direito de preferência conferido aos proprietários de terrenos confinantes não é obstáculo a existência de uma eventual diversidade de culturas, conforme o Assento de 18/3/1986 (agora com o valor de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência), pois a lei não exige essa identidade, nem tão pouco que os terrenos estejam afectos a culturas agrícolas, podendo envolver mesmo culturas florestais ou, por ex., mato para ser utilizado noutros terrenos.

[9] Cf. Ac. do STJ de 16/4/1996 (088325-Lopes Pinto).

[10] Neste sentido, Acs. do STJ de 3/10/2013 (217/1997.E1.S1-Tavares de Paiva) e da RP de 31/10/1985, CJ 4º/253.

[11] Rodrigo Sarmento de Beires, in “O Cadastro e a Propriedade Rústica em Portugal”, p. 28.

[12] Ac. da RC de 14/7/201 (800/03.0TBSRT.C1-Cecília Agante).

[13] E assim sucede não obstante recair sobre os proprietários a obrigação de proceder à inscrição dos prédios na matriz, bem como à actualização desta, no prazo de 60 dias, pois «a inscrição de prédios na matriz e a actualização desta são efectuadas com base em declaração apresentada pelo sujeito passivo, no prazo de 60 dias contados a partir da ocorrência de qualquer» facto relevante para o efeito, conforme art. 13º do CIMI. Nos termos desse preceito, para a inscrição ou actualização da matriz, são factos relevantes: “«uma dada realidade física passar a ser considerada como prédio», isto é, que «um terreno ou parcela passe a constituir um prédio autónomo; (…) que sejam alterados os seus limites; que se concluam obras de edificação, de melhoramento ou outras alterações que possam determinar variação do valor patrimonial tributário do prédio; que sejam alteradas as culturas praticadas num prédio rústico (…)».

[14] «As noções civilísticas de prédios urbanos ou rústicos não dependem de critérios fiscais e estão ligadas às finalidade e essencialidade dos bens (artigo 204 n. 2 do Código Civil)» Ac. do STJ de 5/5/1994 (085154-Cardona Ferreira).

[15] Neste sentido, o Ac. da RC de 6/10/2009 (94/05.2TBOFR.C1-Arlindo Oliveira).

[16] Que, a crer nas áreas indicadas no documento de fls. 59, abrangerá uma área total de cerca de 4 hectares, a qual, ainda assim, na eventualidade de os terrenos estarem abrangidos pela RAN, poderá ser inferior à unidade de cultura, para o efeito do seu fraccionamento.