Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
894/11.4TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: ACÇÕES NOMINATIVAS
TRANSMISSÃO DE TÍTULO
DIREITO À INFORMAÇÃO
SÓCIOS
Data do Acordão: 02/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE ANULADA
Legislação Nacional: ARTºS 21º, Nº 1 C), 290º E 328º, Nº 1 DO C.S.COMERCIAIS; 102º, NºS 1 E 2 DO CVM.
Sumário: I) As acções tituladas nominativas, fora de sistema centralizado, transmitem-se por endosso nominal e registo no emitente.

II) Para a transmissão de acções tituladas nominativas não integradas em sistema centralizado não basta, para a sua transmissão, a entrega material ou o seu endosso, respectivamente, e o registo: exige-se, em qualquer dos casos, sempre, a existência, a validade e a procedência de uma justa causa de atribuição.

III) A transmissão mortis causa das acções rege-se pelo direito comum das sucessões.

IV) A invalidade dos negócios transmissivos subjacentes repercute-se no registo.

V) O registo da transmissão junto do emitente tem uma função de legitimação activa e passiva: os direitos inerentes às acções – entre os quais se conta o direito de voto - serão exercidos de acordo com o que constar no registo do emitente e a sociedade pode realizar as prestações a que está vinculada e permitir o exercício de outros direitos a quem estiver legitimado pelo registo.

VI) A legitimação passiva decorrente do registo não é irrestrita ou ilimitada, dado que o emitente só fica liberado de qualquer prestação que realize ao titular legitimado pelo registo ou isento de responsabilidade no reconhecimento que lhe faça de qualquer direito se estiver de boa fé.

VII) A boa fé do emitente, cuja prova lhe cabe, consiste no simples desconhecimento da falta de legitimidade substancial do titular do registo.

VIII) Os sócios mantêm o seu direito potestativo à informação, não obstante serem gerentes ou administradores, ao menos nos casos, em que apesar dessa qualidade, não exercem efectivamente a gerência ou a administração da sociedade.

IX) Fora da assembleia de sócios, o vinculado à prestação da informação é sempre e só o órgão da administração.

X) Sempre que, por erro sobre o objecto da prova, o julgamento da questão de facto seja deficiente, por não cobrir toda a matéria de facto alegada relevante, a Relação deve cassar esse julgamento e reenviar o processo para a 1ª instância para que proceda ao julgamento dos pontos de facto omissos na base da prova.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

J… propôs, no 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, contra A…, SA, acção declarativa, com processo comum, ordinário pelo valor, pedindo:

a) a nulidade das deliberações aprovadas na Assembleia Geral de 19 de Março de 2011, porquanto tomadas em Assembleia Geral não convocada, de acordo com o artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais. Sem conceder e a título subsidiário,

b) caso se entenda que se está apenas perante uma irregularidade na convocação da Assembleia Geral e não em face de uma não convocação da mesma, a anulabilidade das deliberações ao abrigo do preceituado no artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais. Sem conceder e a título subsidiário

c) a inexistência das deliberações aprovadas na reunião da Assembleia Geral de 19 de Março de 2011, uma vez que a Assembleia Geral da Ré deliberou sem que estivesse reunido o quórum necessário para que a mencionada assembleia se reunisse e pudesse validamente apreciar e aprovar as propostas de deliberação. Se assim não se entender e a título subsidiário,

d) a anulabilidade das mesmas deliberações, conforme dispõe o artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais. Sem conceder e a título subsidiário,

e) a ineficácia da proclamação do resultado das deliberações em crise nestes autos pelo Presidente da mesa da Assembleia Geral; Sem conceder e a título subsidiário,

f) caso se entenda que a proclamação é a última fase do processo deliberativo e que, em consequência, tem valor constitutivo da deliberação, a anulabilidade das mesmas deliberações por violarem o disposto no artigo 386.º do Código das Sociedades Comerciais e o artigo 11.º dos estatutos da Ré, conforme dispõe o artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código. Sem conceder e a título subsidiário,

g) por não terem sido facultados ao Autor os elementos descritos nas alíneas a), b) e d) do artigo 289.º do CSC, durante os quinze dias anteriores à reunião da Assembleia Geral da Ré, a anulabilidade das mesmas deliberações, conforme dispõe o artigo 58.º, n.º 1, alínea c), e n.º 4, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais. Sem conceder e a título subsidiário,

h) a nulidade das deliberações que aprovaram a alteração dos estatutos relativamente à aprovação do artigo 5.º, n.º 2 e n.º 3, do artigo 9.º, n.º 1, do artigo 10.º, n.º 2, e do artigo 12.º, n.º 5, dado que o seu conteúdo é ofensivo de preceitos legais que não podem ser derrogados, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, al. d), do Código das Sociedades Comerciais, bem como o aditamento ao artigo 18.º, n.º 6, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, als. a) e d) do referido Código.

Fundamentou estas pretensões, designadamente no facto de ser titular de 77.000 acções representativas do capital social da ré, cada um com o valor nominal de € 5,00, sendo titular de 3,08% daquele capital social, de a ré, no momento da sua transformação de sociedade por quotas em sociedade anónima ter por sócios, A…, titular de 1.134.500 acções, o cônjuge deste, M…, titular de 1.134.500, casados sob o regime de comunhão geral de bens, e os três filhos de ambos – C…, M… e J… – titulares, cada um deles, de 77.000 acções, de M… ter falecido no dia 16 de Fevereiro de 2007, não se tendo efectuado a partilha do património conjugal nem da sua herança, de que é cabeça-de-casal A…, não tendo as 2.269.000 acções sido transmitidas para C…, de, por isso, na assembleia geral de 19 de Março de 2011 apenas terem estado presentes ou representados os accionistas C… e o autor, que detêm apenas 6,16% do capital social, pelo que aquela deliberou sem o necessário quórum, de a convocatória daquela assembleia ter sido publicada no dia 17 de Fevereiro de 2011, da qual não constava o projecto de alteração dos estatutos, que só no dia 7 de Março de 2011, estava disponível para consulta na sede da ré, e de durante os quinze dias anteriores à reunião não lhe terem sido facultados os nomes completos dos membros dos órgãos de administração e de fiscalização, e da mesa da assembleia, das sociedades em que os membros dos órgãos sociais exerçam cargos sociais nem os nomes das pessoas a propor para os órgãos sociais, as suas qualificações, as actividades profissionais exercidas nos últimos cinco anos e o número das acções da sociedade de que são titulares.

A ré defendeu-se alegando, nomeadamente, que C… é titular de 1.778.000 acções, por efeito de transmissão das mesmas, pelo que, de acordo com o livro de registo das acções, são actualmente seus accionistas, o autor, C… e A…, com 71,12%, 14,44% e 14,44%, respectivamente, do capital social, não tendo que conhecer as relações de transmissão que ocorrem e que não sejam devidamente registadas, que as votações foram realizadas de acordo com a titularidade de capital registada naquele livro, tendo as deliberações sido aprovadas com 95,8% de votos a favor, do accionista C…, com o voto contra do autor, correspondente a 4,2%, e que o autor é seu administrador, tendo acesso a toda a informação respeitante à ré, apenas tendo solicitado ao director financeiro as informações preparatórias da assembleia, sabendo que este não dispunha delas, nunca as tendo solicitado a A…, L.dª ou o C...

Oferecida a réplica e dispensada a realização da audiência preliminar, procedeu-se à selecção da matéria de facto.

O autor reclamou contra aquela selecção, pedindo a inclusão, na base instrutória, designadamente, dos factos relativos à não realização da partilha do património conjugal e da herança de M…, à não transmissão para C… de 2.269.00 acções e à titularidade por este de apenas 77.000 dessas acções, alegados nos artigos 63 a 66 da petição inicial, mas a reclamação foi desatendida, com fundamento em que – parece - aqueles artigos contêm matéria sem relevo para a decisão da causa ou alegações conclusivas que não podem ser quesitadas.

 Realizada a audiência de discussão e julgamento – com registo sonoro dos actos de prova levados a cabo oralmente – foi proferida sentença, a que, na parte dispositiva, foi impresso este exacto conteúdo:

1. Na parcial procedência da acção nesta parte, de acordo com o disposto no artigo 56.º, n.º 1, al. d), do Código das Sociedades Comerciais, declarar nula a deliberação da assembleia geral da Ré, A…, S.A., de 19 de Março de 2011, no que se refere à aprovação do n.º 2 do artigo 10.º e do n.º 5 do artigo 12.º dos estatutos, cujo conteúdo consta, respectivamente, dos pontos “49” e “50” da factualidade provada;

2. Declarar improcedente, quanto às deliberações incluídas em “1”, a pretensão da Ré no sentido da sua condenação na renovação dessas deliberações, nos termos do artigo 62.º do CSC;

3. Declarar, quanto ao mais não incluído em “1” improcedentes os demais pedidos, principais e subsidiários, formulados pelo Autor, J...

É esta decisão que o autor impugna no recurso de apelação, no qual pede a sua revogação e a condenação da recorrida nos termos peticionados.

O recorrente extraiu da sua alegação estas conclusões:

...

2. Factos provados.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

O recorrente reitera, no recurso, o seu pedido de declaração da inexistência, ao menos, da invalidade, das deliberações tomadas na assembleia geral de accionistas, realizada no dia 19 de Março de 2011, e repete, para a essa pretensão, como causas petendi:

a) O facto de não se ter procedido à partilha da herança da accionista M…, falecida no dia 16 de Fevereiro de 2007, no estado de casada, sob o regime de comunhão geral de bens com A…, titulares, cada um deles, de 1.134.500 acções do capital social da apelada, acções que não foram objecto de transmissão para o accionista C…, pelo que este não era titular do direito do direito de convocar aquela assembleia, na qual não estiveram presentes accionistas detentores de acções correspondentes a um 1/3 do capital social, faltando, por isso, o respectivo quórum constitutivo;

b) O facto de não lhe terem sido facultadas as informações preparatórias daquela assembleia geral de accionistas.

A recorrida observa, na resposta ao recurso, que a temática da sua composição accionista não foi objecto de qualquer dos diversos pedidos formulados pelo recorrente na instância recorrida, constatação de que extrai esta conclusão: a inadmissibilidade da pronúncia, pelo tribunal a quo, sobre a matéria da transmissão das acções, e da consequente inadmissibilidade da impugnação, com base em tal temática, da sentença objecto do recurso.

Realmente, dos oitos pedidos formulados pelo recorrente – a que imprimiu, no tocante aos sete últimos, de forma sucessiva, feição subsidiária – nenhum deles tem por objecto a declaração da falta ou da invalidade da transmissão, para o accionista C…, de quaisquer acções, tendo tais factos sido alegados simplesmente como causa petendi do pedido de declaração da invalidade – e mesmo da inexistência - das deliberações adoptadas na assembleia geral de accionistas, i.e., como fundamento da individualização do direito invocado pelo recorrente (artº 498 nº 4, 1ª parte do CPC).

De harmonia com o princípio da disponibilidade das partes sobre o objecto do processo, incumbe-lhes a definição deste objecto e a realização da prova dos respectivos factos. Assim, cabe ao autor definir o pedido e invocar a causa de pedir, não podendo o tribunal, como consequência do funcionamento daquele princípio, conhecer de pedido diverso do formulado ou de causa de pedir diferente da invocada (artºs 467 nº 1 d), 661 nº 1 e 664, 2ª parte, do CPC).

Maneira que se está irremissivelmente excluída, por força do apontado princípio, a possibilidade de declarar a invalidade da transmissão para o accionista C… das acções, por o respectivo pedido não ter sido formulado pelo recorrente, a verdade é que nada impede a apreciação dos factos correspondentes, enquanto fundamento do pedido de declaração da inexistência ou da invalidade das deliberações impugnadas, i.e., enquanto facto integrante da causa de pedir alegada pelo recorrente como fundamento deste último pedido.

Por ter sido objecto de oportuna alegação na instância recorrida, o facto da não aquisição pelo sócio C… das acções, constitui uma questão de que o tribunal pode – e deve - tomar conhecimento, sendo lícito ao tribunal utilizá-lo como fundamento do pedido de declaração da inexistência, ou mais benignamente, da invalidade das deliberações tomadas na assembleia de sócios realizada no dia 19 de Março de 2011.

Foi esta, aliás, a atitude da sentença apelada, que desamparou o pedido de declaração da inexistência ou da invalidade das deliberações impugnadas, assente na ausência de convocação da assembleia, por ao accionista C… não assistir o direito de requerer essa convocação, e na falta de quórum, com fundamento em que aquele sócio, de harmonia com o livro de registo das acções, era titular de 71,12% das acções da recorrida. E foi pelo facto de o livro de registo das acções, detido pela recorrida, emitente delas, patentear a aquisição pelo accionista C… das referidas acções que a sentença apelada se não deteve na apreciação da questão da sua não transmissão para aquele sócio, alegada pelo recorrente. Em qualquer caso, deve notar-se que a sentença impugnada não estava em condições de apreciar esta última questão, uma vez que os factos correspondentes – maxime o da indivisão do património hereditário da accionista falecida, M… – não foram seleccionados para a base instrutória - nem originariamente, nem na sequência da reclamação que contra ela foi produzida pelo recorrente.

                Uma leitura ainda que pouco detida da alegação do recorrente mostra que a sua discordância se dirige, desde logo, à decisão da questão da matéria de facto. No seu ver, de um aspecto, o decisor da 1ª instância deveria ter julgado provado, em face da prova produzida, que a recorrida mantém a mesma composição accionista existente à data da morte de M…, não tendo ocorrido qualquer transmissão válida de acções e, de outro, interpretou erradamente essa prova no tocante à questão da negação, ao recorrente, de informações mínimas, tendo decidido contrariamente à prova que veio a ser feita.

                Nestas condições, tendo em conta os parâmetros de vinculação temática deste Tribunal ao conteúdo da decisão impugnada e das alegações de ambas as partes, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se:

a) A decisão da matéria de facto se encontra ferida de um error in iudicando, por erro na valoração das provas e, consequentemente, se essa decisão deve ser reponderada e modificada;

b) A partir da análise do cumprimento do ónus da prova, com consideração do princípio da aquisição processual, estão adquiridos para o processo todos os factos, que por conduzirem à aplicação das normas jurídicas invocadas pelo apelante, permitem o proferimento de uma decisão que lhe seja favorável.

A resolução destes problemas exige, naturalmente, o exame dos poderes de controlo desta Relação sobre a decisão da matéria de facto, desde logo, do cumprimento pelo recorrente do ónus de impugnação dessa decisão a que a lei do processo é terminante em vinculá-lo, e a ponderação das regras de transmissão dos valores mobiliários titulados nominativos e da eficácia do seu registo junto do emitente, do conteúdo do direito do sócio à informação, e das regras de convocação e funcionamento da assembleia geral de accionistas.

Entre a matéria de direito e a matéria de facto existe uma interdependência que se verifica na sua delimitação recíproca, em especial na sua confluência para a obtenção da decisão de um caso concreto. Dado que a delimitação da matéria de facto é feita em função da matéria de direito – visto que os factos são recortados e escolhidos segundo a sua relevância jurídica, i.e., segundo a sua importância para cada um das soluções plausíveis da questão de direito - justifica-se, metodologicamente, que a exposição subsequente se abra com o exame do regime de transmissão de valores mobiliário titulados nominativos e da eficácia do seu registo junto do emitente, do direito do accionista à informação e das regras de convocação e de funcionamento das assembleias gerais de accionistas.

3.2. Regime de transmissão de valores mobiliários titulados e eficácia do registo.

A recorrida é uma sociedade anónima e tem, por isso, um capital social, de valor nominal, expresso numa cifra monetária, correspondente à soma das participações sociais: as acções, expressas, também elas, num valor nominal (artºs 9 nº f) e 276 nº 1 do Código das Sociedade Comerciais - CSC).

O termo acção é, porém, um vocábulo polissémico, sendo utilizado em três sentidos diferentes: como participação social ou socialidade, ou seja, o conjunto unitário de direitos e obrigações, mas também ónus expectativas, faculdades e sujeições, de que uma pessoa, singular ou colectiva, é titular na qualidade de sócio de uma sociedade anónima (artºs 272 a), 276 e 302 do CSC)[1]; como fracção do capital social, v.g. das sociedades anónimas (artº 271 do CSC); como forma de representação da participação social, compreendendo, do mesmo passo, a representação cartular – título ou documento em papel – e escritural – registo em conta em suporte informático (artºs 274, 301 e 304 do CSC).

As acções adquiriram, porém, um outro significado de extraordinário relevo: o de produto financeiro, i.e., de instrumento financeiro negociável no mercado de capitais[2].

As acções são, pois, também valores mobiliários (artº 1 nº 1 a) do Código dos Valores Mobiliários – CVM). E como qualquer outro valor mobiliário, do ponto de vista da sua representação, as acções podem ser escriturais ou tituladas, conforme sejam representadas por registos em conta ou por documento em papel (artº 47 nº 1 do CVM). Sempre que não sejam representadas por registos em conta, as acções devem ser representadas por documentos em papel (artº 304 nº 3 do CSC).

As acções tituladas podem ser nominativas ou ao portador, conforme o emitente tenha ou não a faculdade de conhecer a todo o tempo a identidade dos seus titulares (artº 52 nº 1 do CVM e 299 nº 1 do CSC). As acções, por representarem posições patrimoniais privadas, são ainda, pois, valores mobiliários passíveis de transmissão, sendo, como regra, livremente negociáveis ou transmissíveis (artº 328 nº 1 do CSC).

A possibilidade ou impossibilidade de conhecimento da identidade do portador é consequência da diversidade de regime da transmissão das acções ao portador e das acções nominativas: as acções tituladas ao portador, não integradas em sistema centralizado, transmitem-se, encontrando-se depositadas, por constituto possessório, ou no caso inverso, por entrega material; as acções tituladas nominativas, fora de sistema centralizado, transmitem-se por endosso nominal e registo no emitente[3] (artºs 102 nºs 1 e 2 do CVM)[4].

As acções tituladas nominativas, não integradas em sistema centralizado, transmitem-se, por declaração de transmissão escrita no título a favor do transmissário, efectuada pelo depositário, pelo funcionário judicial ou pelo transmitente, conforme o caso; posteriormente é realizado o registo junto do emitente ou do intermediário financeiro que o represente (artºs 64 e 102 nºs 1 e 2 do CVM)[5]. A transmissão produz os seus efeitos a partir da data do requerimento do registo junto do emitente (artº 102 nº 5 do CVM). O emitente e autor do registo é, portanto, terceiro em relação ao acto registado.

Para a transmissão de acções deste tipo é, naturalmente, necessário o acordo entre o transmitente e o transmissário, através da declaração de transmissão aposta no título (artº 102 nº 1 do CVM). Mas um tal acordo não é suficiente para a produção de efeitos plenos, que dependem ainda da inscrição da qualidade de accionista em registo lavrado pela sociedade emitente.

A configuração do registo não é, todavia, coincidente. Segundo alguma doutrina, a transmissão[6] depende do registo pela sociedade emitente e, eventualmente, também da anotação no título[7]; outros autores, porventura a maioria, recusam a natureza constitutiva do registo pelo emitente[8], afirmando a sua eficácia meramente declarativa, legitimadora[9] ou probatória da qualidade de sócio, com variações ainda sobre a natureza ilidível – prova prima facie – ou inilidível[10], salvo rectificação, da presunção derivada do registo.

Mas há um mínimo comum que consiste em considerar o registo como acto indispensável para a oponibilidade da transmissão à sociedade emitente, sem o qual o adquirente não pode exercer o direito de voto, o direito de crédito ao dividendo e outros direitos sociais (artº 73 nº 1 do CVM)[11].

Seja como for, a lei é terminante em atribuir ao registo igualmente uma função de legitimação activa e passiva: os direitos inerentes às acções – entre os quais se conta o direito de voto - serão exercidos de acordo com o que constar no registo do emitente e a sociedade pode realizar as prestações a que está vinculada e permitir o exercício de outros direitos a quem estiver legitimado pelo registo ou pelo título (artºs 55 nºs 1 e 3 b), 56 e 104 nº 2 do CVM).

 Como se notou, a sociedade emitente e autora do registo é terceiro em relação ao acto registado. Simplesmente, a legitimação passiva decorrente do registo não é irrestrita ou ilimitada: o emitente só fica liberado de qualquer prestação que realize ao titular legitimado pelo registo ou isento de responsabilidade no reconhecimento que lhe faça de qualquer direito – v.g., o direito de voto – se estiver de boa fé (artº 56, proémio, do CVM). A legitimação passiva decorrente do registo da transmissão junto do emitente não é, pois, absoluta, só se verificando, portanto, no caso de boa fé do emitente registador.

Não parece que esteja aqui em causa uma boa fé objectiva, dada a ausência de remissão para regras e princípios jurídicos, mas antes uma boa fé subjectiva, portanto, ligada ao estado do emitente. Resta saber se trata de uma boa fé subjectiva em sentido puramente psicológico ou antes em sentido ético, que, portanto, traga implicada deveres de cuidado e de indagação. Tendo em conta, de um aspecto, o facto de o requerimento do registo e do acesso a este mesmo registo apenas provar a legitimidade formal do adquirente, nada reflectindo, em princípio, sobre a sua falta de legitimidade substancial, e de outro, de o sistema postular a celeridade de transmissões, o que por si, é adverso a uma exigência de deveres de indagação por parte do emitente, autor do registo, parece dever exigir-se neste domínio apenas um boa fé em sentido psicológico – o simples desconhecimento da falta de legitimidade substancial do titular do registo[12]. Deste entendimento da boa fé, resulta, naturalmente, como seu reverso, a noção de má fé: o conhecimento da falta daquela legitimidade substancial.

O que pode perguntar-se é sobre quem recai o encargo da prova da boa fé. Por aplicação do critério de repartição do ónus da prova que se encontra estabelecido na lei – orientado pela chamada doutrina da construção da proposição jurídica ou teoria das normas – de harmonia com o qual, se pode dizer, numa formulação simples, que cada parte está onerada com a prova dos factos subsumíveis à regra jurídica que lhe atribui um efeito favorável, a resposta exacta é esta: o fardo da demonstração da boa fé do emitente registador recai sobre o este, dada a sua clara natureza de elemento estrutural da eficácia liberatória da prestação realizada ao titular do registo e da extinção de responsabilidade pelo reconhecimento a este de qualquer direito (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Em face do apontado regime de transmissão, instalou-se, na doutrina e na jurisprudência, uma acesa controvérsia, sobre se a compra e venda de valores mobiliários assenta numa compra e venda real – sistema do título – ou antes no sistema do título e do modo – registo[13].

Mas esta discussão não releva para a economia do recurso. Para a apreciação do objecto da impugnação, interessa apenas notar, que quer no caso de acções tituladas ao portador, não integradas em sistema centralizado, quer relativamente a acções tituladas nominativas igualmente não integradas em sistema centralizado, não basta, para a sua transmissão, a entrega material ou o seu endosso, respectivamente, e o registo: exige-se, em qualquer dos casos, sempre, a existência, a validade e a procedência de uma justa causa de atribuição[14].
As acções tituladas nominativas, não integradas em sistema centralizado, transmitem-se, por declaração de transmissão escrita no título a favor do transmissário. Mas só por si, não nos diz a que título. Quer isso dizer que pode operar por via de qualquer contrato, típico ou atípico, que assuma eficácia transmissiva: compra e venda, dação em pagamento, sociedade, doação ou outras figuras diversas. O regime da transmissão dependerá, portanto, do acto que, concretamente, estiver na sua base.

A transmissão, inter vivos, das acções exige, sempre, um contrato transmissivo, típico ou atípico que tenha sido concluído entre as partes[15]: na falta ou na invalidade dele, aquele efeito translativo não se produz.

E a invalidade dos negócios transmissivos subjacentes não pode deixar de se repercutir no registo. Isto é patente no tocante aos negócios transmissivos de valores mobiliários escriturais, relativamente aos quais a lei é terminante em declarar que se a nulidade do negócio de transmissão for manifesta, o registo deve ser recusado (artº 77 nº 1 d) do CVM). Aliás, nada impede, por outra via, que as nulidades não manifestadas e outras invalidades do negócio transmissivo subjacente ao registo se reflictam indirectamente na subsistência dos registos de titularidade, meio de revelação da situação jurídica registada. Só assim se compreende que a lei preveja, no tocante a valores mobiliários escriturais, o registo das acções judiciais relativas ao registo de valores mobiliários como relativas aos valores mobiliários registados, o que não pode deixar de incluir acções em que se discuta a validade da transmissão de direitos sobre valores mobiliários (artº 68 nº 1 i) do CVM).

E nada obsta a que qualquer sócio alegue a ausência ou a invalidade do negócio transmissivo subjacente à entrega ou ao endosso das acções tituladas e impugne o registo e o seu efeito legitimador, activo e passivo, e extraia da falta ou da invalidade daquele negócio, no plano da validade das deliberações de sócios, as adequadas consequências, relativamente ao exercício dos direitos inerentes aquele valor mobiliário, v.g., no tocante ao direito de requerer a convocação da assembleia geral, ao exercício do direito de voto ou á formação das maiorias exigíveis.

A transmissão mortis causa das acções rege-se pelo direito comum das sucessões (artº 2024 e ss. do Código Civil).

Assim, com a morte do accionista, dá-se a abertura da respectiva herança e o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais daquele e consequente devolução, designadamente, das acções que lhe pertenciam (artºs 2024, 2031 e 2032 nº 1 do Código Civil).

Até à partilha a administração da herança pertence ao cabeça-de-casal e os direitos relativos só podem ser exercidos por todos os herdeiros (artºs 2079 e 2091 do Código Civil). Ao cabeça-de-casal não é, por isso, lícita, sem o consentimento dos demais herdeiros, a alienação de bens da herança. Caso proceda, sem tal consentimento, a essa alienação, o negócio correspondente é havido como disposição de coisa alheia e, portanto, é nulo por ilegitimidade (substantiva)[16] (artº 892, ex-vi, artº 1408 nº 2, ex-vi artº 1404 do Código Civil).

3.3. Direito à informação.

Como já se fez notar, as acções são valores mobiliários que representam uma participação social ou socialidade, com o que se quer significar que investem o accionista num conjunto unitário de direitos, obrigações ou outras posições jurídicas – ónus, expectativas, faculdades, sujeições – em face da sociedade emitente.

Seja qual for a exacta natureza jurídica da participação social, deve ter-se por certo que na posição jurídica do sócio da sociedade comercial se contém, nas situações jurídicas activas, designadamente, o direito ou faculdade de informação (artº 21 nº 1 c) do CSC). Direito à informação que se desdobra no direito à informação em sentido estrito – o poder de fazer perguntas à sociedade sobre os negócios sociais e de exigir uma resposta verdadeira, completa e elucidativa, no direito de consulta – de reclamar da sociedade a exibição de livros de escrituração e de outros documentos sociais, e no direito de inspecção – a faculdade de exigir à sociedade a vistoria de bens sociais.

O conteúdo e a extensão do direito ou faculdade de informação de que o sócio é titular varia conforme o tipo societário considerado, conhecendo um tratamento mais detalhado na sociedade anónima, a propósito da qual a lei distingue um direito mínimo à informação, as informações preparatórias da assembleia geral, as informações em assembleia geral e o direito colectivo à informação (artºs 288 a 291 do CSC).

Portanto, o sócio – em princípio, qualquer sócio – goza do direito potestativo de pedir informações, fazendo com o seu exercício, surgir o concreto direito à informação, que, por seu turno é um direito a uma prestação de facere – a de dar a informação visada.

A informação – que pressupõe, em regra, uma pergunta prévia é, em si mesma, um valor que serve propósitos de transparência e aumenta o poder de controlo e a possibilidade de tutela dos interesses, em conflito actual ou potencial.

Juridicamente, a obrigação de informação – a que corresponde um simétrico direito a ser informado – tem um carácter marcado pela instrumentalidade, razão que explica a sua construção a partir da sua indispensabilidade para o exercício de outros direitos: a informação não é, em si mesma, um fim – mas um meio de permitir o exercício, pelo seu titular, de um outro direito. A tutela do direito à informação é instrumental perante outras situações decorrentes do direito substantivo, porque esse direito é ainda um meio de tutela dessas situações.

A lei não disponibiliza uma noção de informação. A doutrina, porém, partindo do uso corrente do vocábulo, define a informação em sentido estrito ou próprio, como a exposição de uma dada situação de facto, seja qual for o seu objecto: pessoas, coisas, ou qualquer outra relação[17]. A pura informação esgota-se na comunicação de factos objectivos, da qual está ausente qualquer valoração deles. A informação pode ser de natureza objectiva ou subjectiva, mas é sempre referida a dados que o informador considera como factos e é-lhe essencial o momento objectivo da comunicação.

Mal vale a pena perder uma palavra para explicar que a informação que é fornecida pelo vinculado à sua prestação deve ser verdadeira, completa e elucidativa (artº 290 do CSC). Com estes adjectivos pretende-se que o obrigado disponibilize, ao sujeito activo da obrigação correspondente, o real conhecimento do facto sobre que foi pedida a informação. Reconhece-se alguma tautologia naquela adjectivação, dado que se o sujeito que pede a informação não a obtém se a resposta à sua solicitação não for verdadeira, não for completa e não for elucidativa. Todavia, os dois últimos adjectivos têm a virtualidade de acentuar que quando o pedido de informação esteja formulado de modo que permita ao obrigado responder-lhe, sem, contudo, revelar outros factos conexos - a informação não é completa, e que quando o vinculado responda de modo a que, sem deixar de satisfazer o pedido, dificulta o entendimento pelo seu destinatário – a informação não é elucidativa.

Os accionistas das sociedades anónimas gozam, naturalmente, de um direito à informação, embora se requeira, em certos casos, um mínimo de capital social para o seu exercício.

No tocante às sociedades anónimas, os sócios são titulares, designadamente, do direito às informações preparatórias das assembleias gerais, que compreendem no seu perímetro os nomes dos membros dos órgãos sociais; as outras sociedades em que exerçam cargos sociais; as propostas de deliberação a apresentar pela administração e os elementos que as acompanham; os curricula de candidatos a eleger; o relatório de gestão e outros elementos de prestação de contas, quando seja o caso (artº 289 nº 1 a) a c) do CSC).

São patentes os fundamentos finais deste específico direito à informação: permitir ao accionista interessado, o exercício esclarecido do direito de voto na assembleia[18]; promover, junto da sociedade, o cuidado e o rigor na gestão dos seus valores, habilitando-a, no seio da administração, com os necessários elementos.

Discute-se, na doutrina e na jurisprudência – sobretudo a propósito dos gerentes das sociedades por quotas – se os titulares de órgãos de administração, quando reúnam simultaneamente a qualidade de sócios, são ou não titulares do direito à informação que a lei reconhece aos últimos[19].

Para sustentar uma resposta negativa, faz-se notar que o membro da administração – enquanto tal, não enquanto sócio – tem direito à informação, quer por aceder directamente a ela ou às suas fontes, quer por poder exigir dos restantes membros qualquer informação respeitante à sociedade e que, caso seja impedido de exercer um tal direito à informação lhe é lícito requerer – não o inquérito judicial à sociedade, que a lei apenas faculta aos sócios a quem seja recusa a informação – mas a investidura no cargo social (artºs 1500 e 1501 do CPC). Em sentido contrário, argumenta-se que não pode dizer-se que o sócio gerente ou o sócio administrador têm outro meio de obter as informações de que necessitam, porque, como é intuitivo, se invocam a sua faculdade de informação enquanto sócios é porque lhes foi negada ou impedida a informação na qualidade de gerentes ou de administradores.

Tem-se por solução preferível a de que os sócios mantêm o seu direito à informação, não obstante serem gerentes ou administradores, ao menos nos casos, em que apesar dessa qualidade, não exercem efectivamente a gerência ou a administração da sociedade. De resto, pelo facto de ser administrador, o accionista não perde a qualidade de sócio e a respectiva posição jurídica de socialidade.

Como é natural, a informação deve ser pedida ao vinculado à sua prestação.

Assente, quem é titular do direito à informação, resta saber quem está vinculado a realização da prestação de facere correspondente, quem é o sujeito passivo da obrigação de informação.

Como regra geral, pode dizer-se, sem erro, que a obrigação de informação recai sobre o órgão encarregado da administração e da condução dos negócios sociais: a gerência, a administração ou a direcção, conforme o tipo societário considerado. O que bem se compreende, dado que é o órgão da administração que está em melhores condições para prestar a informação sobre os assuntos sociais, quem melhor conhece os factos que podem interessar ao sócio.

A regra é diferente no tocante às informações solicitadas em assembleia geral, em que o dever de prestação da informação recai sobre o órgão habilitado, normalmente, o presidente do órgão de administração ou administrador que ele indicar, embora possa recair também sobre o presidente do órgão do órgão de fiscalização ou sobre o membro do mesmo órgão, que ele ou o próprio presidente indicarem, solução justificada pela necessidade de garantir a eficiência e a agilização do sistema de informação na assembleia geral (artº 290 nº 2 do CSC). Todavia, fora da assembleia geral o vinculado à prestação da informação é sempre e só o órgão da administração (artº 291 nº 1 do CSC)[20].

Apesar de funcionalmente dirigido para a tutela de outro direito, o direito à informação é, também ele, objecto de tutela, dado que a sua violação, constitui causa de anulação das deliberações subsequentemente tomadas (artº 58 nº 1 c) do CSC).

È exacto que a lei só considera anuláveis as deliberações que não tenham sido precedidas do fornecimento ao sócio de elementos mínimos de informação, considerando-se, para esse efeito, como elementos mínimos de informação, as menções que o aviso convocatório das assembleias gerais deve conter e a colocação dos documentos para exame dos sócios, no local e no tempo, prescritos pela lei e pelo contrato (artº 58 nº 4 do CSC). Mas esta enumeração não é taxativa, e, portanto, as informações preparatórias da assembleia geral, são, para o efeito apontado, elementos mínimos de informação[21].

Não tendo sido prestadas as informações devidas, a deliberação com elas relacionadas, é anulável. Por aplicação da regra geral de distribuição do ónus da prova, é evidentemente o sócio que está vinculado ao ónus da prova da carência da informação em falta (artº 342 nº 1 do Código Civil)[22].

3.4. Regras de funcionamento e de convocação da assembleia geral de accionistas.

A posição de socialidade ou a participação do sócio é também integrada pelo direito de participar nas deliberações de sócios e de se reunir em assembleia geral (artºs 21 nº 1 b) e 54 nº 1 do CSC).

No domínio específico das sociedades anónimas, reconhece-se ao sócio que, segundo a lei e o contrato, tiver o direito a pelo menos um voto, o direito de estar presente na assembleia geral e de nela discutir e exercer o seu direito de voto (artº 379 nº 1 do CSC).

No tocante ao quórum da assembleia geral – i.e., à percentagem de sócios cuja presença é tida por necessária – há que fazer um distinguo entre o quórum constitutivo e o quórum deliberativo: o primeiro reporta-se ao número mínimo de sócios cuja presença é necessária para que a assembleia se tenha por constituída; o quórum deliberativo refere-se ao número mínimo de sócios para que possa deliberar – em geral ou sobre determinados pontos ou assuntos mais sensíveis.

No tocante ao quórum das assembleias gerais das sociedades anónimas, a regra fundamental – e puramente supletiva – é a de assembleia poder deliberar, em primeira convocação, qualquer que seja o número de accionistas, presentes ou representados (artº 383 nº 1 do CSC). Não há, portanto, como regra, quórum – nem constitutivo nem deliberativo.

Tratando-se, porém, de deliberações relativas à alteração do contrato de sociedade, à fusão, à cisão, à transformação, à dissolução de sociedade, ou de outros assuntos para os quais a lei exija maioria qualificada, para que a assembleia possa deliberar em primeira convocatória, devem estar presentes, ou representados, accionistas que detenham, pelo menos, um terço do capital social (artº 383 nº 2 do CSC).

A cada acção corresponde, supletivamente, um voto (artº 384 nº 1 do CSC). O voto está sujeito ao princípio da unidade: um accionista com vários votos deve, sob pena de nulidade de todos eles, usá-los no mesmo sentido (artº 385 nºs 1 e 2).

Quanto à maioria e ao seu apuramento, a assembleia delibera por maioria dos votos emitidos, seja qual for a percentagem do capital presente, salvo disposição diversa da lei ou do contrato (artº 386 nº 1 do CSC); nas eleições, havendo várias propostas, basta a maioria relativa (artº 386 nº 2 do CSC). Tratando-se, porém, de alterações ao contrato de sociedade, fusão, cisão, transformação dissolução ou outros pontos assim previstos por lei ou pelos estatutos, a aprovação exige dois terços dos votos emitidos, em primeira ou segunda convocação (artº 386 nº 3 do CSC).

As deliberações dos sócios tomadas sem a maioria exigível são meramente anuláveis (artº 58 nº 1 a) do CSC).

 A convocação – e a preparação – das reuniões da assembleia geral competem ao presidente da mesa, mas pode sê-lo, pelo fiscal único ou pelo conselho fiscal, sempre que o presidente da mesa o não faça, devendo fazê-lo (artºs 377 nºs 1 e 3 e 420 nº 1 h) do CSC). A convocação tem lugar, designadamente, a pedido de 5% dos accionistas, por escrito e com indicação justificada dos motivos da reunião (artº 375 nº 3 do CSC). Neste caso, cabe ao presidente da mesa – ou ao órgão societário que se lhe substitua no exercício dessa atribuição - ponderar e tomar uma decisão sobre a convocação da assembleia; na dúvida deve convocá-la[23].

As deliberações dos sócios tomadas em assembleia geral não convocadas são nulas, salvo se, apesar da falta de convocação nela estiverem presentes todos os sócios e estes derem o seu acordo a que haja assembleia (artºs 54 nº 1 e 56 nº 1 a) do CSC); aquelas deliberações, adoptadas em assembleias convocadas com simples irregularidades de forma ou com falta de informações, são meramente anuláveis (artº 58 nº 1 c) e 4 a) do CSC).

As sociedades formam a sua vontade funcional através das deliberações sociais. As deliberações sociais são actos muito peculiares, dado que, por um lado, são actos dos sócios e, por outro, são actos da sociedade.

Enquanto acto dos sócios a deliberação é um acto colectivo formado por uma pluralidade de actos jurídicos unitários – os votos – que são imputáveis a cada um dos sócios; como acto da sociedade, a deliberação é, no seu todo, um acto jurídico unitário, embora complexo, imputável à sociedade, ela mesma.

Na base da deliberação, está, necessariamente, uma votação. Na situação mais comum, i.e., de pluralidade de sócios, na origem da deliberação está uma pluralidade de votos. O voto é uma declaração e sendo uma declaração é também, por si, um negócio jurídico. Está, por isso, inteiramente sujeito aos vícios que afectam os negócios jurídicos[24].

                Assim, por exemplo, o voto que seja emitido em contravenção de uma norma jurídica injuntiva é nulo (artº 294 do Código Civil).

                Se alguém for ilegalmente admitido a emitir voto, e o emitiu, a deliberação deve, em princípio, ser anulada: há um vício que não consiste na falta de maioria – mas sim na emissão ilegal de um voto. Mas para se determinar a exacta repercussão do vício do voto sobre a validade da deliberação social, há sempre que recorrer à chamada prova de resistência.

Quando o voto é nulo, por violação dalguma disposição legal, o problema que se põe é o da influência que o voto nulo tenha tido para a maioria dos sócios que aprovou a proposta e, por isso, ditou a deliberação, pois bem pode suceder que, descontados os votos nulos, ainda assim se mantenha a maioria necessária para a tomada da deliberação.

A resposta exacta a este problema é esta: o vício do voto é relevante – mas só põe em causa a deliberação se o voto for determinante para essa mesma deliberação, segundo a regra da maioria aplicável. Esta é a comummente chamada prova de resistência, que no nosso ordenamento surge disposta na lei civil geral para os votos em situação de conflito e, na lei societária, para os denominados votos abusivos (artº 176 nº 2 do Código Civil e 58 nº 1 a), in fine, do CSC). Um tal regime é, patentemente, simples emanação do princípio geral de aproveitamento do acto jurídico, traduzido pela regra utile per inutile non vitiatur: é de elementar bom senso – sublinha-se – não invalidar uma deliberação por serem nulos os votos inúteis para a deliberação a tomar[25].

                O Código das Sociedades Comerciais pôs fim à velha controvérsia sobre os valores negativos das deliberações sociais, admitindo expressamente a nulidade destas, que parte da doutrina, sobretudo a mais antiga, repudiava (artº 56). De harmonia com aquele Código, os valores negativos das deliberações sociais limitam-se à nulidade, à anulabilidade e à ineficácia – embora seja de admitir uma outra categoria de valor negativo: a inexistência, ao menos para os casos mais graves do que os contemplados por lei como geradores de nulidade, portanto, como cláusula última de salvaguarda[26] (artºs 55, 56 e 58).

3.5. Poderes de controlo da Relação relativamente à decisão da matéria de facto da 1ª instância.

A apelação destina-se também a facultar o controlo da decisão do tribunal de 1ª instância relativamente à matéria de facto e, pode, de resto, ter por único fundamento, um error in judicando dessa matéria, por erro na aferição ou apreciação das provas.

Quando a impugnação tem por objecto a decisão da matéria de facto, o recorrente deve especificar, sob a pena grave de rejeição do recurso, quais os pontos concretos que considera incorrectamente julgados e quais os meios de prova, constantes do processo ou do registo da gravação nele realizada, que impõem uma decisão diversa sobre esses pontos (artº 685-B nº 1 a) b) do CPC).

Neste último caso, quando os meios de prova invocados como fundamento no erro na apreciação da prova tenham sido gravados, e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à indicação das passagens da gravação em que se funda; no sendo possível, por força dos meios técnicos utilizados para a gravação, a identificação precisa e separada dos depoimentos, o recorrente deve proceder à transcrição dos depoimentos em que se funda (685-B nºs 2 e 4 do CPC).

O recorrente que impugne a decisão da matéria de facto deve procurar demonstrar o erro de julgamento dessa matéria, demonstração que implica a produção de razões ou fundamentos que, no seu modo de ver, tornam patente um tal erro. Na realidade, não parece prudente que, no curso da alegação, o recorrente não exponha, explique e desenvolva os fundamentos que mostram que o decisor da 1ª instância errou quanto ao julgamento da matéria de facto, exposição e explicação que deve consistir na apreciação do meio de prova que justifica decisão diversa da impugnada, o que pressupõe, naturalmente, a indicação do conteúdo desse meio de prova, a determinação da sua relevância e a sua valoração.

Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, deve ser cumprido com particular escrúpulo ou rigor; caso contrário, a impugnação da matéria de facto banaliza-se numa manifestação, inane ou inconsequente, de inconformismo[27].

De resto, o ónus de apontar claramente os pontos determinados da matéria de facto que o recorrente reputa de mal julgados e de fundamentar a imputação do error in judicando da decisão correspondente, constitui simples decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última extremidade, a seriedade do próprio recurso.

Na espécie, a impugnação do julgamento da matéria de facto empreendida pelo recorrente é, ao menos num ponto, inteiramente contrastante com o conteúdo que se deve assinalar ao ónus que a lei é terminante em fazer recair sobre ela.

Realmente é patente a não satisfação do ónus de especificar os pontos de facto que o impugnante considera incorrectamente julgados. Em lado nenhum da alegação ou das conclusões, o recorrente individualizam os pontos de facto que, do seu ponto de vista, foram erroneamente julgados pelo tribunal a quo. A impugnação do julgamento da questão de facto é indiscriminada e puramente genérica.

Porque se formulou a exigência da especificação pelo recorrente dos pontos concretos que considera incorrectamente julgados? Para que o recorrido e o tribunal ad quem, que há-de julgar o recurso, fiquem habilitados a conhecer nitidamente, o objecto da impugnação, os factos sobre que esta incide. A parte contrária necessita de o saber para exercer o seu direito ao contraditório e porque lhe incumbe, na resposta ao recurso, indicar os depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente; o tribunal ad quem carece de o saber para poder reapreciar, com segurança e reflexão, o julgamento cuja exactidão se impugna (artº 685-B nº 3 do CPC).

Tudo vincula, portanto, à conclusão da impontualidade do cumprimento, pelo recorrente, do ónus de impugnação do julgamento da matéria de facto, no plano da especificação dos concretos pontos de facto que reputa mal julgados.

Note-se que, no tocante aos factos relativos à indivisão do património hereditário de Maria Mota, por não se ter procedido à sua partilha – de que o recorrente extrai a conclusão da não transmissão para o accionista C… das acções – o problema não é sequer de error in iudicando, por erro na valoração ou apreciação das provas – mas de pura e simples ausência de julgamento: aqueles pontos de facto não foram insertos na base instrutória – apesar de o recorrente ter reclamado a sua inclusão nessa base – e portanto, não foram submetidos ao exercício da prova nem objecto de julgamento.

A lei é terminante na declaração de que o incumprimento pelo recorrente do referido ónus importa a rejeição, nessa parte, do recurso.

Pode, porém, perguntar-se se, face ao não cumprimento daquele especial ónus de impugnação, a rejeição do recurso é irremissível ou se não deve, neste domínio, actuar-se o princípio da cooperação intersubjectiva, na vertente do dever prevenção, que vincula o tribunal, e, consequentemente, preceder a decisão de rejeição do recurso, na parte afectada, por um despacho de convite, dirigido ao apelante, de aperfeiçoamento da sua alegação, evitando, assim, que o êxito do recurso seja irremediavelmente comprometido por uso inadequado do processo.

A letra da lei inculca nitidamente uma resposta negativa. De outro aspecto, o convite ao aperfeiçoamento da alegação, além de resolver num novo alargamento do prazo de oferecimento da alegação, contraria abertamente a razão que levou a lei a adstringir às partes àquele ónus: a de desmotivar impugnações temerárias e infundadas da decisão da matéria de facto.

Deve, por isso, concluir-se que não há, neste plano, espaço, para um tal despacho de convite ao aperfeiçoamento das alegações[28].

Nestas condições, é meramente consequencial a rejeição, nessa parte, do recurso[29].

O error in judicando da matéria de facto pode, todavia, radicar numa causa diversa do erro na apreciação da prova: o erro na selecção do objecto dessa prova.

Um primeiro caso em que a Relação pode ser chamada a censurar o julgamento da matéria de facto realizado na 1ª instância não respeita à violação dos critérios de apreciação da prova – mas à infracção das regras relativas à selecção da matéria de facto. Não se trata, portanto, de controlar a correcção do procedimento de apreciação da prova da matéria de facto – mas a exactidão da operação de selecção dessa matéria.

A selecção da matéria de facto desdobra-se em duas operações diversas: a primeira é a escolha, a partir do mole de factos articulados pelas partes, dos factos relevantes, i.e., dos factos que correspondem a todos os possíveis enquadramentos jurídicos da causa (artº 511 nº 1 do CPC); a segunda é a separação, no conjunto factos julgados relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, daqueles que devem considerar-se assentes e dos que se mostram controvertidos, i.e., dos que devem constituir objecto da prova e, como tal, devem figurar na base instrutória (artºs 508-A nº 1 e 511 nº 1 do CPC).

Esta selecção deve incidir sobre todos os factos que sejam relevantes segundo todos os possíveis enquadramentos jurídicos do objecto da acção. Assim, qualquer facto não deve deixar de ser seleccionado, ainda que ele só possa ser relevante se, em relação a uma questão controversa na doutrina ou na jurisprudência, o tribunal vier a adoptar um determinado entendimento ou a preferir uma certa solução: ao juiz da causa não cabe, no momento da selecção dos factos relevantes, antecipar qualquer solução jurídica e, menos ainda, excluir da escolha os factos que não forem relevantes segundo esse enquadramento.

A decisão de selecção da matéria de facto pode encontrar-se ferida dos vícios da deficiência, excesso ou da obscuridade (artº 511 nº 2 do CPC).

Aquele despacho é deficiente quando omite factos relevantes para a decisão da causa, i.e., facto articulado controvertido pertinente à causa e indispensável para a resolver; sofre do vício oposto, i.e., do excesso, se versa sobre factos não articulados ou sobre factos alegados mas que não pertencem à categoria dos factos controvertidos; padece do defeito da obscuridade, quando se encontra redigido em termos tais, que suscita dúvida legítima sobre o verdadeiro sentido ou alcance dos pontos de facto objecto de selecção ou quando de todo em todo não se apreende o seu sentido ou aqueles se prestam a interpretações diferentes.

A cada um destes vícios corresponde um simétrico fundamento de reclamação contra a selecção da matéria de facto, que é decidida por despacho. Mas o despacho que recai sobre essa reclamação não é autonomamente recorrível, só podendo ser impugnado no recurso interposto da decisão final (artº 511 nº 3 do CPC).

Ao despacho que decida a reclamação contra a matéria de facto não se associa, portanto, o efeito de caso julgado, que torne indiscutível, a exactidão do procedimento quer da escolha dos factos relevantes quer da sua repartição entre os que devem desde logo considerar-se assentes e os que devem reputar-se controvertidos.

Todavia, a impugnação do erro na selecção do objecto da prova, não está sequer na dependência da dedução de reclamação contra o despacho correspondente, desde que qualquer dos vícios dessa selecção se repercuta no julgamento da matéria de facto, por se manterem no momento desse julgamento, seja pelo singular seja pelo tribunal colectivo.

A selecção da matéria de facto, tenha ou não sido impugnada através de reclamação, não transita em julgado e, portanto, não impede o exercício, mesmo oficiosamente, pela Relação do poder de controlo da correcção do procedimento correspondente.

Esta patologia da decisão da matéria de facto, proveniente de erro na selecção da matéria de facto, pode dar lugar à alteração, pela Relação, daquela decisão ou à anulação mesmo do julgamento correspondente. No primeiro caso a apelação é julgada de harmonia com o modelo de substituição; no segundo, o julgamento desse recurso segue, nitidamente, o sistema de cassação.

Sempre que considere deficiente obscura ou contraditória a decisão sobre determinados pontos de facto ou quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto – por se ter omitido o julgamento de um facto relevante, designadamente por não constar da base instrutória – a Relação anula a decisão da 1ª instância e reenvia-lhe o processo para que proceda a novo julgamento (artº 712 nº 4, 1ª parte, do CPC)[30].

O julgamento do recurso de harmonia com o modelo de cassação justifica-se pelo facto de a decisão da matéria de facto se encontrar ferida de um erro de julgamento, mas de este erro não resultar de um erro na apreciação da prova - mas de um erro sobre o objecto dessa prova.

Este viaticum habilita, com suficiência, à resolução dos problemas colocados no recurso.

3.6. Concretização.

A sentença impugnada foi terminante na conclusão de que o recorrente não cumpriu o ónus de demonstração, que lhe assistia, de que lhe tenham sido negadas as informações preparatórios da assembleia geral de accionistas. Não há razão para divergir.

Como decorre da matéria de facto apurada, o recorrente solicitou os documentos relativos à assembleia geral na qual foram tomadas as deliberações impugnadas ao director financeiro da recorrida e entregou a este uma carta, dirigida ao fiscal único da última, contendo o pedido de consulta das informações preparatórias dessa reunião – mas não contactou com qualquer dos membros do conselho de administração da ré no sentido de lhe serem fornecidas quaisquer informações preparatórias da assembleia geral de 19 de Março.

Como oportunamente se sublinhou, o direito à informação de que o sócio é indubitavelmente titular, tem por sujeito passivo e, portanto, por vinculado à prestação de facere correspondente, fora da assembleia geral de accionistas, o órgão de administração da sociedade.

Todavia, o recorrente – parte onerada com a prova da violação do direito à informação de que é indubitavelmente titular – dirigiu o seu pedido de consulta a pessoa ou a órgão patentemente incompetente para a sua prestação.

Nestas condições, desde que não manifestou sequer, junto do órgão societário competente a sua vontade de actuar o seu direito à informação, na vertente de direito de consulta, a conclusão a tirar é simétrica àquela que foi encontrada pela sentença impugnada: que não está demonstrada a violação, pela apelada, do direito do recorrente à informação.

                E não estando demonstrada a ofensa desse direito, não há evidentemente razão, para, por tal fundamento, anular as deliberações impugnadas. Quanto a este fundamento da impugnação, é, pois, patente a improcedência do recurso.

Resta, portanto, o fundamento do recurso relativo à não transmissão das acções de A… para C… e, designadamente, à correspondente ausência de quórum de reunião e de deliberação.

A sentença impugnada afastou este fundamento de impugnação das deliberações sociais da apelada com este preciso argumento: o de o accionista C… constar, no livro de registo das acções tituladas nominativas, como titular de 71,12% dessas mesmas acções, e estar, portanto, legitimado para o exercício dos direitos a ela inerentes, designadamente o de requerer a convocação da assembleia e de exercer nela os direitos de voto correspondentes.

Este facto é exacto: realmente aquele livro patenteia a titularidade por aquele accionista daquela percentagem de acções no capital social da apelada, e bem assim, a transmissão de A… para C… das acções nºs 1 a 1.410.000 e 2.490.001 a 2.498.000.

                Simplesmente, o recorrente alega que o accionista C… apesar de legitimado pelo registo não é efectivamente o titular das acções que, segundo o livro de registo, lhe foram transmitidas pelo sócio A... Razão: o facto de essas acções integrarem o património conjugal comum e a herança da accionista M… que não foi objecto de partilha e de que aquele accionista é simples cabeça-de-casal.

                Sendo esta alegação exacta, segue-se realmente, que o negócio subjacente à transmissão é nulo por ilegitimidade substantiva do transmitente, que não houve um causa de atribuição válida e procedente e, portanto, que o sócio C… não adquiriu as acções apontadas. E se este sócio não é efectivamente titular daquelas acções, a apelada só poderia permitir-lhe o exercício dos direitos a elas inerentes no caso de se encontrar de boa fé, i.e., na ignorância da invalidade do negócio subjacente à transmissão registada – facto que a recorrida nem sequer alegou, tendo-se limitado a afirmar, na contestação, que não tem de conhecer as relações de transmissão que ocorrem que não sejam devidamente registadas em documento devido. De resto, seria deveras singular que a recorrida não conhecesse as vicissitudes inerentes ao negócio subjacente à transmissão das acções indicadas, dado que, apesar de se tratar de uma sociedade anónima é uma sociedade fechada, puramente familiar, limitada, actualmente, a quatro sócios que, no momento da transmissão, eram todos membros do conselho de administração. De resto, a ser exacta a alegação do recorrente de que não se procedeu á partilha do património hereditário da accionista M…, o livro de registo não deixará, em princípio, de patentear a ilegitimidade substancial do accionista C… e, portanto, o conhecimento, pela recorrida, dessa ilegitimidade e, correspondentemente, a ausência da sua boa fé.

                E demonstrando-se, como alega o recorrente, que não se procedeu à partilha do relictum da sócia M… – facto que a apelada impugnou na contestação, fazendo notar, na sua alegação de recurso, a existência de escrituras de partilhas parciais, em que o recorrente interveio – o que desse facto decorre para a validade das deliberações impugnadas é meramente consequencial.

                Destas considerações pode extrair-se esta conclusão: a matéria de facto é insuficiente. Essa insuficiência fica a dever-se à ausência na base instrutória dos factos essenciais relativos à não aquisição, por invalidade do negócio subjacente à transmissão, pelo sócio C… das acções que, segundo o livro de registo, lhe foram transmitidas por A…, resultante da integração desses valores mobiliários na massa hereditária indivisa da sócia M...

Esse erro na selecção da matéria de facto resolve-se numa deficiência do julgamento que não cobre matéria de facto alegada pela apelante, por ter sido omissa na elaboração da base instrutória. Essa insuficiência da matéria de facto justifica, inteiramente, o uso por esta Relação dos poderes de controlo que lhe permitem mandar ampliar a decisão de facto (artºs 712 nº 4, 1ª parte, e 650 nº 2 f), por analogia, do CPC).

Importa, portanto – sem prejuízo da improcedência do recurso relativamente ao fundamento da violação do direito à informação - cassar a decisão da 1ª instância e ordenar a ampliação da base instrutória no tocante aos factos relativos à indivisão do património hereditário da accionista M… (artº 712 nº 4, 1ª parte, do CPC).

Os argumentos mais salientes que justificam o sentido da decisão do recurso podem condensar-se nas proposições seguintes:

a) As acções tituladas nominativas, fora de sistema centralizado, transmitem-se por endosso nominal e registo no emitente;

b) Para a transmissão de acções tituladas nominativas não integradas em sistema centralizado, não basta, para a sua transmissão, a entrega material ou o seu endosso, respectivamente, e o registo: exige-se, em qualquer dos casos, sempre, a existência, a validade e a procedência de uma justa causa de atribuição;

c) A transmissão mortis causa das acções rege-se pelo direito comum das sucessões;

d) A invalidade dos negócios transmissivos subjacentes repercute-se no registo;

e) O registo da transmissão junto do emitente tem uma função de legitimação activa e passiva: os direitos inerentes às acções – entre os quais se conta o direito de voto - serão exercidos de acordo com o que constar no registo do emitente e a sociedade pode realizar as prestações a que está vinculada e permitir o exercício de outros direitos a quem estiver legitimado pelo registo;

f) A legitimação passiva decorrente do registo não é irrestrita ou ilimitada, dado que o emitente só fica liberado de qualquer prestação que realize ao titular legitimado pelo registo ou isento de responsabilidade no reconhecimento que lhe faça de qualquer direito se estiver de boa fé;

g) A boa fé do emitente, cuja prova lhe cabe, consiste no simples desconhecimento da falta de legitimidade substancial do titular do registo;

h) Os sócios mantêm o seu direito potestativo à informação, não obstante serem gerentes ou administradores, ao menos nos casos, em que apesar dessa qualidade, não exercem efectivamente a gerência ou a administração da sociedade;

i) Fora da assembleia de sócios, o vinculado à prestação da informação é sempre e só o órgão da administração;

j) Sempre que, por erro sobre o objecto da prova, o julgamento da questão de facto seja deficiente, por não cobrir toda a matéria de facto alegada relevante, a Relação deve cassar esse julgamento e reenviar o processo para a 1ª instância para que proceda ao julgamento dos pontos de facto omissos na base da prova.

O recorrente e a recorrida sucumbem, reciprocamente, no recurso. Deverão, por isso, suportar as respectivas custas (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, justifica-se que a respectiva taxa de justiça seja fixada nos termos da tabela I-C integrante do RCP (artº 6 nº 5 do RCP, ex-vi artº 8 nº 1 da Lei nº 7/2012, de 13 de Fevereiro).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos:

a) Julga-se o recurso improcedente no tocante ao fundamento da impugnação representado pela violação do direito à informação;

b) Anula-se, no tocante ao fundamento da impugnação das deliberações sociais, representado pela não aquisição pelo sócio C… das acções que, segundo o livro de registo da apelada, lhe foram transmitidas pelo sócio A…, a decisão da matéria de facto e determina-se a ampliação, dessa matéria no tocante à ausência de partilha do património conjugal comum e da herança da accionista M...

Custas do recurso pelo recorrente e pela recorrida, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-C integrante do RCP.

                                                                                                             

                                                                                                              Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                              José Avelino Gonçalves

                                                                                                              Regina Rosa


[1] Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II, Das Sociedades, Almedina, Coimbra, 4ª edição, 2011, pág. 209, Alexandre Soveral Martins, Valores Mobiliários (Acções) IDET, Cadernos, nº 1, Almedina, Coimbra, 2003, pág. 20. Em sentido diverso, qualificando a participação social, a um tempo, como relação jurídica, direito subjectivo e estatuto jurídico do sócio enquanto tal, Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 495 a 504.
[2] Castro C. Osório, Valores Mobiliários, Conceito e Espécies, 2ª edição, UCP Editora, Porto, 1998, págs. 73 e ss.
[3] De harmonia com a Portaria nº 290/2000, de 23 de Maio, o registo é feito na Parte III do regime de emissões.
[4] Isabel Vidal, Da (Ir)relevância da Forma de Representação para Efeitos de Transmissão de Valores Mobiliários, Caderno CMVM (n.j. 15), 3.
[5] Embora nitidamente inspirado no artº 326 do CSC - revogado do artigo pelo artº 15 nº 1 d) do Decreto-Lei nº 486/99, de 13 de Novembro, que aprovou o CVM – o regime da transmissão dos títulos nominativos foi consideravelmente simplificado, tendo deixado de exigir-se, por exemplo, a intervenção notarial para o reconhecimento das assinaturas. A lei fiscal exige a observância de outras formalidades, que todavia, são estranhas à validade da transmissão.

[6] Note-se que no caso de empréstimo de valores mobiliários, salvo convenção contrária, estes transmitem-se para o mutuário (artº 350 nº 1 CVM).
[7] Alexandre Brandão da Veiga, Transmissão de Valores Mobiliários, CMVM, Almedina, Coimbra, 2010, pág. 44.
[8] José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Volume III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1992, pág. 45.
[9] Paula Costa e Silva, “A transmissão de valores mobiliários fora de mercado secundário”, Direito dos Valores Mobiliários, I, pág. 234.
[10] Osório de Castro, Valores Mobiliários, cit., pág 18.
[11] Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Volume II., cit., pág. 378.
[12] Assim, para o lugar da paralelo da boa fé do adquirente a pessoa não legitimada, portanto, a non domino, de valores mobiliários, regulada pelo artº 58 do CVM, Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, Coimbra, págs. 340 e 341. Sustentando, porém, que a má fé consiste, neste contexto, no saber ou ter o dever de saber que falta legitimidade ao alienante, Alexandre Brandão da Veiga, Transmissão de Valores Mobiliários, cit., pág. 107.
[13] No último sentido, Vera Eiró, “A transmissão de valores mobiliários – acções em especial, Themis, RDFUN, 2005, VI, págs. 145 e ss, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, cit., págs. 379 e 380, e Ferreira de Almeida, “Registo de valores mobiliários”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marques dos Santos, Volume I, Coimbra, 2005, págs. 924 e ss.; no primeiro e – por todos - Pedro de Albuquerque, Direito das Obrigações, Contratos em Especial, volume I, Tomo I, Almedina, Coimbra, 2008, págs. 99 e ss. A jurisprudência orienta-se no primeiro dos sentidos apontados: Acs. do STJ de 15.05.08 e de 13.03.07, da RP de 18.11.11 e da RC de 03.07.12.
[14] Alexandre Soveral Martins, Valores Mobiliários, Acções, cit. pág. 35.
[15] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 663.
[16] João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, AAFDL, Volume II, 1995, pág. 428.
[17] Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos Recomendações ou Informações, Almedina, Coimbra, 1989, págs. 14 e 15.
[18] Ac. do STJ de 28.06.11, www.dgsi.pt.
[19] Em sentido negativo, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, cit., págs. 264 e 265, Raul Ventura, Sociedades por Quotas, volume I, pág. 286, e Carlos Maria Pinheiro Torres, O Direito à Informação nas Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 176 e 177; Acs. do STJ de 23.05.96, CJ, STJ, II, pág. 88, e de 01.07.97, BMJ nº 469, pág. 570, da RP de 13.03.99 e da RL de 07.02.02, www.dgsi.pt.; em sentido afirmativo, António Caeiro, “As sociedades de pessoas no Código das Sociedades Comercias”, separata do número especial do BFD – Estudos em Homenagem ao Prof. Eduardo Correia, pág. 47 e Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 208; Acs. do STJ de 10.07.97, CJ, STJ, II, pág. 167, da RL de 02.12.92, CJ, V, pág. 129, e da RP de 19.10.04, www.dgsi.pt.
[20] Carlos Maria Pinheiro Torres, O Direito à Informação nas Sociedades Comerciais, cit. págs. 200 e 201.
[21] António Lobo Xavier, RLJ, Ano 118, págs. 201 e 202, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coordenação de António Menezes Cordeiro, 2ª edição, 2011, Almedina Coimbra, pág. 237, e Carneiro da Frada, “Deliberações sociais inválidas no novo Código das Sociedades Comerciais”, Perspectivas do Direito Comercial, págs. 324 e ss., e a Acs. do STJ de 28.06.11 e de 17.04.07, www.dgsi.pt.
[22] Ac. do STJ de 17.02.98, CJ, STJ, VI, I, pág. 88.
[23] António Menezes Cordeiro, A Assembleia Geral e Deliberações Sociais, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 61.
[24] José de Oliveira Ascensão, “Invalidade das deliberações dos sócios”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raul Ventura, volume II, edição da FDUL, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, págs. 20 e 21.
[25] José de Oliveira Ascensão, “Invalidade das deliberações dos sócios”, cit., pág. 42, Raul Ventura, Sociedades por Quotas, vol. II, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 268, Brito Correia, Direito Comercial, Volume II, Deliberações dos Sócios, AAFDL, Lisboa, 1990, pág. 318 e Acs. da RC de 02.11.10 e da RL de 07.07.09, www.dgsi.pt.
[26] José de Oliveira Ascensão, “Invalidade das deliberações dos sócios”, cit., págs. 30 a 32.
[27] António Abrantes Santos Geraldes, Recurso em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 142 e 143 e Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Praticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 80.
[28] Neste sentido, Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 170, nota 331, Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 80, e Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 141 e 142; contra Acs. do STJ de 09.10.08, www.dgsi.pt. de 01.10.98, BMJ nº 480, pág. 438.
[29] Ac. da RL de 02.11.00, www.dgsi.pt, José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 55 e Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, cit., pág. 105, Cfr. No sentido da legitimidade constitucional do nº 2 do artº 690-A na redacção do DL nº 39/95, de 15 de Fevereiro – que impunha ao recorrente, também sob pena de rejeição do recurso, o ónus de proceder à transcrição, em escrito dactilografado, das passagens da gravação em que fundamenta o erro na apreciação da prova - o Ac. do TC nº 122/02, DR, II Série, de 29 de Maio de 2003.
[30] Para manter a coerência lógica da decisão, o tribunal da 1ª instância pode ampliar a julgamento de modo a apreciar outros pontos de facto (artº 712 nº 4, in fine, do CPC). Cfr. Antunes Varela, RLJ Ano 125, pág.331.