Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2572/10.2TALRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: DOLO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR Nº 1/2015
Data do Acordão: 03/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA LOCAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.14.º DO CP; ART. 358.º DO CPP
Sumário: I - A consciência da ilicitude é momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa), o seu momento emocional, sendo, portanto, uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do tipo.

II - A jurisprudência fixada [Acórdão Uniformizador nº 1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015)] não tem exclusivamente por objeto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjetivo do crime imputado.

III - O aditamento feito em audiência de julgamento pelo tribunal recorrido, da expressão «Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal» não se traduz numa alteração inócua e despicienda, mera reprodução de bordão acolhido pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional, antes dá plena satisfação à necessidade ‘prática’ de remediar uma deficiente descrição [por omissão de elemento essencial] do tipo subjetivo de ilícito levada ao despacho de pronúncia [e que já ocorria no requerimento para abertura da instrução].

IV - O Acórdão Uniformizador nº 1/2015 veio fixar o sentido oposto a tal entendimento [recurso ao mecanismo do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal], impedindo o recurso ao dito mecanismo para integrar a deficiente descrição, por omissão narrativa, do tipo subjetivo do crime imputado, onde se inclui a consciência da ilicitude e determinando, consequentemente, que a deficiente ou incompleta definição do tipo subjetivo de ilícito conduza, necessariamente, à absolvição.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

            No [já extinto] 1º Juízo de Competência Especializada Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Leiria, mediante despacho de pronúncia, foram submetidos a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, os arguidos A... e B... , com os demais sinais nos autos, a quem era imputada a prática, em co-autoria material, de um crime de  burla, p. e p. pelo art. 217º, nº 1 do C. Penal.

O assistente C... deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos e contra a sociedade F... , Lda., com vista à sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 15.500 por danos sofridos, acrescida de juros legais desde a data da notificação até integral pagamento, acrescida de 5% desde o trânsito em julgado da sentença.

Por sentença de 21 de Maio de 2013 foi cada um dos arguidos condenado, pela prática do imputado crime, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 6, e ainda, juntamente com a sociedade demandada, condenados a pagar ao assistente a quantia de € 7.500 a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% desde 22 de Dezembro de 2012 sobre a quantia de € 3.500 até integral pagamento, e sobre a quantia de € 4.000, à mesma taxa, a partir de 22 de Maio de 2013 até integral pagamento.

1Inconformados com a decisão, os arguidos recorreram para esta Relação que, por acórdão de 22 de Janeiro de 2014, concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e determinando o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do seu objecto.

Na audiência do novo julgamento, realizado agora no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Instância Local Criminal de Leiria – Unidade 3, por despacho de 23 de Fevereiro de 2015, foi comunicada aos arguidos uma alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia, tendo o facto comunicado o seguinte teor: «Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.».

Concedida a palavra ao Ilustre Mandatário dos arguidos para, querendo, requerer o que tivesse conveniente, disse não aceitar, atento o teor do Acórdão nº 1/2015, a alteração oficiosamente comunicada.

            Por sentença de 18 de Março de 2015 foram os arguidos condenados, pela prática do imputado crime de burla, cada um, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 7, perfazendo a multa global de € 840, para cada.

Mais foram condenados, juntamente com a sociedade demandada, no pagamento ao assistente da quantia de € 7.500 por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde 22 de Dezembro de 2012 sobre a quantia de € 3.500, até integral pagamento, e à taxa de 4%, desde 22 de Maio de 2013 sobre a quantia de € 4.000, até integral pagamento.


*

            Novamente inconformados com a decisão, recorreram os arguidos, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

                1 – Subscreve-se o entendimento perfilhado pelo STJ nos dois acórdão mencionados na INTRODUÇÃO  às alegações, razão pela qual se interpõe o presente recurso para o Tribunal da Relação (de Coimbra), por não se afigurar adequado o recurso – extraordinário – previsto no art. 446, do CPP;

Posto isto (primeira questão),

2 – No recurso anteriormente interposto nestes autos, o Tribunal da Relação (de Coimbra) apontou à sentença, então objecto desse recurso, nomeadamente, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto;

3 – Por não ter ficado provado que os arguidos soubessem que a sua conduta era proibida e punida por lei.

4 – Razão pela qual a matéria de facto era insuficiente para permitir a conclusão de que os arguidos praticaram um crime de burla, p. e p. pelo art. 217, nº 1, CPP, na medida em que dela não constava como provada a "consciência da ilicitude" e portanto. "todos os elementos do respectivo tipo subjectivo";

5 – Consequentemente (e também por outra razão: omissão de pronúncia), foi determinado o envio do processo para novo julgamento;

6 – Sucede que a consciência da ilicitude também não consta do despacho de pronúncia;

                7 – Não obstante, o tribunal de julgamento, efectuou a integração da matéria em falta, ao abrigo do regime previsto no art. 358, do CPP, aditando, no decorrer do julgamento, a seguinte matéria: "Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal";

                8 – Ora. o recente acórdão nº 1/2015, do STJ. veio fixar a seguinte jurisprudência:

                "A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358 do Código de Processo Penal".

9 – Os arguidos não foram informados em que se apoiou o tribunal para considerar ter ocorrido tal alteração;

10 – Os arguidos discordaram da alteração invocada pelo tribunal de julgamento, fundamentando a sua posição no acórdão do STJ cujo sumário está transcrito supra, no na 8 destas alegações;

11 – Sendo certo que a decisão do STJ que fixa jurisprudência não é obrigatória para os tribunais judiciais. estes devem fundamentar as divergências face a tais decisões, conforme se estatui no art. 445, n.º 3. do CPP.

12 – Ora. a alteração efectuada pelo tribunal de julgamento não deve ser aceite por este tribunal de recurso.

13 – Por um lado porque não é correcto o entendimento explanado na sentença (se bem o entendemos) segundo o qual a existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude da prática do facto (ou seja, o elemento intelectual conteria o conhecimento – pleno – dos factos a preencher, mas também o conhecimento – pleno – da sua proibição);

14 – Se assim fosse. todos os factos dolosos seriam "automaticamente" criminosos;

15 – Sem nos alongarmos nesta questão "técnica", e sem desconhecer (pensamos) as várias correntes doutrinárias. o conhecimento da proibição penal é, actualmente, enquadrada em sede de culpa (vide art. 17 C. Penal);

16 – E o acórdão que fixou a jurisprudência sobre esta questão, analisou-a, também, sob este prisma, que rejeitou;

17 – Por outro lado, a Exma Sra Dra Juíza não apresentou elementos novos, para fundamentar a discordância. nem a jurisprudência fixada (e objecto de discordância na sentença) pode deixar de ser considerada actual, de tão recente que é;

18 – Donde resulta que a sentença em recurso deve ser anulada, devendo os arguidos serem absolvidos, por insuficiência, não integrável em julgamento. para a decisão da matéria de facto provada;

19 – Uma vez que a insuficiência constante da acusação (pronúncia), não podia ser colmatada da forma que o tribunal a quo fez, pelo regime do art. 358, do CPP;

 Contudo, e para o caso de assim não se entender (segunda questão),

20 – Esteve mal o tribunal ao dar como provado que os arguidos agiram com a intenção de obter enriquecimento ilegítimo (…) através da viciação do valor da quilometragem do veículo …

21 – Os arguidos nunca negaram que efectuaram uma intervenção no veículo, a qual implicou, necessariamente, o contador de quilómetros, pois teve de ser substituído todo o quadrante em que ele se incorpora, que constitui um só bloco;

22 – Quer os 2 arguidos, quer as 2 testemunhas ouvidas, referiram que o veículo padecia de diversas, e frequentes, avarias, incluindo o mau funcionamento do quadrante, afigurando-se a sua substituição em bloco como a única solução possível;

23 – Tendo ficado também claro que a aquisição de um quadrante novo no representante oficial era demasiado oneroso, o que levou a que o mesmo tivesse sido adquirido em estabelecimento de peças usadas, como tantas vezes acontece nestes casos;

24 – O próprio tribunal a quo, de resto, apenas considerou não provado que o assistente soubesse da substituição;

25 – A viciação do valor da quilometragem, o emprego de meio astucioso e a intenção de obter enriquecimento ilegítimo, foram conclusões do tribunal, que entendeu que terá sido assim. sem suporte em qualquer elemento de prova minimamente objectivável;

26 – A substituição do contador de quilómetros – ou melhor, do bloco em que se insere, que inclui também. por exemplo, a luz do airbag, (que também avariava) – terá visado, e seguramente foi esse o intento, a reparação de avarias, não podendo o tribunal extrapolar um qualquer intuito de burlar terceiros;

27 – Tendo estado mal o tribunal ao dar como provada a matéria referida supra na conclusão nº 20 – o que fez por erro notório na apreciação da prova – os arguidos têm de ser absolvidos, por falta de prova da prática do crime de burla;

Ainda (terceira questão),

28 – No ponto 10 dos factos provados, o tribunal a quo considerou provado que os arguidos. com a sua conduta, lograram obter enriquecimento ilegítimo de valor concretamente não determinado;

29 – Porém, mais adiante, no ponto 18, esse tribunal considerou provado que o mesmo veículo tinha um valor de mercado não superior a 4.000 €;

30 – Ora, é evidente a contradição na fundamentação – de facto – se o tribunal considera. em simultâneo, que não se apurou o valor do enriquecimento. mas aponta para um valor de € 4.000.00;

31 – Tal contradição representa um vício na fundamentação da sentença que leva à sua revogação e reenvio para novo julgamento, nos termos dos art. 410, nº 2, e 426, do CPP;

Mais (quarta questão),

32 – Se o tribunal recorrido não logrou apurar o valor do enriquecimento, ainda que de forma aproximada – ponto 10 da matéria provada – então não possui elementos para saber em que forma foi a burla praticada, se na forma simples (art. 217, do CP), ou numa das duas agravadas (art. 218, nº 1, ou nº 2, do CPP);

33 – Não sendo possível. portanto, saber qual o tipo legal que foi preenchido;

34 – Mais. faltam elementos para a escolha da pena (multa ou prisão?), assim como para a determinação concreta da medida da pena;

35 – Razão pela qual ocorre insuficiência da matéria de facto para a decisão de condenação, vício este que conduz à absolvição dos arguidos, ou, caso assim não se entenda. à revogação da sentença e reenvio do processo para novo julgamento;

Continuando (quinta questão),

36 – Quanto ao valor do veículo, caso tivesse as condições que o assistente diz que esperava – 176.000 kms – não foi produzida prova, apenas foram ouvidas diversas, e bem díspares, opiniões;

37 – Esteve mal, a este respeito, o tribunal a quo ao basear-se nas declarações da testemunha E... , considerando que ele esclareceu que a viatura em questão, com a idade e quilometragem de 300.000 kms, valeria cerca de 4.000 €;

38 – Na realidade, o que essa testemunha declarou foi que "não sei em concreto, mas à volta de 3.000 €, por aí, 3.000 €/ 4.000 €, por aí, talvez …", o que significa que a testemunha efectuou uma mera estimativa (que qualquer pessoa pode fazer), não demonstrando especiais conhecimentos, ou experiência na matéria, que tornassem a sua opinião mais abalizada. nem sequer declarando saber, em bom rigor, qual era o valor da viatura;

39 – A mesma testemunha também esclareceu que, na altura do negócio, embora sabendo que o seu amigo o ia concretizar, "não viu a carrinha", ou seja, fez uma estimativa sem sequer ter visto o veículo …; 

40 – Ora, na falta de prova quanto ao valor do veículo, o tribunal "desenrascou-se" (passe o plebeísmo) e foi à net, saber quanto é que poderia custar um carro daqueles;

41 – Sendo que. estando no domínio do direito privado – pedido cível – e fora do âmbito dos factos que podem ser oficiosamente conhecidos pelo tribunal, o tribunal claramente exorbitou os seus poderes, ao indagar acerca do valor do veículo, e, assim, na fixação do valor do dano patrimonial;

42 – De resto, mesmo admitindo que o tribunal o poderia fazer, sempre este violaria o princípio da fundamentação – ao não juntar aos autos os elementos que obteve na internet para determinar o valor fixado (art. 154, nº 1, e 412, nº 2, parte final, do C. P. Civil);

43 – E do contraditório, por não dar oportunidade aos arguidos de se pronunciarem sobre os elementos oficiosamente obtidos pelo tribunal (art. 3, nº 3, do C. P. Civil);

Finalmente (sexta questão),

44 – O valor sentenciado pelo tribunal a quo para o ressarcimento dos danos não patrimoniais é manifestamente exagerado;

45 – O ressarcimento apenas por danos patrimoniais – traduzido na compensação da diferença entre o valor de aquisição e o valor que, face às novas circunstâncias, o veículo possuísse (e a verdade é que, objectivamente, não se sabe qual era) – afigura-se suficiente para o cabal ressarcimento do lesado;

46 – Mesmo admitindo que o lesado possa ter ficado "contrariado" com o sucedido, não se provaram consequências que, por alguma forma, possam ter afectado a sua vida ou o seu quotidiano, de forma juridicamente relevante;

47 – Razão pela qual devem os arguidos serem absolvidos do pagamento de indemnização por danos não patrimoniais, ou, caso assim não se entenda, deve este valor não ultrapassar a quantia de € 500,00.

Nestes termos e nos demais de direito, que V. Exas doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso, devendo em consequência,

- Serem os arguidos absolvidos do crime pelo qual vêm condenados;

Ou, caso assim não se entenda,

- Que sejam absolvidos do pagamento de indemnização por danos não patrimoniais, sendo que, caso se decide que eles existiram, que a condenação não seja cm montante superior a € 500,00;

Desta forma fazendo V. Exas JUSTIÇA.


*

            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1. O acórdão de fixação de jurisprudência 1/2015 do STJ, publicado no Diário da República em 27.1.2015, apesar de versar sobre a falta do elemento subjectivo do tipo legal de crime e as consequências daí inerentes, não tem aplicação neste caso concreto;

2. A sentença proferida não padece de qualquer vício;

3.A sentença sub judice não violou qualquer disposição legal, pelo que deve ser mantida na íntegra.

V. Exa. Farão a acostumada Justiça!


*

            Respondeu também ao recurso o assistente, alegando, em síntese, ser extemporâneo o recurso, havendo lugar à liquidação de multa, não ser aplicável aos autos a jurisprudência uniformizada pelo Acórdão 1/2015, dever ser rejeitado o recurso da decisão da matéria de facto por inobservância do ónus de especificação previsto nos nºs 3 e 4 do art. 412º do C. Processo Penal, ter o tribunal recorrido valorado a prova de acordo com o princípio da livre apreciação, e obedecer a indemnização fixada aos princípios e normas aplicáveis, e concluiu pela improcedência do recurso.

*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, afirmando a extemporaneidade, por um dia, do recurso, acompanhando a contramotivação do Ministério Publico e acrescentando que, tendo a Relação, na anterior decisão, determinado o cumprimento do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal, não pode a questão ser novamente discutida, que a questão igualmente suscitada na anterior decisão da Relação, só o foi relativamente ao pedido de indemnização, e concluiu pelo não provimento do recurso.

*

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, tendo respondido os recorrente, apenas quanto extemporaneidade do recurso, dizendo que o respectivo requerimento foi enviado para o tribunal por correio registado com data de 27 de Abril de 2014 pelo que, contando-se o prazo da data da expedição, não há lugar ao pagamento de multa, tendo juntado cópia do registo postal RD331210943PT, que tem como destinatário o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria e carimbo dos CTT de 27 de Abril de 2015.

Por despacho do relator de 13 de Janeiro de 2016 foi o recurso considerado tempestivo.


*

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

*

*


II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A aplicação do Acórdão nº 1/2015;

- Os vícios da decisão;

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e o não preenchimento do tipo do crime de burla;

- A incorrecta fixação da indemnização.


*

            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

           

            A) Nela foi decidida a seguinte Questão Prévia:

“ (…).

Considerando o Tribunal que, no decurso da audiência de discussão e julgamento, se verificou uma alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia, com relevo para a decisão da causa, nos termos do disposto no artº 358º nº 1 do Código de Processo Penal, oficiosamente, comunicou tal alteração aos arguidos e concedeu-lhes, se necessário, tempo para a preparação da sua defesa.

Os arguidos alegaram não aceitar a alteração efectuadas oficiosamente pelo Tribunal, a seu ver, ao abrigo do recente Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015 de 27.01.2015, o que conduz, necessariamente, à absolvição dos arguidos.

Vejamos se lhe assiste razão:

É o seguinte o teor da decisão do Colendo Tribunal: " A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artº 358º do Código de Processo Penal".

São elementos constitutivos do tipo de crime de burla, que tutela o bem jurídico património - tipo objectivo - : que o agente determine outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a terceiro prejuízo patrimonial e que esta determinação seja causada por erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou; e quanto ao - tipo subjectivo - : o dolo genérico, o conhecimento e vontade do agente actuar de forma fraudulenta e o dolo específico, a intenção de o agente obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo, o animus lucri faciendi.

Quedemo-nos no tipo subjectivo do ilícito.

O dolo comporta um elemento intelectual que implica o conhecimento (previsão ou representação) por banda do agente, de todos os elementos que integram o facto ilícito, ou seja o tipo objectivo de ilícito; um elemento volitivo que consiste na vontade, por banda do agente, de realizar o facto típico depois de ter representado as circunstâncias ou elementos do tipo objectivo do ilícito. Em função da diversidade de atitude nascem as diversas espécies do dolo: directo (intenção de realizar o facto) necessário (previsão do facto como consequência necessária da conduta) eventual (conformação da realização do facto como consequência possível da conduta).

Do exposto decorre que a afirmação da existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude da prática do facto.

Com efeito, o que foi aditado na audiência de discussão e julgamento aos factos descritos na pronúncia não foi a totalidade do elemento subjectivo do tipo legal (dolo do tipo), e os elementos do denominado dolo da culpa (tipo de culpa), mas tão só a consciência da proibição ou consciência da ilicitude, traduzido na fórmula habitual de "os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal".

Assim sendo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, o Acórdão nº 1/2015 que fixou jurisprudência, não impede a alteração realizada, in casu, em sede de audiência de discussão e julgamento.

(…)”.

B) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

“ (…).

1. Os arguidos são sócios gerentes da sociedade «F..., Lda.» que tem por objecto a venda e reparação de veículos automóveis novos e usados;

2. Esta sociedade possui um estabelecimento de «Stand» afecto à sua actividade sito em (...) , em Leiria;

3. Esta sociedade detinha em exposição, para venda, em 16.04.2010, o veículo automóvel de marca Audi, modelo A4, com a matrícula (...) IS naquele stand, que ostentava a quilometragem no respectivo contador de 176.000;

4. De modo não apurado, e previamente a 16.04.2010, os arguidos, de comum acordo e intentos, alteraram o contador de quilómetros que o veículo ostentava, de pelo menos de 304.216 quilómetros, e fizeram dele constar cerca de 176.000 quilómetros;

5. Convencido pelos arguidos no decurso da negociação de venda que o indicado veículo ostentava a quilometragem de 176.000 verdadeira, C... firmou a convicção da sua aquisição pelo preço de 7.500 €;

6. No âmbito da actividade da sociedade referida, representada pelos dois arguidos, no interesse e em nome da mesma, no dia 16.04.2010, os arguidos declaram vender a C... , o qual, por sua vez, declarou comprar, o veículo automóvel acima indicado com a matrícula (...) IS, do ano de 1997, pelo preço acordado de 7.500 €;

7. C... para pagamento do preço de 7.500 € emitiu o cheque n.º (...) sacado sobre a «CGD, SA» no montante de 6.500 € que obteve integral pagamento;

8. Deu em retoma o veículo automóvel da marca «Volkswagen», modelo «Golf» do ano de 1990, com a matrícula DX (...) , a que foi atribuído o valor de 1.000 €;

9. C... só abriu mão do cheque supra referido e procedeu à entrega do veículo DX (...) , no valor correspondente de 7.500 €, por ter sido convencido pelos arguidos na respectiva negociação de venda, que o veículo (...) IS ostentava a quilometragem de 176.000, pois se tivesse tido conhecimento dos quilómetros reais do veículo, acima indicados, nunca teria celebrado o contrato de compra e venda do veículo ou o teria celebrado por quantia muito inferior;

10. Os arguidos agiram sempre em comunhão de esforços e de intentos, de modo livre, deliberado e consciente, com a intenção de obter enriquecimento ilegítimo, como lograram obter, de valor concretamente não determinado, com o correspondente prejuízo patrimonial para C... , através da viciação do valor da quilometragem do veículo (...) IS;

11. Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

12. Os factos acima indicados causaram no assistente inquietação, angústia, humilhação, incómodo, tristeza, frustração e revolta, o que lhe provocou mal-estar pessoal;

13. O arguido A.. é mecânico de automóveis e aufere o rendimento mensal de 1.000 €; a sua mulher é doméstica; tem dois filhos a seu cargo; vive em casa própria.

14. O arguido A.. tem a 4ª classe da instrução primária;

15. O arguido B... é mecânico de automóveis e aufere o rendimento mensal de 1.000 €; a sua mulher aufere o vencimento mensal de 500 €; tem um filho a seu cargo; suporta uma prestação bancária mensal no montante de 500 €;

16. O arguido tem o 9º ano de escolaridade;

17. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

18. O veículo de matrícula (...) IS, com a quilometragem superior a 300.000 kms tinha um valor de mercado não superior a 4.000 €.

(…)”.

C) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

1. Os factos acima indicados tenham causado mal-estar social e profissional ao assistente e que este se tenha sentido envergonhado diante dos seus familiares e amigos e que os factos se tenham repercutido negativamente na sua capacidade de trabalho;

2. Que o assistente soubesse, que os arguidos tinham substituído o quadrante do Audi acima indicado, aquando da sua compra.

                Não se referiram os demais factos alegados nos articulados, por se revelarem de teor conclusivo, de direito ou irrelevantes para a decisão do objecto do processo.

(…)”.

D) Dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

O Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações dos arguidos que, para além de esclarecerem a sua atual situação económica, negaram a prática dos factos que lhe são imputados; o arguido A.. referiu que o veículo supra indicado (Audi, modelo A4, com a matrícula (...) IS, de 1997) ostentava uma quilometragem diferente da realmente percorrida (cerca de 300.000 kms), mas que, no entanto, quando o veículo foi vendido ao assistente, este tinha perfeito conhecimento dessa situação, ou seja, conhecia "os kms reais do carro"; esclareceu que o quadrante original do veículo tinha uma avaria e gerava vários problemas (v.g. acendia a luz do "airbag", não contava os metros, etc.), razão pela qual ele e o seu co-arguido, decidiram pôr outro quadrante, que passou a ostentar cerca de 176.000 kms; ambos fizeram o negócio de venda do veículo em causa ao assistente, tendo-lhe dito, verbalmente, que o carro tinha 300 e tal mil kms; referiu ainda que o assistente, com este processo, está de má-fé; explicou ainda que o veículo em causa foi vendido ao assistente por € 7.500, tendo sido deduzido no preço um veículo de retoma no valor de € 1.000, pelo que o assistente pagou € 6.500; posteriormente teve conhecimento que o assistente se insurgiu após ter ido à inspecção obrigatória com a viatura, tendo-lhe sido proposto desfazer o negócio, o que não foi por ele aceite; referiu que a data da factura é posterior à da venda do Audi ao assistente porque foi na data dessa factura que o novo quadrante foi pago, embora entregue antes; por sua vez o arguido B... negou, igualmente, a prática dos factos, corroborou as declarações do seu co-arguido e sustentou que o presente processo consiste numa "vingança" do assistente que trabalhou para o seu irmão (G... ) que o despediu cerca de um mês após ter adquirido a viatura; mais referiu que aquando da venda do Audi, não foi entregue ao assistente o "papel" da inspecção porque não o tinha e que o novo quadrante foi adquirido na altura da venda do Audi ao assistente; acrescentou que o veículo com a quilometragem de 176.000 Kms valeria cerca de 9.000 €; por último, afirmou que sabia que o que estava a fazer (alterar a quilometragem) não era legal. Sopesado o depoimento de C... , assistente nos autos, que esclareceu ter adquirido o veiculo em causa nos autos aos arguidos em Abril de 2010 pela quantia de 7.500 €, tendo dado em retoma o veículo Vo1kswagen Golf do ano de 1990, com a matricula DX (...) pelo valor de 1.000 € e que, posteriormente, em junho ou julho, aquando da realização da inspecção, foi informado que havia uma desconformidade de quilometragem, pelo que se dirigiu ao IMTI, o que fez e confirmou a informação (vd. fls. 19); afirmou que nenhum dos arguidos lhe referiu que o veículo tinha uma quilometragem real superior à indicada no mostrador; referiu não encontrar qualquer relação entre os presentes autos e a circunstância de ter sido despedido por um familiar do arguido B... ; esclareceu que o Audi se encontrava exposto para venda, com um papel, mencionando 176.000 kms, e que o não compraria se soubesse da sua quilometragem real, acima dos 300.000 kms, sendo certo que também nunca lhe falaram da mudança do quadrante e foi na inspecção que percebeu que fora "enganado"; esclareceu ainda que com a real quilometragem o veículo valeria cerca de 2.500 €. Foram ainda sopesados os depoimentos das testemunhas: Artur Lopes, anterior proprietário da Audi em questão nos presentes autos, referiu que o vendeu à oficina dos arguidos, em 2008/09, por 500 €, porque avariava com frequência e, na altura, ostentava mais de 200.000 kms; D... , irmã do assistente, referiu que este efectivamente adquiriu aos arguidos a carrinha Audi acima indicada, e posteriormente, soube que o carro tinha mais quilómetros, e esclareceu que o seu irmão se sentiu "enganado", ficou "muito em baixo e de rastos" por causa desta situação; afirmou desconhecer como decorreram as conversas entre o assistente e os arguidos; E... , engenheiro, cunhado do assistente, corroborou o depoimento da anterior testemunha e referiu que aquando da realização da compra o assistente falou consigo sobre a hipótese de comprar a Audi que teria cerca de 170.000 kms, soube posteriormente que quando foi feita a inspecção, o carro tinha mais quilómetros, sendo certo que esteve com o assistente nesse dia e descreveu a forma como este reagiu, tendo tomado conhecimento pelo assistente que este contactou os vendedores "para tentar resolver a situação", desconhecendo o que foi falado entre eles; esclareceu que a viatura em questão com a idade e quilometragem de 300.000 kms valeria cerca de 4.000 €. G... , irmão do arguido B... e anterior patrão do assistente, referiu que o seu irmão lhe falou que andava à procura de um painel para uma Audi que na altura tinha cerca de 300.000 kms, veículo este que também chegou a usar numa altura em que ostentava o quadrante original; referiu que viu o assistente conduzir este veículo, sendo que o carro já tinha passado os 300.000 kms; afirmou desconhecer o que se passou após a venda do Audi ao assistente.

A prova testemunhal foi conjugada, com a análise crítica da documentação junta aos autos, mormente: o teor da declaração de venda do veículo (...) IS ao assistente de fls. 16; o teor da cópia do cheque para pagamento de fls. 17; o teor da informação certificada do IMIT de fls, 18 a 27 quanto às inspecções a que o mesmo veículo foi sujeito; o teor da factura de venda ao veículo pelo anterior proprietário à empresa dos arguidos de fls. 46; o teor dos registos de propriedade anteriores do veículo (...) IS de fls, 61 a 75; o teor das fotos do veículo de fls. 109 a 112; o teor da venda a dinheiro aos arguidos de «um Konta kilómetro" de fls. 230; o teor dos certificados de registo criminal dos arguidos de fls. 605 e 606 quanto à ausência de antecedentes criminais; e o teor dos documentos juntos e emitidos pela Audi e por anterior proprietário do veículo em causa nos autos de fls. 409 a 415; e o teor dos documentos de fls. 424-5 e 614.

Da prova produzida em audiência de julgamento, convenceu-se o Tribunal que os arguidos praticaram os factos imputados, tal como descritos no despacho de pronúncia; com efeito, pese embora decorram da produção de prova em audiência de julgamento duas versões distintas e antagónicas entre si, por um lado a dos arguidos e, por outro, a do assistente, sustentando aqueles que o veículo foi vendido tendo sido dado conhecimento ao assistente da quilometragem real do Audi e sustentando este que desconhecia essa quilometragem real – por disso não ter sido informado – e se a conhecesse não o teria comprado ou tê-la-ia feito por preço inferior. Com efeito a versão trazida a julgamento pelos arguidos não se mostrou isenta, consistente e credível considerada a prova produzida na sua globalidade, aferida livremente e levando em conta as regras da experiência e da normalidade das coisas (art.º 127º do CPP); os arguidos admitiram que venderam ao assistente o referido veículo com mais de 300.000 kms, quando o painel revelava menos de 176.000 kms, mas que deram conhecimento, verbalmente, de tal facto ao assistente (sendo de salientar que os arguidos, profissionais no ramo, se acaso se quisessem assegurar de que haviam vendido o veículo com uma quilometragem diferente e disso dado conhecimento ao adquirente, teriam, sem esforço, feito constar essa circunstância num documento, precavendo-se de uma qualquer imputação futura de má-fé); o assistente negou peremptoriamente que lhe tenha sido dada essa informação; o Tribunal formou a convicção que o assistente comprou tal veículo desconhecendo verdadeiramente a quilometragem real do veículo; importa considerar determinadas circunstâncias objectivas que rodearam os factos e que se impõe atentar para concluir do acerto do despacho de pronúncia: o assistente apenas reagiu ou confrontou os arguidos com a situação dos quilómetros, após ter ido à inspecção obrigatória em Julho de 2010 (vd. fls. 19), sendo que adquiriu o veículo em Abril (vd. fls. 16) e, então, se pretendesse vingar-se do que quer que fosse, ou estivesse a agir de má-fé, como sustentaram os arguidos, teria «levantado a questão" logo após a venda, o que não aconteceu, pois só aquando da inspecção confrontou os arguidos com a quilometragem, o que constitui um dado no sentido da espontaneidade do assistente e da veracidade da sua versão (sendo certo que os arguidos também referiram que o assistente colocou o veiculo em reparação, a coberto da garantia, após a sua aquisição, sem que a questão da quilometragem tenha sido aflorada); outrossim, é estranho que aquando da venda do veículo ao assistente os arguidos não tenham entregue o "papel" da inspecção, mas apenas a vinheta respectiva, conjugado com a circunstância de terem emitido a declaração de venda e autorização de circulação (fls. 16), mencionando "tudo" no que ao veículo diz respeito, omitindo precisamente a quilometragem que o mesmo deveria ostentar; de considerar ainda que a factura de suposta aquisição pelos arguidos de um quadrante de substituição (vd. fls. 230) não indica a quilometragem desse mesmo quadrante, nem sequer permite aferir se se trata de um quadrante para um Audi A4; por outro lado, se os arguidos sustentam, sem convencer, que trocaram o quadrante original por outro sem anomalias, do que, segundo afirmaram em audiência, deram conhecimento ao assistente, não se percebe por que razão a data de aquisição (Agosto de 2010) desse quadrante é muito posterior à data da venda do veículo (Abril de 2010), sendo certo que o painel de instrumentos, como informa a Audi Portuguesa, data de Junho de 1997 (vd. fls. 410), justamente o ano de fabrico do Audi (Julho de 1997: fls. 16), o que coloca objectivamente em crise a tese dos arguidos de que o quadrante foi substituído; por todas estas razões o Tribunal julgou como provados os factos acima descritos; quanto aos factos referentes ao pedido cível, o seu julgamento como provados resultou da descrição feita pelas testemunhas ouvidas quanto a eles, em especial C... e marido, E... , os quais relataram o estado de espírito com que o assistente ficou depois de saber que o veículo tinha uma quilometragem real muito superior àquela que ostentava quando o adquiriu; relativamente ao valor aproximado de mercado, se a viatura tivesse a quilometragem real, o Tribunal baseou-se nos elementos gerais da experiência conhecidos neste tipo de aquisições cm veículos análogos com as mesmas características cm conhecidos sites www.standvirtual.com ou www.olx.pt (aqui na secção "carros, motos e barcos") onde se poderá consultar os preços usualmente praticados para a venda deste tipo de veículos em Portugal); quanto aos factos julgados como não provados, tal resultou de ausência de prova segura e consistente sobre a sua ocorrência, quer porque dos autos tal não resulta, quer porque as testemunhas ouvidas os não souberam confirmar.

(…)”.

E) E dela consta a seguinte fundamentação de direito quanto ao pedido civil:

“ (…).

O queixoso e assistente C... , na qualidade de demandante civil, deduziu contra o arguido e sociedade que representam, F... , Lda., um pedido de indemnização, reclamando o pagamento da quantia global de €15.500,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, na sequência da actuação ilícita dos mesmos, acrescida de juros de mora legais, desde a notificação até efectivo pagamento, acrescida de 5% de adicional compulsório desde o trânsito em julgado da sentença (fls. 323 a 332).

Vejamos.

A prática de uma infracção criminal é passível de gerar quer responsabilidade criminal, quer responsabilidade civil, visando esta o ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infracção tenha dado causa, sendo que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime deve ser deduzido no respectivo processo penal, só o podendo ser em separado nos casos indicados no artigo 720 do Código de Processo Penal.

Dispõe o art. 129º do Código Penal, que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil. Em conformidade, são as disposições da lei processual penal que postulam sobre a atribuição da indemnização já que esta norma alude aos pressupostos e ao quantitativo da indemnização, esses disciplinados pela lei civil.

Da factologia provada e da apreciação dela em relação à responsabilidade criminal flui, face ao disposto no art. 483º do Código Civil, terem-se os arguidos constituído na obrigação de indemnizar pelos danos causados pela prática do ilícito. Efectivamente, os pressupostos da obrigação de indemnizar com base em responsabilidade civil são o facto (facto humano dominável ou controlável pela vontade), a ilicitude do facto (que abrange a violação de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios e a violação de direitos subjectivos), o nexo de imputação do facto ao agente (que abarca a imputabilidade e a culpa), o dano e o nexo causal entre o facto e o dano.

Quanto ao facto voluntário do agente, sendo um elemento básico da responsabilidade, e consistindo a sua voluntariedade na possibilidade de controlo objectivo pela vontade do responsável, em regra consistirá numa acção ou actuação positiva, que importa a violação de um dever geral de abstenção, ou dever de não ingerência na esfera de acção do titular do direito absoluto, mas podendo igualmente traduzir-se numa omissão, abstenção ou facto negativo, sendo este causa do dano apenas quando haja o dever jurídico especial de praticar um acto que, provavelmente, impeça a consumação desse dano.

Em segundo lugar, este facto terá de revestir o carácter de ilícito, no sentido de violar o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios. É, ainda, necessário que o seu autor tenha agido com culpa, significando agir com culpa, o actuar em termos da sua conduta merecer a reprovação ou censura do direito, o que apenas se verifica quando o agente tenha capacidade para prever os efeitos e medir o valor dos seus actos, determinando-se de harmonia com o juízo que deles faça. Por sua vez, estabelece o art. 70º do Código Civil que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

Por outro lado, não havendo obrigação de indemnizar se não existirem danos, o dano consistirá na perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar. Por último, no que respeita ao nexo de causalidade entre o facto e o dano, temos por certo que a nossa lei consagrou, no art. 563º do Código Civil, a chamada teoria da causalidade adequada, sendo o dano de imputar ao facto do agente quando, de acordo com um prognóstico objectivo feito ao tempo da lesão (ou do facto), e em face das circunstâncias então reconhecíveis ou conhecidas pelo lesante, é razoável admitir que se não fosse aquela os danos não se teriam verificado.

Por outro lado, a lei – art, 496º do Código Civil – aceita a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, limitando-se àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Cabe, portanto, ao tribunal, em dada caso, dizer se o dano é, ou não, merecedor de tutela jurídica.

O montante da indemnização, correspondente aos danos não patrimoniais, deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser proporcional à gravidade do dano, tomando cm conta, na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida".

Assim, em regra ao decidir segundo a equidade, o julgador não está subordinado aos critérios normativos fixados na lei, ou seja, a equidade deve ser tomada na acepção de realização da justiça abstracta no caso concreto, o que, em regra, envolve uma atenuação do rigor da norma legal, por virtude da apreciação subjectiva do julgador". Com efeito, no caso da equidade o que passa a ter força especial são as razões de conveniência, de oportunidade, principalmente de Justiça concreta em que a equidade se funda. E o que fundamentalmente interessa é a ideia de que o julgador não está, nestes casos, subordinado aos critérios normativos fixados na lei. Ao contrário da norma, que constitui uma régua rígida que abstrai das circunstâncias por ela consideradas relevantes, a equidade é uma régua maleável: está em condições de tomar em conta circunstâncias do caso que a regra despreza, como a força e a fraqueza das partes, as incidências sobre o seu estado de fortuna, etc., para chegar a uma solução que se adapta melhor ao caso concreto – mesmo que se afaste da solução normal, estabelecida por lei.

Concluindo, a apreciação equitativa vem a significar que o julgador não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável à espécie vertente; tem a liberdade de subtrair-se a esse enquadramento rígido e proferir a decisão que lhe parecer mais justa, ou seja, o juiz funciona como um árbitro, ao qual lhe fosse conferido o poder de julgar ex aequo et bono.

Por outro lado, no que concerne à determinação do montante da indemnização por dano não patrimonial, os interesses cuja lesão desencadeia são infungíveis. Assim, a jurisprudência em matéria de danos não patrimoniais tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista. Não se trata de atribuir ao lesado um preço de dor, mas de lhe proporcionar uma satisfação em virtude de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal.

Nos presentes autos apurou-se que o demandante adquiriu à sociedade demandada, através dos seus legais representantes, ora arguidos, na qualidade de demandantes solidários, a viatura acima indicada, pelo preço de € 7.500,00, no pressuposto de a mesma ter percorrido 176.000 kms  quando, na realidade, como depois veio a apurar, já tinha percorrido mais de 300.000 kms, pelo que o valor comercial da mesma teria de ser

necessariamente inferior e rondaria os 4.000 € o que gerou um dano patrimonial emergente no valor correspondente à diferença entre o que pagou pelo veículo no pressuposto errado de ter determinados kms e o valor que teria de pagar se o adquirisse conhecendo a quilometragem real; ora, tendo em conta a idade do veículo (de 1997: fls. 16), o desgaste inerente a um veículo com essa idade (ou seja, com cerca de 13 anos à data da sua aquisição, 2010: fls. 16), bem como os quilómetros que já havia efectivamente percorrido (a passar os 300.000 kms), afigura-se ao tribunal, que o assistente adquiriria o veículo em causa por cerca de menos € 3.500,00 por referência ao valor de € 7.500,00 por que foi avaliado e, então, vendido, mostrando-se, pois, adequado e equilibrado o valor peticionado, naquele montante, na vertente de prejuízo patrimonial (art.º 564º-1 do C. Civil).

Apurou-se ainda que os factos acima indicados – em síntese, ter o assistente comprado por determinado preço um veículo com uma quilometragem viciada – causaram-lhe inquietação, angústia, humilhação, incómodo, tristeza, frustração e revolta, acarretando-lhe mal-estar pessoal, o que, de resto, é fácil compreender e de aceitar, se colocado uma qualquer pessoa no seu concreto lugar; estes factos, juridicamente relevantes, consubstanciam, em si, um dano de natureza não patrimonial, a reclamar o arbitramento de uma indemnização, porque merecedor da tutela do direito (art.º 496º-1 do C. Civil), compensáveis mediante uma indemnização que se reputa adequada, atendendo aos factores acima elencados, à circunstância de outros danos não terem sido apurados e à situação patrimonial dos arguidos, no montante de € 4.000,00 que os arguidos, na qualidade de demandados civis, bem como a sociedade demandada, por eles representada, devem ser solidariamente responsáveis.

Atento o disposto no art.º 805º nº 1 e 3 do Código Civil o responsável civil fica constituído em mora após a interpelação do credor para cumprir, o que, no caso dos autos, ocorreu com a notificação do pedido cível para contestar. E, no que aos danos patrimoniais concerne, tratando-se de obrigação pecuniária, a indemnização moratória corresponde aos juros legais a contar do dia da entrada em mora que é a data da notificação do pedido cível para contestar (art.ºs 806º-1-2 C. Civil e 113º-3 do CPP).

Assim, devem os demandados civis ser condenados a pagar ao demandante a quantia de € 3.500,00, desde 22.12.2012 (fls, 350-1; vd. art.º 113º-3 do CPP), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, desde esta data, sobre essa quantia, até integral pagamento (vd. Portaria n.º 263/99, de 12-04).

Já quanto aos danos não patrimoniais acima fixados, no montante de € 4.000,00, de que os demandados civis são solidariamente responsáveis, mostrando-se já actualizados, vencerão juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a decisão actualizadora, é dizer, desde a data da presente decisão (vd. AUJ do STJ n.º 4/2002, de 09.05.2002, DR IS-A, de 27.06.2002).

Improcede o pedido de condenação dos demandados civis na sanção pecuniária compulsória de 5%, a acrescer à quantia indemnizatória fixada na sentença, e desde o seu trânsito em julgado, uma vez que os legais acréscimos devem quedar-se pelos juros de mora legais à taxa actualmente em vigor que é de 4%, considerando que a indemnização decorre de responsabilidade decorrente de factos consubstanciadores de um tipo de crime (art.º 559º do C. Civil), estando afastada a aplicação de outros juros que não os civis, mormente os comerciais ou convencionais; por outro lado, o art.º 829º-A do C. Civil prevê a possibilidade de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória para as obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, o que não é, seguramente, o caso dos autos (sobre a definição de obrigação fungível, como obrigação que pode ser cumprida tanto pelo próprio devedor como por qualquer pessoa (vd. João Melo Franco e Herlânder Antunes Martins, Dicionário de Conceitos e Princípios Jurídicos, entrada "Obrigação Fungível", Almedina, Coimbra, 1993); como se entende em sede civilística, a peticionada sanção compulsória a que se refere o art.º 829º-A-4 do C. Civil "não pode, obviamente, ser aplicada à letra a todos os casos em que tenha sido estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente. Se a intenção da lei fosse a de abranger todas as obrigações pecuniárias, como se poderia depreender do seu texto, a implantação do preceito teria sido feita noutro lugar do sistema; nomeadamente no art.º 806º e não na área restrita da execução específica da prestação. Temos, por conseguinte, de entender que a sanção do adicional de juros de 5% se aplica apenas às cláusulas penais fixadas em dinheiro e às sanções penais decretadas pelo tribunal, nos termos prescritos no n.º 1 desta disposição" (vd. Pires de Lima e Antunes Varela, C. Civil Anotado, II, 43 Ed., 1997, P: 105, autores que dão Ex.os de obrigações de facto não fungíveis, loco cit., pp. 102-3, como é o caso da obrigação de realização de um determinado serviço ao cliente por parte de um médico, advogado, arquitecto ou engenheiro); no caso dos autos, a obrigação é pecuniária e de entrega de quantia certa, mas não é uma prestação de facto infungível, positivo ou negativo, pelo que, consequentemente, é de concluir não se encontrarem reunidos os legais pressupostos para o seu decretamento.

(…)”.


*

*


Da aplicação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2015

1. Dizem os recorrentes – conclusões 2 a 19 – que a integração da matéria de facto em falta, relativa à consciência da ilicitude, operada pelo tribunal recorrido, com recurso ao regime do art. 358º do C. Processo Penal, viola a jurisprudência uniformizada pelo Acórdão nº 1/2015, sem que tenha sido fundamentada a divergência, como é imposto pelo art. 445º, nº 3 do C. Processo Penal, devendo por isso ser anulada a sentença e decidida a sua absolvição, por não ser integrável em julgamento a verificada insuficiência da matéria de facto.

Oposta é a posição da Digna Magistrada do Ministério Público para quem, porque na questão sub judice não se verifica a omissão integral da descrição do elemento subjectivo mas apenas uma ‘indicação deficiente’ do mesmo, não lhe é aplicável o Acórdão nº 1/2015, por ter versado uma questão não totalmente coincidente com a dos autos, pelo que nada obsta a que seja aplicado o mecanismo do art. 358º do C. Processo Penal.

E em sentido contrário se pronunciou também o assistente para quem, nem a pronúncia, nem a sentença recorrida omitem os elementos subjectivos do crime de burla, como qualquer declaratário normal constatará, sendo a alteração da matéria de facto operada pelo mecanismo do art. 358º do C. Processo Penal inócua e despicienda, por apenas reproduzir um bordão que a prática judiciária acolhe mas sem valor funcional, lançando mão do princípio da irrelevância do desconhecimento da lei penal, e concluindo pela abusiva interpretação feita do Acórdão Uniformizador.

Distinta é já a posição do Exmo. Procurador-Geral Adjunto para quem, considerando, embora, a consciência da ilicitude como elemento parcelar do dolo, tendo a Relação, na anterior decisão, ordenado o cumprimento do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal, face ao trânsito ocorrido, não pode voltar a colocar-se a questão, não estando sequer em causa, portanto, qualquer desrespeito da jurisprudência uniformizada, mas o respeito pelo caso julgado.

O conhecimento da questão proposta aconselha, para uma mais fácil exposição e melhor entendimento, que se faça um relato breve das vicissitudes ocorridas, posto que se trata de segundo recurso interposto de decisão final conhecedora do objecto do processo. Vejamos então:

- Em 26 de Novembro de 2010 o assistente apresentou queixa contra os arguidos, imputando-lhes a prática de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217º, nº 1 do C. Penal, por lhe terem vendido, enganando-o, um veículo automóvel com muito maior quilometragem do que a que ostentava e por tal razão, por um preço muito superior ao do mercado;       

            - Em 24 de Outubro de 2011 a Digna Magistrada do Ministério Público arquivou o inquérito, essencialmente, com o entendimento de não estar suficientemente indiciado terem os arguidos usado de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocaram;

            - O assistente requereu a instrução e em 15 de Julho de 2012 o Mmo. Juiz de instrução pronunciou os arguidos pelo cometimento, em co-autoria, de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217º, nº 1 do C. Penal, constando do art. 1º do despacho que: «Os arguidos agiram sempre em comunhão de esforços e intentos, de modo livre, deliberado e consciente com intenção de obter enriquecimento ilegítimo, como lograram obter, de valor concretamente não determinado, com o correspondente prejuízo patrimonial para C... , através de artifício fraudulento resultante da viciação do valor da quilometragem do veículo (...) IS.»;  

            - Os arguidos foram submetidos a julgamento e em 21 de Maio de 2013 foi proferida sentença que os condenou, cada um, além do mais, pela prática do imputado crime, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 6;

- Tendo os arguidos recorrido, por Acórdão desta Relação de 22 de Janeiro de 2014, foi decidido o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do seu objecto, por se ter entendido existir o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, transcrevendo-se do mesmo, o seguinte trecho: «É sabido que a estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objectivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo directo – a intenção de realizar o facto – o dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta – e o dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta. Do que antecede decorre que a afirmação da existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática do facto. Ao nível do processo, esta exigência satisfaz-se com a prova e, consequentemente, com a menção no elenco dos factos provados, do conhecimento do agente da ilicitude da sua conduta, seja pela fórmula habitual, e algo conclusiva de, «bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei», seja por qualquer outra forma que descreva com objectividade este facto da vida interior do agente. O que não pode acontecer é ter-se por praticado o crime sem a prova da consciência da ilicitude.»;

- Os arguidos foram novamente submetidos a julgamento tendo, na secção da audiência de 23 de Fevereiro de 2015, sido comunicada aos arguidos a seguinte alteração não substancial de factos, «Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal», que logo declararam não aceitar, invocando o Acórdão nº 1/2015;

- Em 18 de Março de 2015 foi proferida a sentença recorrida que condenou, além do mais, cada um, pela prática do imputado crime, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 7.

Posto isto.

2. Ensina Figueiredo Dias que a culpa jurídico penal se revela através do tipo de culpa doloso e do tipo de culpa negligente, verificando-se o primeiro quando, perante um ilícito típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas. Esta atitude íntima, de sobreposição dos interesses do agente do facto ao desvalor do ilícito pressupõe que este, para além de representar e querer a realização do tipo objectivo (dolo do tipo) actue também com consciência do ilícito isto é, representando que o facto era proibido pelo Direito, em suma, actuando com consciência da ilicitude (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, 2004, Coimbra Editora, pág. 488 e ss.).

Assim, a consciência da ilicitude é momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa), o seu momento emocional, sendo, portanto, uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do tipo.

3. O Acórdão Uniformizador nº 1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015) fixou a seguinte jurisprudência:

A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.  

Contrariamente ao que afirma os recorrentes, a sentença recorrida não violou o disposto no art. 445º, nº 3 do C. Processo Penal por não ter fundamentado a divergência relativa à jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador porque, verdadeiramente, dela não divergiu. O que efectivamente sucedeu foi a consideração de que tal jurisprudência não era aplicável aos autos porque o aditamento de facto feito não correspondeu à totalidade do elemento subjectivo do tipo (dolo do tipo) e aos elementos do dolo da culpa, mas apenas a consciência da proibição ou consciência da ilicitude.   

É também este, se bem o percebemos, o entendimento da Digna Magistrada do Ministério Público, quando na contramotivação afirma que o Acórdão Uniformizador versou uma situação onde a descrição dos elementos constitutivos do tipo subjectivo do crime tinham sido omitidos na acusação e aditados, em julgamento, pelo mecanismo do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal quando nestes autos, ao invés de se verificar uma omissão integral, ocorre apenas uma indicação deficiente do elemento subjectivo do crime.

Vejamos então.  

3.1. Na Fundamentação do Acórdão Uniformizador, ponto 7., consta: «A questão que nos vais ocupar traduz-se em saber se, perante a omissão total ou parcial, na acusação, de elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito a que nela se faz referência, nomeadamente do dolo, o tribunal do julgamento pode, por recurso ao art. 358.º do CPP (alteração não substancial dos factos) integrar os elementos em falta.» (sublinhado nosso).   

Na Fundamentação, sétimo parágrafo do ponto 10.2.3.1, lê-se: «Escreve Figueiredo Dias, cujas ideias básicas, muito pela rama, intentamos transpor para aqui, que a razão de ser da diferença entre o regime do erro sobre proibições, cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para o agente tomar conhecimento da ilicitude (art. 16.º), conduzindo à exclusão do dolo do tipo, e o erro sobre o carácter ilícito do facto (art. 17.º), fundamentador do dolo da culpa, está em que «neste último caso, o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência intencional […]), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores (…), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger», ao passo que, no primeiro caso, trata-se da «falta de conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito (Direito Penal, cit., pp. 356 e ss. e 531 e ss.)».    

Também na Fundamentação, ponto 10.2.4., escreveu-se: «Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido referido, englobando a consciência ética ou a consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito.» (sublinhado nosso).    

Ainda na Fundamentação, ponto 11., fez-se constar: «Conexionado com o problema anterior, coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou de alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjectivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrado no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP. Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos.

11.1. Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP). Por conseguinte, tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respectivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – não conter a narração dos factos.

Claro que uma tal visão implica que os factos em falta na descrição constante da acusação (pressuposto que ela contém uma descrição relativa a outros factos) são essenciais, imprescindíveis, e o que falta corresponde à falta de narração a que se refere o normativo referido. Ou seja: a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objectivo do ilícito, sejam ao tipo subjectivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos, a propósito, nomeadamente, das teorias do objecto do processo, e a valoração especifica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.» (sublinhados nossos).      

Da leitura dos transcritos segmentos da Fundamentação do Acórdão Uniformizador resulta desde logo que, contrariamente ao defendido na sentença recorrida e na contramotivação do Ministério Público, a jurisprudência fixada não tem exclusivamente por objecto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjectivo do crime imputado.

Com efeito, se a utilização, no texto da jurisprudência fixada, da frase, «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem (…)» é já suficientemente abrangente para nele se incluir, para além da falta absoluta de descrição do tipo subjectivo, a falta relativa do mesmo tipo, entendida esta como a omissão de qualquer elemento dele constitutivo, a leitura dos segmentos da Fundamentação, supra transcritos, torna claro ter sido este, o propósito do Supremo Tribunal de Justiça.

3.2. Já dissemos que a consciência da ilicitude é uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do facto típico. Acresce, como elemento emocional, ao conhecimento e vontade de realizar o facto típico (elementos do dolo do tipo), traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso). Por isso, ela não pode deixar de constar da acusação.

Como se nota na Fundamentação do Acórdão Uniformizador, ponto 10.2.3., último parágrafo, «Tudo isso, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).». 

Assim, contrariamente ao pretendido pelo assistente, o aditamento feito em audiência de julgamento pelo tribunal recorrido, da expressão «Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal» não se traduz numa alteração inócua e despicienda, mera reprodução de bordão acolhido pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional, antes dá plena satisfação à necessidade ‘prática’ de remediar uma deficiente descrição [por omissão de elemento essencial] do tipo subjectivo de ilícito levada ao despacho de pronúncia [e que já ocorria no requerimento para abertura da instrução].

Por outro lado, face ao que fica dito, não pode aceitar-se a afirmação do assistente segundo a qual, em passo algum da pronúncia [já não, da sentença, face ao aditamento efectuado, ora questionado] são omitidos os elementos subjectivos do crime de burla, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor. É que, se a descrição do dolo genérico e do dolo específico do tipo da burla constam, sem margem para dúvidas, do despacho de pronúncia, eles, como vimos, integram o dolo do tipo, enquanto que a omissão apontada e aqui em questão, a omissão da consciência da ilicitude, se refere ao tipo de culpa doloso. 

3.3. Já sabemos que a consciência da consciência da ilicitude, traduzida, narrativamente, pela expressão usada pelo tribunal recorrido no aditamento que fez à matéria de facto, ou por qualquer outra, que comporte o respectivo conteúdo, deve constar da acusação. E deve constar, igualmente, do despacho de pronúncia, na medida em que, para efeitos de definição do objecto do processo, desempenham, este e aquela, a mesma função processual, se bem que em diferentes fases. Já na sentença, deve constar como provado, ou que o arguido actuou com consciência da ilicitude, ou que o arguido actuou sem consciência da ilicitude.

Entendíamos também, que a omissão da descrição de alguns elementos do tipo de ilícito, na acusação ou na pronúncia podia ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal.

O Acórdão Uniformizador nº 1/2015 veio fixar o sentido oposto a tal entendimento, impedindo o recurso ao dito mecanismo para integrar a deficiente descrição, por omissão narrativa, do tipo subjectivo do crime imputado, onde se inclui a consciência da ilicitude e determinando, consequentemente, que a deficiente ou incompleta definição do tipo subjectivo de ilícito conduza, necessariamente, à absolvição.

Embora nos pareça, tal como se afirma no primeiro voto de vencido ao Acórdão Uniformizador, que a jurisprudência fixada, com a implícita absolvição que pressupõe, alarga o campo da impunidade e cria uma manifesta desproporção entre o vício detectado – a deficiente definição do tipo subjectivo de ilícito – e a sua consequência – a dita absolvição – estes argumentos, não são, todavia, novos em relação à ponderação feita no Acórdão, e não existe, atenta até a recente prolação deste, corrente doutrinária ou jurisprudencial susceptível de alterar a ponderação efectuada. Por estas razões, dela não nos permite a lei divergir (cfr. art. 445º, nº 3 do C. Processo Penal).  

Deste modo, a questão suscitada nos autos só não estará abrangida pela jurisprudência fixada, posto que a comunicação da alteração não substancial de factos foi efectuada em momento posterior ao da publicação do Acórdão Uniformizador no diário oficial, se, tal como argumentou o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, se tiver formado já, caso julgado. Vejamos se assim é.

4. No acórdão da Relação de 22 de Janeiro de 2014, a fls. 527 e ss. dos autos decidiu-se revogar a sentença recorrida e determinar o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do seu objecto. E isto porque aí se entendeu padecer a sentença recorrida do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada por não constarem da matéria de facto como tal considerada, os factos reveladores de terem os arguidos actuado com consciência da ilicitude das respectivas condutas.

No mesmo acórdão, apenas se referiu que, para tal efeito, bastaria efectuar a respectiva comunicação, nos termos do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal, não constituindo tal procedimento atropelo à Constituição da República Portuguesa, conforme acórdão do Tribunal Constitucional aí identificado.

Portanto, em lado algum do acórdão da Relação de 22 de Janeiro de 2014 se ordenou o cumprimento do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal para integrar a omissão verificada no despacho de pronúncia quanto a um elemento integrante do tipo subjectivo do crime imputado, nem tal cumprimento constituiu fundamento de decisão proferida.

Assim, sendo, não se formou caso julgado cuja observância se imponha no processo.

5. Em conclusão do sobredito, a jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 1/2015 é aplicável à questão sub judice, o que significa que, por força dela, não pode ser atendido o aditamento à matéria de facto provada efectuada pelo tribunal recorrido, integrando na mesma o facto, «Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.».   

A inexistência, como provado, deste elemento do tipo subjectivo do ilícito imputado, mais concretamente, do dolo da culpa, impede a definição da conduta dos arguidos apurada nos autos, como conduta típica, ilícita e culposa, portanto, como crime.

Não havendo crime, resta a absolvição dos arguidos.


*

            A absolvição dos arguidos da prática do crime imputado, implica, por um lado, a absolvição dos mesmos relativamente à condenação no pedido de indemnização, decidida na sentença recorrida, uma vez que não se configura uma situação de responsabilidade extracontratual ou aquiliana (cfr. art. 377º, nº 1 do C. processo Penal e Assento nº 7/99, de 17 de Junho, in DR, I-A, de 3 de Agosto de 1999), e prejudica, por outro, o conhecimento das demais questões suscitadas nas conclusões do recurso.  

*


III. DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso.

Em consequência, revogam a sentença recorrida, absolvendo os arguidos da prática do imputado crime de burla e do pagamento da indemnização civil nela fixada.


*

Recurso sem tributação, atenta a sua procedência (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal).

*

Coimbra, 2 de Março de 2016


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves – adjunto)