Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
22/15.7GCACB-A-C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS MOTORIZADOS
GUIAS
SUBSTITUIÇÃO
LICENÇA DE CONDUÇÃO
Data do Acordão: 07/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (ALCOBAÇA – INST. LOCAL – SECÇÃO CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 69.º DO CP; ART. 121.º, N.ºS 1, 4 E 7, DO CE, E 4.º DO DL N.º 37/14, DE 14-03
Sumário: I - Se, nos termos do disposto nos artigos 121.º, n.ºs 1, 4 e 7, do CE, e 4.º do DL n.º 37/14, de 14-03, o condutor portador de uma guia de substituição da carta de condução está habilitado a conduzir, por certo período de tempo, no território nacional, por decorrência lógica e sistemática, o referido documento também opera para efeito de cumprimento de pena acessória de proibição de condução de veículos com motor.

II - Logo, se o arguido, em boa fé, entregou a guia de substituição da licença de condução e a secretaria do tribunal a recebeu, esta entrega tem de ser considerada relevante para o dito efeito.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

A... , arguido nos autos, veio interpor recurso do despacho que “determinou que, após o trânsito em julgado (do presente despacho), seja o arguido notificado para, no prazo de 10 (dez) dias, proceder à entrega da sua carta de condução e de quaisquer outros documentos que o habilitem à condução de veículos motorizados, na Secretaria deste Tribunal ou em qualquer esquadra de polícia, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática do crime de desobediência”.

E, da respectiva motivação extraiu as seguintes conclusões:

1. O Arguido cumpriu a pena de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses, tal pena extinguiu-se pelo seu cumprimento no dia 16/07/2015, pelo que foi nesta data entregue o Título de condução mais precisamente a guia de substituição do título e que era o documento que habilitava o Arguido a conduzir até 25/07/2015.

2. Assim não resulta qualquer prova que o Arguido não cumpriu com pena que foi condenado muito pelo contrário.

3. Não pode condenar duplamente o Arguido a cumprir pena pelos mesmos factos duas vezes.

4. O Tribunal Recorrido com o devido respeito não pode basear a sua decisão nos factos seguintes:

a) O Arguido entregou a guia de substituição do título de condução quando ainda não estava a decorrer o trânsito e julgado.

b) O Arguido na Audiência de Julgamento, não informou o Tribunal Recorrido, que tinha perdido o Título de condução e que apenas tinha a Guia de substituição, guia que veio porém a entregar ao Tribunal, documento que o habilitava a conduzir.

c) Também não participou às entidades policiais que tinha perdido o título de condução.

5. É por estes factos sem qualquer suporte de prova que o Tribunal ora Recorrido, condenou o Arguido a cumprir pena que já tinha sido cumprida anteriormente, violando todos os princípios orientadores do processo penal e violando de forma clara princípios constitucionais, como direitos e garantias que os Arguidos beneficiam perante a lei e mormente no processo penal.

6. Dúvidas não restam que a decisão proferida pelo Tribunal ora Recorrido, é nula, por violar de forma clara e infundada a lei penal e os seus princípios fundamentais nenhum cidadão, neste caso nenhum Arguido pode ser condenado duplamente pelos mesmos factos, não pode um Arguido ser condenado a cumprir a mesma pena duas vezes.

7. O Arguido cumpriu a pena que foi aplicada pelo Tribunal ora Recorrido, pelo que deve ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal em 21/12/2015, e declarar que a pena a que o Arguido foi condenado por sentença em 26/01/2015, encontra-se já cumprida, desde 16/07/2015.

8. O despacho datado de 21/02/2015 (?) pondo fim ao processo é recorrível nos termos do Artigo 391º C.P.P pelo que tem legitimidade e está a tempo o Arguido no presente Recurso.

9. O Arguido cumpriu os requisitos do artigo 500º do C. P. Penal, entregou o título que o habilitava a conduzir veículos motorizados em 16/02/2015 no Tribunal durante 5 meses, cumpriu a pena aplicada pelo Tribunal ora Recorrido, pelo que carece qualquer fundamento legal, a condenação por parte do Tribunal ora Recorrido de que o Arguido deverá entregar novamente a carta de condução para cumprir 5 meses de inibição de conduzir, o Arguido já cumpriu a pena, pelo que dúvidas não há que deverá ser revogada a Decisão agora recorrida, por ser nula, e declarar que a pena a que o Arguido foi condenado já foi cumprida e em consequência extinguiu-­se em 16/07/2015.

Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo defendendo a improcedência do recurso, tendo efectuado as seguintes considerações:

“o arguido não entregou a sua «licença [carta] de condução», mas uma guia de substituição, algo que a letra da lei não prevê para o cumprimento da pena acessória. E entende-se a razão de ser da entrega do próprio título de condução para cumprimento da pena acessória, já que a mera requisição de uma guia de substituição com alegação de extravio não demonstra o efectivo extravio do título de condução, não podendo tal documento equivaler – para efeitos de cumprimento da pena acessória – à entrega do próprio título de condução; caso contrário, abrir-se-ia a porta à possibilidade de fraude à lei, mediante simples entrega nos autos de uma guia de substituição e mantendo-se, paralelamente, a posse da «licença [carta] de condução» alegadamente extraviada, neutralizando por completo o efeito punitivo da proibição de condução imposta pela pena acessória.

In casu, o arguido recorrente invocou perante o IMT o extravio da sua carta de condução em 26.01.2015, dois antes da audiência de julgamento realizada nos presentes autos, à qual o arguido compareceu e na qual, após ter sido lida a condenação (…) não deu notícia do alegado extravio”.

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do recurso merecer provimento.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, o arguido não respondeu.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta do despacho recorrido (por transcrição):

Compulsados os autos, constata-se o seguinte:

Em 17-01-2015, o arguido A... foi detido em flagrante delito pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (cfr. auto de notícia de fls. 2), sendo que, nessa ocasião, exibiu o original da sua carta de condução (cfr. auto de inquirição de testemunha de fls. 119).

Em 19-01-2015, foram o arguido e a sua Ilustre mandatária notificados nos termos constantes de fls. 15, tendo requerido um prazo de 10 dias para preparação de defesa.

Nessa sequência, foram notificados de que a audiência de julgamento em processo sumário teria lugar em 28-01-2015 (cfr. fls. 16 a 19), o que efectivamente se verificou, tendo aí sido proferida sentença condenatória do arguido pela prática do assinalado crime de condução de veículo em estado de embriaguez, comunicando-se-lhe, além do mais, uma pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 5 meses, para cujo cumprimento o arguido foi desde logo notificado para no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado de tal sentença, proceder à entrega da sua carta de condução, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência (cfr. acta de fls. 31 a 35).

Ainda antes daquele trânsito em julgado, que só se verificou em 27-02-2015 (cfr. fls. 43), logo em 16-02-2015 veio o arguido juntar aos autos uma guia de substituição do seu título de condução, com validade até 25-07-2015 (fls. 39).

A aludida guia foi emitida em virtude de, em 26-01-2015, o arguido ter requerido a emissão de duplicado da sua carta de condução emitida em 13-12-2011, alegando extravio da mesma (cfr. informação prestada pelo I.M.T. a fls. 58 a 62).

Ou seja, aquando da prolação da sentença condenatória e da sobredita notificação para ulterior entrega da carta de condução, já o arguido havia formulado aquele requerimento junto do I.M.T. sem que, desde logo, disso tivesse dado conhecimento aos autos, como também se comprova, não só pela acta de fls. 31 a 35, como da audição, que levámos a cabo, da gravação da audiência de julgamento.

Entretanto, em 16-07-2015, foi devolvida ao arguido a guia de substituição que havia entregado nos autos (cfr. fls. 93-94), sendo que em 03-09-2015 lhe foi entregue pelo I.M.T. o duplicado da carta de condução emitido em 24-06-2015 (fls. 112).

Por último, e uma vez notificado para o efeito, veio o arguido informar a fls. 120 que não fez qualquer participação junto das autoridades policiais do extravio da carta de condução, cartões de crédito e dinheiro (que alegou ter sucedido no requerimento que deduziu junto do I.M.T.) por, além do mais, «[o]s cartões sem código não poderiam ser utilizados» e «o dinheiro como o Tribunal sabe perfeitamente nunca ia ''aparecer''; portanto participando iria certamente sair ao arguido mais dispendioso, pois entre participar, ser ouvido e tempo perdido em vão, decidiu que não seria de todo conveniente nem necessário participar às autoridades, porque o desfecho era o previsível».

Tais explicações, salvo o devido respeito, escapam por completo às mais elementares regras da experiência comum, podendo com facilidade inferir-se de toda a factualidade enunciada e, acima de tudo, do timing em que foi requerido o duplicado da carta de condução e da omissão de tal informação nos autos, nomeadamente em sede de audiência de julgamento, que o arguido continuou a ser portador do original de tal documento exibido às autoridades aquando da respectiva detenção em flagrante delito em 17-01-2015.

Deste modo, e aderindo de igual modo aos fundamentos aduzidos pelo Ministério Público a fls. 100, que aqui brevitatis causa se consideram reproduzidos, concluímos que o arguido, não obstante a entrega da guia de substituição em apreço, não cumpriu a pena acessória em que foi condenado.

Como tal, e em consequência, determino que, após o trânsito em julgado do presente despacho, seja o arguido notificado para, no prazo de 10 (dez) dias, proceder à entrega da sua carta de condução e de quaisquer outros documentos que o habilitem à condução de veículos motorizados na Secretaria deste Tribunal ou em qualquer esquadra de polícia, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática do crime de desobediência.

Notifique. ”.


***

APRECIANDO

Atendendo ao texto da motivação e respectivas conclusões, no presente recurso, a questão suscitada e a decidir consiste em saber: - se a entrega na secretaria do tribunal de uma guia de substituição da licença de condução equivale à entrega do próprio título de condução, para efeitos de cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir.


*

Pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez foi o arguido condenado nos presentes autos, para além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 5 meses.

Aquando da prolação da sentença foi o arguido notificado de que, para cumprimento de tal pena acessória, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da sentença, teria de proceder à entrega da sua carta de condução, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.

Em 16-2-2015 o arguido entregou no Tribunal a Guia de Substituição do título de condução (com validade até 25-7-2015) – fls. 39 e, decorridos 5 meses, a Guia de Substituição foi devolvida ao arguido, conforme Termo de fls. 93.

Tal Guia de Substituição foi obtida pelo arguido, em 26-1-2015 (2 dias antes da audiência de julgamento), junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P. (IMT), na sequência do seu requerimento que comunicou o extravio da carta de condução.

O IMT emitiu (em 24-6-2015) novo título de condução, o qual foi entregue ao arguido em 3-9-2015.

Considerou o despacho recorrido que, não obstante a entrega da Guia de Substituição, o arguido não cumpriu a pena acessória em que foi condenado, no pressuposto de que está indiciada a falsidade da alegação de extravio da carta de condução e de que o arguido continuou a ser portador do original de tal documento [e daí que tenha determinado a extracção de certidão para entrega aos serviços do Ministério Público, para eventual instauração de procedimento criminal pela prática do crime de falsificação (intelectual) de documento].

Entendemos que assiste razão ao recorrente e, por considerarmos de interesse os fundamentos invocados pelo Exmº PGA junto desta Relação, no seu Parecer, no sentido da procedência do recurso do arguido, passamos a transcrevê-los:

estamos perante um caso em relação ao qual até se pode supor que o arguido agiu de forma hábil de forma a escapar à efectiva inibição de conduzir veículos automóveis no período fixado na sentença, argumentando de forma falsa junto do IMT que a perdera.

Porém, esta situação teria que ficar devidamente comprovada nestes autos para ser possível a fundamentação de um despacho com as conclusões que tirou a decisão recorrida, o que a nosso ver não ocorre. Nem as diligências feitas através da GNR se mostraram eficazes nesse sentido, nem a alegação apresentada pelo arguido para justificar a apresentação da guia de substituição permitem, mesmo em conjugação com aquelas diligências, a conclusão segura no sentido de que o arguido manteve em seu poder a carta de condução original.

Então corre-se o risco de ordenar o cumprimento duas vezes da mesma pena acessória.

É que, também é certo que o tribunal aceitou com alguma passividade a guia de substituição da carta na entrega feita pelo arguido - sem que a tivesse devolvido de imediato e com rapidez procedesse a averiguações claras sobre o que se pudesse estar a passar. - E, curiosamente, como reconhece o douto despacho recorrido a guia foi entregue no tribunal no dia 16-02-2016 e foi devolvida no dia 16-07-2016, passados exactamente os 5 meses que o próprio tribunal decretara como período de inibição.

Por outro lado e bem no nosso entendimento, perante a suposição ou desconfiança de que o arguido poderá ter cometido alguma falsidade, foi a fls. 126, ordenada a extracção de certidão e envio ao Ministério Público para instauração de inquérito com vista a apurar se realmente existiu crime. Será então em sede própria que tal se esclarecerá com as devidas consequências.

Também por este motivo nos parece que falham os fundamentos seguros para se decretar agora o cumprimento da pena de inibição com base na nova carta de condução entregue pelo IMT, quando é certo que a guia de substituição tinha a mesma função da carta de condução, que era permitir legalmente o exercício da condução automóvel, no pressuposto de que o seu titular não tinha carta de condução em seu poder.

  A execução da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor encontra-se regulamentada nos artigos 69º do CP e 500º do CPP, dispondo os n.ºs 3 e 2, respectivamente, de ambos os preceitos, que no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.

Na resposta ao recurso diz o Magistrado do Ministério Público que o arguido não entregou a sua «licença [carta] de condução», mas uma guia de substituição, algo que a letra da lei não prevê para o cumprimento da pena acessória. E entende-se a razão de ser da entrega do próprio título de condução para cumprimento da pena acessória, já que a mera requisição de uma guia de substituição com alegação de extravio não demonstra o efectivo extravio do título de condução, não podendo tal documento equivaler – para efeitos de cumprimento da pena acessória – à entrega do próprio título de condução.

Diga-se, desde já, que não resulta comprovado nos presentes autos a prática de qualquer outro ilícito por banda do arguido, designadamente, o de falsificação (intelectual) de documento, ainda que, legitimamente, se suscite a dúvida sobre o extravio da carta de condução.

Como escreveu Figueiredo Dias ([1]) A realização da justiça e a descoberta da verdade material (ou mesmo só da primeira, já que também perante ela surge a descoberta da verdade como mero pressuposto) constituem, por consenso praticamente unânime, finalidade do processo penal. E assim é, por certo, logo no sentido de que o processo penal não pode existir validamente se não for presidido por uma directa intenção ou aspiração de justiça e de verdade.

Ora, quanto ao estabelecido nos artigos 69º, n.º 3 do CP e 500º, n.º 2 do CPP, deveremos ter presente que o sentido literal é apenas um conteúdo possível da lei.

O juiz deve em cada caso achar a norma ou a combinação de normas que se aplica ao facto concreto; e se para este trabalho as alegações dos interessados lhe podem fornecer sugestões, o juiz não está vinculado por elas, uma vez que pode aplicar princípios de direito não invocados pelas partes e até mesmo princípios de direito que as partes concordantemente excluíram ([2]).

Para além dos princípios gerais de direito, por força da supremacia constitucional, o Direito Penal tem as suas bases solidificadas em princípios constitucionais penais, próprios do Estado de Direito democrático, que impõem uma limitação ao jus puniendi do Estado.

Estabelece o artigo 121º do Código da Estrada, sob a epígrafe “Habilitação legal para conduzir”:

«1- Só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito. (…)

4- O documento que titula a habilitação legal para conduzir ciclomotores, motociclos, triciclos, quadriciclos pesados e automóveis designa-se «carta de condução». (…)

7- O IMT, I.P., as entidades fiscalizadoras e outras entidades com competência para o efeito podem, provisoriamente e nos termos previstos na lei, substituir as cartas e licenças de condução por guias de substituição, válidas apenas dentro do território nacional e para as categorias constantes do título que substituem, pelo tempo julgado necessário ou, quando for o caso, pelo prazo que a lei diretamente estabeleça. (…)»

E, dispõe o artigo 4º do DL n.º 37/14, de 14 de Março ([3]) sob a epígrafe “Substituição das cartas”:

«A requerimento dos respetivos titulares, os serviços desconcentrados do IMT, I.P., substituem as cartas de condução com fundamento em:

a) Extravio, furto ou roubo;

b) Deterioração do original;

c) Alteração nos dados pessoais.»

Portanto, prevê a lei a existência de guias de substituição das cartas e licenças de condução, válidas apenas dentro do território nacional.

Ora, se o condutor portador de uma guia de substituição da carta de condução está habilitado a conduzir no território nacional, guia que quando concedida é válida para determinado período de tempo, tal significa que tais documentos (guia de substituição e carta de condução) se equivalem para o exercício da condução e, consequentemente para efeitos de cumprimento da pena acessória.

Se a proibição de conduzir veículos motorizados implica para o condenado que for titular de licença de condução, a obrigação de a entregar na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, a mesma consequência se verifica quando o condenado em vez da carta de condução tem uma guia de substituição válida, estando também obrigado a entregá-la nos mesmos locais.

No caso vertente, não resultando dos autos que o arguido tivesse outro título de condução para além da guia de substituição, tendo-a entregue no tribunal para cumprimento da pena acessória, ficou impossibilitado de conduzir por 5 meses, tendo ficado a pena acessória integralmente cumprida.

Princípio essencial, fundador e conformador do processo penal (...), o princípio do processo equitativo, na dimensão de “justo processo” (“fair trial”; “due process”), é integrado por vários elementos, um dos quais se afirma na confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual; os interessados não podem sofrer limitação ou exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar: é o princípio da confiança na boa ordenação processual determinada pelo juiz.

O processo equitativo, como "justo processo", supõe que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa. Mas determina também, por correlação ou contraponto, que as autoridades que dirigem o processo, seja o Ministério Público, seja o juiz, não pratiquem actos no exercício dos poderes processuais de ordenação que possam criar a aparência confiante de condições legais do exercício de direitos, com a posterior e não esperada projecção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que depositaram confiança no rigor e na regularidade legal de tais actos.

A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.” – entendimento perfilhado nos acórdãos do STJ, de 3-3-2004 (03P4421) e de 16-12-2010 (287/99.0TABJA-B.E1-A.S1), disponíveis in www.dgsi.pt.

 

Sobre o princípio da protecção da confiança, pronunciou-se o TC, no Acórdão n.º 94/2015, nos seguintes termos:

“Como é sabido, a tutela constitucional da confiança emana do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição. De acordo com Gomes Canotilho e Vital Moreira, o princípio do Estado de direito “mais do que constitutivo de preceitos jurídicos, é sobretudo conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia de sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança” (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição, Almedina, Coimbra, pág. 205).

Acrescentam ainda estes autores que “não está à partida excluída a possibilidade de colher dele normas que não tenham expressão direta em qualquer dispositivo constitucional, desde que elas se apresentem como consequência imediata e irrecusável daquilo que constitui o cerne do Estado de direito democrático, a saber, a proteção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça (especialmente por parte do Estado)” (cit., pág. 206).

Ora, um dos princípios que surge como projeção irrecusável do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, é justamente o princípio da segurança jurídica ou da proteção da confiança.

A garantia de segurança jurídica, traduz-se, no plano subjetivo, na ideia de proteção da confiança dos particulares relativamente à estabilidade, continuidade, permanência e regularidade das situações e relações jurídicas vigentes, proteção essa que vale em relação a todas as áreas de atuação Estadual, mediante exigências que são dirigidas à Administração, ao poder judicial e, particularmente, ao legislador.”

O arguido não interpôs recurso da sentença que o condenou na pena acessória em causa e, submetendo-se à decisão entregou a guia de substituição que lhe permitia conduzir.

Logo, se o arguido, na sua boa fé, entregou a guia de substituição da licença de condução e a secretaria a recebeu, esta entrega tem de ser considerada relevante para efeitos de cumprimento da pena acessória.

O princípio da protecção da confiança e segurança jurídica pressupõe um mínimo de previsibilidade em relação aos actos do poder, de molde a que a cada pessoa seja garantida e assegurada a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos actos que pratica - cfr. Ac. do STJ, de 2-5-2012, proferido no proc. 218/03.4JASTB.S1 e disponível in www.dgsi.pt.

Por conseguinte, a boa fé e a confiança devem ser tuteladas para que os interessados não sejam surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar.

 Na situação dos autos, o arguido confiou que, com a entrega da guia de substituição no tribunal, a qual foi aceite por funcionário judicial, naquela data estava a dar início ao cumprimento da pena acessória em que havia sido condenado; pena que foi integralmente cumprida.

Em boa verdade, o processo justo e leal e a boa fé e a confiança, como elementos do princípio do processo equitativo, não permitem admitir outra solução.

A manter-se o despacho recorrido, determinando-se o cumprimento da pena acessória tendo em conta a nova carta de condução emitida em 24-6-2015 e entregue ao arguido em 3-9-2015, significava que o arguido iria cumprir duas vezes a mesma pena acessória.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que julgue extinta a pena acessória aplicada ao arguido nos presentes autos.

Sem tributação.


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Coimbra, 13 de Julho de 2016 

(Elisa Sales - relatora)

(Paulo Valério - adjunto)


[1] - in Direito Processual Penal, pág. 30.
[2] - Francesco Ferrara in Interpretação e Aplicação das Leis, traduzido por Manuel de Andrade, 2ª edição, 1963, pág. 113.
[3] - DL que altera o DL n.º 138/2012, de 5 de Julho, que introduz diversas alterações ao Código da Estrada e aprova o novo Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, transpondo parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/126/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Dezembro, relativa à carta de condução.