Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
222277/09.3YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
DÍVIDA DA MASSA
ACTOS DE LIQUIDAÇÃO
Data do Acordão: 01/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.51, 55, 164 CIRE
Sumário: 1. O disposto no artº 51º do CIRE tem natureza vinculativa e tendencialmente imperativa, apenas podendo ser postergado ex vi lege que, expressa e inequivocamente, o imponha, e não por uma qualquer manifestação de vontade mesmo que exprimida pelos órgãos primeiros e tutelantes do processo, a saber: o administrador da insolvência e a comissão de credores.

2. Destarte, se estes órgãos acolhem a intervenção de uma sociedade para a efectivação da venda dos bens da massa, maxime se não justificam sua a imprescindibilidade ou necessidade para exercer tal função que competia ao administrador - artº 55º nº1 al.a) -, a remuneração daquela não corre por conta do adquirente dos bens, antes constituindo dívida da massa, nos termos daquele preceito.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

LEILOEIRA (…), LDA. apresentou requerimento de injunção contra BANCO (…), S.A.

 Pedindo:

 A condenação desta no pagamento da quantia de €54.256,69 (cinquenta e quatro mil, duzentos e cinquenta e seis euros e sessenta e nove cêntimos), sendo €50.041,83€ a título de capital em dívida, €2.515,39€ a título de juros de mora vencidos, €1.500,00 a título de outras quantias e €76,50 pela taxa de justiça paga.

Para tanto alegou:

 Que no âmbito da sua actividade apresentou uma  proposta para proceder à venda dos bens da massa insolvente da sociedade (…) cujo  processo corre seus termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Alenquer, sob o n.º 817/07.5TBALQ, proposta que  foi aceite pela comissão de credores.

 Que na sequência dessa proposta procedeu à venda de determinados bens imóveis à requerida, emitindo a factura n.º 272 de 22/12/2008 no valor de €50.164,80 que, apesar de todas as interpelações, não se mostra paga.

A ré deduziu oposição.

Alegando, em síntese, que:

 a) nunca teve qualquer relação comercial com a  requerente, nem beneficiou de quaisquer serviços por si prestados, nem adquiriu no aludido processo de  insolvência quaisquer imóveis com interferência da requerente e/ou em leilão por ela organizado;

 b) o património imobiliário foi adquirido pelo (…) na sequência de interpelação que lhe foi dirigida pelo Sr. Administrador de Insolvência, ao abrigo do art. 164º do CIRE;

c) a proposta feita pelo (…) foi aceite pelo Sr. Administrador de Insolvência no que concerne a três dos imóveis aí indicados;

 d) a existir o alegado crédito será um crédito sobre a massa insolvente e não sobre o (…).

Os autos foram distribuídos como acção declarativa de condenação sob a forma ordinária, nos termos do  disposto no art. 7º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro.

Replicou a autora.

Dizendo que seus serviços não se resumem à realização de leilões compreendendo ainda o processamento de documentação relativa a bens imóveis,  arrolamentos, apreensões, preparação e organização de lotes, remoção de bens móveis, seu transporte e  armazenagem, avaliação,  divulgação e amostragem no sentido de mobilizar o maior número de interessados na aquisição dos bens da massa.

Que propôs à Comissão de Credores que os seus serviços  fossem remunerados através de uma comissão de 1% sobre o valor obtido em cada imóvel vendido, comissão  essa que deveria acrescer ao preço da venda estabelecido e a pagar directamente pelo interessado adquirente à  autora.

2.

Prosseguiu o processo os seus legais termos, tendo a final, sido proferida sentença que:

Julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) condenou a ré a pagar à autora a quantia de €52.680,19 (cinquenta e dois mil, seiscentos e oitenta euros e dezanove cêntimos);

b) julgou improcedentes os demais pedidos formulados pela autora no seu requerimento inicial.

3.

Inconformada recorreu a ré.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª- O Recorrente não é devedor da quantia que lhe é exigida pela Recorrida e que corresponde a uma comissão de 1%, acrescida de IVA, calculada sobre o preço de aquisição de património adquirido pelo primeiro no âmbito de insolvência;

 2ª- As condições de remuneração da Recorrida foram fixadas pelo Senhor Administrador da Insolvência, suportado por deliberação da comissão de credores (de que o (…) não faz parte), tendo sido determinado que o comprador suportaria a comissão;

3ª- O (…) nunca manifestou a sua anuência ao descrito esquema remuneratório, nem adquiriu o património no leilão organizado pela Recorrente onde essas condições terão sido anunciadas (aí não esteve, através de representante, presente);

3ª- O (…) adquiriu o património em causa no âmbito do exercício do direito que lhe é consignado, enquanto credor hipotecário, pelos nºs 2, 3 e 4 do art. 164.º do CIRE;

 4ª- O (…) foi notificado nos termos do n.º 2 desse art.º em 21/7/2008, realizou a sua proposta em 5 de Novembro de 2008, o leilão ocorreu em 4 de Dezembro de 2008 e a escritura de compra e venda ocorreu em 29 de Dezembro de 2008;

5ª- O Recorrente nunca assumiu qualquer relação com a “(…).” (a sua obrigação não teria, em hipótese alguma, como fonte, a vontade das partes);

6ª- Tão pouco, esse dever de pagar a comissão à Recorrida, resulta de uma qualquer fonte legal (não se pode extrair esse sentido do disposto no n.º 1 do art.º 164.º do CIRE ou de qualquer outra disposição do código);

 7ª- Tão pouco a comissão de credores e/ou o administrador da insolvência têm o poder de criar unilateralmente esse dever na esfera do Recorrente;

8ª- A divida reclamada pela (…), Lda.” é uma divida da massa nos termos do artigo 51.º n.º 1 alínea c) do CIRE, pelo que deverá ser a mesma a suportá-la;

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685º-A do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Deve, ou não, a ré, como adquirente de bens da massa insolvente, pagar a comissão da venda dos bens anuída pela encarregada da venda com o administrador e a comissão de credores.

5.

Os factos provados e a considerar são os seguintes:

1) A autora é uma sociedade unipessoal por quotas que se dedica à realização de leilões judiciais e  particulares, avaliações, administração e compra e venda de propriedades.

2) No âmbito da sua actividade, a autora apresentou, a 28 de Maio de 2008, uma proposta para  proceder à venda dos bens da massa insolvente da sociedade “(…) cujo processo  corre seus termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Alenquer, sob o n.º 817/07.5TBALQ, conforme doc. n.º 1,  junto a fls. 33 a 35, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

3) Na referida proposta a autora ofereceu como condições de remuneração um valor de comissão sobre  o valor da venda, a suportar pelos respectivos adquirentes, de 1% relativamente aos bens imóveis e 3%  relativamente aos bens móveis, conforme doc. n.º 1, junto a fls. 33 a 35 cujo teor se dá aqui por integralmente  reproduzido.

4) No dia 16 de Junho de 2008, a Comissão de Credores da Massa Insolvente (…).” decidiu por unanimidade adjudicar a venda do património à Leiloeira (…)., ora autora, conforme acta número dois, constante do doc. 2, junto a fls. 38 a 43, cujo teor se dá aqui por  integralmente reproduzido.

5) No dia 5 de Novembro de 2008, a ré dirige uma carta registada com aviso de recepção ao Dr. (…), Administrador da Insolvência nomeado no âmbito do aludido processo n.º 817/07.5TBALQ, propondo a aquisição de património imobiliário integrado na massa insolvente da “(…) nos seguintes termos:

-fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao rés-do-chão, loja “B” por  €85.000,00 (oitenta e cinco mil euros);

-prédio urbano para construção sito no X..., freguesia de Y..., por  €375.000,00 (trezentos e setenta e cinco mil euros);

-prédio misto sito na Z..., K..., freguesia do W..., por €1.823.400,00 (um  milhão, oitocentos e vinte e três mil e quatrocentos euros);

-prédio urbano sito ou denominado “ ...”, limite de Q..., R..., S..., por  €1.982.000,00 (um milhão, novecentos e oitenta e dois mil euros).

6) A autora divulgou a venda dos bens da insolvente, tendo ficado designado o dia 4 de Dezembro  de 2008 para a realização da venda extrajudicial através de leilão, no Hotel T..., na Av. U..., na  cidade de V..., pelo valor base determinado para cada verba, dos seguintes bens:

Verba 19: fracção autónoma designada pela letra “B”, sito Edifício “ ...”, Rua ..., n.º 4B, W..., correspondente ao r/c loja B destinada a comércio, serviços, indústria e/ou restauração  composta por uma divisão ampla e duas casas de banho, a confrontar a Norte com ..., a Sul com   ..., Lda., a Nascente com ... e ..., a Poente com ...,  inscrito no artigo matricial ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., da freguesia  de W..., concelho de M..., pelo valor base de €85.000,00;

Verba 20: fracção autónoma designada pela letra “ED”, sito Empreendimento “ ...” – ..., W..., correspondente ao 1º-A, Bloco K, do prédio em regime de propriedade horizontal,  composto por T2 para habitação, com uma área bruta privativa de 94,60 m2 e área bruta dependente de 22,50  m2, a confrontar a Norte com Estrada e Herdeiros de ..., a Sul com Estrada e  Herdeiros de ..., a Nascente com Herdeiros de ...e a Poente com  Estrada e Herdeiros de ... e ..., inscrito no artigo matricial   ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...da freguesia do W..., concelho  de M..., pelo valor base de €78.750,00;

Verba 21: fracção autónoma designada pela letra “EM”, sito Empreendimento “ ...” – ..., W..., correspondente à CV2 (garagem n.º 2) do prédio em regime de propriedade horizontal,  composto por estacionamento coberto no piso menos um, com uma área bruta privativa de 40,10 m2, a  confrontar a Norte com Estrada e Herdeiros de ..., a Sul com Estrada e Herdeiros  de ..., a Nascente com Herdeiros de ... e a Poente com Estrada e  Herdeiros de ... e ..., inscrito no artigo matricial ...  e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., da freguesia do W..., concelho de   M..., pelo valor base de €12.000,00;

Verba 22: prédio urbano sito em ..., freguesia e concelho do W..., composto por  29 fogos com três pisos mais cave e quarenta e quatro estacionamentos, mas ainda inscrito no artigo matricial   ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., da  freguesia do W..., concelho de M..., pelo valor base de €1.823.400,00;

Verba 23: prédio urbano sito Estrada de Q..., freguesia de R..., concelho de S...,  composto por 22 moradias em construção, inscrito no artigo matricial n.º ...do Serviço de Finanças do   S... e descrito na Conservatória do Registo Predial do S... sob o n.º ..., pelo valor base de  €1.982.000,00;

Verba 24: prédio urbano sito Estrada de ..., Parcela B, X..., freguesia e  concelho de Y..., composto por moradia em construção, inscrito no artigo matricial n.º ... do  Serviço de Finanças de Y... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Y...  sob o n.º ..., pelo valor base de €375.000,00.

Verba 25: prédio urbano sito junto à Rua ..., freguesia e concelho de F..., composto por 75 fogos, 74 arrecadações e 151 estacionamentos de cave, 35 lugares no exterior e  2 lugares de boxes para velocípedes, inscrito no artigo matricial n.º F... do Serviço de Finanças de F... descrito na Conservatória do Registo Predial de Y... sob o n.º F..., pelo valor base de €4.905.650,00.

7) Por determinação do Sr. Administrador da Insolvência e com acordo da Comissão de Credores  procedeu-se à venda extrajudicial dos referidos bens imóveis, tendo havido propostas para todos os bens  referidos com excepção da verba 25, sendo que os valores obtidos foram os seguintes:

Verba 19: €86.000,00;

Verba 20: €81.000,00;

Verba 21: €12.000,00;

Verba 22: €1.823.400,00;

Verba 23: €1.982.000,00;

Verba 24: €375.000,00.

8) A verba 19 foi licitada por um valor superior ao oferecido pela ré pelo que foi vendida ao  respectivo licitante.

9) As verbas 22, 23 e 24 foram vendidas à ora ré.

10) A autora emitiu a factura n.º 272, datada de 22 de Dezembro de 2008, no valor de  €50.164,80, constante de fls. 45, que aqui se dá por integralmente reproduzida.

11) A referida factura não se mostra paga.

6.

Apreciando.

6.1.

A Sra. Juíza a quo fundamentou a sua posição com o seguinte discurso argumentativo:

«A posição da ré firma-se na ideia de que a aquisição dos imóveis (verbas 22, 23 e 24) não teve  qualquer intervenção da ora requerente, tendo decorrido da mera interpelação do administrador da insolvência  ao abrigo do art. 164º, n.º 2, do CIRE.

Ora, tal não corresponde rigorosamente à verdade. Não obstante as verbas 22, 23 e 24 terem sido  adjudicadas à ré, o certo é que foram levadas a leilão, só tendo sido atribuídas ao (…) em virtude de não ter  surgido proposta superior, o que não consome nem inutiliza a actividade prestada pela autora. Na verdade, esta  prestou os seus serviços, pelos quais deve ser remunerada. Como qualquer empresa do seu ramo, a sua  actividade não se resume à venda propriamente dita, mas envolve toda uma panóplia de actividades... 

No caso concreto, como se percebe dos documentos juntos, designadamente de fls. 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64 e 65 a 75, a autora promoveu e divulgou o património a liquidar, possibilitando assim a valorização do  mesmo e, consequentemente, a mobilização do maior número de interessados para a aquisição dos bens em  causa, para assim atingir o objectivo último – a venda do património pelo melhor preço oferecido -o que  beneficiaria, em última análise, todos os credores (também a ora ré). De facto, como decorre dos documentos  juntos – relatório dos trabalhos prestados (fls. 49 a 57), anúncios por si publicados, com a descrição dos bens a  vender em leilão (fls. 58 a 68) e através de propostas em carta fechada (fls. 69 a 75) e negociação directa de  onde constam, entre o mais, os imóveis adquiridos pelo (…) – a autora levou a cabo todos os procedimentos  prévios que permitiram a aquisição dos bens da massa insolvente.

Além do mais, tal prestação de serviços foi decidida pelo Administrador da Insolvência e pela  Comissão de Credores que aceitaram as condições propostas pela autora, designadamente o pagamento pelos  adquirentes da comissão de 1% sobre o valor obtido em cada bem imóvel vendido, cláusula constante no Ponto 4  do Regulamento a fls. 64 dos autos, o que vincula também a ora ré

Pelo exposto, dúvidas não restam que a autora prestou de facto os serviços para os quais foi  contratada, sendo que a venda de património envolve múltiplas operações e pode culminar em leilão ou mesmo  aquisição dos bens através de outras modalidades de venda.

A requerida termina dizendo que tal é dívida da massa insolvente. De facto, o art. 51º, n.º 1, alínea  c), do CIRE dispõe que “salvo preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente, além de outras  com tal qualificadas neste Código: as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da  massa insolvente”. No entanto, tal regime é supletivo e nada obsta a que os credores decidam de forma diversa.»

(sublinhado nosso).

6.2.

Não se pode, salvo o devido respeito, sufragar este entendimento.

Vejamos.

Importa, desde logo e ab initio, atentar na natureza e finalidades do regime jurídico do actual CIRE.

Rompendo com o regime anterior, este diploma consagra um claro retorno ao princípio da falência liquidação em benefício dos credores em prejuízo da recuperação da empresa como era previsto nos artigos 1º, 2º e 3º do CPEREF.

Na verdade, esta última finalidade, de natureza manifestamente secundária, quasi incidental – artigo 195º nº 2 alínea b) do CIRE - só surge na medida em que é instrumento ao serviço do interesse dos credores.

Assim no processo de insolvência foi atingido um elevado grau de desjudicialização, auto-regulação e suplectividade.

Tendo em vista  e como objectivo precípuo a eficiente e célere satisfação dos  seus direitos e interesses – cfr. José Lebre de Freitas in Revista Themis, da Faculdade de Direito da UNL, 2005, p.12 e segs.

 Para a consecução da mencionada finalidade fulcral, foram atribuídos poderes acrescidos aos credores, rectius á respectiva comissão, e ao administrador.

6.3.

Não obstante, a vontade destes não pode ser em si mesmo absolutamente considerada e manifestar-se de uma forma  infundamentada e arbitraria, mas antes devendo ser reportada ao respeito da legalidade e manifestadora de condições de igualdade, proporcionalidade e equidade.

 Até porque assumindo-se os seus interesses, na maioria das vezes, mais de índole privada do que publica ou comunitária, inexiste necessidade ou dever de uma posição hermenêutica que, de algum modo, reflicta ou conflua para uma sua especial protecção.

Nesta conformidade, se, no processo, os credores são os principais tutelados e beneficiários, terão, também, de suportar, em homenagem ao velho brocardo ubi commodum ibi incommodum, os correlativos custos, vg. os dos tramites necessários à obtenção dos seus benefícios.

Naturalmente  que dentro e por reporte à melhor e mais razoável interpretação do legalmente estatuído.

6.4.

Urge, destarte, atentar no artº 51º, o qual, e no que para o caso interessa, preceitua no seu nº1 al.c) que: «salvo preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente, além de outras com tal qualificadas neste Código: as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da  massa insolvente

Verifica-se assim que, versus o defendido pela Sra. Juíza, a suplectividade deste  normativo  apenas  emerge se outro preceito legal o contrariar.

E o contrariar não de modo implícito ou velado, mas antes expressa e inequivocamente.

Afora esta curta e claramente demarcada hipótese de infirmação do preceito, ele assume-se como vinculativo e imperativo – cfr. Ac. da Relação do Porto de 18-06-2009, dgsi.pt, p. 269/07.0TYVNG-O.P1.

Não podendo, obviamente, e no que para o caso interessa, ser postergado pela mera vontade dos intervenientes processuais, mesmo que os mais directamente interessados, como sejam os credores - cfr Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE, Anotado, 2ª ed., 2008, pág. 239.

Ora os actos tendentes à efectivação da venda constituem actos de  liquidação.

E não se alcança, desde logo no regime do CIRE, norma que, ademais expressa e inequivocamente, para tais actos excepcione a tal princípio.

6.5.

Acresce, in casu, o seguinte:

A alienação dos bens que integram a massa insolvente – rectius a prática de todos os actos necessários para a mesma – pode e deve ser efectivada pelo administrador da insolvência, ele mesmo – artº 55º nº1 al.a) do CIRE.

Certo é que o administrador pode ser coadjuvado – em todo o caso sob a sua responsabilidade – por técnicos ou outros auxiliares, os quais podem, ou não, ser remunerados – nº3 do artº 55º.

Todavia, sendo certo que é suposto que o administrador reúne os requisitos, pessoais e técnicos, necessários e os conhecimentos suficientes para bem desempenhar as funções que lhe são legalmente atribuídas, apenas, pelo menos por via de regra, em casos excepcionais e devidamente justificados é admissível que se socorra de tal coadjuvação.

Pois que, e designadamente, ela acarretará, em termos de normalidade, custos acrescidos para a massa.

Ora no caso vertente não se alcança que tal justificação tenha sido aduzida.

Podendo assim aceitar-se como bom que o despoletamento da intervenção da ora autora para a efectivação da venda mais se deveu a algum comodismo ou a procura de segurança no processo de venda –  mas sem que, todavia, se tenha demonstrado não poder ser tal segurança consecutida  apenas com a intervenção do administrador - do que  a  uma necessidade estrita.

 E, assim, ela se revelando, pelo menos até certo ponto, desnecessária ou supérflua.

Qual a conclusão útil a retirar para o caso sub judice de tal actuação?

A de que, se a lei onera a massa com os custos de actos de liquidação  necessários e imprescindíveis, por maioria de razão – argumento a fortiori – a deve onerar com o custo de actos relativamente aos quais não emirja tal jaez, mas que, mesmo assim, o administrador e os credores adoptaram e sancionaram.

Não tendo ficado demonstrada a imprescindibilidade da intervenção no processo da autora para a realização dos actos tendentes à venda, os efeitos jurídicos decorrentes da sua convocação  e  intervenção e os direitos e deveres inerentes a tal, apenas se reportam e vinculam a autora como proponente ou chamada e o administrador e a comissão de credores enquanto chamantes e aceitantes.

E não podendo ser repercutidos na esfera jurídico-patrimonial de terceiros, alheios a tal intervenção, como sejam os adquirentes dos bens da massa.

Procede o recurso.

6.

Sumariando.

I. O disposto no artº 51º do CIRE tem natureza vinculativa e tendencialmente imperativa, apenas podendo ser postergado ex vi lege que, expressa e inequivocamente, o imponha, e não por uma qualquer manifestação de vontade mesmo que exprimida pelos órgãos primeiros e tutelantes do processo, a saber: o administrador da insolvência  e a comissão de credores.

II. Destarte, se estes órgãos acolhem a intervenção de uma sociedade para a efectivação da venda dos bens da massa, maxime se não justificam sua a imprescindibilidade ou necessidade para exercer tal função que competia ao administrador - artº 55º nº1 al.a) -, a remuneração daquela não corre por conta do adquirente dos bens, antes constituindo dívida da massa, nos termos daquele preceito.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e, consequentemente, na revogação da sentença, absolver a ré/recorrente do pedido.

Custas pela massa.


CARLOS MOREIRA (RELATOR)
MOREIRA DO CARMO
ALBERTO RUÇO