Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8656/17.9T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: EXECUÇÃO
LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
EXCEPÇÃO DE PREENCHIMENTO ABUSIVO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 02/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTS. 75, 76, 77 LULL
Sumário: I – O carácter literal, autónomo e abstracto da obrigação cambiária implica que contra ela não possa ser deduzida uma oposição por mera impugnação do valor que se encontra inscrito no título; a pretensão cambiária só poderá ser paralisada por força da invocação de excepções ou vicissitudes próprias da acção cambiária ou, caso o título se encontre no âmbito das relações imediatas, por força da invocação de excepções fundadas na relação subjacente ou fundamental, cabendo, em qualquer caso, ao devedor o ónus de alegação e prova das concretas excepções que venha invocar.

II – Invocando o devedor a excepção de preenchimento abusivo do título de crédito, é sobre ele que recai o ónus de alegar e provar os respectivos pressupostos: a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

O B (…), S.A., com sede na Rua (...) a, veio instaurar execução contra A (…) e M (…) residentes (…), (...) , pedindo o pagamento da quantia de 5.055,93€ e apresentando como título executivo uma livrança subscrita pelos Executados.

 Alegou que tal livrança foi subscrita em branco, como garantia de pagamento das obrigações emergentes de um contrato de financiamento para aquisição a crédito e que, ao abrigo de acordo de preenchimento do título, aquela livrança destinava-se a ser preenchida pela Exequente em caso de incumprimento daquelas obrigações, incumprimento que veio a ocorrer.

Além de deduzir oposição à penhora, a Executada, M (…), veio deduzir oposição à execução, alegando que, ao preencher a livrança, a Exequente violou o pacto de preenchimento.

Alega, em resumo: que a Exequente preencheu abusivamente a referida livrança quando colocou a data de emissão (uma vez que esta data deveria corresponder à data de celebração do contrato) e quando colocou como data de vencimento a data de 10 de Julho de 2017 (uma vez que a Exequente denunciou o contrato antes dessa data); que as datas apostas nas livranças são arbitrárias e abusivas por não respeitarem a vontade presumida da executada decorrente do acordo de preenchimento, pelo que tais menções são nulas, tudo se passando como se a livrança não tivesse sido preenchida nem com data de emissão nem com data de vencimento; que a falta dessas menções invalida o título cambiário; que, além do mais, a Exequente também procedeu ao preenchimento abusivo da livrança quando colocou a quantia em dívida uma vez que não era esse o valor devido; que a Exequente apenas tem direito à diferença entre as rendas devidas até ao fim do contrato e o valor comercial do veículo objecto do contrato (veículo que os Executados entregaram à Exequente e que esta vendeu por 3.400,00€ acrescido de IVA) e esse valor é muito inferior ao valor aposto na livrança, tendo em conta que o empréstimo concedido foi de 12.000,00€, foram pagas algumas prestações e o veículo foi vendido pela Exequente pelo valor de 4.182,00.

Mais alega que, ao ter preenchido a livrança com um valor em muito superior ao que lhe era devido pelos Executados, em violação clara do pacto de preenchimento, a Exequente violou de forma clamorosa e chocante as regras da boa-fé, actuando com abuso de direito.

Conclui pedindo:

a) Que seja declarada procedente a excepção de preenchimento abusivo da livrança dada à execução, por violação do pacto de preenchimento ao ser aposto naquele título uma data de emissão e de vencimento distinta das reais e, em consequência, serem declaradas nulas as referidas menções apostas na livrança, tudo se passando como se a livrança não tivesse sido preenchida nem com data de emissão nem com data de vencimento;

b) Que, em consequência, seja declarado inválido o título cambiário (livrança), não podendo o mesmo produzir efeitos como livrança nos termos dos artigos 75º, nº 6 e 76º da LULL na medida em que a data da emissão e do vencimento é um requisito essencial da mesma;

c) Que, não tendo sido apresentado título executivo válido, a presente execução seja declarada extinta por falta de título executivo válido;

Caso assim não se entenda, pede:

a) Que seja declarada procedente a excepção de preenchimento abusivo da livrança dada à execução, por violação do pacto de preenchimento ao ser aposto naquele título um valor superior ao valor em dívida à data do seu vencimento;

b) Que, em consequência, a presente execução prossiga para pagamento da quantia que se vier apurar;

c) Que seja declarado que a Exequente não tem direito, no caso dos presentes autos, ao pagamento de qualquer indemnização nomeadamente, ao pagamento da indemnização sob pena de enriquecimento ilegítimo daquele;

d) Que seja declarado que a Exequente agiu em manifesto abuso de direito e com má-fé.

Foi proferido despacho onde se referiu que cabia à Executada o ónus de alegação e de prova de que estava em causa uma livrança subscrita em branco, do teor do respectivo pacto de preenchimento e da concreta forma e medida em que esse pacto foi violado, sob pena de permanecer incólume a obrigação cambiária que resulta da literalidade do título de crédito e, com base nesses pressupostos, convidou a Executada/Embargante a apresentar nova petição em que:

“– Alegue qual o negócio jurídico que foi celebrado com a Tomadora da Livrança e que constitui a relação fundamental causal da Subscrição/Emissão da Livrança em branco;

– Qual o teor desse pacto de preenchimento; e

– O relato descritivo e factual sobre o estado de cumprimento ou de incumprimento da relação fundamental e a sua conjugação com o teor do pacto de preenchimento, permitindo concluir que o título cambiário não devia ter sido preenchido (por não se verificarem os pressupostos do pacto que permitem o preenchimento) ou que foi preenchido de forma incorrecta (alegando qual é o estado do incumprimento da relação fundamental e quais são os correctos termos e os concretos valores do preenchimento do título de acordo com o pacto).”

Em resposta, a Executada veio dizer que estava impedida de proceder ao aperfeiçoamento da petição nos termos solicitados, uma vez que a Exequente nunca lhe entregou o contrato nem quaisquer outros documentos, não estando, por isso, em condições para alegar qual o negócio jurídico celebrado com a tomadora da livrança em branco, nem o teor do pacto de preenchimento ou o valor em dívida. Mais alega: que a Exequente instaurou a execução sem que tivesse o cuidado de explicitar o valor por si aposto na livrança; que, perante a indefinição do requerimento executivo e por falta de elementos para impugnar o título ou discutir o montante em dívida, pouco mais poderia invocar em sua defesa que o abuso de preenchimento, nomeadamente, por ao montante peticionado não ter sido deduzido convenientemente o valor do automóvel e os valores efectivamente pagos a título de prestações; que, de todo o modo, sobressai clara e inequivocamente a sua intenção de impugnar o montante aposto na livrança, por excessivo e que, estando a livrança domínio das relações imediatas, ao executado/subscritor da livrança é dada toda a liberdade para discutir a relação subjacente, podendo alegar em oposição à execução tudo o que poderia alegar na contestação a uma acção declarativa.

Termina pedindo que os embargos sejam admitidos e que a Exequente seja notificada para juntar aos autos os documentos que discrimina.

Na sequência desse requerimento, foi proferido despacho onde se decidiu indeferir liminarmente a oposição à execução e a oposição à penhora.

Inconformada com tal decisão, a Executada/Embargante veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

Não foram apresentadas contra-alegações.


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir resume-se, no essencial, a saber se a petição inicial de embargos está (ou não) em condições de ser recebida, o que equivale a saber se, atendendo às regras de repartição do ónus de prova, os factos aí alegados são (ou não) suficientes para determinar a procedência da oposição caso venham a ficar provados.

Importará ainda analisar a eventual relevância da impossibilidade de alegação daqueles factos – impossibilidade que foi invocada pela Apelante por não ter a disponibilidade de determinados documentos – e a eventual nulidade da sentença por não se ter pronunciado sobre esta questão.


/////

III.

A decisão recorrida indeferiu liminarmente os embargos deduzidos à execução considerando, em resumo:

- Que era a Embargante que tinha o ónus de alegar e provar a existência e a violação do pacto de preenchimento, sob pena de permanecer incólume a obrigação cambiária que resulta da literalidade do título de crédito;

- Que a Embargante não alegou factos que permitam concluir pelo preenchimento abusivo do título, uma vez que a factualidade alegada não permite alcançar e compreender, por referência à relação fundamental causal, que a livrança tenha sido preenchida de forma divergente com o pacto de preenchimento da Livrança;

- Que, não obstante ter sido notificada para aperfeiçoar a petição, a Embargante não deu resposta que ultrapassasse as deficiências em causa.

Discordando dessa decisão, a Apelante começa por justificar o não aperfeiçoamento da petição dizendo que não tinha condições para o efeito (porque nunca lhe foi entregue o contrato e porque não tem na sua posse os documentos necessários para aperfeiçoar a petição nos termos solicitados), razão pela qual requereu a notificação da Exequente para juntar tais documentos. A este propósito, invoca a nulidade da decisão por ter omitido pronúncia acerca destas questões.

Mais sustenta a Apelante:

- Que, no domínio das relações imediatas, o executado/subscritor da livrança tem toda a liberdade para discutir a relação subjacente (artigo 17º da Lei Uniforme);

- Que, ainda que o exequente nada tenha que alegar no requerimento executivo para obter a satisfação do seu direito cambiário, a partir do momento em que o executado, em sede de embargos à execução, invoca a relação subjacente e o preenchimento abusivo da livrança, o exequente tem o ónus de justificar o montante nela por si aposto, alegando discriminadamente os valores que a compõem, de modo a poder ser questionado pela contraparte e aferido pelo tribunal;

- Que, não sendo o título executivo uma sentença, o executado está perante o requerimento executivo na mesma posição em que estaria perante a petição inicial da correspondente acção declarativa, podendo, por isso, alegar em oposição à execução tudo o que poderia alegar na contestação àquela acção, podendo, por isso, alegar nos embargos matéria de impugnação e matéria de excepção;

- Que da defesa deduzida pela Embargante no requerimento inicial dos embargos sobressai clara e inequivocamente a intenção de impugnar o montante aposto na livrança, por excessivo e que, tendo impugnado o montante aposto na livrança por excessivo, era à Embargada/Exequente que, em primeiro lugar, incumbia a alegação do modo como chegou a tal valor.

Analisemos, então, a questão, seguindo de perto o Acórdão desta Relação de 07/02/2017 (proferido no processo nº 7809/15.9T8CBR-A.C1 e relatado pela ora Relatora)[1].

A Exequente veio exigir, na presente execução, a obrigação titulada por uma livrança.

A livrança corresponde a um título de crédito que, como tal, incorpora uma obrigação cambiária, literal, autónoma e abstracta, que existe nos termos que constam do título e independentemente da relação subjacente que deu origem à sua emissão. Com efeito, apesar de a obrigação cambiária pressupor a existência de uma relação jurídica anterior (relação subjacente ou fundamental) de onde decorre a obrigação que dá causa e origem à emissão do título, a obrigação cambiária, uma vez constituída, separa-se e destaca-se da relação subjacente, tudo se passando como se fosse uma obrigação sem causa.

Assim, porque a obrigação cambiária é uma obrigação literal e abstracta, que decorre do título que a incorpora, o credor que exige o respectivo pagamento não carece de invocar a sua causa (a relação subjacente ou fundamental) e, portanto, poderá limitar-se a apresentar o título que incorpora a obrigação, correspondendo esta obrigação cambiária à causa de pedir da acção/execução onde se exige o seu cumprimento[2].

É certo, portanto, que a Exequente, enquanto portadora da aludida livrança, pode exigir aos obrigados cambiários o cumprimento (pagamento) da obrigação cambiária que nela está incorporada, sem necessidade de alegar e provar a existência e os contornos da relação jurídica que lhe esteja subjacente (já que, como se disse, a obrigação cambiária existe por si e independentemente da relação jurídica que deu origem à sua constituição).

É certo que – como alega a Apelante – se a livrança ainda se encontra no domínio das relações imediatas – como é aqui o caso – o obrigado cambiário (no caso a Apelante) pode invocar qualquer excepção fundada na relação subjacente ou fundamental que havia estabelecido com o Exequente e que teria dado causa à relação cambiária (cfr. art. 17º e 77º da LULL).

E foi isso que fez a Apelante quando veio invocar a excepção de preenchimento abusivo.

Mas, como excepção que é, compete a quem invoca o preenchimento abusivo o ónus de alegar e provar os respectivos pressupostos: a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos; era, portanto, a Executada/Apelante que tinha o ónus de alegar e provar esses factos – enquanto factos impeditivos do direito de exigir a obrigação cambiária que está incorporada no título – e, como tal, era ela que tinha o ónus de alegar e provar a concreta relação subjacente que esteve na origem da subscrição da livrança, a existência e o conteúdo do pacto ou acordo de preenchimento e que o título havia sido preenchido sem a sua autorização e em desconformidade com o que havia sido acordado (designadamente porque havia sido preenchida com um valor superior àquele que era devido e que estava contemplado no pacto de preenchimento ou porque havia sido preenchida em momento diferente ou com data de vencimento diversa daquela que estava prevista naquele pacto).

A afirmação de que o ónus de prova da aludida excepção está a cargo do devedor demandado é, aliás, unânime na nossa jurisprudência, citando-se a título de exemplo, os Acórdãos do STJ de 13/11/2018 (processo nº 2272/05.5YYLSB-B.L1), de 12/10/2017 (processo nº 1097/14.1TBFUN-A.L1.S1), de 28/09/2017 (processo nº 779/14.2TBEVR-B.E1.S1), de 11/02/2010 (processo nº 1213-A/2001.L1.S1), de 17/04/2088 (processo nº 08A727), de 12/02/2009 (processo nº 07B4616) e de 13/09/2012 (processo nº 6808/10.1YYPRT-A.P1.S1), bem como os Acórdãos da Relação de Coimbra de 17/01/2017 (processo nº 3161/12.2TBLRA-A.C1), de 07/02/2017 (processo nº 3775/12.0TJCBR-A.C1) e de 13/09/2016 (processo nº 341/13.7TBSPS-A.C1)[3].

E – é bom que se note – isso é assim no âmbito da oposição à execução, como seria no âmbito de uma acção declarativa, já que, ainda que estivesse em causa uma acção declarativa, a parte que invocasse a excepção de preenchimento abusivo sempre teria que alegar e provar os pressupostos dessa excepção e, portanto, sempre teria que alegar e provar a existência de um determinado pacto de preenchimento, o respectivo conteúdo e a concreta desconformidade entre esse pacto e o preenchimento do título.

Ora, a Executada/Apelante nada alegou, de concreto, que, uma vez provado, permitisse concluir pela verificação da aludida excepção.

Não obstante alegar que na origem da livrança está um contrato de financiamento para aquisição de crédito para garantia do qual a letra foi subscrita e entregue sem estar totalmente preenchida e não obstante alegar – no artigo 8º do seu requerimento – ter sido celebrada uma convenção de preenchimento, não alega o conteúdo dessa convenção. A Executada alega que a livrança foi preenchida de forma abusiva no que toca à data de emissão, sustentando que essa data deveria ser a data em que o contrato foi celebrado e a livrança foi entregue; não alega, contudo, que tivesse sido acordado que deveria ser essa a data a colocar na livrança, dizendo apenas que era essa a vontade presumida dos Executados sem qualquer base factual que sustente essa afirmação e tão pouco alega qual a data em que o contrato foi celebrado. Mais alega a Executada que o pacto de preenchimento também teria sido violado no que toca à data de vencimento que deveria corresponder à data da denúncia do contrato por ser essa a vontade presumida dos Executados, mas não alega, sequer, qual a data em que o contrato foi denunciado (importa notar que só conhecendo essa data se poderá afirmar que ela não corresponde à data que foi aposta na livrança). Alega ainda a Executada/Apelante que o pacto de preenchimento também foi violado no que diz respeito à quantia que foi aposta na livrança; mas, não obstante alegar (de forma conclusiva) que o valor em dívida era inferior, não alega qual era o valor correcto e tão pouco alega os factos com base nos quais se poderia concluir que o valor devido era inferior ao que foi aposto no título. Com efeito, não obstante alegar o valor do empréstimo (12.000,00€) e não obstante alegar que a Exequente vendeu o veículo que os Executados lhe entregaram (por 3.400,00€), nem sequer alegou quantas prestações pagaram ou qual o valor (limitando-se a dizer que pagaram as prestações durante determinado período de tempo, sem especificar esse período e o valor das prestações). Refere ainda que, em caso de denúncia – como era aqui o caso – a Exequente apenas tinha direito à diferença entre as rendas devidas até ao fim do contrato e o valor comercial do veículo objecto do contrato; não alega, contudo qual o valor dessas rendas, limitando-se a alegar que a diferença entre esses valores é muito inferior (sem dizer quanto) ao valor aposto pela Exequente na livrança.

A Executada/Apelante foi convidada a aperfeiçoar a sua petição com vista à alegação dos factos necessários ao preenchimento da excepção que vinha invocar, sendo certo, no entanto, que a Executada nada mais alegou em concreto, limitando-se a dizer que estava impedida de o fazer por não dispor dos necessários documentos, tendo requerido a notificação da Exequente para juntar tais documento e sustentando agora – em sede de recurso – que a decisão recorrida é nula por não se ter pronunciado sobre essas questões.

 Em primeiro lugar, pensamos ser claro que não está configurada a aludida nulidade.

Nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC, a sentença (assim como o despacho por força do disposto no artigo 613º, nº3, do mesmo diploma) será nula quando deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar e tais questões – que o juiz tem o dever de apreciar sob pena de nulidade da decisão – são aquelas que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (cfr. artigo 608º, nº 2, do CPC).

No caso em análise, estando em causa um despacho liminar, a questão que o juiz tinha que apreciar consistia apenas em saber se estavam reunidas as condições necessárias para o prosseguimento da oposição e se não ocorriam razões que determinassem o respectivo indeferimento liminar. E essa questão foi apreciada, considerando-se na decisão que o requerimento inicial não continha a alegação dos factos necessários e que, não obstante ter sido convidada para corrigir a petição com essa alegação (cujo ónus estava a seu cargo), a Executada não havia dado resposta que ultrapassasse os vícios do requerimento inicial.

Não existe, portanto, qualquer nulidade.

Mas, sobre o teor do aludido requerimento, poderemos dizer o seguinte:

Admitindo-se como possível que a Executada/Apelante não dispusesse de alguns documentos, é no mínimo estranho que não disponha, por exemplo, da carta de denúncia que, alegadamente, lhe teria sido enviada pela Exequente ou da carta por via da qual a Exequente a teria interpelado para proceder ao pagamento do valor em dívida sob pena de resolução do contrato. E também é estranho que a Executada não disponha de documentos – nem que sejam extractos bancários – comprovativos do pagamento de determinadas prestações ao ponto de desconhecer – pois é certo que não o alegou – quantas prestações pagou e qual o respectivo valor.

De qualquer modo, a notificação da Exequente para juntar os referidos documentos – que, alegadamente, a Executada não tem em seu poder – apenas teria utilidade para fazer prova de determinados factos, mas para tal era necessário que esses factos fossem alegados e, conforme referimos, era a Executada que tinha o ónus de alegar os factos com base nos quais se poderia concluir pelo preenchimento abusivo da livrança. Ora, a Executada não alegou esses factos e essa falta de alegação não seria ultrapassada com a mera junção dos documentos.

Por outro lado, o facto de não ter na sua posse os documentos não será, só por si, razão bastante para impedir a alegação dos factos. A Executada/Apelante não sabe que contrato celebrou? Não sabe qual o acordo de preenchimento da livrança que celebrou? Não sabe em que data o contrato foi denunciado (como alega ter sucedido)? Não sabe quantas prestações pagou e o respectivo valor? Parece-nos estranho que não o saiba (pelo menos em termos aproximados) e, se não sabe – como parece dizer –, então também não saberá se o preenchimento da livrança violou o pacto de preenchimento e, portanto, não estava em condições de invocar essa excepção.

 Sendo correcta a alegação da Apelante quando refere que poderia defender-se, em sede de oposição à execução, nos mesmos termos em que o poderia fazer no âmbito de uma acção declarativa, já não lhe assiste razão quando pretende sustentar que lhe bastava impugnar o valor imposto na livrança, passando a recair sobre a Exequente o ónus de justificar esse valor. Importa notar que a obrigação que lhe está a ser exigida não é a obrigação subjacente mas sim a obrigação cartular (emergente do título de crédito) e relativamente a essa obrigação não é admissível defesa por mera impugnação do valor que foi aposto do título e que, como tal, é peticionado.

 Atente-se, para o efeito, nas palavras de Carolina Cunha[4]:

Qualquer que seja o significado particular de uma concreta vinculação cambiária, o certo é que atribui objectivamente ao credor um instrumento poderoso: a faculdade de exigir o pagamento de uma quantia em dinheiro com a simples apresentação do título e dentro dos pressupostos ou limites que o próprio título enuncia (prazo, soma, sujeitos, etc.). Ao contrário do que sucede com um credor vulgar, nada mais tem o credor cambiário que alegar ou provar para obter a satisfação do seu direito. O que não significa, contudo, que o resultado seja automático: justamente na medida em que ao devedor seja reconhecida a faculdade de opor excepções causais, pode a satisfação do credor ver-se impedida pelo êxito dessa oposição.

Mas ainda quando isso aconteça, diz-se, beneficia o credor cambiário, no confronto com um credor vulgar, de uma significativa vantagem: o benefício da inversão do ónus da prova, já que é ao devedor (imediato) que cabe alegar e provar os factos respeitantes à causa (aos seus revezes ou à sua ausência)”.

É certo, portanto, que, ao contrário do que acontece quando é exigida a obrigação subjacente (caso em que o devedor pode defender-se por mera impugnação da existência ou valor da obrigação, fazendo recair sobre o exequente o ónus de provar os factos constitutivos da obrigação), o carácter literal, autónomo e abstracto da obrigação cambiária implica que contra ela não possa ser deduzida uma oposição por mera impugnação do valor que se encontra inscrito no título; a pretensão cambiária só poderá ser paralisada por força da invocação de excepções ou vicissitudes próprias da acção cambiária ou, caso se encontre no âmbito das relações imediatas, por força da invocação de excepções fundadas na relação subjacente ou fundamental e, em qualquer caso, cabe ao devedor o ónus de alegação e prova das concretas excepções que venha invocar.

Significa isso, portanto, que a Executada/Apelante não podia limitar-se a impugnar o valor inscrito na livrança; porque estava em causa uma livrança que havia sido subscrita em branco e que ainda se encontrava no domínio das relações imediatas, a Executada podia invocar excepções fundadas na relação subjacente ou fundamental, invocando, designadamente – como invocou – a excepção de preenchimento abusivo do título; mas, para obter a procedência dessa excepção tinha que alegar e provar os respectivos pressupostos e, portanto, tinha que alegar e provar que o título havia sido preenchido em desconformidade com aquilo que havia sido convencionado. E tal implicava que, além do pacto de preenchimento, alegasse os termos do contrato e as suas vicissitudes com vista a confrontar os valores que, em face disso, seriam devidos com o valor que foi inscrito na livrança. No entanto, e conforme referimos, a Executada limitou-se a alegar o valor do financiamento que lhe foi concedido (sem que tenha, sequer, alegado os juros contratualizados) e o valor pelo qual foi vendido o veículo que entregaram à Exequente (importando notar que a diferença entre esses valores é superior ao valor inscrito na livrança) e, não obstante alegar que foram pagas algumas prestações, não alega quantas prestações foram pagas e qual o respectivo valor. É certo, portanto, que, ainda que ficassem provados todos os factos alegados, não haveria elementos com base nos quais fosse possível concluir que o valor inscrito na livrança é superior àquele que seria devido nos termos do contrato e tendo em conta as respectivas vicissitudes.

Concluimos, portanto, em face do exposto, que os embargos são manifestamente improcedentes, o que legitima o seu indeferimento liminar (cfr. artigo 732º, nº 1, alínea c), do CPC).

Confirma-se, portanto, a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – O carácter literal, autónomo e abstracto da obrigação cambiária implica que contra ela não possa ser deduzida uma oposição por mera impugnação do valor que se encontra inscrito no título; a pretensão cambiária só poderá ser paralisada por força da invocação de excepções ou vicissitudes próprias da acção cambiária ou, caso o título se encontre no âmbito das relações imediatas, por força da invocação de excepções fundadas na relação subjacente ou fundamental, cabendo, em qualquer caso, ao devedor o ónus de alegação e prova das concretas excepções que venha invocar.

II – Invocando o devedor a excepção de preenchimento abusivo do título de crédito, é sobre ele que recai o ónus de alegar e provar os respectivos pressupostos: a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos.


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IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

                              Coimbra, 2019/02/20

                                             Maria Catarina Gonçalves ( Relatora )

                                                    Ferreira Lopes

                                                     Freitas Neto                


[1] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] Cfr. neste sentido, os Acórdãos do STJ de 23/09/2010 e 13/11/2012, processos nºs 4688-B/2000.L1.S1 e 708/09.5TBLSA-A.C1.S1, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[4] Letras e Livranças, Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, Almedina, 2012, págs. 267 e 268.