Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
49/10.5YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
ACÇÃO ESPECIAL
REFORMA
DOCUMENTO
Data do Acordão: 05/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DETERMINA O TRIBUNAL COMPETENTE
Legislação Nacional: ARTS 67º, 1069º, Nº 1 E 1072º DO CPC; 121º, Nº 1, AL. C), DA LOFTJ; 1º, ALÍNEA A), E 46º DO CÓDIGO DOS VALORES MOBILIÁRIOS, ORIGINARIAMENTE APROVADO PELO DECRETO-LEI Nº 486/99, DE 13 DE NOVEMBRO.
Sumário: I – Na vertente de título representativo, uma “acção”, enquanto participação social, seja na versão tradicional de suporte em papel, seja em simples suporte escritural, é uma figuração de todos os aspectos dos títulos individualizadores e representativos do capital social das sociedades anónimas, legitimando quem a detenha.

II - As acções constituem valores mobiliários (artigo 1º, alínea a) do Código dos Valores Mobiliários, originariamente aprovado pelo Decreto-Lei nº 486/99, de 13 de Novembro), sendo que estes são documentalmente representados, nos termos estabelecidos nesse Código, designadamente no respectivo artigo 46º, onde se preceitua:

Artigo 46º

(Formas de representação)

1 – Os valores mobiliários são escriturais ou titulados, consoante sejam representados por registos em conta ou por documentos em papel; estes são, neste Código, designados também por títulos.

III - A circunstância de se estar perante documentos (a realidade correspondente à noção que nos é dada no artigo 362º do CC), e da detenção material destes – se quisermos, a sua posse – é particularmente relevante, ou determinante mesmo, para o preenchimento da respectiva função.

IV - Interessa, por isso, a existência de documentos, face à vicissitude da destruição, perdimento ou desaparecimento destes (v. os artigos 1069º, nº 1 e 1072º do CPC) e não o exercício de qualquer direito específico estabelecido em função de se ser titular da qualidade de sócio de uma sociedade anónima.

V - Aliás, a reforma de acções de uma sociedade, por referência aos pressupostos da espécie processual de reforma de documentos, nem sequer pode ser referida, em exclusivo, à qualidade de sócio. Basta lembrarmos, tendo presente o conceito particularmente amplo de interesse na recuperação de títulos ou documentos, pressuposto no artigo 1069º, nº 1 do CPC, o “interesse” que poderá ter na reconstrução das acções ao portador de uma sociedade um credor do sócio ou um simples depositário delas: seria absurdo configurar uma reforma documental promovida por estes como exercício de um direito social, por quem não dispõe da qualidade de sócio.

VI - Assim, é materialmente competente para a reforma de “acções” sociais de uma sociedade anónima o Juiz de um Juízo Cível (de Aveiro, no caso), a quem compete tramitar o processo especial de reforma de documentos, não o Juiz de um Tribunal de Comércio.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra


            1. Suscita o Exmo. Procurador-Geral Distrital, representante do Ministério Público junto deste Tribunal da Relação, a resolução do impasse processual (conflito negativo de competência), surgido na tramitação do processo nº 1937/07.1TBOVR (afecto, ao tempo da respectiva instauração, ao 3º Juízo do Tribunal Judicial de Ovar)[1], impasse este resultante da circunstância dos Exmos. Magistrados Judiciais do Juízo de Grande Instância Cível de Aveiro (Juiz 1) e do Juízo de Comércio de Aveiro, ambos da Comarca piloto do Baixo Vouga (instalada pelo Decreto-Lei nº 25/2009, de 26 de Janeiro)[2], terem proferido despachos transitados em julgado [o certificado a fls. 129 (Juízo de Grande Instância Cível), datado de 02/06/2009; o certificado a fls. 130/132 (Juízo do Comércio), datado de 02/11/2009], nos quais se atribuem mutuamente a competência – excluindo a própria – para continuar a tramitação do processo especial de reforma de documentos [artigos 1069º/1073º do Código de Processo Civil (CPC)], desencadeado, em Outubro de 2007, no Tribunal de competência genérica então sedeado na comarca de Ovar, por “C…, S.A.” (Requerente) contra “P…, S.A.” (Requerida)[3].

            1.1. No primeiro despacho (Juízo de Grande Instância Cível), considerou-se respeitar a referida acção ao exercício de direitos sociais, estando abrangida pela alínea c) do nº 1 do artigo 121º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto (LOFTJ)[4].

            No segundo despacho (Juízo do Comércio) considerou-se estar em causa a simples adjectivação da reforma de documentos, enquanto faculdade concedida pelos artigos 367º do Código Civil (CC) e 484º do Código Comercial (CCom), e não perante o exercício de qualquer direito social específico.


II – Fundamentação


            2. Respeita o presente conflito à determinação da competência material de um Tribunal de comércio[5] para o julgamento de uma acção especial de reforma de documentos. Constituiria particularidade desta acção, em termos aptos a determinar a competência material para a apreciar, a natureza dos documentos cuja reconstituição se pretende. Com efeito, tratando-se de reformar acções ao portador, representando estas o suporte documental específico individualizador e representativo do capital social de uma sociedade anónima, configurar-se-ia (isto seguindo a linha argumentativa do primeiro despacho) o objecto da acção aqui em causa como exercício de direitos sociais, no sentido em que a LOFTJ atribui aos juízos de comércio competência para a preparação e o julgamento de acções relativas ao exercício desses direitos[6].

            2.1. As acções, enquanto títulos individualizadores e representativos do capital social das sociedades anónimas[7], podem ser caracterizadas por referência a múltiplos aspectos. Destes emerge uma natureza multipolar, já que, sendo unitária na sua essência, se nos apresenta funcionalmente referida a realidades distintas. É o que pretende acentuar António Menezes Cordeiro, ao referir que “[e]nquanto participação social, a acção implica todo um status, com direitos, deveres e encargos. Como quota de capital, ela traduz o quantum absoluto e percentual assacado ao titular, no universo societário considerado. E, na vertente título representativo, a acção, seja na versão tradicional de suporte em papel, seja em simples suporte escritural é uma figuração de todos esses aspectos, legitimando quem a detenha” (sublinhado acrescentado)[8].

            Interessa-nos aqui, no quadro valorativo respeitante à resolução deste conflito, reter este último elemento de caracterização (figuração documental de uma determinada realidade juridicamente complexa), constatando que o que apresenta relevância a tal respeito, por ser em função desse elemento que se define o objecto da presente acção, tem que ver, tão-só, com a natureza documental dos títulos cuja reconstrução é visada[9].

Vale a tal respeito, com efeito, sendo o que aqui se pretende adjectivar, a circunstância de se estar perante documentos (a realidade correspondente à noção que nos é dada no artigo 362º do CC), e da detenção material destes – se quisermos, a sua posse – ser particularmente relevante, ou determinante mesmo, para o preenchimento da respectiva função[10].

É neste quadro que tem sentido a faculdade prevista no artigo 367º do CC (e especificamente no corpo do artigo 484º do CCom), cuja adjectivação releva das características da realidade documental enquanto tal, e não do exercício de qualquer direito inerente à qualidade de sócio. Interessa aqui, por isso, a existência de documentos, face à vicissitude da destruição, perdimento ou desaparecimento destes (v. os artigos 1069º, nº 1 e 1072º do CPC) e não o exercício de qualquer direito específico estabelecido em função de se ser titular da qualidade de sócio de uma sociedade anónima. Aliás, a reforma de acções de uma sociedade, por referência aos pressupostos da espécie processual aqui em causa, nem sequer pode ser referida, em exclusivo, à qualidade de sócio. Basta lembrarmos, tendo presente o conceito particularmente amplo de interesse na recuperação de títulos ou documentos, pressuposto no artigo 1069º, nº 1 do CPC, o “interesse” que poderá ter na reconstrução das acções ao portador de uma sociedade um credor do sócio ou um simples depositário delas: seria absurdo configurar uma reforma documental promovida por estes como exercício de um direito social, por quem não dispõe da qualidade de sócio.

2.2. Valem estas considerações como confirmação do entendimento que subjaz ao segundo despacho em conflito (o certificado a fls. 130/132), na afirmação da competência do Juízo de Grande Instância Cível de Aveiro.


III – Decisão


            3. Assim, em função do exposto, dirime-se o presente conflito negativo de competência, determinando-se que o Exmo. Senhor Juiz do Juízo de Grande Instância Cível de Aveiro (Juiz 1) tramite a processo especial de reforma de documentos ao qual corresponde o nº 1937/07.1TBOVR.

            Sem custas.


[1] Tratando-se de processo instaurado em 2007, não lhe são aplicáveis as alterações introduzidas na tramitação dos conflitos de competência pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Assim, todas as normas do Código de Processo Civil referidas no texto deste Acórdão pressupõem a redacção anterior ao DL 303/2007.
[2] No caso, relativamente aos Tribunais aqui em causa, v. (DL 25/2009) o artigo 15º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea a); cfr., no mesmo DL, o artigo 49º, que considera instalada a referida Comarca e Juízos a partir de 14 de Abril de 2009.
[3] Para compreensão da configuração temática do presente conflito, transcreve-se aqui o essencial do requerimento inicial do referido processo:
“[…]

A A. constitui-se por escritura pública de 04/02/2005 […], com o capital social de €381.000,00, dividido em 76.200 acções, com o valor nominal de €5,00 cada uma […].
O seu capital social foi subscrito, quanto a € 323.200,00, por …, e realizada em espécie, mediante a transmissão de participações sociais em várias empresas, todas elas por si parcialmente detidas.
Como se alcança da escritura de constituição, de entre aquelas participações sociais fez parte um lote de 250.000 acções, ao portador, com o valor nominal de €1,00 cada uma, representativas de parte do capital social de €1.000.000,00 da sociedade R..
Por via disso, a A. recebeu, da anterior titular e sua actual accionista – a referida … – o referido lote de acções.
O que ocorreu na data da sua constituição, não tendo a A. agora presente qual a respectiva numeração.
Isto posto:
Sucede que a A.  ignora o actual paradeiro do referido lote de 250.000 acções.
De facto, após as aturadas buscas que efectuou nos seus arquivos e documentação é para a A. hoje manifesto que tem que considerar «perdidas» as ditas acções.
Tais acções constituem capital próprio da A., sendo que o seu desaparecimento importa perda patrimonial correspondente, pelo menos, ao seu valor contabilístico.
Daí que a A. tenha interesse na sua recuperação e, nessa impossibilidade, na sua reforma.
[…]”
                [transcrição de fls. 9/10]
[4] Esta preceitua competir aos juízos de comércio preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais.
[5] Trata-se aqui claramente de uma questão de competência material (v. artigo 67º do CPC), geradora de incompetência absoluta (artigo 101º do CPC), relativamente à qual se gera um verdadeiro conflito de competência a resolver pelo tribunal de menor categoria que exerce jurisdição sobre as autoridades em conflito (artigo 116º, nº 1 do CPC). Vale esta referência para afastar a aplicação do regime da incompetência relativa previsto no nº 2 do artigo 111º do CPC. Com efeito, como referem José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, anotando o artigo 115º do CPC, “[q]uer os conflitos de jurisdição suscitados entre tribunais, quer os conflitos de competência, têm hoje sempre na sua base uma situação de incompetência absoluta, nos termos do artigo 101º [do CPC]”, acrescentando os mesmos autores, referindo-se especificamente aos conflitos de competência, “[ser] assim porque as decisões sobre incompetência relativa são, nos termos do artigo 111º, nº 2 [do CPC], vinculativas para o tribunal designado como competente, o qual vê por isso prejudicada a possibilidade de conhecer da sua própria competência em razão do território ou do valor e forma do processo, não podendo gerar-se o conflito de decisões; este só pode, pois, assentar na infracção das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia” (Código de Processo Civil anotado, Vol. 1º, Coimbra, 1999, pp. 210/211).
[6] É o seguinte o texto da norma de competência em causa (artigo 121º da LOFTJ), sublinhando-se a passagem aqui relevante:
Artigo 121º
Competência
1 – Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência;
b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As acções de suspensão e anulação de deliberações sociais;
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
f) Acções de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) Acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial.
2 – Compete ainda aos juízos de comércio julgar:
a) As impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais;
b) Os recursos das decisões da Autoridade da Concorrência, em processo de contra-ordenação.
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[7] As acções constituem valores mobiliários (artigo 1º, alínea a) do Código dos Valores Mobiliários, originariamente aprovado pelo Decreto-Lei nº 486/99, de 13 de Novembro), sendo que estes são documentalmente representados, nos termos estabelecidos nesse Código, designadamente no respectivo artigo 46º, aqui se transcrevendo o seu trecho directamente relevante a tal respeito:
Artigo 46º
(Formas de representação)
1 – Os valores mobiliários são escriturais ou titulados, consoante sejam representados por registos em conta ou por documentos em papel; estes são, neste Código, designados também por títulos.
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[8] Manual de Direito das Sociedades, II, Das Sociedades em Especial, 2ª ed., Coimbra, 2007, p. 661.
[9] “As acções são tituladas ou escriturais: – tituladas: quando representadas por documentos de papel; – escriturais: sempre que resultem de registos em conta.
Inicialmente, a regra era a da titulação. O título de papel figuraria facilmente a acção e as suas características relevantes e circulava, assegurando ainda a dimensão cambiária da realidade em jogo: Todavia, a multiplicação das transacções, particularmente em bolsa, em que muitos milhões de acções mudam diariamente de mãos, veio suscitar problemas de praticabilidade e de segurança. Surgiu a ideia de representar a acção apenas por uma inscrição em conta, mantida pela própria sociedade emitente. […] Cada vez mais as acções são escriturais, embora a titulação em papel se mantenha e seja útil” (António Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, cit., p. 663).
[10] V. o recente Acórdão desta Relação de 25/03/2010, proferido no processo nº 35/10.5TBPMS-A.C1, disponível no sítio do ITIJ (pesquisa nos campos indicados) no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/007ac89b800f89e0