Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
309674/11.7YIPRT. C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
PROFISSÃO LIBERAL
Data do Acordão: 10/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ART.317 CC
Sumário: 1.-O que releva para o efeito de aplicação do art. 317 alª c) do C.C. é a natureza dos serviços em causa e não a qualidade da pessoa (singular ou sociedade), que presta, ou a quem os serviços são prestados.

2.-Sendo o crédito derivado de serviços que substancialmente se enquadram no exercício duma profissão liberal, resulta indiferente que, no caso, estes tenham sido prestados a uma sociedade ou a uma pessoa singular, pois que, quer da letra quer do espírito da norma resulta que o critério de subsunção ao preceito em análise se define unicamente pela natureza dos serviços em causa, e não da entidade que os recebe, ou da entidade que os presta.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                            I

L (…) com domicílio na (...) S. Vicente da Beira, intentou injunção, que prosseguiu como ação declarativa para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, contra T (…), LDA., com sede na (...) Castanheira do Ribatejo, pedindo a condenação da R. no pagamento ao A. da quantia de 7.756,14€.

Fundamenta tal pedido em serviços de contabilidade prestados à Ré enquanto TOC e em serviços de mediação de seguros prestados à mesma enquanto mediador de seguros, bem como, em pagamentos efetuados a pedido e em nome da Ré a diversas instituições (taxas, impostos, contribuições) cujo reembolso reclama, bem como avenças e despesas de deslocação, estes num contexto de uma ampla e gradual assessoria.

Invoca ainda ter estabelecido com a Ré uma relação de conta-corrente.

A Ré apresentou oposição, com reconvenção, pedindo que:

-seja a ação considerada improcedente por não provada;

-seja declarada a admissibilidade da reconvenção, no que se refere aos autos de ação declarativa de condenação, com processo sumário, que corre termos no 3º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco sob o nº 108/12.0TBCTB, instaurados pela R. contra o A., e ainda, contra R (…) e R (…) Lda.;

-nos termos do disposto no art. 275º do C.P.C., seja admitida a apensação aos presentes autos, da mesma ação declarativa;

-seja admitido o incidente de intervenção principal provocada e admitidos a intervir como associados do Autor/Reconvindo os chamados R (…)  e R (…), Lda, bem como seja notificado o Autor, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 326º nº 2 do C.P.C.;

-subsidiariamente e, caso assim se não entenda, seja declarada a compensação dos créditos recíprocos existentes entre Autor e Ré, condenando-se, solidariamente, o Autor e ora chamados à demanda a pagar à Ré a diferença que resulte após a compensação efetuada entre o alegado crédito do Autor e o crédito da Ré, peticionado por esta, na ação cuja apensação já supra se requereu;

-nos termos e para os efeitos do disposto no art. 447º-D do C.P.C., sejam condenados o Autor e ora chamados no pagamento das custas de parte suportadas pela Ré, bem como, no pagamento dos honorários da sua mandatária e das despesas por esta, efetuadas;

-seja o Autor notificado para vir juntar aos autos documentos comprovativos das datas em que efetuou os pagamentos referidos nas alíneas j), p) e q) do art. 23º do contestação, a fim de a Ré poder efetuar prova do por si alegado no art. 24º, sob pena de inversão do ónus da prova, nos termos do disposto no art. 344º nº 2 do Código Civil.

Alega, em síntese, que: nada deve; os créditos já se encontram prescritos, de acordo com o disposto no artigo 317.º, al. c), do Código Civil; a R. tem um crédito sobre o A., peticionado em ação declarativa que corre termos no 3.º juízo deste Tribunal e, a julgar-se procedente a matéria alegada pelo A., deve operar a compensação de créditos.

Liminarmente foram indeferidos o pedido de apensação de ações, a reconvenção e o incidente de intervenção principal provocada.

No despacho saneador conheceu-se da prescrição, decidindo-se pela improcedência da mesma.

Prosseguiram os autos com a audiência de julgamento, após o que, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, condenando a Ré a pagar ao Autor a quantia de €5.856,14 (cinco mil oitocentos e cinquenta e seis euros e catorze cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos, desde a citação até efetivo e integral pagamento, à taxa de 4%, absolvendo-se a R. do mais peticionado.

Inconformada com tal decisão veio a Ré recorrer concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

1. Vem a Ré interpor recurso de Apelação da Douta Sentença proferida pela Meritíssima Juíza do Tribunal a quo que considerou parcialmente procedente, por parcialmente provada, a ação instaurada pelo A. e, consequentemente condenou a Ré a pagar ao A. a quantia de €5.856,14, acrescida de juros de mora vencidos, desde a citação até efetivo e integral pagamento, à taxa de 4%.

2. A Douta sentença recorrida considerou improcedente a exceção de prescrição deduzida pela Ré, não se pronunciou sobre a questão prévia suscitada pela Ré, no que respeita à existência ou não de uma relação de conta – corrente entre A. e Ré e sobre a qual deveria ter apreciado assim como considerou provados e não provados factos que se entendem ser contraditórios

3. Entende a Ré, salvo o devido respeito e, salvo melhor opinião que a Douta sentença recorrida sofre de vício de violação de lei, não se pronunciou sobre questões sobre as quais deveria ter apreciado e na mesma existe uma contradição entre parte da matéria provada na alínea 4) e a matéria dada como não provada na alínea B), para além de existir uma contradição com a respetiva fundamentação, pelo que a mesma nula, nos termos do disposto no art. 615º do CPC.

4. Quanto à improcedência da exceção de prescrição invocada pela Ré

 a) A Douta sentença recorrida considerou improcedente a exceção de prescrição invocada pela Ré, pois entendeu (…) que as razões de ser e a finalidade que subjazem à figura da prescrição presuntiva invocada pela Ré não se verificam no caso sub judice;

 b) A Douta sentença recorrida considerou que no caso sub judice, sendo a Ré, uma sociedade e o A. um profissional liberal (contabilista) entre os quais existe uma relação contratual de prestação de serviços, os pressupostos subjacentes à prescrição presuntiva não se verificavam, pois possuindo a Ré contabilidade organizada o recibo de pagamento deveria constar do seu arquivo contabilístico;

c) Ora é precisamente aqui que existe uma incorreta avaliação dos factos e, consequente violação de lei.

 d) Os pagamentos que o A. alega ter efetuado já não decorriam da relação prestacional existente entre A. e Ré, mas sim, de uma base de amizade e confiança que existia entre o A. e o sócio gerente da Ré.

e) Era o A. que, da sua conta pessoal, efetuava os aludidos pagamentos.

 f) Quando a Ré reembolsava o A. dos pagamentos por este efetuados, não era solicitado ou emitido qualquer recibo. Inclusivamente dos reembolsos efetuados pela Ré e admitidos pelo A., no valor de €13.360,00 não existem quaisquer recibos. Os únicos recibos que existem eram os emitidos pelas terceiras entidades (seguradoras, etc.) a quem o A. efetuava os pagamentos, sendo que esses recibos eram emitidos em nome da Ré, conforme documentos juntos pelos A..

 g) E é, precisamente pela inexistência de recibos que, o A. para fundamentar o alegado valor em falta, alega uma situação de conta corrente que nunca existiu.

 h) Daí que se entende, salvo o devido respeito e, salvo melhor opinião que todos os pressupostos que subjazem à prescrição presuntiva se verificam no caso sub judice, pelo que, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo deve ser considerada procedente por provada a exceção de prescrição invocada pela Ré.

5. Quanto à omissão de pronúncia sobre a questão prévia suscitada pela Ré

 a) Alegou a Ré na sua Oposição que entre a mesma e o A. não existia ao contrário do alegado por este nenhuma relação de conta corrente.

 b) Na verdade para que exista um contrato de conta corrente é necessário a existência de recíprocos créditos e débitos.

 c) Ora, no caso em apreço esta reciprocidade de créditos não existe.

 d) O Autor prestava à Ré serviços de contabilidade.

 e) A Ré não prestava ao Autor quaisquer serviços.

f) O que efetivamente existia entre Autor e Ré era uma relação consubstanciada num contrato de prestação de serviços.

 g) E atendendo aos serviços prestado pelo Autor – planificação, organização e execução da contabilidade da Ré – será mais precisamente um contrato de prestação de serviços no exercício de profissão liberal.

 h) Por profissão liberal entende-se as atividades de carácter intelectual e que sejam desenvolvidas sem subordinação jurídica.

 i) Ora, entende-se que a prestação de serviços na área da contabilidade é precisamente o exercício de uma profissão liberal.

 j) Ora foi baseada nesta relação de conta- corrente que o A. assentou todo o seu pedido.

 L) O A. não sabe precisar quais foram os pagamentos que efetuou em nome da Ré e dos quais já foi reembolsado.

 m) Ora tal situação só é compatível com uma situação de conta-corrente que o A. alega e que a Ré impugna.

 n) A Douta sentença recorrida não se pronuncia sobre esta questão, pelo que nos termos do disposto no art. 611º, nº 1, alínea d) do CPC é nula.

6. Quanto à contradição existente entre a parte da matéria provada na alínea 4) e a matéria dada como não provada na alínea B) e respetiva fundamentação.

a) A Douta sentença recorrida dá como provado que “Ficaram por entregar ao requerente os valores de €2.800,00 a título de avenças vencidas” e dá como não provado que “Ficou por entregar ao requerente, a título de avenças, o valor de €1.900,00”.

 b) Quanto ao facto dado como provado afirma que tal se deve, “…quanto à sua existência, pela ausência de impugnação e, quanto à falta de entrega, pela ausência de prova que a comprovasse.

 c) Quanto ao facto não provado afirma que “…foi o próprio A. que declarou já não saber especificar se ficou em dívida algum valor relativo a avenças ou não, pelo que nem sabendo o próprio se há ou não valores em dívida a este respeito, não pôde o Tribunal dar como provada a sua alegação.”

 d) Ao contrário do alegado, pelo Tribunal a quo, a Ré impugnou a totalidade dos valores peticionados a título de avenças, sendo que relativamente aos €2.800,00 alegou a sua prescrição.

 e) Todavia, tendo o A. afirmado que não sabe se há valores em dívida a respeito de avenças, como pode o tribunal dizer que relativamente a um valor ele é devido e relativamente a outro, já não é.

 f) Há uma total contradição, salvo melhor opinião.

7. Entende-se, pois, que a douta sentença recorrida deve ser declarada nula, por violação do disposto no art. 317º, alínea c) do Código Civil e art. 615º nº 1 alíneas c) e d) do Código de Processo Civil.

O Autor/recorrido apresentou contra-alegações nas quais concluiu:

A) Sendo a apelante uma sociedade comercial legalmente sujeita a contabilidade organizada que tem de arquivar e registar todos os movimentos no âmbito da sua atividade ou por causa dela, não redunda sobre ela qualquer risco de satisfazer duas vezes a dívida ao apelado por falta de comprovativo de pagamento, pelo que, não se encontram preenchidos os pressupostos subjacentes à prescrição presuntiva.

B) Ainda que in casu estivessem preenchidos os pressupostos da prescrição presuntiva o crédito do recorrido não estaria ainda prescrito já que em nenhum momento, no seu articulado bem como nas suas alegações de recurso, a apelante diz que não existe qualquer dívida da ré para com o autor ou afirma expressa e inequivocamente que pagou a dívida ao recorrido.

C) Não bastará, pois, para que a recorrente se faça valer da prescrição presuntiva que a mesma simplesmente se limite a alegar o decurso do prazo para se exonerar do pagamento das quantias que bem sabe serem devidas ao recorrido.

D) A falta de alegação do cumprimento determina, assim, a ilisão da presunção de cumprimento, nos termos do nº 1 do artº 313º, ficando o crédito sujeito ao prazo prescricional ordinário previsto no artº 309º do C.C.

E) O alegado pela recorrente vem, claramente, alterar e deturpar não só o peticionado pelo autor, como a letra e hermenêutica da al. c) do art. 317º do C.C., pelo que andou bem a Meritíssima Juiz “a quo” ao ter julgado improcedente a exceção de prescrição presuntiva.

F) No caso em análise, a existência de conta-corrente tem o carácter de documento contabilístico e não natureza contratual, servindo apenas o propósito de facilitar a organização contabilística do autor relativamente aos serviços prestados à apelante e bem assim os serviços que já se encontravam pagos e os que ainda não haviam sido pagos ao apelado.

G) A questão essencial na presente contenda prende-se não com a relação de conta-corrente mas com a existência um contrato de prestação de serviços contabilísticos e de mediação de seguros e é simplesmente aqui que assenta o pedido do Autor, tornando-se a presença de uma conta-corrente inequivocamente irrelevante para a boa decisão da causa.

H) Andou bem o tribunal “a quo” ao não se pronunciar sobre a questão prévia alegada porquanto a mesma é irrelevante para a decisão da causa, pelo que a sentença recorrida não enferma do vício de nulidade por omissão de pronúncia.

I) Sendo a arguição da exceção de prescrição improcedente, mantêm-se intocáveis as regras de repartição do ónus probatório do art. 342º do C.C., ou seja, ao recorrido basta-lhe alegar e provar a existência do contrato de prestação de serviços e do cumprimento das suas obrigações e para a recorrente caberia a prova do pagamento como forma de afastar a presunção de culpa pelo incumprimento que lhe imputa o nº 1 do art. 799º do C.C.

J) A recorrente não logrou impugnar a existência de avenças vencidas ou tão-pouco fez prova do seu pagamento como lhe competia.

K) Os fundamentos invocados pelo Tribunal “a quo” estão em perfeita harmonia com a decisão.

L) A arguição de nulidade por contradição entre a matéria dada como provada e como não provada e respetiva fundamentação não tem a menor razão de ser.

M) Não poderia nunca ter sido proferida uma decisão diversa.

Pelo que deve negar-se provimento ao presente recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida.

                                                            II

São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal recorrido:

1) No exercício da respetiva atividade de TOC, desde o ano de 2007 até 16.05.2011, o requerente prestou à requerida, a pedido desta e no interesse da mesma, serviços de contabilidade que consistiram, nomeadamente, na apresentação periódica da declaração do IVA, na apresentação das declarações de IRC e da IES e, de um modo geral, na organização e tratamento de toda a documentação fiscal atinente à atividade da requerida, mediante o pagamento de uma avença trimestral no valor de 300,00€.

2) O requerente serviu ainda de intermediário na celebração de acordos de seguros à R., a pedido desta e no interesse da mesma, designadamente do ramo automóvel.

3) No âmbito de tal relação e a título de adiantamentos, por conta das despesas da requerida, e com a sua anuência, o requerente desembolsou os valores globais de:

- 9.067,91€, a título de prémios de seguros (€148,20 mais €1.226,81 mais €367,50, mais €367,50 mais €1.221,84 mais €1.311,19 mais €1311,22 mais €18,23 mais €953,76 mais €1.069,90 mais €1.071,76);

-2.266,69€ a título de IRC, IES, IVA e IRS;

-1.203,16€ a título de prestações da segurança social referentes a 7 meses do ano de 2007, à razão de 171,88€x7;

-3.493,38€ (€2.057,00 mais €1.436,38), em 2008, a título de prestações vencidas junto do BCP, S.A., para liquidação de rendas relativas ao contrato n.º 400075682.

4) Ficaram ainda por entregar ao requerente os valores de €2.800,00, a título de avenças vencidas, 280,00€, correspondente a duas deslocações efetuadas desde o respetivo domicílio profissional, sito na freguesia de S. Vicente da Beira, concelho de Castelo Branco, até Leiria e vice–versa, em duas ocasiões, para resolver duas situações em que a requerida era devedora de prestações em atraso junto do BCP, S.A, à razão de 400 kmsx2x0,35€/km e 105,00€, correspondente a três deslocações efetuadas desde o respetivo domicílio profissional, sito na freguesia de S. Vicente da Beira, concelho de Castelo Branco, para tratar de um assunto judicial que a requerida tinha pendente no Tribunal Judicial de Penamacor, à razão de 100 kmsx3x0,35€/km.

5) Foi já liquidada pela requerida a importância global de 13.360,00€.

Não se provou que:

A) A requerida entregou ao requerente as quantias aludidas em 3) e 4), descontado o valor referido em 5).

B) Ficou por entregar ao requerente, a título de avenças, o valor de €1.900,00.

C) As apólices de seguro da companhia de seguros L (...), com o n.º 3504098, com o prémio de seguro no valor de €1.069,90 e €1.071,76, incluem a cobertura de assistência em viagem e não abrangem a cobertura de quebra de vidros, condições que tinham sido impostas pela R. ao A.

D) A R. entregou o valor de €400 para reparação de uma quebra de vidros.

                                                                        III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (art. 635 nº 3 do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. art. 608 in fine), são as seguintes as questões a decidir, sequenciadas de acordo com um critério de utilidade e prejudicialidade:

I. Da nulidade da decisão por omissão de pronúncia e contradição entre factos e fundamentos.

II. Se deve proceder a matéria de exceção da prescrição presuntiva.

I . Da nulidade da decisão por omissão de pronúncia e contradição entre factos e fundamentos.

Invoca a Ré a nulidade da sentença por omissão de pronúncia por não ter o tribunal se pronunciado sobre a sua alegação de que não existia entre as partes qualquer conta corrente.

Vejamos.

O tribunal qualificou o contrato celebrado entre A. e R. como contrato de prestação de serviços, admitindo ainda terem ocorrido situações de mútuo entre as partes, desse modo se afastando da qualificação da relação contratual como de conta corrente.

E, assim sendo, não só afastou a qualificação da relação contratual como de conta-corrente, como a irrelevou, acompanhando a pretensão da Ré.

Não tinha, por isso, a sentença que se pronunciar expressamente sobre a inexistência duma relação contratual com tais caraterísticas, por ser irrelevante.

Não estando o tribunal vinculado ao direito invocado pelas partes e, sendo tal questão uma questão de direito, pois que se reporta à qualificação de uma relação contratual, tendo o tribunal julgado parcialmente procedente a ação com base num contrato de prestação de serviços/mútuos, desse modo se afastando da conta corrente alegada pelo Autor, como, aliás pretendia a Ré, não tinha que se pronunciar expressamente sobre a impugnação à qualificação do contrato.

Improcede, assim, tal invocação de nulidade, por omissão de pronúncia.

Pretende a apelante ocorrer ainda nulidade da sentença por contradição entre o facto provado 4) [Ficaram ainda por entregar ao requerente os valores de €2.800,00, a título de avenças vencidas (…)] e o facto não provado B) [Ficou por entregar ao requerente, a título de avenças, o valor de €1.900,00] por atendimento ao seu fundamento probatório, que foi relevado num caso, mas foi considerado inexistente no outro.

Vejamos.

O A. pede 4.700 € a título de avenças vencidas desde o último semestre de 2007 até ao dia 16.05.201 e, relativamente a tal pedido, a Ré na oposição diz que “no que respeita ao pagamento de avenças relativas ao ano de 2011, importa dizer que não é devido, porque durante o ano de 2011 o Autor não prestou qualquer serviço à Ré” (art. 63).

E diz ainda (art. 67) que : “a existir algum valor que a Ré não pagou a título de avença ao Autor, o que não se concede, o mesmo só poderá respeitar ao ano de 2010, quatro trimestres, no valor de €1.200,00”.

O tribunal recorrido deu como provado o valor de 2.800 € a pagar a título de avenças, com base na ausência de impugnação desse valor e na ausência de prova da sua entrega.

Mas basta atentar no texto do art. 67 da oposição supra transcrito, para, com todo o respeito, não se poder aceitar uma “não impugnação” com tal abrangência.

Apenas o valor de 1.200€ (e não de 2.800€) se poderá considerar não impugnado como montante devido, pois que, relativamente ao que o excede, o Réu tomou uma posição definida de não aceitação (art. 574 CPC).

Assim, só relativamente ao valor de 1.200€ cumprirá questionar, em obediência, às regras do ónus da prova definidas no art. 342 do C.Civ, em particular no seu nº 2 (facto extintivo), se o Réu fez prova do seu pagamento.

E, não o terá feito, de acordo com o decidido no julgamento (não impugnado) da matéria de facto.

Importa, por isso, reduzir o montante devido a título de avenças a 1.200€, ficando prejudicado o montante de 1.600€ (2.800-1.200).

Procede, assim, parcialmente, a invocação de contradição entre factos e fundamento, devendo a decisão condenatória, a manter-se, ser reduzida no montante de 1600€ afetado pela contradição.

II. Se deve proceder a matéria de exceção da prescrição presuntiva.

Invocou a Ré estar o crédito do A. prescrito nos termos do art. 317 alª c) do C. Civ. que estabelece:

“Prescrevem no prazo de dois anos:

(…)

c) Os créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso de despesas correspondentes».

Aceitando que os créditos demandados foram prestados no exercício de profissão liberal, a sentença recorrida excluiu, contudo, a aplicação desta norma, com fundamento em que a Ré/apelante, porque sociedade comercial, dela não pode beneficiar.

Segundo a sentença, sendo a apelante uma sociedade comercial legalmente sujeita a contabilidade organizada que tem de arquivar e registar todos os movimentos no âmbito da sua atividade ou por causa dela, não redunda sobre ela qualquer risco de satisfazer duas vezes a dívida ao apelado por falta de comprovativo de pagamento, pelo que, não se encontram preenchidos os objetivos subjacentes à prescrição presuntiva.

Objetivos esses que são, proteger o devedor da dificuldade de prova do pagamento de dívidas que normalmente têm prazos curtos de pagamento e, em que, muitas vezes, não é entregue ao devedor um documento de quitação, ou relativamente às quais, pelo menos, é corrente que se não conserve tal documento.

Embora tal posição tenha apoio em sede jurisprudencial[i], não subscrevemos a mesma.

Sendo o crédito derivado de serviços que substancialmente se enquadram no exercício duma profissão liberal, resulta indiferente que, no caso, estes tenham sido prestados a uma sociedade ou a uma pessoa singular, pois que, quer da letra quer do espírito da norma resulta que o critério de subsunção ao preceito em análise se define unicamente pela natureza dos serviços em causa, e não da entidade que os recebe, ou da entidade que os presta.[ii]

Assim, o que releva para o efeito de aplicação da norma é a natureza dos serviços em causa e não a qualidade da pessoa (singular ou sociedade), que presta, ou a quem os serviços são prestados.

Desse modo, os créditos reclamados pelo Autor, porque prestados por este no exercício de profissão liberal, são enquadráveis na alª c) do art. 317 do C.Civ..

            Mas, apesar desta divergência relativamente ao decidido na sentença, ainda assim, não reconhecemos razão à apelante que pretende ver declarada a prescrição dos créditos reclamados.

Vejamos porquê.

Dispõe o art. 313 do C.Civ. que: “1. A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor originário (…)”

Sendo que, para o art. 314: “Considera-se confessada a dívida se o devedor (…) praticar em juízo atos incompatíveis com a presunção de cumprimento”.

A jurisprudência tem vindo a entender serem vários os exemplos em que ocorre uma prática incompatível com a presunção de cumprimento.

Os “atos incompatíveis com a presunção de cumprimento” a que se refere o artigo 314º do C.Civ. podem traduzir-se em negar o devedor a existência da dívida, discutir o seu montante, não alegar com clareza que pagou a concreta dívida que é reclamada, invocar contra o credor uma compensação ou remissão, invocar a gratuitidade dos serviços, etc.[iii]

No caso o Réu apresentou uma defesa que se apresenta incompatível com a presunção de cumprimento prevista na al. c) do art. 317º, na medida em que refere na sua oposição (art. 26) que “os valores peticionados pelo Autor já foram pagos pela Ré, uma vez que, os mesmos se encontram prescritos nos termos do disposto no art. 317º al. c) do Código Civil” (sublinhado nosso), assentando o pagamento no decurso do prazo de prescrição, quando deve ser o contrário, assentar a prescrição no pagamento e decurso do prazo.

Por outro lado, relativamente a certos montantes a Ré alega na oposição que, não lhe foram apresentados documentos comprovativos das despesas efetuadas (art. 40), a Ré não sabe se foi o Autor que efetuou os pagamentos alusivos a prémios de seguro (art. 54), o reembolso dos mesmos por parte da Ré não é devido porque não foram incluídos nos contratos de seguro (art. 57), a ser devido qualquer pagamento deve ser subtraído o valor de 400€ pago pela Ré pela reparação de uma quebra de vidros (art. 60), o pagamento de avenças relativas ao ano de 2011 não é devido, porque o Autor não prestou qualquer serviço à Ré nesse ano (art. 63), etc., apresentando assim, uma defesa incompatível com a presunção de cumprimento e que inviabiliza se possa declarar a prescrição do direito de crédito do Autor/apelado.

Assim sendo, embora com diferente fundamentação, nenhuma censura merece a decisão recorrida que considerou não verificados os pressupostos da prescrição presuntiva prevista no art. 317 alª c) do C.Civ.

Improcede, por consequência tal questão do recurso.

Em suma:

- O que releva para o efeito de aplicação do art. 317 alª c) do C.Civ. é a natureza dos serviços em causa e não a qualidade da pessoa (singular ou sociedade), que presta, ou a quem os serviços são prestados.

- Sendo o crédito derivado de serviços que substancialmente se enquadram no exercício duma profissão liberal, resulta indiferente que, no caso, estes tenham sido prestados a uma sociedade ou a uma pessoa singular, pois que, quer da letra quer do espírito da norma resulta que o critério de subsunção ao preceito em análise se define unicamente pela natureza dos serviços em causa, e não da entidade que os recebe, ou da entidade que os presta.

                                                            IV

Termos em que, julga-se parcialmente procedente a apelação, substituindo-se a decisão recorrida por outra que julgando a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, condena a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 4.256,14 (quatro mil duzentos e cinquenta e seis euros e catorze cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos, desde a citação até efetivo e integral pagamento, à taxa de 4%.

Custas por apelante e apelado na proporção do decaimento.

 Anabela Luna de Carvalho ( Relatora )

 João Moreira do Carmo

 José Fonte Ramos


[i] Nomeadamente, no Ac. TRL de 12-12-2013, P. 273/08.0TBSEI.L1-6 (Relator: Vítor Amaral) in www.dgsi.pt, onde se decidiu que: “O crédito de uma médica dentista, enquanto profissional liberal, sobre uma sociedade comercial – esta com contabilidade organizada e consequente guarda prolongada dos respetivos documentos de suporte contabilístico –, emergente de relação contratual prolongada de prestação de serviços a essa sociedade, em que reciprocamente se vincularam, não cabe na previsão da al.ª c) do art.º 317.º do CCiv.”.
[ii] Neste sentido, Ac. STJ de12-09-2006, P. 06A1764, Relator: Nuno Cameira, in www.dgsi.pt.
[iii] Veja-se Ac. TRP de 18-10-2001, P.0131354, Relator (Leonel Serôdio), citando Antunes Varela e Pires de Lima, C.C. Anotado, 3ª edição, vol. I, pág. 281, na mesma base de dados.