Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
99/09.4TAFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 10/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 205º DA CRP, 191º DO CP, 97ºE 308º DO CPP
Sumário: 1 Se uma testemunha na instrução dá uma versão dos factos contrária a que deu no inquérito, o juiz deve apresentar de modo claro e tanto quanto possível completo, ainda que de forma concisa, as razões objectivas porque dá crédito à versão apresentada em instrução em detrimento da do inquérito.

2.A existência de duas versões contraditórias, uma no inquérito outra na instrução, pelas mesmas pessoas, não justificada a mudança ou a razão da aceitação de uma delas em detrimento da outra, legitima a aplicação do princípio in dubio pro reo.

Decisão Texto Integral: Nos presentes autos, findo o inquérito preliminar o digno magistrado do MºPº proferiu despacho final de arquivamento dos autos (fls. 155-157), por não reunidos indícios suficientes da prática dos crimes denunciados:
- crime de introdução em lugar vedado ao público, relativamente ao qual foram constituídas arguidas ME e MH
- crimes de violência doméstica e de sequestro, relativamente aos quais havia sido constituída arguida ME.
No mesmo despacho o digno magistrado do MºPº ordenou ainda a notificação da queixosa, constituída assistente nos autos, ME nos termos e para efeitos do disposto no art. 285º, n.º1 do CPP, consignando que a prova reunida em inquérito indicia a prática dos crimes de natureza particular denunciados.
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A assistente, ME, deduziu acusação particular contra as arguidas MF e MH acusando-as da prática, cada uma elas, de um crime de injúrias p. e p. pelo art. 181º do C. Penal – acusação acompanhada pelo MºPº.
E requereu a abertura da instrução, pedindo a reinquirição das testemunhas que haviam sido inquiridas no inquérito preliminar e a pronúncia das arguidas MF e MH pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público p. e p. pelo art. 191º do C. Penal.
Após realização das diligências instrutórias requeridas e debate instrutório foi proferido despacho de pronúncia (fls.249-256), no qual a Mª JIC pronunciou as arguidas M F e MH, ambas com os apelidos de A..G.., pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público p. e p. pelo art. 191º do C. Penal e um crime de injúrias p. e p. pelo art. 181º do C. Penal.
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Recorrem agora (fls. 293-300) as arguidas MF e MH do aludido despacho de pronúncia. Formulando, na respectiva motivação, as seguintes CONCLUSÕES:
A - O douto Despacho que determinou a abertura de instrução (e que não foi notificado às arguidas) julgou admissível a repetição dos depoimentos das testemunhas A, A G e N Q por considerar indevidamente a existência de obscuridades naqueles depoimentos que careceriam de ser esclarecidas.
B - Aqueles depoimentos são totalmente inequívocos, neles estando expresso pelas testemunhas, de forma clara, que as arguidas, quando instadas a saírem da propriedade da Assistente, o fizeram - razão pela qual, aliás, o Ministério viria, mui doutamente, a determinar o arquivamento daqueles factos.
C - Porque não se verificam os pressupostos em que assentou a decisão de repetição daqueles depoimentos, não podem estes ser considerados para efeitos de decisão sobre a submissão, ou não, das arguidas a julgamento.
D - Mesmo que assim não se entendesse - o que não se concede - o que é facto é que da repetição daquela prova em sede de instrução resultam contradições na prova recolhida, apreciada no seu conjunto, e que devem ser interpretada à luz do princípio constitucional "in dúbio pro reo" - i.e, em benefício das arguidas.
E - Com efeito, se as mesmas testemunhas produzem em sede de inquérito e de instrução depoimentos intrinsecamente contraditórios, não é possível considerar que esses depoimentos se traduzem em indícios suficientes da prática dos factos que a Assistente pretende imputar às arguidas.
F - Acresce que o Tribunal não considerou, igualmente, a natureza das relações familiares entre a Assistente e as referidas testemunhas; nessa perspectiva, ter-se-à que concluir, ao contrário do que fez o Tribunal recorrido, que o peso e idoneidade desses depoimentos não deixará de ser insuficiente para fundamentar algo tão gravoso quanto a condenação das arguidas pela prática do crime por que foram pronunciadas.
G - Também andou mal a douta decisão recorrida ao desconsiderar as circunstâncias em se inserem os factos constantes da pronúncia.
H - Está em causa, nos autos, um conflito de natureza familiar - as arguidas e a Assistente são irmãs - no âmbito do qual as arguidas se deslocaram a casa da Assistente com a fim de falarem com a mãe e de atestarem o seu estado de saúde.
I - Num plano indiciário, tudo aponta, pois, para que, mesmo que em limite fossem demonstráveis os factos constantes da pronúncia, se concluísse pela existência de causas de exclusão da ilicitude das condutas das arguidas.
J - Processualmente, não foram observadas no âmbito da instrução as mais elementares disposições que Visam garantir a efectiva participação dos arguidos nesta fase processual, designadamente pela omissão das notificações a que aludem os arts. 287°, n.º e 289°, nº2 do CPP.
L - Também não foram as arguidas notificadas, como se impunha, para comparecer no debate instrutório o que, salvo melhor entendimento, constitui nulidade insuprível.
M - A decisão recorrida é ilegal por violação do disposto no art. 191º do Código da CRP.
Termos em que, deve ser revogada a douta decisão recorrida e, julgando-se procedente o presente recurso, deve ser proferida decisão de não pronuncia das arguidas relativamente ao crime de introdução em lugar vedado ao público, assim se fazendo JUSTIÇA!
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Respondeu a assistente sustentando a manutenção do despacho recorrido.
Respondeu o digno magistrado do MºPº sustentando que o recurso deve proceder, porquanto, em síntese:
- a própria assistente assume, na queixa apresentada, que permitiu a entrada das arguidas (suas irmãs);
- sobressai dos autos a relação familiar entre as testemunhas ouvidas na instrução e a assistente;
- as referidas testemunhas tinham, no inquérito preliminar, produzido depoimentos contrários aqueles que apresentaram na instrução;
- o crime em questão ter-se-á consubstanciado em palavras, em que apenas existem duas versões contraditórias [entre dois grupos familiares], o que por si só demonstra a dificuldade em determinar uma possível condenação [probabilidade sustentada]; -
- quando tais depoimentos só surgem numa segunda versão e contados pelas mesmas pessoas, então, a dúvida que já era séria e razoável, está agora instalada de tal modo que é indissociável a um juízo de prognose, seja qual ele for, tanto mais que o despacho de pronúncia não justifica o porquê de ter dado prevalência a uma das duas versões.
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex. Mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual sufraga inteiramente a resposta apresentada pelo MºPº em 1ª instância pronunciando-se no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.
Corridos os vistos, após julgamento, mantendo-se a validade e regularidade afirmadas no processo, cumpre decidir.
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II.


Relativamente ao crime de injúrias foi deduzida acusação particular que não foi posta em causa através de requerimento de abertura da instrução. O objecto do requerimento de abertura da instrução foi apenas o crime de introdução em lugar vedado ao público.
Por outro lado, das conclusões do recurso, que delimitam o respectivo objecto, resulta que a pronúncia pelo crime de injúrias não vem questionada. Estando, como tal, fora do âmbito do recurso.
Está assim em causa, exclusivamente, a pronúncia ou não pronúncia das arguidas MF e MH, ambas com os apelidos de A G pelo crime de introdução em lugar vedado ao público p e p pelo art.191º do C. Penal.
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Relativamente ao referido crime, é a seguinte, a matéria de facto que resulta do despacho de pronúncia:
1 - No dia 19 de .. de 2009, cerca das 19.30 horas, no local denominado "Quinta … ou "C…., limite e freguesia do Fundão, área desta comarca, as arguidas entraram dentro do prédio pertencente á assistente, o qual é composto de casa de habitação, anexos e jardim, e que está totalmente vedado por um muro e portões.
2 - Na mencionada ocasião, a assistente, irmã das arguidas, afirmou repetidas vezes para as mesmas, que se retirassem do seu prédio, porque não as tinha convidado, nem autorizava que aí permanecessem.
3 - Apesar disso, as arguidas mantiveram-se no exterior da habitação, mas no interior do referido prédio.
4 - Na mesma ocasião e lugar, as arguidas, dirigindo-se à assistente e visando esta, disseram para a mesma que a iam pôr em Tribunal "por ter raptado a mãe" e ainda que aquela "ia sentar o cu no mocho".
(…)
8 - Agiram ainda livre, voluntaria e conscientemente, com o propósito concretizado de permanecerem, contra a vontade da assistente, no interior do prédio da mesma.
9 - Sabiam as arguidas que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
Encontra-se assim indiciada a prática por cada uma das arguidas, em autoria material (…) 1 (um) um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191º do mesmo código.
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Por outro lado o acervo probatório da referida matéria é o seguinte:
“Prova:
1 ° DECLARAÇÕES à ASSISTENTE, id. a fls.75 dos autos
2° TESTEMUNHAL:
1 – A…, casado, empresário, residente na Quinta… Fundão.
2 - AD solteira, residente na Quinta do…., Lisboa.
3 - N, operador de máquinas/gestor de clientes, residente na mesma morada da testemunha anterior.”
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A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento - art. 286º, nº 1 do C. P. Penal.
Constitui assim, no C.P.P., uma actividade de averiguação processual complementar daquela que foi levada a cabo durante o inquérito preliminar, destinando-se, tendencialmente, a uma investigação mais aprofundada dos factos constitutivos de um crime e sua imputação a determinada pessoa.
Nos termos do art. 308º, n.º1 do C.P.P. Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.
Por outro lado, de acordo com o disposto no art. 283°, n° 2, do C. P. Penal "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança".
A referida “possibilidade razoável” de condenação em julgamento envolve um juízo retrospectivo de valoração dos meios de prova recolhidos no processo que fundamentam a acusação; e um juízo de prognose sobre os meios de prova que poderão vir a ser produzidas ou examinadas na audiência de julgamento, sabido que a produção de prova em julgamento obedece a princípios diferentes, com destaque para a “institucionalização” do contraditório e os princípios da imediação e da concentração.
Sendo certo que, salvo casos excepcionais, os meios de prova produzidos nas fases de instrução e de inquérito não serão reforçados até à audiência de julgamento. Pelo contrário, a tendência será no sentido do enfraquecimento dessas provas, quer pela natural erosão do tempo quer porque, em julgamento, aquelas provas irão ser submetidas ao exercício efectivo do direito de defesa que nas fases anteriores do processo se encontra substancialmente limitado, enfim pelo envolvimento sistemático da defesa em contraditar e causticar as provas da acusação, bem como na procura de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa ou da justificação do facto.
Acresce que o referido juízo retrospectivo sobre as provas recolhidas não se compadece com dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas face ao princípio in dubio pro reo, vigente em termos de apreciação da matéria de facto.
Exigindo-se pois, quer da parte do Ministério Público, quer da parte do Juiz de Instrução, uma convicção segura e acabada sobre a culpabilidade do arguido, ou seja, um juízo ou convicção equivalente ao de julgamento, na demonstração da objectividade do facto, na apreciação do material probatório que a suporta em conformidade com as normas relativas à aquisição e proibições de valoração da provas, nos critérios de racionalidade inerentes ao princípio da livre apreciação da prova.
O referido grau de certeza compatibiliza-se com o critério legal da a “possibi1idade razoável” de condenação na medida em que a decisão sobre a existência ou não de indícios suficientes envolve, para além do referido juízo retrospectivo o já falado juízo de prognose sobre as provas que posam vir a ser produzidas ou examinadas na audiência de julgamento de acordo com os referidos princípios próprios desta fase.
Com efeito, na lição, sempre actual de CASTANHEIRA NEVES (Processo Criminal, Sumários, p. 39) “na apreciação da suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final - só que a instrução não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.
Assim a “possibilidade razoável” que o nº2 do artigo 283º do CPP exige não se reporta à convicção que a autoridade competente tem de efectuar em relação aos elementos probatórios recolhidos. Reporta-se antes à possibilidade de confirmação dessa convicção, em audiência de julgamento.
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Nos termos do art. 10º, n.º1 do C. Penal “Quando o tipo de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo, como a omissão da acção adequada a evitá-lo”.
Consagrando tal disposição – à semelhança do que sucede na responsabilidade civil pelo art. 563º do C. Civil – a doutrina da causalidade adequada.
Na formulação de Eduardo Correia (Direito Criminal, I vol., p. 257) “para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e una acção não basta que a realização concreta daquele se não possa estabelece sem esta; é necessário que, em abstracto, a acção seja idónea para causar o resultado; que o resultado seja uma consequência normal, típica, da acção. (…) Este juízo deve ser feito segundo as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas da situação (...) segundo as regras da experiência normais e as circunstâncias concretas em geral conhecidas, não se devendo porém abstrair, para a sua determinação, das circunstâncias que o agente efectivamente conhecia”.

No caso sob apreciação, como resulta da descrição fáctica efectuada no despacho de pronúncia, não está em causa a “entrada” das arguidas em lugar vedado ao público, mas apenas a “permanência” após terem sido instadas a retirarem-se do jardim anexo à casa de residência.
Por outro lado, resulta claro do respectivo enunciado/motivação que a pronúncia teve por fundamento os depoimentos, prestados em instrução (reinquirição), das testemunhas A AD e N.
Sendo certo, como é enfatizado na douta resposta do MºPº, essas mesmas testemunhas já haviam sido inquiridas no inquérito preliminar. Tendo sido com base no teor desses depoimentos (prestados em inquérito) que o digno magistrado do MºPº determinou o arquivamento dos autos – por terem afirmado que quando as arguidas foram intimadas a retirar-se do espaço vedado anexo à casa de habitação, abandonaram esse mesmo espaço.
Com efeito, quando ouvidas na fase de inquérito preliminar tinham afirmado que as arguidas, quando intimadas a saírem do espaço anexo à casa da assistente, saíram desse espaço - daí o arquivamento, pelo MºPº.
Já quando reinquiridas na fase de instrução as mesmas testemunhas alteraram o seu depoimento, dizendo, em síntese, que as arguidas, quando intimadas a sair não o fizeram.
Ora, perante uma tal mudança, objectiva – e sincronizada - do teor dos depoimentos, do inquérito para a instrução, uma mudança na decisão que se apoiou, de forma exclusiva, nessa mudança, deveria ser fundamentada! Apresentando uma justificação objectiva e racional pela qual a segunda versão (e trata-se de uma nova versão sobre um cenário previamente ensaiado) merece crédito suficiente para levar a julgamento. E legitimar a previsibilidade de uma condenação, tanto mais sabendo-se que neste âmbito vigora o princípio in dubio por reo.
Com efeito o dever de fundamentação de todas as decisões judiciais encontra-se consagrado genericamente pelo art. 158º do CPC e no art. 97º, n.º4 do CPP que postula: Os actos decisórios são sempre fundamentados devendo especificar os motivos de facto e de direito da decisão.
Dever esse que assume particular ênfase em processo penal, decorrendo das exigências do Estado de Direito Democrático, expressamente cominado pelo art. 205º, n.º1 da Constituição da República na redacção saída da revisão de 1997.
Como refere Marques Ferreira in Jornadas de Direito Processual Penal do C.E.J., O Novo Código de Processo Penal, ed. Almedina, p. 229-230, “de acordo com os princípios informadores do Estado de Direito Democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado nos arts. 32º, n.º1 e 21º da Constituição a fundamentação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico e racional que lhe subjaz. E extraprocessualmente deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade”.
Assim, não justificando a decisão recorrida a aceitação, em que repousa, da mudança da atitude das testemunhas, carece de fundamentação.
Aliás a existência de duas versões contraditórias, pelas mesmas pessoas, não justificada a mudança ou a razão da aceitação de uma delas em detrimento da outra, sempre legitimaria a aplicação do princípio in dubio pro reo.

Acresce que:
- a referida modificação/alteração do sentido dos depoimentos tem que ser vista, no contexto dos autos, no caso, não só em função dessa relação de proximidade/parentesco das testemunhas com a assistente (são marido, filha e namorado desta, respectivamente) como ainda da posição que a própria assistente teve nos presentes autos – repare-se que foi constituída arguida nos autos ainda que o processo tenha sido arquivado pelo MºPº, quanto a ela, relativamente aos crimes de violência doméstica e de sequestro na pessoa da mãe comum de arguidas e assistente, denunciados;
- a própria assistente, na queixa apresentada, refere que as arguidas entraram no prédio e no seu jardim com sua autorização presumida. Reconhecendo ainda que as arguidas (suas irmãs) ali se dirigiram para ver e conversar com a mãe comum (das três). “Protestando”, aliás (veja-se que foi denunciada por reter a mãe em casa contra vontade) que lhes permitiu visitar e conversar com a mãe;
- não está a “entrada” na habitação mas apenas “permanência” espaço exterior de jardim/quintal anexo, após a intimação para daí se retirarem, já numa fase em que a “visita” evoluíra para discussão (as arguidas estão acusadas pela prática, na mesma ocasião, dos crimes de injúrias;
- além dos laços de parentesco e o motivo da visita que legitimaram a entrada das arguidas, a posterior “ordem de abandono”, como que “invertendo” a autorização prévia, em termos de causalidade e adequação tem que ser contextualizada;
- na versão do marido da assistente teria sido ele (e não a mulher como consta da pronúncia) que mandou as arguidas sair do espaço anexo à residência;
- ponderando, em termos de valoração indiciária, a existência da efectiva lesão do bem jurídico protegido pelo crime - o nexo de causalidade entre a acção e o resultado típico; a existência de uma acção dolosa/vontade de preenchimento dos elementos do tipo de crime.

Ora, não só a decisão recorrida não pondera tais elementos, como existem outros que apontam em sentido contrário:
- estava em causa a visita da mãe comum e verificação do seu estado de saúde;
- (repare-se foram chamados ao local e ali compareceram o “INEM” e a GNR – cfr. motivação do despacho de pronúncia);
- a arguida MH, em afirmação não contrariada, referiu que foi ela própria que chamou a GNR – o que em termos de senso comum não faria se tivesse a noção de que ela própria estava a incorrer na prática de um crime;
- se a discussão em torno da estada da mãe comum “exigiu” a presença do INEM e da GNR, em termos de nexo de causalidade adequada, o juízo quer sobre a “ordem” de expulsão quer sobre o dolo da sua violação, têm que ser vistos no referido contexto – não se “mandam” sair do jardim/quintal (mormente sob pena de incorrer em responsabilidade criminal) duas irmãs quando é chamado o INEM para prestar socorro à mãe que se encontra dentro da casa em cujo jardim anexo estas se encontram, tanto mais pertencendo a casa a sua irmã;
- com a presença do INEM e da GNR e a discussão em torno da saúde da mãe comum que se encontrava dentro de casa não havia intimidade/privacidade que pudesse ser violada pela presença das filhas no jardim anexo.
- acresce que, da prova produzida, ninguém ousa referir que as arguidas tivessem actuado dolosamente – com conhecimento dos elementos do tipo e vontade de os realizar/violar os bens jurídicos tutelados pela incriminação – nem na reinquirição inovatória as testemunhas ousaram referir que as arguidas tiveram consciência/vontade de permanecer ilicitamente em espaço reservado depois de intimadas a sair dele;
- no mesmo sentido aponta, ainda, a circunstância de a GNR, chamada e presente no local, nem sequer ter identificado as arguidas. Como não deixaria de suceder se, na ocasião, houvesse fundada suspeita de que as arguidas se tivessem recusado a abandonar o espaço anexo à casa da irmã;
- sendo invocada na motivação do despacho de pronúncia a saída das arguidas “após grande insistência da GNR”, reconhece que “saíram efectivamente”, quando confrontadas de forma a supor a prática de uma infracção;
- se a decisão recorrida parte do depoimento da GNR para justificar a “recusa” da saída, só o poderia fazer com base no depoimentos dos agentes – que não foram, sequer, ouvidos.

Conclui-se assim, pelas razões sumariadas, pela procedência do recurso, por não indiciada a prática dos elementos quer do tipo objectivo quer do subjectivo do questionado crime de introdução em lugar vedado ao público.
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III.
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se julgar procedente o recurso, revogando o despacho recorrido na parte em que pronuncia as arguidas por um crime de introdução em lugar vedado ao público p e p pelo art. 191º do CP, determinando o arquivamento dos autos nessa parte. ----
Face à oposição, nos termos dos artigos 514º, n.º3 e 515º, 1, b) do CPP, condena-se a assistente nos encargos do recurso.

BELMIRO ANDRADE (RELATOR)
ABÍLIO RAMALHO