Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5/08.3GAGVA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: LENOCÍNIO
CRIME DE EXECUÇÃO SUCESSIVA
UNIDADE DE RESOLUÇÃO CRIMINOSA
NE BIS IN IDEM
CASO JULGADO
AUXÍLIO À IMIGRAÇÃO ILEGAL
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
CRIME ÚNICO
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SEIA (2.ª JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 29.º, N.º 5, DA CRP; ARTIGO 169.º DO CP; 183.º, N.º 2, DA LEI N.º 23/2007, DE 04-07; ARTIGO 86.º, N.º 1, ALÍNEAS C), DA LEI 5/2006, DE 23-02
Sumário: I - A expressão “mesmo crime” não deve ser interpretada, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, mas antes como uma certa conduta ou comportamento, ou seja, como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime.

II - Deste modo, o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal; por outras palavras, todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final, directamente relacionados com o “pedaço de vida” apreciado, e que com ele formam a aludida unidade se sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração, não podem ser posteriormente convocados.

III - Ocorre uma situação de caso julgado, se o arguido foi condenado no âmbito de outro processo, pela autoria material de um crime de lenocínio simples - revelando a situação histórica em que a conduta respectiva se desenvolveu tratar-se de um crime de execução sucessiva, tendo na sua génese uma única resolução criminosa -, e esta condenação engloba no seu âmbito espácio-temporal os factos imputados ao arguido no domínio do processo em curso, também constitutivos do referido crime.

IV - O tipo legal de crime de auxílio à emigração ilegal previsto no n.º 2 do artigo 183.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, basta-se com a permissão - lucrativa - do arguido de cidadã(s) estrangeira(s) “trabalhar(em)” em estabelecimento comercial seu, na actividade de alterne e prostituição; por essa via, o arguido, obtém rendimentos e, em simultâneo, facilita a permanência daquelas no país.

V - Desconhecendo-se se os diversos objectos em causa - “armas” - chegaram ao poder do arguido em ocasiões distintas, fica inviabilizada a possibilidade de ocorrência de mais do que uma resolução criminosa; neste quadro, está verificado um único crime de detenção ilegal de arma proibida.

Decisão Texto Integral: Acordam na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO

1. No processo comum com intervenção do tribunal colectivo registado sob o n.º 5/08.3GAGVA, a correr termos no Tribunal Judicial de Seia, realizado o julgamento, foi proferido o acórdão em 27.11.2013 - fls.2019 a 2037 -,de cujo dispositivo consta o seguinte:

«Em face do exposto decidem os Juízes constituídos em Tribunal Coletivo do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Seia:

I. Condenar o arguido A..., pela prática de:
i. Um crime de lenocínio p. e p. pelo artigo 169º, nº 1, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;

ii. Um crime de auxílio à imigração ilegal p. e p. pelos artigos 2º, nº 4, do Código Penal, e 183º, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, na sua redação original, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão;

iii. Um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelos artigos 2º, nº 4, do Código Penal, e 86º, nº 1, alínea c), do Regime Jurídico das Armas e Munições, na sua redação original, na pena de 1 (um) ano de prisão;

iv. Um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelos artigos 2º, nº 4, do Código Penal, e 86º, nº 1, alínea d], do Regime Jurídico das Armas e Munições, na sua redação original, na pena de 6 (seis) meses de prisão.

II. Operando o cúmulo jurídico das penas, nos termos do disposto no artigo 77º do Código Penal, condenar o arguido A... na pena única de 4 (quatro) anos de prisão.

III. Nos termos do disposto nos artigos 50º, 52º, nº 2, alíneas a) e d], 53º, nº 3, e 54º, nº 3, do Código Penal, suspender a execução da pena única de prisão determinada ao arguido A... pelo período de 4 (quatro) anos, com sujeição a regime de prova e às seguintes regras de conduta e obrigações:
i. Proibição de explorar, direta ou indiretamente, estabelecimentos de Café ou Bar que funcionem para além do período das 7 às 22 horas;

ii. Proibição de acompanhar com pessoas conotadas com a atividade de prostituição ou de alterne;

iii. Proibição de acompanhar, alojar ou receber cidadãs e cidadãos de nacionalidade estrangeira que se encontrem em situação ilegal ou irregular em Portugal;

iv. Obrigação de responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social;
v. Obrigação de receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;

vi. Obrigação de informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a 8 (oito) dias e sobre a data do previsível regresso;

vii. Obrigação de obter autorização prévia do magistrado responsável pela execução para se deslocar ao estrangeiro.

IV. Ao abrigo do disposto no artigo 109º, nº 1, do Código Penal, declarar perdidos a favor do Estado os seguintes objetos apreendidos: 451 (quatrocentos cinquenta e um) preservativos, 108 (cento e oito) cartões do Bar “ Y..”, um frasco de banho Atrai Clientes, 6 (seis) pacotes de gel lubrificante do Ministério da Saúde, 4 (quatro) tubos de gel lubrificante, um tubo de vaselina, um falo de borracha, um frasco de vaselina, um frasco de óleo exótico hidratante, uma espingarda de caça de marcaJMU282, 15 (quinze) cartuchos de marca Melhor, calibre 12 mm e uma munição de calibre 38".
V. Ordenar a restituição dos seguintes objetos, a operar nos termos do disposto no artigo 186º do Código de Processo Penal: 2 (dois) rolos de máquina registadora, um canudo de rolo de papel, 17 ( dezassete) rolos de papel e um saco de transporte em tecido camuflado.

VI. Condenar o arguido A... no pagamento das custas do processo (artigos 513º, nºs 1 e 3, 514º, nº 1, e 524º do Código de Processo Penal na redação anterior ao Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de fevereiro), com taxa de justiça de 8 (oito) UC's [artigo 85º, nº 1, alínea a), do Código das Custas Judiciais], sendo a procuradoria de % (artigo 95º, nº 1, do Código das Custas Judiciais ).

VII. Condenar ainda o arguido A... no pagamento de 1% (um por cento) da taxa de justiça aplicável, nos termos do disposto no artigo 13º, nº 3, do Decreto-Lei nº 423/91, de 30 de outubro.

Após trânsito em julgado remeta boletim à Direção de Serviços de Identificação Criminal e comunique à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais para efeitos do disposto no artigo 494.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Ainda após trânsito em julgado cumpra o disposto no artigo 8º, nº 2, com a finalidade prevista no artigo 18º, nº 3, ambos da Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro.

Oportunamente dê destino legal aos bens declarados perdidos a favor do Estado.

Consigna-se que, caso não se verifique qualquer alteração por via de recurso, uma vez transitada em julgado a presente decisão, no certificado de registo criminal do arguido deverão ser anotados os seguintes elementos:

Condenação por um crime de lenocínio p. e p. pelo artigo 169º, nº 1, do Código Penal, cometido em ... - Seia, de setembro de 2007 a dezembro de 2008, na pena de 3 anos de prisão;

Condenação por um crime de auxílio à imigração ilegal p. e p. pelo artigo 183º, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, cometido em ... - Seia, de setembro de 2007 a dezembro de 2008, na pena de 18 meses de prisão;

Condenação por um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, cometido em ... - Belmonte a 18 de dezembro de 2008, na pena de um ano de prisão;

Condenação por um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, alínea d), da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, cometido em ... - Belmonte e no Cruzamento de Alcaria - Fundão a 18 de dezembro de 2008, na pena de 6 meses de prisão.

Condenação na pena única de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período com sujeição a regime de prova, regras de conduta e obrigações.”


2. Inconformado, o arguido A... interpôs recurso deste acórdão, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1o- A livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, que determina dessa forma uma convicção racional e, portanto, objectivável e motivável - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-11-98, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, III-201.

A reapreciação das provas gravadas pelo Tribunal da Relação pode ser abalada caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem apoio nos elementos de prova constantes do processo ou se encontra profundamente desapoiada face às provas recolhida sem julgamento, impondo-se a anulação da decisão.

2o - Verifica-se um Vício insanável da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada para a Decisão - al. a) do n°2 do art.410° Cód. Proc. Penal - insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados -não se podendo extrair da prova obtida quanto ao tipo de exploração do Bar Y..., que fosse idêntica à prosseguida pelo arguido no Café X..., consequência directa, a matéria de facto terá que ser revogada integralmente e assim ser dada como não provada, atento o quadro probatório, em sede de julgamento.

Realce-se a transposição e reforço da matéria de facto no processo do bar X... que é comum a ambos os processos - atente-se os pontos nºs 1,2, 3, 4, 5. 6. 7. 8.9. 10.11.12, 13,14,15,16,17,18,19,20,21,22,23.24.25.26,27.28,29.30.31.32.33.34.35 e 36, ou seja, a integralidade da matéria provada, retirada e sendo uma cópia fiel do processo 58/09.7GFCVL - Bar Y..., em clara violação do garantismo jur dos direitos do arguido.

Foi violado o art.° 355° do Código de Processo Penal que proíbe claramente quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em sede de audiência.

3o - Por conseguinte, por absoluta inexistência de prova, no que tange ao Café X..., não se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de lenocínio, pelos quais o arguido vem condenado; Não foi minimamente demonstrado, o que terá de redundar em benefício do arguido (in dubio pro reo) o intuito lucrativo efectivado, o exercício profissional e habitual de tal "actividade" e a consciência da ilicitude do acto de facilitar o exercício da prostituição.

Não resulta, porém, minimamente provado e demonstrado, com a certeza que se imporia, que o arguido explorasse o café nos moldes em que foi acusado e bem assim é excluída qualquer utilização profissional e/ou intenção lucrativa, nem habitualmente. Nem com ganhos efectivos, que não vêm provados, não bastando presumir-se tais ganhos, como se faz no Acórdão e muito menos, com dolo ou intenção relativamente à totalidade dos elementos constitutivos do tipo objectivo de ilícito, sendo demasiado óbvio, que o direito penal não pune condutas de ordem moral;

4o - Não se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de auxílio à imigração ilegal, pelo qual, o arguido vem condenado. Não se mostra minimamente demonstrado, o que terá de redundar em benefício do arguido (in dubio pro reo) a consciência da ilicitude do acto de facilitar a entrada, permanência ou trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional das cidadãs brasileiras, uma delas, legal, que depuseram em sede de memória futura. Não foi provado qualquer actuação do arguido nesse sentido, pelo que a “ intenção lucrativa” fls. 27 da Decisão, como agravante, não pode ter merecimento legal.

5o - Também por falta de suficiente fundamentação de direito, o douto acórdão, encontra-se ferido de nulidade, conforme dispõe o artigo 379.º, n.º 1, alínea a) do CPP, ex vi artigo 425.°, n.º 4, CPP.G

6o - Prescrição - Ao nível do concurso dos dois crimes de detenção de arma proibida, previstos e punidos pelos art.° 86° n.º 1 al. c) da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro e art.° 86° n.º 1 al. d) da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, os crimes em causa, encontram-se já prescritos, atento que os Autos de Busca e Apreensão, das respectivas armas e munições datam de 18 de Dezembro de 2008.

7o - Se tal não viesse a ser entendido, existe uma subsunção dos crimes, pelo que o imputado crime previsto pela al.) d) do art.° 86 n.º 1. do Regime Jur. de Armas e Munições é subsumido pela previsão normativa do artigo 86° n.º 1 c) do Regime Jur. de Armas e Munições, pelo que o arguido, apenas poderia ser condenado apenas por um dos crimes, pelo crime mais grave.

As buscas ordenadas, deviam-no ter sido pelo Juiz de Instrução do Tribunal da Covilhã, área territorial competente do estabelecimento em causa, pelo que as buscas foram ilegais, enfermando de clara incompetência territorial.

8o - Incompetência territorial - Evidenciada a prática pelo juiz de instrução criminal do Tribunal da Seia de actos - Autos de Busca e Apreensão a fls. 435/6 e 614/615 que territorialmente seriam da competência do juiz de instrução do Tribunal da Covilhã e que só o não foram - por razões de lapso na apreciação da competência territorial implica a violação das regras de competência territorial. A violação das regras estabelecidas em sede de competência, demandam a remessa dos autos para o tribunal tido por competente, o qual anula os actos que percute como ilegais.

9o - A douta sentença é Nula por violação do princípio do Caso Julgado, já que os factos vertidos como provados, constantes dos pontos da matéria de Facto provada nos artigos 1o a 29°, traçam um paralelismo factual entre a matéria de facto do processo já transitado em julgado sob o processo n.º 58/09.7GFCVL do Tribunal da Covilhã e o presente processo, estendendo, a prova havida num estabelecimento X... para o Café X.... Com o sentido que fica exposto, foi, assim, violado o caso julgado anterior e, portanto, o disposto nos arts 288°, n.º 1, al. e), 494.º, n.º 1, al. i), e 578°, do NCPC, aplicáveis por força do que determina o art.º 4.º C.P.P.

10° - Atento os factos vertidos na acusação e posteriormente tidos como provados, sendo certo que o arguido ia indiciado de lenocínio agravado, bem como da prática de crime de auxílio à imigração ilegal, tais investigações, teriam de ser, imperativamente, levadas a cabo pela Polícia Judiciária, porquanto, trata-se de investigação referente a crimes de competência específica e reservada da Polícia Judiciária, não podendo ser deferida a outros órgãos de polícia criminal, em conformidade com o art.° 7o da Lei n.º 49/2008 de 27 de Agosto - Lei de Organização da Investigação Criminal. A contrário, sucedeu que toda a investigação havida nos presentes autos sendo de competência reservada da Polícia Judiciária foi exercida pela GNR e por equipas do SEF. o que se traduz, numa nulidade insuprível;

11° - Do ponto de vista académico, prosseguindo-se a tese da acusação relativos ao crime de lenocínio que constituem objecto do presente processo, estariam numa relação de continuação criminosa com os que determinaram a sua anterior condenação no processo n.º 58 (, teriam assim que preencher com eles a execução continuada de um só crime pelo que, sob pena da violação do princípio non bis in idem consagrado no n° 5 do art. 29° da C.R.P, o recorrente não podia ser condenado, neste processo, pelo crime de lenocínio. Estaríamos perante um crime continuado e nunca perante 2 crimes autónomos, atente-se que ao longo de toda a factualidade tida como provada, que o arguido vem referenciado como tendo praticado o crime de lenocínio, nos períodos compreendidos desde Setembro de 2007 a Dezembro de 2008 no que tange ao Café X... e em relação ao X... Bar desde 2005 ou 2006 a 22 de Novembro de 2009 (Vide facto n.º 1 da matéria provada)

Não obstante o peticionado e porque importa salvaguardar todas as defesas do arguido, sendo manifestas os vícios e irregularidades que padece a douta sentença, num cenário que configura como académico, tendo o arguido, sido condenado à pena única de prisão de 4 anos, suspensa na sua execução, subsidiariamente, requer-se que a diminuição da dosimetria da pena. Nessa esteira e porque se mostra desproporcional e desadequada a medida concreta da pena a que o recorrente foi condenado, devendo o tribunal ad quem revogar o douto acórdão, diminuir a pena aplicada, em face dos crimes que venham a ser provados.

Nos termos supra mencionados em sede motivações, nas Conclusões supra e bem assim nos demais de direito aplicáveis e com o douto suprimento que se invoca, reapreciando a prova produzida que deva ser considerada para a decisão,

Deverá ser concedido provimento ao presente Recurso e ser proferida decisão que julgue a condenação do arguido relativamente aos crimes por que foi condenado, julgada improcedente por não provada, absolvendo-se o arguido dos crimes que vem condenado pois que assim será feita a costumada JUSTIÇA.”

3. O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

4. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta, louvando-se na resposta ao recurso do Ministério Público no tribunal da 1.ª instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

*

II - FUNDAMENTAÇÃO


1. O acórdão recorrido configura a factualidade provada e não provada da forma seguinte (transcrição):

«a) factos provados

1.

O arguido A... explorou dois estabelecimentos de restauração e bebidas, mais concretamente: o Café denominado « X...», sito na Avenida ... - Seia, fazendo-o sensivelmente desde setembro de 2007 a dezembro de 2008; e o Bar denominado « Y..», sito na Rua ...Belmonte, fazendo-o desde 2005 ou 2006 a 22 de Novembro de 2009.

2.

O Café « X...» encontra-se em funcionamento, pelo menos, desde 4 de junho de 2007, com alvará para exploração emitido a favor de H..., que cedeu, em Setembro de 2007, a exploração daquele estabelecimento ao arguido, em nome do qual se encontram também, durante o período temporal supra indicado, os contratos de fornecimento de energia elétrica e de água para aquele espaço, o mesmo sucedendo com a licença da Sociedade Portuguesa de Autores.

3.

Sucede que, de modo a rentabilizar aqueles seus estabelecimentos comerciais, o arguido, em data indeterminada, no que toca ao Bar « Y..», e em data indeterminada de 2007, quanto ao Café « X...», transformá-los em bares de alterne, onde tinha ao seu serviço várias mulheres que atendiam os diversos clientes dos mesmos, lhes faziam companhia nas mesas e os incentivavam a consumir bebidas alcoólicas e a pagarem-lhes também bebidas, cabendo àquelas uma determinada percentagem do valor do consumo efetuado pelos clientes que acompanhavam.

4.

Além disso e, para tirar ainda mais rendimento económico da exploração desses estabelecimentos comerciais decidiu ainda o arguido que tais mulheres, para além da atividade de alterne acima referida, iriam também manter nas instalações daqueles estabelecimentos todo o tipo de relacionamento sexual com os diversos clientes, mediante o pagamento de quantias em dinheiro, e ainda fazerem “ striptease", cabendo a essas mulheres uma parte do valor cobrado por tais serviços.

5.

Para o efeito, o arguido contactou com D..., entre outros indivíduos, a quem expôs aquele seu plano, tendo estes, desde logo, se prontificado a colaborar com ele na execução desse seu plano, tendo, de imediato, acordado que, para uma melhor gestão desses estabelecimentos e das mulheres que neles prestariam tais serviços, o arguido permaneceria a gerir diretamente o Bar « Y..», colocando a gerir o Café « X...» pessoas da sua confiança, assim controlando a atividade de cada uma das mulheres recrutadas para aqueles serviços, de modo a, nomeadamente, poder ser contabilizado o valor a que cada uma delas tinha direito e o restante que caberia ao arguido e colaboradores.

6.

O arguido acordou com os colaboradores que procurariam mulheres que se prontificassem a dedicar-se a tal tipo de serviços, mas preferencialmente mulheres de nacionalidade estrangeira, em especial sul-americanas, e que se encontrassem em situação de carência económica, sem qualquer suporte familiar e preferencialmente que não tivessem a sua situação legalizada em Portugal, de modo a que, aproveitando-se da situação de ilegalidade, precariedade, insegurança e isolamento das mesmas, terem um maior ascendente sobre elas e garantir que estas se dedicassem efetivamente a tais atividades e não abandonassem as mesmas a qualquer altura e não revelassem o que ali se passava a terceiros, nomeadamente às autoridades e principalmente se naqueles estabelecimentos fosse efetuada qualquer fiscalização.

7.

Mais acordaram que colocariam depois essas mulheres num ou noutro estabelecimento, consoante as necessidades desses espaços e a procura que elas fossem tendo.

8.

Acordaram ainda que o rendimento que fosse obtido naqueles estabelecimentos, por força de tais atividades - alterne e prostituição -, seria repartido entre eles em proporção não apurada.

9.

Em função daquelas atividades que o arguido, em exclusivo quanto ao Bar « Y..», e com os seus colaboradores, quanto ao Café « X...», decidiu e pôs em prática naqueles estabelecimentos, tendo em vista a sua efetivação, criou naqueles estabelecimentos diversos “quartos” e uma sala reservada.

10.

Os "quartos" não tinham condições mínimas de habitabilidade permanente e apenas estavam equipados com o necessário para a manutenção de relações sexuais e para a higiene íntima das mulheres, pois neles apenas existiam camas, um bidé e pequenos móveis onde se encontravam preservativos, toalhetes, cremes, geles ou outros artigos relacionados com a prática de atos sexuais.

11.

As salas reservadas tinham no seu meio um varão, usado pelas mulheres para fazerem "striptease" quando lhes era solicitado e depois de devidamente pago, estando rodeadas por sofás e mesas.

12.

Os estabelecimentos aqui em causa estavam divididos da seguinte forma:
i. No « X...»: a entrada era efetuada através de uma porta em alumínio, que dá acesso a outras duas portas de igual material, que, por sua vez, dão acesso a uma sala semelhante à de um snack-bar, onde existem dois WC's e um compartimento situado por detrás do bar ostentando um letreiro dizendo "PRIVADO", o qual dá passagem para uma outra sala a que se tem acesso após a passagem por uma cortina, existindo então duas portas, uma com inscrição "PRIVADO" e uma outra que dá acesso a uma sala onde existe um outro bar, independente do primeiro, com uma pista de dança com um varão no meio e diversas mesas com sofás em volta e, para aceder aos quartos situados na cave, era necessário passar pelo bar da cozinha daquele estabelecimento comercial;

ii. No « Y..»: a entrada era efetuada por uma porta em alumínio, que dá acesso a outra porta em alumínio e, no interior do estabelecimento, existe um bar tipo telheiro, existindo do lado direito uma sala em patamar inferior, local onde existem vários sofás e mesas, existindo ao fundo um WC reservado a homens; do lado direito existem duas portas, uma com indicação WC feminino e outra dizendo privado, existindo no seu interior sofás, mesas e uma televisão. Existem umas escadas exteriores situadas na parte esquerda do prédio, no interior do quintal, que dão acesso ao 1º andar do prédio onde funciona aquele bar, onde existiam diversos quartos. O parque de estacionamento deste estabelecimento é completamente vedado por muros e um portão e o seu acesso é vigiado através de câmaras afixadas nas paredes do imóvel onde se encontra aquele bar (viradas para a via pública).

13.

Assim, na sequência do supra mencionado acordo e na execução do plano estabelecido pelo arguido e colaboradores, pelo menos a partir de finais de 2007, D... e outros indivíduos de identidade não apurada passaram a controlar o estabelecimento « X...», mas sempre com a supervisão e respeitando as indicações do arguido A..., o qual ia controlando a atividade desenvolvida no estabelecimento « Y..».

14.

Ainda na execução do plano, o arguido e seus colaboradores, nos termos e nos períodos supra referidos, angariaram para aqueles estabelecimentos diversas mulheres que neles aceitaram praticar, como efetivamente praticaram, os mencionados serviços de alterne, “striptease” e relacionamento de trato sexual, sempre com o necessário conhecimento e consentimento daqueles, que as procuravam exatamente para isso e lhes proporcionavam o acesso aos mencionados estabelecimentos e às suas salas reservadas e aos respetivos quartos para que elas ali desenvolvessem tais atividades.

15.

O arguido e seus colaboradores iam colocando as mulheres que recrutavam num ou noutro estabelecimento, consoante as suas necessidades, bem assim como a “procura" que estas tinham e, ao fim de um certo tempo, angariavam outras mulheres para idênticas atividades, de modo a manterem sempre uma forte procura por parte da clientela e assim auferirem maiores proventos económicos.

16.

Na execução daquele desígnio, o arguido e seus colaboradores contactaram e contrataram diversas mulheres de nacionalidade estrangeira, principalmente mulheres que não tinham autorização para entrarem ou permanecerem em território nacional, sendo que algumas delas até estavam proibidas de entrar em território nacional, tudo como era do conhecimento daqueles, que, aliás, privilegiavam mulheres nestas condições, pois estas, por força da situação irregular em que se encontravam, sentiriam uma maior insegurança e manter-se-iam sempre sob a alçada daqueles e não teriam iniciativa para revelar o que se passasse naqueles estabelecimentos, permitindo assim ao arguido A... e seus colaboradores uma maior expetativa de angariarem avultados rendimentos através da prática daquelas atividades (alterne e prostituição).

17.

Depois de angariarem as mulheres que ali aceitavam prestar tal tipo de serviços naqueles estabelecimentos comerciais, estas mulheres passaram neles a trabalhar em serviço de alterne, a fazer “striptease” e a praticar relações de sexo com os respetivos clientes, mediante o pagamento por estes de determinada quantia em dinheiro.

18.

Em regra, pelo alterne e pelo “ striptease” as mulheres recrutadas pelo arguido A... e seus colaboradores recebiam uma parte, não concretamente apurada, do valor pago pelos clientes, ficando o restante para aqueles, que, no que respeita ao Café « X...», o repartiam entre eles.

19.

Relativamente às relações sexuais que tais mulheres mantinham com os clientes daqueles estabelecimentos, normalmente era cobrada, por cada, uma quantia que oscilava entre os € 20,00 e os € 30,00, dos quais, pelo menos € 5,00 ficava para o arguido, e seus colaboradores quanto ao Café « X...», que, neste caso, posteriormente repartiam o valor global por eles e o restante ficava para as mulheres que tivessem mantido as relações.

20.

Nos dois estabelecimentos em causa, sempre que um dos clientes pretendia manter relações sexuais com uma das mulheres que ali trabalhava, teria de acompanhar esta ao balcão do estabelecimento onde se encontrava a respetiva caixa registadora, onde normalmente se encontraria o arguido A..., no Bar « Y..», e um seu colaborador, no Café « X...», onde aquela solicitaria uma chave, que depois lhe era entregue e que servia para abrir um dos quartos, onde seria mantida a relação sexual, após a qual a mulher regressaria ao balcão na companhia do cliente, entregando aquela a chave e pagando este o preço do ato sexual (quantia € 20,00 e € 30,00), sendo ali anotado tal ato e a mulher a que dizia respeito, para posterior repartição do dinheiro apurado entre o arguido e seus colaboradores e cada uma das mulheres que tivessem mantido relações sexuais, consoante o número de relações que tivessem praticado.

21.

Posteriormente, o arguido e seus colaboradores contabilizavam o número de relações sexuais que, durante esse período, cada uma das mulheres havia mantido e, bem assim, as bebidas consumidas por ação delas e os “striptease" efetuados e entregavam-lhes a percentagem a que cada uma delas tinha direito, nos termos já anteriormente referidos e conforme tinham previamente acordado com aquelas.

22.

O arguido e seus colaboradores guardavam a parte que lhes cabia, correspondentes à restante percentagem, parte essa que depois repartiam entre eles e usavam em proveito próprio.

23.

Tal procedimento foi implementado pelo arguido e seus colaboradores e foi mantido naqueles estabelecimentos nos períodos referidos em 2.1.1.

24.

Foi por força da situação de carência económica em que se encontravam e/ ou da situação de ilegalidade de entrada e ou permanência no território nacional que diversas mulheres aceitaram vir trabalhar para o arguido e seus colaboradores nos supra indicados estabelecimentos, executando o tipo de serviços mencionados, e disso se aproveitaram aquele.

25.

Foram efetuadas diversas ações de fiscalização e/ou de vigilância àqueles estabelecimentos, tendo sempre ali sido detetada a presença de mulheres sul-americanas, algumas delas em situação irregular no nosso país, que ali desempenhavam tais tipo de serviços, após terem sido para esse efeito contratadas pelo arguido e seus colaboradores e lhes ter sido por estes explicado o que ali deveriam fazer e como deveriam proceder, indicando-lhes nomeadamente os locais onde abordariam os clientes, aonde os deviam acompanhar para a prática de relações sexuais, como deveriam recolher a chave dos quartos para manterem com aqueles relações sexuais, quais os preços que deveriam anunciar para tais relacionamentos, bem como os preços e que contrapartidas económicas que tinham direito pelas bebidas que convencessem os clientes a pedir, pelos striptease e pelas relações sexuais que mantivessem, etc.

26.

Com efeito, nas madrugadas dos seguintes dias foram encontradas as seguintes cidadãs de nacionalidade estrangeira naqueles estabelecimentos:

i. No dia 26 de Julho de 2008, no estabelecimento « X...»:
1. E..., nascida a 23 de setembro de 1960, que só tinha autorização para permanência em território nacional até 23 de setembro de 2007 (autorização para permanência já caducada, portanto);
2. F..., nascida a 13 de outubro de 1979, e G.. , nascida a 17 de outubro de 1971, as quais já haviam sido detidas, em 4 de dezembro de 2005, por permanência ilegal em território nacional, tendo sido expulsas do território nacional e interditas de nele entrarem por um período de 5 anos, tendo sido notificadas de tal decisão em Janeiro de 2006, pelo que haviam incumprido tal decisão, motivo pela qual foram submetidas, nesse dia, a interrogatório judicial.

Estas três cidadãs brasileiras foram, na altura, identificadas já que nenhuma delas se encontrava no nosso território em situação regular, tendo todas se identificado como domésticas e fornecendo as duas últimas a mesma morada, na Covilhã ( ...), sendo que estas chegaram a território europeu, no mesmo dia, mais concretamente em 1 de junho de 2007, via Madrid (Barajas).

Por sua vez, D..., apresentava naquela data (26 de julho de 2008), o seu título de residência temporária caducado, pois o mesmo tinha sido emitido em 27 de junho de 2006, com validade até 27 de junho de 2008.

ii. No dia 25 de Setembro de 2008, no estabelecimento « Y..»:
1. AA..., nascida a 30 de outubro de 1986, que se encontrava em situação irregular no nosso país.

iii. No dia 18 de Dezembro de 2008:

1. No Café « X...»:
i. C..., solteira, nascida a 16 de setembro de 1976, no Brasil, que se encontrava numa situação de permanência irregular em território nacional, e declarou residir na ..., Covilhã;

ii. BB..., solteira, nascida a 16 de dezembro de 1981, no Brasil;

2. No Bar « Y..»:
i. CC..., nascida a 28 de outubro de 1963 (com processo de residente com emissão em curso);

ii. DD..., nascida a 17 de janeiro de 1979 (encontrava-se no período de 90 dias após entrada no espaço Schengen);

iii. EE..., nascida a 7 de agosto de 1984, que já havia sido detida em Novembro de 2008, por permanência irregular em território nacional;

iv. FF..., nascida a 28 de março de 1979;
v. GG..., nascida a 16 de setembro de 1968;

vi. HH..., nascida a 26 de fevereiro de 1983;

vii. II..., solteira, nascida a 13 de julho de 1971, que se encontrava em situação irregular e que se identificou como doméstica, residente na ..., em Viseu.

iv. No dia 13 de maio de 2009, no Café « X...»:
1. BB..., nascida a 16 de dezembro de 1981, residente na ..., Guarda, que já ali havia sido encontrada na ação de fiscalização levada a cabo naquele estabelecimento no dia 18 de dezembro de 2008;
2. JJ..., nascida a 20 de julho de 1981, e LL..., nascida a 23 de junho de 1980, residentes na ...- Seia, encontrando-se as três em situação de permanência ilegal em Portugal (tendo todas se identificado como faxineiras).

27.

O arguido sabia que grande parte das mulheres que, juntamente com os seus colaboradores, admitiu para ali desenvolverem as atividades de alterne e prostituição naqueles dois estabelecimentos encontravam-se em situação ilegal no nosso país, tal como se verificou, a título exemplificativo, com as mulheres supra mencionadas ( E..., F..., G..., C..., II..., BB... - por duas vezes -, JJ... e LL...), que se encontravam nas condições irregulares supra referidas, mas, ainda assim e principalmente por tal razão, decidiu colocá-las a prestarem serviço de acompanhamento, striptease e de relacionamento sexual com os clientes daqueles estabelecimentos, nos termos supra explanados.

28.

Na sequência das buscas devidamente ordenadas e efetuadas àqueles dois estabelecimentos, no dia 18 de dezembro de 2008, designadamente nos diversos quartos" ali existentes e bares foram encontrados e apreendidos diversos objetos, a maior parte deles relacionados com a prática nos mesmos de relações sexuais entre as mulheres que ali trabalhavam e os clientes daqueles espaços, tudo conforme resulta dos autos de apreensão de fls. 435/436 e 614/615, onde consta a localização exata dos objetos apreendidos, dos quais, a seguir, se citam alguns, a título exemplificativo:
i. No Bar « Y..»: trezentos e sessenta e seis (366) preservativos; dezassete (17) rolos de papel, estando 12 completos e 5 incompletos sem marca; seis (6) pacotes de toalhetes íntimos de várias marcas incompletos; um (1) frasco de óleo exótico hidratante, incompleto; um (1) frasco de vaselina sem marca ou referência; um (1) falo em borracha (vibrador), sem marca; um (1) tubo de vaselina purificada; quatro (4) tubos de gel lubrificante de marca KY-Ielly, incompletos; seis (6) pacotes de gel lubrificante do Ministério da Saúde; um (1) frasco de banho descarga "atrai Clientes", incompleto; quatro (4) agendas com números e anotações; três (3) blocos de apontamentos com números e anotações; cento e oito (108) cartões Y.. Bar; e dois (2) rolos de máquina registadora;

ii. No Café « X...»: dois cartões de consumo, um registado com o nome " .NN.." e outro com o nome " .OO..."; oitenta e cinco (85) preservativos de diversas marcas (conforme fls. 625); um (1) gel lubrificante; um (1) saco plástico com os dizeres "KIT SEXY"; e cartas remetidas ao arguido A..., bem assim como faturas da "Cabovisão", de água, da "DISPROCER" emitidas em nome daquele arguido.

29.

Além disso, naquele dia, na sequência das mencionadas buscas efetuadas ao estabelecimento « Y..», foram ainda apreendidos: uma (1) espingarda de caça, classe D, marca IMU282; uma (1) bolsa de transporte de arma, em tecido camuflado; e dez (10) cartuchos de caça, carregados, de marca Melior, calibre 12 mm, pertencentes ao arguido, que ali os tinha depositado e ali os conservava, como pretendia.

30.

A espingarda de caça apreendida, era da marca IMU282, com o número 65558, calibre 12, com 2 canos laterais, a qual submetida a exame pericial, revelou estar em razoável estado de conservação, pertencia ao arguido, a favor de quem se encontrava registada desde 22 de abril de 1985, correspondendo-lhe o livrete de manifesto com o n.º H54464, encontrando-se a respetiva licença de uso e porte de arma, também emitida em nome daquele arguido, caducada, já que a mesma apenas dizia respeito aos anos de 2000 a 2002.

31.

Também, no dia 18 de Dezembro de 2008, na via pública, e junto ao estabelecimento « Y..», foram encontradas e apreendidas, no interior da viatura automóvel de matrícula 22CL-25, na altura, utilizada pelo arguido, 19 fotografias onde surgiam diversas mulheres algumas delas em lingerie, outras nuas, vendo-se em algumas delas o arguido A... ou o pátio ou o interior do Bar « Y..» - e diversos documentos, nomeadamente respeitantes ao pagamento de rendas pelo arguido, à aquisição de 10 cartões "Hello Brasil" por este arguido, e o contrato de arrendamento relativo a este estabelecimento, de que é beneficiário o arguido.

32.

Ainda no dia 18 de dezembro de 2008, entre as 10.20 horas e as 10.30 horas, no Cruzamento de Alcaria - Fundão, foram encontrados e apreendidos, na viatura de matrícula Y...-TF, possuída, à data, pelo arguido: além de um taco de basebol e uma navalha, um saco de plástico contendo cinco (5) cartuchos de caça, carregados de marca Melior, calibre 12mm, e uma (1) munição de revólver calibre 38" (9 mm), utilizada em armas da classe B.

33.

Aquando da realização daquelas intervenções das autoridades foi constatado que, em todos os quartos daqueles estabelecimentos, existiam camas sem que possuíssem lençóis, havendo em cada um deles um elevado número de preservativos, toalhetes de higiene íntima, produtos lubrificantes e rolos de papel, ali apenas existindo um bidé, inexistindo qualquer janela e não possuindo os mesmos as mínimas condições de habitabilidade.

34.

Além disso, naqueles quartos não existia qualquer vestuário, objetos pessoais ou quaisquer outros objetos que indiciassem que as cidadãs estrangeiras, que ali mantinham relações sexuais, ali vivessem, pois, de facto, elas ali não viviam, apenas se servindo de tais divisões para a prática de relações sexuais com os clientes daquele estabelecimento, tal e qual o idealizado e pretendido pelo arguido.

35.

O arguido ia colocando aquelas mulheres num ou noutro estabelecimento, consoante os seus interesses, ou seja, em função das necessidades daqueles espaços e da procura" que elas iam tendo, visando assim utilizar tais mulheres sempre de modo a atingir o maior rendimento económico possível, do qual beneficiava direta (valor que retinha às mulheres pelas atividades por elas prestadas) e indiretamente (resultante do acréscimo de consumo dos clientes que, ainda que não mantivessem relações sexuais com elas, se deslocassem àqueles estabelecimentos apenas para as ver), sabendo que, ao assim atuar, proporcionou e ajudou à permanência e movimentação de mulheres que não se encontravam em situação regular no nosso país.

36.

Ao atuar da forma descrita, o arguido sabia que estava a proporcionar e a favorecer, nos referidos estabelecimentos comerciais, o relacionamento sexual remunerado de mulheres com os clientes de tais estabelecimentos, como pretendia e conseguiu, beneficiando de proveitos económicos provenientes desses relacionamentos sexuais remunerados, rendimentos esses que eram entregues pelos clientes que se relacionavam sexualmente com as mulheres que ali trabalhavam.

37.

O arguido sabia ainda que, ao atuar da forma supra descrita, favorecia e criava as condições para a prática da prostituição nesses estabelecimentos, fazendo-o com intenção lucrativa.

38.

O arguido agiu sempre consciente e livremente, em conjugação de esforços e de vontades com terceiros que não se logrou identificar, bem sabendo que as suas supra descritas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal, mas ainda assim não se absteve de as levar a cabo.

39.

O arguido tinha conhecimento das características da supra mencionada espingarda apreendida, já que a mesma lhe pertencia e a tinha registado a seu favor e tinha solicitado licença para o seu uso e porte, todavia aquele arguido não cuidou de renovar tal licença, pese embora soubesse que a respetiva validade já havia terminado há mais de cinco anos, conhecendo também as características das munições que foram encontradas na sua disponibilidade (15 cartuchos de caça, carregados, de marca Melior, calibre 12 mm e 1 munição de revólver calibre 38" (9 mm), utilizada em armas da classe B).

40.

Deste modo, aquele arguido detinha aquela arma e as citadas munições sem que estivesse devidamente habilitado a tê-las em seu poder, como bem sabia.

41.

Ainda assim, e não obstante isso, quis este arguido ter em seu poder aquela espingarda e aquelas munições, ainda que soubesse que não tinha autorização válida para tal e que assim atuava fora das condições legais e em contrariedade com as prescrições das autoridades competentes, bem querendo e sabendo também que detinha aqueles objetos que constituem armas e munições não permitidas.

42.

Este arguido agiu livre, deliberada e conscientemente e tinha perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida criminalmente, ainda assim não se absteve de a levar a cabo.

43.

Por documento de 9 de julho de 2010, a esposa do arguido assumiu a exploração do estabelecimento comercial denominado " W...», pelo período de 4 anos, sucessivamente renovável, mediante o pagamento da remuneração mensal de € 600,00.

44.

Por contrato de 18 de junho de 2012, o arguido celebrado entre o arguido e o "Banco ...Portugal, S.A.", este financiou a aquisição por aquele de um veículo automóvel de marca e modelo Fiat Fiorino Qubo 1.3 M-Jet, de matrícula ..., pelo montante de € 8 000,00, a pagar a pronto, sendo a entidade financiadora paga em 84 prestações mensais, com início a 18 de junho de 2012 e termo a 13 de maio de 2019, importando o crédito num custo total de € 12 120,36.

45.

Por contrato de 28 de fevereiro de 2013, o arguido arrendou uma fração destinada à atividade de Café/Bar, pelo prazo de um ano, automaticamente renovável, mediante o pagamento da renda anual de € 3 000,00.

46.

o arguido foi condenado em:
i. Processo Especial Sumário n.º 2/05.0GAFND do 2° Juízo do Tribunal Judicial do Fundão, por sentença transitada em julgado a 24 de fevereiro de 2006, pela prática, a 10 de janeiro de 2005, de um crime de detenção ilegal de arma, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, que cumpriu;

ii. Processo Especial Sumário n.º 28/08.2EACTB do 3° Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, por sentença transitada em julgado a 24 de novembro de 2008, pela prática, a 28 de setembro de 2008, de um crime de usurpação de direitos de autor, na pena de l50 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, que cumpriu;

iii. Processo Comum Singular n.º 58/09.7GFCVL do 2° Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, por sentença transitada em julgado a 12 de novembro de 2012, pela prática, desde data indeterminada a 22 de novembro de 2009, de um crime de lenocínio, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

Não se provaram outros factos, nomeadamente:

1.

O arguido acordou que seria substituído nas suas ausências por uma mulher, que também se dedicaria a serviços de alterne ou a manter relações sexuais com os clientes do estabelecimento em que se encontrasse.

2.

O arguido era, por vezes, auxiliado pela mulher cuja identidade não foi possível apurar no controlo da atividade desenvolvida no estabelecimento « Y..», a qual também se limitava a cumprir aquilo que este arguido determinava.

3.

Além de permitirem o acesso àqueles estabelecimentos e aos espaços onde aquelas mulheres se dedicavam à prática do alterne, ao "striptease" e às relações sexuais, os arguidos ainda tratavam da aquisição de preservativos, toalhetes, geles e outro tipo de objetos destinados ao exercício da prostituição por tais mulheres naqueles bares que eles geriam.

4.

No dia 26 de julho de 2008, pelas 2.30 horas, aquando da mencionada intervenção levada a cabo por elementos do Núcleo de Investigação Criminal de Gouveia da Guarda Nacional Republicana, ao Café « X...», um dos clientes que ali se encontrava - SS....-, que já ali se havia deslocado diversas vezes, tendo em, pelo menos três anteriores ocasiões, mantido relações sexuais em quartos daquele estabelecimento com cidadãs estrangeiras que ali trabalhavam, encontrava-se numa divisão daquele Café, onde existia uma cama, com uma cidadã brasileira que para ali o acompanhou, após o ter convidado a praticar sexo mediante o pagamento de € 25,00, aprestando-se a manter com ela tal relacionamento sexual, o que não chegou a levar a cabo, já que surgiu naquela divisão outra cidadã brasileira que também ali trabalhava dizendo que tinha chegado a polícia, tendo ambas fugido daquela divisão.

5.

Naquele estabelecimento, e naquele dia e hora, também ali se encontrava UU ...., que, antes da entrada dos elementos do Núcleo de Investigação Criminal da Guarda Nacional Republicana tinha, mediante a entrega de € 25,00, mantido relações sexuais com uma cidadã brasileira, de nome E... (que se encontrava em situação irregular no nosso país), que ali trabalhava, numa divisão daquele estabelecimento onde existia uma cama, sendo que UU... já ali tinha mantido, anteriormente e após finais de 2007, relações sexuais com outras cidadãs estrangeiras que ali trabalhavam, sendo, por tal motivo, que também nesse dia se deslocou àquele estabelecimento.

6.

Por sua vez, na ação levada a cabo na madrugada de 18 de dezembro de 2008, constatou-se que no Bar « Y..», entre as 0.30 e as 1.30 horas (espaço compreendido entre a chegada dos militares da Guarda Nacional Republicana e a altura em que estes puseram em prática a sua ação de fiscalização), as mulheres que trabalhavam naquele estabelecimento nas descritas atividades de alterne e prostituição efetuaram, pelo menos, seis subidas aos quartos acompanhadas dos respetivos clientes, sendo que previamente se deslocaram ao balcão, onde lhes foi entregue uma chave e, após o regresso do quarto, devolveram essa chave ao balcão, sendo que, nessa ocasião, os clientes que as tinham acompanhado procediam ao pagamento do preço pelos atos sexuais que tinham acabado de manter com aquelas, sendo então anotado tais atos, pagamentos e nome da mulher que tinha mantido esse relacionamento sexual.

7.

O arguido agiu aproveitando-se da especial vulnerabilidade das mulheres que, por si ou juntamente com os seus colaboradores, colocava naqueles estabelecimentos a prestar tais serviços de alterne e/ ou prostituição, decorrente das mesmas se encontrarem numa situação de carência económica e/ou se encontrarem em situação irregular no nosso país, de modo a conseguir incitá-las e convencê-las a prestarem para ele os serviços supra descritos, o que efetivamente conseguiu, como pretendia.

*
2. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

“Na formação da sua convicção, o Tribunal ponderou toda a prova que foi analisada criticamente, integrando-a à luz de regras da experiência comum e juízos de normalidade, considerando que o julgamento da matéria de facto incidia, em particular, sobre quatro questões nucleares controversas:
A. A identidade da pessoa que explorava o Café « X...»;
B. A existência de elementos de prova que comprovem o exercício da prostituição em ambos os estabelecimentos comerciais;
C. A existência de elementos que comprovem o auxílio do arguido à imigração ilegal e a intenção subjacente a essa conduta;
D. A identidade do possuidor da arma de fogo e das munições apreendidas.

A.

A este nível importa sublinhar que grande parte da prova testemunhal só aparentemente se revelou de relevância reduzida.

Efetivamente, a prova testemunhal repartiu-se em três grupos: a maior parte constituída por clientes dos estabelecimentos comerciais, havendo um segundo grupo, em menor número, formado pelos órgãos de polícia criminal, sendo o terceiro grupo constituído pelo senhorio do espaço em que funciona o Café « X...» e a respetiva esposa.

Ora, no que tange ao primeiro grupo, a prova foi unânime no sentido de se afirmar que o arguido não se encontrava no Café « X...» (só P... e R... - afirmando o primeiro ter visto o arguido nesse estabelecimento numa ocasião, encostado ao balcão, falando com o indivíduo que estava a servir, enquanto o segundo viu o arguido duas ou três vezes, conhecendo-o do Café « X...», onde o chegou a ver dentro do balcão, como pessoa da casa - aludiram à presença do arguido no dito estabelecimento, contudo, a descrição não permite diferenciá-lo dos restantes clientes).

Sucede, porém, que esse elemento, de modo algum, é decisivo para a resolução da questão colocada ao Tribunal Coletivo.

Na verdade, é de conhecimento comum que a gestão de um determinado negócio não implica, de modo necessário, a presença da pessoa que o gere, salvo nos casos em que essa presença constitui o cerne do negócio, o que não sucede quando está em causa a gestão de um estabelecimento de restauração ou similar.

Assim, o facto de o arguido quase nunca se encontrar presente no Café « X...», de modo algum, afasta a imputação da gestão ou coordenação do estabelecimento. Pelo contrário, a verificação dessa circunstância constitui um elemento decisivo no sentido de se afirmar que o arguido não agiu sozinho, antes recorrendo a colaboradores - coautores, em sentido jurídico-penal , uma vez que esteja provada a sua participação na gestão do Café « X... »,

Sucede que a restante prova testemunhal aponta claramente para a comprovação do alegado na acusação.

Assim, embora com relativa relevância, sempre ouviu dizer que o arguido tinha um Bar em ....

Já os depoimentos de N... e NN... assumiram especial relevância.

Na verdade, ambos os militares da Guarda Nacional Republicana, numa ocasião, apresentaram-se como clientes no Bar « Y..» e o próprio arguido, assumindo explorar o estabelecimento, recomendou-lhes que fossem ao Café « X...», uma vez que aqueles disseram ser de Viseu, recomendação que também foi feita por uma mulher, que se identificou como companheira do arguido, denominando-se VV.... É ainda de salientar que V..., testemunha de defesa, também referiu que o arguido lhe disse ter um Café para os lados de Seia, sendo, por isso, que a testemunha veio ao Café « X...» (a testemunha pretendeu, em seguida, alterar o rumo do seu depoimento, afirmando que, afinal, o arguido lhe disse que tinha arrendado o estabelecimento, no que não convenceu este Tribunal Coletivo, atenta a absoluta inexistência de prova de um qualquer subarrendamento).

Ainda que o arguido não tivesse admitido a exploração do Café « X...», esta sempre seria de afirmar, uma vez que, como é de conhecimento geral, a atividade em questão não se carateriza por laços de solidariedade, antes pelo contrário, como há bastantes anos se tornou patente, é ferozmente concorrencial, razão pela qual não se compreenderia que o arguido encaminhasse clientes para um estabelecimento concorrente no qual não tivesse qualquer participação.

Acresce que também o terceiro grupo de testemunhas foi perentório em afirmar a participação do arguido no negócio.

Efetivamente, I...confirmou ser o arguido a pessoa a quem arrendou o estabelecimento há 5 ou 6 anos, facto confirmado por J... , sua esposa, que referiu ainda que o arguido, em 3 ou 4 ocasiões, foi a casa das testemunhas para pagar a renda.

Além da prova testemunhal existe igualmente prova documental que aponta nesse sentido.

Assim, a Câmara Municipal de Seia informou que o contrato de fornecimento de água se encontra em nome do arguido (fls. 168), o mesmo sucedendo com o contrato de fornecimento de energia elétrica (fls. 177). Também a autorização da Sociedade Portuguesa de Autores e o contrato com a "Cabovisão" surgem em nome do arguido (fls. 31 e 634 a 637). Nesse sentido são ainda de anotar os documentos de fls. 557, 562 a 564, 627 a 633, 638 a 644, e 1296.

Não tendo sido dada qualquer outra explicação, estes documentos apontam nitidamente para a conclusão de que o arguido explorava o Café « X...», sendo tais elementos corroborantes da indicada prova testemunhal.

Resulta assim demonstrada a referida conclusão, sendo de referir que, no que concerne à gestão do estabelecimento « Y..», a prova produzida foi unânime, pois mesmo as testemunhas de defesa admitiram ser o arguido quem geria esse estabelecimento. De notar que, segundo TT..., o arguido começou a explorar o Bar « Y..» em 2005 ou 2006, continuando a explorá-lo até à busca realizada no Processo Comum Singular nº 58/09.7GFCVL.

Sendo assim, na medida em que o arguido não era visto no Café « X...», é inequívoco que este recorreu a terceiras pessoas para controlar este último estabelecimento, tendo sido identificado como tal D..., sendo igualmente referidos outros indivíduos cuja identidade não foi possível determinar (afirmando a presença do referido cidadão estrangeiro e aludindo a outros, ver os depoimentos de L..., M.., N.., NN.., O.., P..., Q..., R..., S..., T... e U...).

Considerando a experiência do arguido no negócio, elemento essencial para controlar as rotas de "abastecimento de ativos", bem como o facto de os documentos supra indicados apontarem no sentido de ser o arguido quem tomou a iniciativa de instalar o negócio no Café « X...», na ausência de outros elementos, admite-se, com toda a probabilidade, ser o arguido quem assumia a chefia da organização.

Nesta afigura-se relevante o material apreendido nas buscas a ambos os estabelecimentos (fls. 435 e segs e 614 e segs).

A própria configuração dos estabelecimentos, com quartos praticamente "despidos", salas privadas com varão - elemento que normalmente não serve qualquer propósito decorativo, destinando-se a sessões de striptease -, em conjugação com aquele material, são elementos que notoriamente apontam para o exercício de atividades de caráter sexual (conforme, além do já referido, fls. 234, 235, 244, e 533 e segs). Importa ainda salientar que, segundo os senhorios, I... e J..., o arguido introduziu substanciais alterações ao Café « X...», designadamente instalando o varão e construindo os quartos que não existiam anteriormente.

No que tange ao Bar « Y..» é ainda relevante o teor da sentença proferida no Processo Comum Singular nº 58/09.7GFCVL (fls. 1632 a 1652 e 1690 a 1715), na qual consta o exercício da prostituição desde data indeterminada a 22 de novembro de 2009 - data posterior à referida na acusação deste processo.

De resto, a prova testemunhal confirmou esses elementos.

Assim, quanto aos órgãos de polícia criminal, B... referiu que, no decurso de uma normal rusga ao Café « X...», além de apreenderem os objetos já referidos, num dos quartos estava uma mulher em soutien e um homem que foi apanhado com as calças na mão; N.. e NN.., quer na ocasião em que estiveram no Bar « Y..», quer quando estiveram no Café « X...», foram alvo de propostas para a prática de relações sexuais, pelo preço de € 30,00, embora admitindo reduzir esse valor até € 25,00, não menos porque € 5,00 a € 10,00 cabiam à casa, tendo visto homens a acompanhar essas mulheres aos locais onde se situavam os quartos, sendo que, no primeiro, tinham de sair para o exterior, tendo igualmente assistido ao regresso, altura em que efetuavam o pagamento; XX..., ao longo das vigilâncias que fez ao Bar « Y..», apenas viu homens a entrar, nunca mulheres; e ZZ... participou numa fiscalização ao Café « X...», ocasião em que as mulheres que aí se encontravam se fecharam numa divisão, tendo de convencê-las a sair.

Não deixaremos de sublinhar que nenhuma das mulheres inquiridas no processo admitiu a prática da prostituição ou sequer do alterne - razão pela qual as declarações para memória futura não tiveram qualquer relevância probatória.

É, todavia, certo que a prova de uma tal prática não depende de um depoimento direto das pessoas envolvidas, nem poderia estar dependente dessa prova, sob pena de se promover a impunidade.

Efetivamente, considerando a dependência e a fragilidade das mulheres envolvidas na atividade e o facto de os clientes não pretenderem assumir publicamente esse facto, dificilmente se provaria a prática da prostituição por esse meio. Basta notar que, segundo ZZ..., após as mulheres se fecharem numa divisão quando se iniciou a ação de fiscalização, ao saírem, afirmaram que se encontravam no local a beber um copo, o que, obviamente, não corresponde à verdade.

Por esse motivo, o Tribunal Coletivo recorreu a outros elementos para julgar demonstrada a prática da prostituição nos estabelecimentos, não se olvidando que, ainda assim, testemunhas houve que admitiram ter participado em atos sexuais pagos.

PP... referiu que, numa ocasião no Café « X...», uma mulher lhe perguntou se queria fazer sexo por € 25,00; O... afirmou saber que havia "meninas" no Café « X...» que abordavam os clientes a perguntar se queriam ir ao quarto - o que a testemunha entendeu ser um convite para manter relações sexuais -, falando em preços de € 20,00 ou € 25,00, sendo que, numa ocasião, apercebeu-se de um cliente a sair com uma das mulheres que ali se encontravam; QQ... referiu que, no Café « X...», havia mulheres brasileiras a propor sexo por € 20,00 ou € 25,00, o que a testemunha aceitou, mantendo as relações num dos quartos da parte de baixo; P... começou por dizer que nunca lhe propuseram sexo, acabando por referir que, por € 20,00, manteve relações sexuais, em duas ocasiões, num quarto situado na parte de baixo; e Q... foi convidado "a ir lá dentro" - não tendo dúvidas que era uma proposta para manter relações sexuais -, ouvindo falar em € 25,00, tendo ainda visto clientes a virem dos quartos.

É manifesto que não se tratava de uma atividade esporádica, sendo, além disso, conhecida das pessoas que exploravam os estabelecimentos.

Resulta assim demonstrado exercício da prostituição, sendo certo que, dos depoimentos prestados em julgamento, resulta igualmente demonstrado o exercício, assumido, do alterne.

c.

Dos elementos dos autos ressalta o frequente recurso a cidadãs estrangeiras, em muitos casos, em situação irregular em território português.

A este nível, o Tribunal Coletivo atendeu ao teor dos documentos de fls. 33 a 36, 50 a 53,61 a 64, 72 a 79, 662 a 714, 808 a 832, 996 a 1000, 1032 a 1111.

Também a prova testemunhal foi abundante no sentido da confirmação da presença de cidadãs estrangeiras, designadamente brasileiras, nos estabelecimentos em causa, sendo de destacar o depoimento de NN.. que, na deslocação ao Bar « Y..», falou com a mulher que se identificou como VV... e que lhe disse que ia ao Brasil em janeiro, ao que a testemunha o questionou sobre as mulheres presentes, respondendo aquela que uma sua irmã, residente no Brasil, fazia a seleção das mulheres e depois "enviava-as" via Paris.

Encontra-se assim provado que o arguido, não só utilizou cidadãs estrangeiras, algumas delas em situação ilegal ou irregular em Portugal, para a atividade de prostituição, como também promoveu a sua entrada em território português com aquela finalidade.

Por outro lado, na medida em que a atuação do arguido visava a utilização daquelas cidadãs estrangeiras no exercício da prostituição, revertendo para o arguido uma parte do valor recebido por aquelas, resulta igualmente provada a intenção de obter lucros.

Aliás, nem de outro modo se compreenderia.

Para além dos descritos elementos de prova, o Tribunal Coletivo recorreu a juízos da experiência e regras de normalidade que apontam para o facto de este género de atividade não assumir, de modo algum, caráter benemérito ou sequer paritário.

É de conhecimento generalizado que quem promove esta atividade não pretende defender as mulheres ou facultar-lhe condições dignas para o seu exercício. Antes pelo contrário, por norma, a única intenção reside em alcançar um benefício económico.

Para tanto, quem explora a atividade fixa uma comparticipação mais ou menos elevada consoante o valor das "despesas" suportadas com a mulher utilizada na prostituição.

Em qualquer caso, contrariamente à mulher, que sempre dá algo de si, independentemente do valor dos rendimentos obtidos, quem explora a atividade só obtém benefícios, razão pela qual afirmámos não estar em causa uma relação paritária.

Sendo estes os mecanismos normais de funcionamento da atividade, inexistem razões, no caso concreto, para afastar este juízo, motivo pelo qual se julgou provada a intenção lucrativa.

O mesmo se dirá quanto ao aproveitamento da situação em que se encontravam as mulheres, decorrente da sua carência económica e/ou da situação irregular em que se encontravam no país.

Este Tribunal Coletivo não tem dúvidas em afirmar que as mulheres utilizadas nesta atividade são verdadeiras vítimas.

Assim, independentemente da atitude que assumem perante as autoridades, por vezes parecendo querer afrontá-las, na generalidade dos casos - excluindo eventualmente as mulheres que ascenderam na escala da organização ilícita, passando a assumir o papel de exploradoras das mulheres colocadas abaixo delas - trata-se de mulheres fragilizadas perante organizações que dispõem de meios de intimidação e de controlo, que revelam capacidade de colocação das mulheres em locais diversos do país, surgindo perante estas como organizações tentaculares das quais não é possível fugir e que, uma vez afrontadas, poderão reagir em termos de prejudicarem gravemente as mulheres que ousem fazê-lo.

Oarguido, como pessoa experiente no meio, como se provou, mantendo a atividade durante vários anos, certamente estava ciente destas caraterísticas do "negócio", não deixando de orientar a sua procura de mulheres que se encontrassem naquelas condições.

Questão diversa, a apreciar em sede de decisão de direito, reside em determinar se a situação em que aquelas concretas mulheres se encontravam corresponde à previsão legal da alínea d) do nº 2 do artigo 169º do Código Penal.

D.

Quanto às armas e munições apreendidas no bar « Y..», nenhumas dúvidas se suscitam quanto à sua detenção por parte do arguido, tendo em conta que a arma estava registada em nome deste (fls. 10 do inquérito nº 13/08.4GAGVA, 1012, 1017, e 1279 a 1283) e as munições são correspondentes à arma em questão.

No que concerne às munições apreendidas no veículo de matrícula Y...-TF (fls. 578 a 583), este Tribunal Coletivo julgou provada a detenção pelo arguido na medida em que, além de estarem em causa, algumas munições próprias para a arma de caça que foi apreendida no estabelecimento, o veículo em questão estava na posse do arguido (fls. 152 e 164).

De resto, o Tribunal Coletivo atendeu aos seguintes elementos de prova: documentos de fls. 565, 625, 715 a 734, 791 a 804, 888, 1160 a 1166, 1237 a 1246, e 1579 a 1611.

No que toca às condições pessoais do arguido, atenta a sua recusa de colaboração com a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (fls. 1628), o Tribunal Coletivo apenas julgou provado o que consta do certificado de registo criminal de fls. 1902 a 1906 e dos documentos apresentados pelo arguido em audiência de julgamento.

Este Tribunal Coletivo não ficou minimamente convencido da suposta mudança de vida do arguido, alicerçada nos depoimentos de V... e de RR....

Porém, descontada a afirmação do primeiro, de acordo com quem o arguido se dedica à venda de queijo, utilizando, para o efeito, o veículo Fiat Fiorino, e a afirmação do segundo dizendo que, na atualidade, o arguido já não vende queijo, antes se dedicando ao corte de lenha, na verdade, o que ambas as testemunhas revelaram foi que o arguido se continua a dedicar à exploração de estabelecimentos de Café ou Bar.

A este Tribunal Coletivo não se afigura minimamente credível a alegada mudança de vida do arguido.

Note-se, aliás, que, já a 21 de maio de 2012, no âmbito do inquérito nº 14/11.5GACVL, se julgou fortemente indiciado a prática pelo arguido do crime de lenocínio, indiciariamente exercido em três locais distintos, incluindo a sua própria residência.

Aliás, estamos em crer que a estranha atitude do arguido, ao não colaborar na elaboração do relatório social - no que normalmente até os criminosos mais empedernidos costumam adotar atitude positiva, pretendendo revelar uma imagem menos negativa das suas pessoas -, visou salvaguardar o facto de a análise dos técnicos da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais muito provavelmente apontar para uma manutenção do estilo de vida do arguido.

*
2. Apreciando

2. 1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

O recurso da matéria de facto não se confunde com a mera invocação dos vícios da sentença enunciados no n.º 2 do artigo 410.º que devem resultar sempre do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Neste último caso, o objecto da apreciação é apenas a peça processual recorrida.
O tribunal de recurso só tem de apreciar as questões sumariadas nas conclusões da respectiva motivação pelo que, como tal, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o tribunal de recurso só conhecerá das que constam das conclusões.

Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:

- Nulidade da investigação - violação do art.º 7 da Lei 49/2008, de 27;

- Incompetência territorial do Tribunal do Tribunal de Seia para apreciação dos factos;

- Nulidade das buscas efectuadas na comarca da Covilhã.

- Violação do princípio ne bis in idem - nulidade do Acórdão, por violação do caso julgado;

- Do crime continuado

- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – vício a que alude o artº 410º, nº2, al. a), do CPP;

- Violação do artº 355º do CPP;

- violação do princípio “in dubio pro reo”;

- Enquadramento jurídico - inexistência dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de auxílio à imigração clandestina;

- Nulidade do acórdão por falta de suficiente fundamentação de direito

-Prescrição dos crimes de detenção de arma proibida;

- Consumpção dos crimes de detenção de arma proibida

- Subsidiariamente - redução da pena aplicada.


2. Entende o recorrente que a investigação dos crimes em causa nestes autos são da competência exclusiva da PJ, pelo que tendo a investigação sido efectuada pela GNR e pelo SEF, se verifica nulidade insuprível, atento o disposto no art.º 7 da Lei 49/2008, de 27.

Sem razão.

Os crimes a que os presentes autos se reportam não constam do elenco dos crimes da competência reservada da Polícia Judiciária, indicados nos nºs 2 e 3 do art 7º do referido diploma. Aliás, o nº 4 deste art 7º mantém expressamente a competência da PJ, GNR e SEF, quanto a diversos crimes, entre os quais o de Auxílio à imigração ilegal e associação de auxílio à imigração ilegal e o de Tráfico de pessoas.

A ter ainda em conta que a competência reservada à Polícia Judiciária para a investigação dos crimes referidos no nº 3 do art 7º daquela lei pode ser deferida em conformidade com o disposto no artigo 8.º, da Lei de Organização da Investigação Criminal, aprovada pela Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto.

De todo o modo convém recordar que a norma do art 119º do CPP é excepcional, não admite aplicação analógica e não contempla a violação das mencionadas regras da Lei 49/2008, de 27.

Como assinala o MP, a Lei 49/2008 entrou em vigor 30 dias após a sua publicação, ou seja a 26.09.2008, de acordo com o estipulado no art. 22.

Além do mais, segundo o art.º 17 da referida lei, "As novas regras de repartição de competências para a investigação criminal entre os órgãos de polícia criminal não se aplicam aos processos pendentes à data da entrada em vigor da presente lei".

Tendo os presentes autos sido iniciados em 1.8.2008, registados na Delegação da Procuradoria de Seia em 3.9.2008 e objeto de despacho inicial, pelo respectivo magistrado a quem foi distribuído, em 9.9.2008, o qual delegou a competência investigatória na GNR, verifica-se que, em nenhuma destas apontadas datas, havia já entrado em vigor a citada lei - cf. fls. 2 e 89 do 1 vol. dos autos.

Assim, não estando a referida lei em vigor à data do início do processo e havendo a restrição aludida consagrada no art.º 17 para os processos pendentes, não se poderia conceber sequer qualquer nulidade na investigação levada a cabo pelo citados O.P.C's.

Termos em que improcede neste segmento o recurso interposto.

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2.3 Da invocada incompetência territorial do Tribunal do Tribunal de Seia

Da análise conjugada das normas dos artigos 119º al. e) e 32º nº2 do Cod. Proc. Penal, resulta inequívoco que a incompetência territorial só pode ser deduzida e declarada até ao início da audiência de julgamento, porque no caso concreto não houve instrução.

O recorrente na contestação que apresentou em 7.5.2012 a fls 1542 a 1545, do v vol., invocou além do mais, a incompetência territorial.

Por despacho judicial constante de fls. 1717 a 1722, datado de 21.1.2013 foi decidido julgar o tribunal de Seia competente para apreciação dos factos imputados ao recorrente, por se tratar do tribunal competente para conhecer do crime a que cabe pena mais grave.

O arguido recorrente foi notificado de tal despacho em 30.1.2013 - cf fls.1727 - e não interpôs recurso, pelo que se mostra transitada a decisão que determinou a competência do Tribunal de Seia para apreciação, por conexão, dos crimes imputados ao arguido.

Assim sendo, a ora invocada incompetência territorial, não é susceptível de recurso ordinário, pelo que não se admite o recurso neste segmento.

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2.4 - Da incompetência territorial do Juiz de instrução de Seia

A competência territorial para a realização do inquérito pertence ao Ministério Público que exercer funções no local em que o crime tiver sido cometido – artigo 264º, nº 1 do Código de Processo Penal. A competência territorial do juiz de instrução para praticar ou autorizar a prática durante o inquérito de actos da competência material e funcional do juiz (artigos 268º e 269º do CPP), define-se pelos critérios que determinam a competência territorial para a realização do inquérito – artigo 79º, nº 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei nº 2/99, de 13 de Janeiro).

Revertendo aos autos, o inquérito corria termos na comarca de Seia, pelo que as buscas ordenadas à residência do arguido, na Covilhã bem como a outros espaços fechados equiparados, eram da competência funcional do JIC competente de acordo com a LOFTJ para a realização do inquérito.

Contudo, a prática de acto que deva ter lugar fora dos limites da competência territorial da autoridade que proferir a ordem, deve ser solicitada, por carta precatória, à autoridade judiciária que detiver competência na respectiva área.

Em suma, a autorização devia ser concedida pela autoridade que detém competência material, funcional e territorial (Seia), e a prática do acto deveria ser solicitada à autoridade territorialmente competente, (Covilhã).

Assim sendo, seria de convocar a regra de que a competência dos tribunais de instrução criminal para intervir «fora da sua área territorial de competência» só actuará quando «o interesse ou urgência da investigação o justifique» - artigo 79º, nº 2 da Lei 3/99 - STJ 11-07-2007.

Interesse que se revelou manifesto e fundamentou a extensão da competência, pelo que a autorização de busca e apreensão e a emissão do correspondente mandado são da competência do juiz de instrução territorialmente competente no lugar onde corre o inquérito em que se verifica a necessidade da prática do acto, ou seja, no caso, o juiz de instrução de Seia.

É certo que as buscas deverão ser, sempre que possível, presididas pela autoridade que as autorizou - art.º 174.°, 3 do Cód. Proc. Penal. Mas certo é também que só nos casos previstos no n.º 3 do art.º 177.º terão que ser obrigatoriamente presididas pelo juiz.

A competência territorial para a realização do inquérito pertence ao MP que exercer funções no local em que o crime tiver sido cometido – art. 264.°, n.º 1, do CPP.

De todo o modo, a emissão de mandados de busca pelo juiz de instrução da comarca onde decorre o inquérito, para a área de outra comarca não configura qualquer nulidade, muito menos insanável por força do disposto no artº 119º, a contrario, do Cod. Proc. Penal.

Logo, ainda que houvesse sido cometida qualquer irregularidade, há muito se encontrava sanada, porque até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento, em que o arguido recorrente e respectivo mandatário intervieram, não foi invocada.

Só depois de proferido acórdão condenatório é que o recorrente suscita tal questão, a nosso ver sem fundamento legal, como acima se assinalou.

Termos em que improcede também nesta parte o recurso.

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2.5 Da violação do princípio ne bis in idem - nulidade do acórdão, por violação do caso julgado

De acordo com o acervo factológico provado o recorrente foi condenado no processo comum singular n.º 58/09.7GFCVLdo 2º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, por acórdão de 20-03-2012, transitado em julgado em 12-11-2012, pela autoria de um crime de lenocínio simples, p.p. art 169/1 do CP, na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa por igual período.

Analisando a decisão em causa, com recurso à certidão de fls. 1691 a 1706, percebe-se com clareza que os factos que consubstanciaram a prática do crime de lenocínio e a respectiva condenação anterior do recorrente englobam no seu âmbito espácio-temporal os factos imputados ao arguido recorrente constitutivos do crime de lenocínio praticado no X.... Basta para o efeito comparar a matéria de facto provada em ambas as decisões no que a tal tipo de crime se refere - naquele acórdão e no acórdão recorrido.

A situação histórica em que a conduta do arguido ali se desenvolveu revela que se trata de um crime de execução sucessiva, que tem na sua génese uma única resolução criminosa.

Por essa razão foi condenado como autor material de um único crime - uma única e prévia resolução criminosa - e não como autor de uma pluralidade de crimes.

O que afasta a hipótese de crime continuado, porque não obstante a repetição dos actos, não se verifica uma pluralidade de resoluções que na figura jurídica do crime continuado é unificada por força da diminuição da culpa, consequência além do mais, do facto a execução ter sido levada a cabo no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

No caso, atenta a matéria de facto provada constante da referida decisão, não resulta provada uma multiplicidade de resoluções criminosas, por isso que relativamente aos factos praticados no X... nem sequer importa ponderar os pressupostos do art 30º do CP.

Revertendo ao presente processo constata-se que a acusação imputa ao recorrente um crime de peculato agravado

Ora, “o objecto do processo é formado por todos os factos perpetrados pelo arguido até à decisão final que de forma directa se correlacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido. Os factos que não foram apreciados e que deviam tê-lo sido por fazerem parte integrante do mesmo “recorte de vida” não podem ser posteriormente apreciados, uma vez que essa apreciação constituiria flagrante violação do princípio ne bis in idem.

Os factos que, no âmbito do presente processo, se reportam ao X... Bar constituem, sem qualquer dúvida, segmentos da actividade pela qual o recorrente foi condenado naquele processo 58/09.7GFCVL aliás praticado no período de tempo compreendido no facto provado da al. a) ou seja desde data indeterminada até 22-11-2009. Data que engloba a da busca efectuada nos presentes autos a 18 de Dezembro de 2008, razão por que não pode agora ser considerada como termo da anterior conduta criminosa, sob pena de violação do caso julgado, excepção que materializa o disposto no art. 29.º, n.º 5 da CRP.

Com efeito, estabelece-se como princípio que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

“O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material).

Transcendendo a sua dimensão processual, a proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos faz que o conjunto das garantias básicas que rodeiam a pessoa ao longo do processo penal se complemente com o princípio ne bis in idem ou non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva. Esta garantia visa limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando-se o Estado e proibindo-se o legislador e demais poderes estaduais à perseguição penal múltipla e, consequentemente, que exista um julgamento plural.

Para que a excepção funcione e produza o seu efeito impeditivo característico, a imputação tem que ser idêntica, e a imputação é idêntica quando tem por objecto o mesmo comportamento atribuído à mesma pessoa (identidade de objecto - eadem res). Trata-se da identidade fáctica, independentemente da qualificação legal (nomen iuris) atribuída. As duas identidades que refere a doutrina unidade de acusado e unidade de facto punível têm sido assim consideradas:

(i) Para que proceda a excepção de caso julgado requere-se que o crime e a pessoa do acusado sejam idênticos aos que foram matéria da instrução anterior à que se pôs termo no mérito de uma resolução executória.

(ii) A identidade da pessoa refere-se só à do processado e não à parte acusadora para que proceda a excepção de caso julgado.

Se os factos são os mesmos e culminaram com uma sentença executória, ainda que o nomen juris seja distinto, é procedente a excepção de caso julgado.

O ne bis in idem, como exigência da liberdade do indivíduo, o que impede é que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais, formal e tecnicamente distintos.

Para a identificação de facto tem que tomar-se em linha de conta v.g. os critérios jurídicos de "objecto normativo" e "identidade ou diversidade do bem jurídico lesionado".

A identidade do facto mantém-se ainda quando seja pelos mesmos elementos valorados no primeiro julgamento ou pela superveniência de novos elementos ou de novas provas deva considerar-se em forma diferente em razão do título, do grau ou das circunstâncias. O título refere-se à definição jurídica do facto, ao nomen iuris do crime. A mutação do título sem uma correspondente mutação de facto não vale para consentir uma nova acção penal.

Em conclusão, para estabelecer a identidade fáctica para efeito de aplicar a excepção de caso julgado, não interessa que os mesmos factos tenham sido qualificados ou subsumidos a distintos tipos penais, nem importa tão pouco o grau de participação imputado ao sujeito.

Sempre que, segundo a ordem jurídica, se trate de uma mesma entidade fáctica, com similar significado jurídico em temos gerais – e aqui "similar" deve ser entendido de modo mais amplo possível –, então deve operar o princípio ne bis in idem". Pelo que, só quando claramente se trata de factos diferentes será admissível um novo processo penal.”

Na verdade, convém atentar que “… o caso julgado tem uma função de garantia do cidadão que se traduz na certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto - Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 1992, pág. 226. Ou, como assinala Eduardo Correia, «verdadeiramente, pois, o fundamento central do caso julgado radica numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões condenatórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto». Aliás, o n.º 5 do artigo 29.º da CRP, dando dignidade constitucional ao clássico princípio ne bis in idem, consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, ao dispor que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime». Seguindo a posição que é unânime na nossa doutrina, a expressão “mesmo crime” não deve ser interpretado, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, «mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime.” - Ac Rel Coimbra, Rel. Alberto Mira.

«Nestes termos, o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados»- Frederico Isasca, idem, pág. 242 e 229,- apud, sublinhado nosso.

… Podem variar as circunstâncias, os elementos acidentais da actividade que constitui objecto do processo, mas não a própria acção. E por isso haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo pela mesma acção, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue, embora seja diversa a forma de voluntariedade (dolo ou culpa)».

Existe identidade de “objecto do processo” entre os presentes autos e os do processo comum singular 58/09.7GFCVL.

Verifica-se pois uma situação de caso julgado, com a consequente absolvição do arguido/recorrente na parte que respeita ao crime de lenocínio cometido no Bar Y...

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2.6 - Do Crime continuado

A pretensão do recorrente em englobar o crime de lenocínio praticado no bar Y... numa continuação criminosa com o crime de lenocínio praticado no bar X..., não logra êxito.

Na problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções) é possível delimitar o concurso efectivo de crimes (pluralidade de crimes através de uma mesma acção violadora de várias normas penais ou da mesma norma repetidas vezes - concurso ideal - ou de várias acções que preenchem automaticamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime - concurso real) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).

Desde logo e nos termos acima assinalados, o crime de lenocínio praticado no bar Y... tem na sua génese uma única resolução autónoma, sendo um só crime de execução permanente ou continuada.

Neste sentido Ac Rel Coimbra de 10-07-2013 “Comete um só crime de lenocínio previsto e punido pelo artigo 169.º, n.º 1 do Código Penal quem, na execução da mesma resolução, favorece a prostituição de várias mulheres.

Constata-se assim que o arguido praticou dois crimes de lenocínio, um dos quais já julgado com decisão transitada em julgado, o do bar Y....

Logo, se eventualmente o crime de lenocínio praticado no Bar Y... estivesse incluído num quadro de crime continuado que contemplasse aquele outro crime de lenocínio praticado no Bar Y..., então a anterior decisão do caso julgado abrangeria aquele crime de lenocínio praticado no Bar Y....

Porém, não obstante ocorrerem dois crimes de lenocínio - um no Bar Y... e outro no bar Y..., na mesma conexão temporal - é manifesto que não se verificam os pressupostos do crime continuado.

Dispõe o art.º 30º, nº 1, do Cód. Penal, que, “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o respectivo tipo de crime foi preenchido pela conduta do agente”, enquanto que o seu nº2 estipula que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

Assim, são pressupostos do crime continuado:

1º.- Realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico.

2º.- A execução por forma essencialmente homogénea.

3º.- Que essa execução seja levada a cabo no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”

Os tipos legais de crime - lenocínio e lenocínio agravado - protegem o mesmo bem jurídico - não apenas a “liberdade e autodeterminação sexual da pessoa” dado que a actual redacção do artigo 169.º, n.º 1 do Código Penal, ao delimitar o tipo, recortando-o apenas em função da acção de fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição, com intenção lucrativa, eliminando a exigência da exploração de uma situação de abandono ou de necessidade económica, assim como a referência à prática de actos sexuais de relevo, não esteja a querer punir a ingerência na formação da vontade de quem se prostitui mas apenas o aproveitamento que alguém faz de uma prática que, apesar de não ser punida criminalmente, não é reconhecida como plenamente lícita.

Ao punir todo e qualquer aproveitamento do lucro obtido à custa da prostituição de outros, o legislador pune essencialmente uma actividade, uma profissão e não uma corrupção da vontade livre.

“A diferença específica entre o lenocínio simples (artigo 169.º, n.º 1) e o lenocínio agravado (artigo 169.º, n.º 2) radica na natureza do relacionamento entre quem explora e quem se prostituiu, isto é, na existência ou não da corrupção da livre determinação sexual: havendo livre determinação sexual de quem se prostitui, o lenocínio é simples; não havendo essa liberdade, o lenocínio é agravado. “ Ac cit.

Eduardo Correia, Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Colecção Teses, Almedina 246: “quando um delinquente se encontra de novo ante uma determinada situação que, convidando à realização de um certo crime, já uma vez foi por ele aproveitada com êxito, há-de, sem dúvida, sentir-se fortemente solicitado a reiterar a sua conduta criminosa, e só muito dificilmente se manterá no caminho direito”.

Assim, quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.

A actuação do arguido não se integra na prática de um crime sob a forma continuada pois não se mostra verificado um dos pressupostos enunciados no nº 2 do art 30º do CP, como seja o de ter beneficiado de circunstâncias exógenas determinantes da sua conduta, por o convocarem para a prática dos factos, de modo progressivamente menos resistível, e por isso mesmo geradoras de uma diminuição sensível da culpa. Neste sentido o Prof. Eduardo Correia, in “Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Colecção Teses, Almedina – p. 207 “aquilo que na continuação criminosa arrasta o agente para a reiteração é precisamente o facto de, com a primeira conduta, se amolecerem e relaxarem as reacções morais ou jurídicas que o frenavam e inibiam”.Por outro lado, na procura de critérios padrão objectivos com vista à definição de casos-tipo de situações exteriores subsumíveis ao crime continuado, refere-se precisamente à circunstância de se voltar a verificar a mesma oportunidade que já foi aproveitada com êxito pelo agente.

Pelo contrário, no caso concreto foi o arguido que criou as circunstâncias necessárias ao desenvolvimento da sua conduta criminosa, na medida em que arrendou um novo espaço Bar X..., onde até inseriu dois quartos na cave, e um varão para striptease numa das salas.

Basta que as condições sejam produzidas pelo agente para que sem qualquer dúvida se exclua a figura do crime continuado.

Tendo-se em conta a factualidade provada, podemos concluir que não se verificam os pressupostos do crime continuado.

Numa perspectiva normativista, os factos julgados nestes autos perpetrados pelo arguido no Bar X... não formam uma unidade com aqueles que foram apreciados e julgados no processo 58/09.7GFCVL, com trânsito em julgado.

Não se verifica pois o crime continuado e portanto neste segmento inexiste a invocada situação de caso julgado.

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2.6 - Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – vício a que alude o artº 410º, nº2, al. a), do CPP.

Defende o recorrente que sem os factos investigados no âmbito do lenocínio praticado no X..., não existe prova bastante para fundamentar os factos imputados na acusação relativos ao crime de lenocínio no X....

Conclui o recorrente que não se podendo extrair da prova obtida quanto ao tipo de exploração do Bar Y..., que fosse idêntica à prosseguida pelo arguido no Café X..., como consequência directa, a matéria de facto terá que ser revogada integralmente e assim ser dada como não provada, atento o quadro probatório, em sede de julgamento.

Vejamos.

De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 410.º, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b. b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.

Em qualquer das referidas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos estranhos àquela para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.

Os vícios do artigo 410.º, n.º 2 são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei.

Neste caso, o objecto da apreciação é apenas a peça processual recorrida.

o vício insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto na alínea a) do nº 2 do art.º 410° do Código de Processo Penal, existe quando quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão.

De notar que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, a qual já cai no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

Também a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto tomada.

Para que exista aquele vício é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para a decisão proferida, por se verificar uma lacuna no apuramento da matéria necessária para uma decisão de direito.

Não ocorre o referido vício quando o tribunal investigou tudo o que podia e devia investigar.
Tem sido frequente o alerta de que os vícios do artigo 410.º, n.º 2 não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova, princípio ínsito no citado normativo.

A divergência entre o que na sentença se deu como provado e aquilo que deveria ter sido dado como provado traduz erro de julgamento da matéria de facto, sindicável pelo tribunal superior se tiver havido documentação da prova produzida em audiência e o recorrente interessado na respectiva impugnação observar, em sede de recurso, o que dispõe o artigo 412.º.

Analisado o texto do acórdão recorrido, - sem considerar os factos provados referentes ao crime de lenocínio praticado no X... - por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação do apontado vício posto que daquele decorre que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão proferida pelo tribunal recorrido.

Para além da prova directa, o tribunal recorrido de forma perspicaz e rigorosa, como lhe competia, baseou a sua convicção em presunções judiciais, que mais não são que ilações que o julgador tira de um facto conhecido (facto base da presunção) para afirmar um facto desconhecido (facto presumido), segundo as regras da experiência da vida, da normalidade, dos conhecimentos das várias disciplinas científicas, ou da lógica.

Segundo os ensinamentos do Prof. Germano Marques da Silva "a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão" (Direito Processual Penal, vol. II, pág. 111).

Da análise do texto da decisão recorrida - factos provados e motivação - resulta que o tribunal recorrido seguiu um processo lógico, coerente e racional na formação da sua convicção na apreciação da prova.

Avaliou bem a prova produzida, pois do auto de busca - cfr fls 614 segs - ao estabelecimento X..., resulta a apreensão de dois cartões de consumo(foto de fls 620),um registado com o nome " .NN.." e outro com o nome " .OO...", oitenta e cinco (85) preservativos de diversas marcas, um gel lubrificante, um saco plástico com os dizeres "KIT SEXY", num dos quartos, cartas remetidas ao arguido A..., facturas da "Cabovisão", de água, da "DISPROCER" emitidas em seu nome, um horário de funcionamento de estabelecimento referente ao café X... onde consta como proprietário A..., e dois rolos de papel amarelo duplicados de máquina registadora com registo de A... e contribuinte nº 155889311.

Ilustradas pelas fotos juntas a fls 617 a 624, nomeadamente as fotos dos quartos a fls 618 e da sala com varão a fls 617, que confirmam a apreciação feita pelo tribunal recorrido.

Com efeito, não é normal existirem quartos em estabelecimentos de café, muito menos quartos sem roupas ou objectos de uso diário, ou seja como afirma o tribunal recorrido, praticamente "despidos", e com cerca de 80 preservativos.

Por outro lado salas privadas com varão - que como é sabido de forma notória - se destina a sessões de striptease - o que tudo em conjugação com aquele material, são elementos que notoriamente apontam para o exercício de actividades de caráter sexual.

O que aliado ao depoimento de B... (OPC) que declarou - conforme consta da motivação - que, no decurso de uma normal rusga ao Café « X...», além de apreenderem os objectos já referidos, num dos quartos estava uma mulher em soutien e um homem que foi apanhado com as calças na mão e aos depoimento de N.. e NN..., que afirmaram que na ocasião em que estiveram no Café « X...», foram alvo de propostas para a prática de relações sexuais, pelo preço de € 30,00, embora admitindo reduzir esse valor até € 25,00, não menos porque € 5,00 a € 10,00 cabiam à casa, confirma o acerto da decisão de facto.

O que é confirmado por PP... que referiu que, numa ocasião no Café « X...», uma mulher lhe perguntou se queria fazer sexo por € 25,00- por O... que afirmou saber que havia "meninas" no Café « X...» que abordavam os clientes a perguntar se queriam ir ao quarto - o que a testemunha entendeu ser um convite para manter relações sexuais -falando em preços de € 20,00 ou € 25,00, sendo que, numa ocasião, apercebeu-se de um cliente a sair com uma das mulheres que ali se encontravam; QQ... referiu que, no Café « X...», havia mulheres brasileiras a propor sexo por € 20,00 ou € 25,00, o que a testemunha aceitou, mantendo as relações num dos quartos da parte de baixo; P... começou por dizer que nunca lhe propuseram sexo, acabando por referir que, por € 20,00, manteve relações sexuais, em duas ocasiões, num quarto situado na parte de baixo; e Q... foi convidado "a ir lá dentro" - não tendo dúvidas que era uma proposta para manter relações sexuais -, ouvindo falar em € 25,00, tendo ainda visto clientes a virem dos quartos( cfr motivação do acórdão)

Acresce que segundo os senhorios, I... e J..., o arguido introduziu substanciais alterações ao Café « X...», designadamente instalando o varão e construindo os quartos que não existiam anteriormente.

O tribunal recorrido ponderou também as diversas acções de fiscalização e/ou de vigilância efectuadas ao X..., tendo sempre ali sido detetada a presença de mulheres sul-americanas, algumas delas em situação irregular no nosso país, que ali desempenhavam tais tipo de serviços.

É claro que as ditas mulheres foram contratadas para esse efeito pelo arguido e seus colaboradores, que lhes determinam a forma de proceder no desempenho de tais funções sexuais e lhes indicam a percentagem que auferem nos preços dos serviços prestados.

Além do mais na madrugada do dia 26 de Julho de 2008, no estabelecimento « X...» foram encontradas as seguintes cidadãs de nacionalidade estrangeira:

1. E..., nascida a 23 de setembro de 1960, que só tinha autorização para permanência em território nacional até 23 de setembro de 2007 (autorização para permanência já caducada, portanto);

2. F..., nascida a 13 de outubro de 1979, e G..., nascida a 17 de outubro de 1971, as quais já haviam sido detidas, em 4 de dezembro de 2005, por permanência ilegal em território nacional, tendo sido expulsas do território nacional e interditas de nele entrarem por um período de 5 anos, tendo sido notificadas de tal decisão em Janeiro de 2006, pelo que haviam incumprido tal decisão, motivo pela qual foram submetidas, nesse dia, a interrogatório judicial.

Estas três cidadãs brasileiras foram, na altura, identificadas porque nenhuma se encontrava no nosso território em situação regular, e todas se identificaram como domésticas e as duas últimas forneceram a mesma morada, na Covilhã ( ...), sendo que estas chegaram a território europeu, no mesmo dia, mais concretamente em 1 de junho de 2007, via Madrid (Barajas).

Quanto à conclusão de que era o arguido quem geria o estabelecimento denominado X..., sito em ..., Seia, as provas documentais -fr fls. 557, 562 a 564, 627 a 633, 638 a 644, e 1296 - evidenciam-no além dos depoimentos dos senhorios I...e mulher J..., que confirmaram que deram de arrendamento há 5 ou 6 anos o referido espaço comercial ao arguido e tendo aquela dito que foi este quem, pelo menos por três ou quatro vezes foi diretamente a casa deles pagar a renda.

Além da prova testemunhal existe igualmente prova documental que aponta nesse sentido.

Assim, a Câmara Municipal de Seia informou que o contrato de fornecimento de água se encontra em nome do arguido (fls. 168), o mesmo sucedendo com o contrato de fornecimento de energia elétrica (fls. 177). Também a autorização da Sociedade Portuguesa de Autores e o contrato com a "Cabovisão" surgem em nome do arguido (fls. 31 e 634 a 637). Nesse sentido são ainda de anotar os documentos de fls. 557, 562 a 564, 627 a 633, 638 a 644, e 1296.

Prova inequívoca e clara de que era o arguido recorrente o explorador do referido X..., em nome do qual aliás se encontrava a licença de porta aberta e horário de funcionamento (licença de exploração) emitida pela C.M. de Seia - cf. fls. 629.

Por outro lado, considerando todo aquele manancial de prova e as regras da experiência, bem andou o tribunal recorrido ao concluir que “na medida em que o arguido não era visto no Café « X...», é inequívoco que este recorreu a terceiras pessoas para controlar este último estabelecimento, tendo sido identificado como tal D..., sendo igualmente referidos outros indivíduos cuja identidade não foi possível determinar (afirmando a presença do referido cidadão estrangeiro e aludindo a outros, os depoimentos de L..., M.., N.., NN.., O.., P..., Q..., R..., S..., T... e U....

Como salienta o MP, todos estes elementos colhidos, conjugados e valorados permitiram ao tribunal a quo chegar à conclusão da prática pelo arguido dos crimes de lenocínio e de auxílio ilegal à imigração tendo presente que as cidadãs em causa, vinham para os estabelecimentos do arguido, pelo menos assim sucedeu com as cidadãs brasileiras encontradas no X..., com intuito de se prostituírem e praticarem alterne, sem vistos de trabalho podendo inclusive rodarem entre os dois estabelecimentos em causa, ficando ele com parte dos valores por aquelas recebidos dos clientes que aliciavam para a prática de atos sexuais naquele estabelecimento. E tal presunção de intenção lucrativa do arguido na exploração das mencionadas mulheres não pode ser vedada ao tribunal recorrido, tendo em conta a inexistência de prova direta que só as mulheres envolvidas e os clientes poderiam dar, mas que por razões mais que óbvias e apontadas na motivação, se esquivaram, não estando proibido o tribunal de concluir tal desiderato pela consideração das demais provas recolhidas.

Como aliás o tribunal a quo nos pontos 17 e 18 C) esclarece produzindo considerações quanto à respectiva convicção, quer para o crime de lenocínio quer para o de auxílio ilegal à emigração, desde logo quando refere os motivos de não ter dado qualquer credibilidade ao depoimento das cidadãs brasileiras que foram ouvidas em declarações para memória futura.

Com o recorte fáctico apurado da prostituição ali desenvolvida, seria insensatez mais do que ingenuidade, acreditar que o arguido ignorava a situação de permanência ilegal. Nenhuma censura merece pois o tribunal a quo ao considerar que o arguido conhecia a situação de permanência ilegal e, não obstante, permitia, dado o intuito lucrativo que lhe assistia, que aquelas mulheres se mantivessem e "trabalhassem" no seu estabelecimento o " X..., proporcionando-lhe a possibilidade de arranjarem dinheiro e outros proventos, para além das contrapartidas monetárias que ele próprio recebia, decorrentes da comissão que tirava de cada ato de sexo praticado no interior da casa que explorava.

Em suma, do texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação do apontado vício.

Por último, importa realçar que a fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido explicita claramente explicitado o iter da decisão e as razões da valoração efectuada, estruturada nos elementos de prova documental e pessoal que referencia e analisa de forma racional, lógica e crítica, assim como nas regras da experiência que menciona e não são questionadas, indicando de forma clara e minuciosa, a formação da convicção do tribunal colectivo.

Improcede, pois, o recurso neste segmento.


7. - Violação do artº 355º do CPP

De tudo o exposto acima impõe-se concluir que o tribunal a quo apenas utilizou para o efeito da formação da sua convicção prova legalmente permitida.

2.8- Da violação do princípio in dubio pro reo

Não se constata qualquer violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.

De acordo com Cavaleiro Ferreira, «Lições de Direito Penal», I, pág. 86, este princípio respeita ao direito probatório, implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante do ónus legal de prova para decidir da condenação do arguido que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos.

O julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto.

Como é sabido, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, pág. 213 – já Ulpiano dizia “é melhor um crime impune do que um inocente castigado”. Porém, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997. Não obstante, importa ter presente, conforme é referido por Germano Marques da Silva, “ Curso de Processo Penal”, pág. 82, que é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se ao tema da prova, enquanto a prova indirecta se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência comum, uma ilação quanto ao tema da prova. De acordo com André Marieta, “La Prueba em Processo Penal”, pág. 59, são dois os elementos de prova indiciária: a) o indício, que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele está relacionado. O indício, em resumo, constitui a premissa menor do silogismo que, associado a um princípio empírico ou a uma regra de experiência, vai permitir alcançar uma convicção sobre o facto a provar; b) a presunção, que é a inferência que, obtida do indício, permite demonstrar um facto distinto. A presunção, em síntese, é a conclusão do silogismo constituído sobre uma premissa maior – a lei baseada na experiência, na ciência ou no sentido comum – que, apoiada no indício – premissa menor – permite a conclusão sobre o facto a demonstrar.

Acontece que nada impede, antes impõe o bom senso da comunidade que, devidamente valorada, a prova indiciária, por si, na conjugação dos indícios, permita fundamentar a condenação – cfr. Mittermaier, “Tratado de Prueba em Processo Penal”, pág. 389. Caso contrário, o julgador seria um interveniente acrítico no processo, um mero receptor de mensagens…

Significa isto que o julgador, alicerçando-se em factos certos, pode fazer apelo às denominadas presunções materiais ligadas à normalidade da vida e às regras da experiência – cfr. Eduardo Correia, “Revista de Direito e Estudos Sociais”, XIV, pág. 24 e Cavaleiro Ferreira, “Curso de Processo Penal”, pág. 314. Estas presunções, como é evidente, não são presunções de culpa. Constituem, antes, parcelas de um processo de pensamento lógico de que o julgador não pode prescindir, sob pena de não ser a prova apreciada e valorada em toda a sua extensão.

Lendo a fundamentação da decisão ora em crise, facilmente é constatado que o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida sobre a matéria de facto, tendo feito apelo, com ponderação, às aludidas presunções materiais associadas à normalidade da vida e às regras da experiência comum, em conjugação com toda a prova produzida em audiência.

A fundamentação de facto acima transcrita é consistente e racional.

O princípio geral do processo penal ora em análise é aplicável apenas nos casos em que, apesar de toda a prova recolhida, continuam os factos relevantes para a decisão a não poderem considerar-se como provados por continuar a subsistir dúvida razoável do Tribunal.

O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.

No caso vertente, o Tribunal “a quo” não se quedou por um non liquet de facto, ou seja, não permaneceu na dúvida razoável sobre os factos relevantes à decisão, pelo que não há lugar a qualquer aplicação do princípio in dubio pro reo .

Tudo a permitir concluir pela inexistência de qualquer violação ao invocado princípio in dubio pro reo, improcedendo, portanto, também, esta questão.

*

2.9 - Enquadramento jurídico - inexistência dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de auxílio à imigração clandestina;

Invoca o recorrente que os elementos do tipo do crime de auxílio à imigração ilegal não se mostram preenchidos, desde logo face ao depoimento das cidadãs que foram ouvidas em declarações para memória futura.

Sem razão.

Do elenco dos factos provados resulta que a materialidade fáctica apurada se mostra suficiente para a sua subsunção ao crime de auxílio à imigração ilegal.

Dispõe o art 183º Da Lei n.º 23/2007 de 4 de Julho Dec Lei sob a epígrafe “Auxílio à imigração ilegal”:

1 — Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional é punido com pena de prisão até 3 anos.

2 — Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de 1 a 4 anos.

A propósito do enquadramento jurídico dos factos provados no tipo legal do crime de auxílio à emigração ilegal, escreveu-se na sentença recorrida: (transcrição)

“Constituem elementos típicos do crime de auxílio à emigração ilegal nos termos do nº 2 do artigo 183º:

- o favorecimento ou o facilitar da entrada, da permanência ou do trânsito ilegal;

- De cidadão estrangeiro;

- Em território nacional;

- Agindo o agente com intenção lucrativa.

Além desses pressupostos, o agente deverá ter necessariamente conhecimento da situação ilegal e da nacionalidade do sujeito que entra ou transita no território nacional, devendo o agente ter ainda conhecimento que se trata de território nacional.

"Considera-se ilegal a entrada de cidadãos estrangeiros em território português em violação do disposto nos artigos 6°, 9° e 10° e nos nºs 1 e 2 do artigo 32° (artigo 181º, nº 1, da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho).

Assim, será ilegal a entrada de cidadão estrangeiro em território nacional se feita por local distinto dos postos de fronteira qualificados para esse efeito durante as respectivas horas de funcionamento, bem como a entrada de cidadão estrangeiro que não esteja munido de documento de viagem válido - ressalvadas as legais excepções - e de visto válido, e ainda a entrada daquele a quem a mesma tenha sido recusada.

Finalmente, considera-se ilegal o trânsito de cidadãos estrangeiros em território português quando estes, estando apenas de passagem, não tenham garantida a sua admissão no país de destino.

O tipo legal contém duas diferenças marcantes em relação ao tipo previsto no nº 1 do artigo 183º da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, constituindo uma delas uma restrição do tipo e a outra um seu alargamento.

Efetivamente, no nº 1 o favorecimento ou o facilitar da permanência de cidadão ilegal em território nacional não é punido, sendo o tipo legal mais restritivo nessa parte. Mas, por outro lado, o nº 1 não exige que o agente tenha intenção lucrativa, o que implica um alargamento do tipo.

Estas diferenças estão interligadas e auxiliam na delimitação do tipo legal.

Na verdade, se o auxílio à permanência ilegal fosse punível sem a existência de intenção lucrativa do agente, as condutas de mero auxílio humanitário seriam puníveis (por exemplo, a conduta do cidadão nacional que recebe em sua casa e fornece uma refeição ao cidadão estrangeiro em situação ilegal no país), o que seria manifestamente injusto e injustificado.

Daí a restrição operada no tipo legal do artigo 183º, nº 1, da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho.

Já se justifica plenamente a criminalização da conduta daquele que auxilia o cidadão estrangeiro em situação ilegal a permanecer em Portugal nessa situação visando obter um lucro com essa conduta.

Nesse caso não estão presentes razões humanitárias que justifiquem a não criminalização da conduta.

No que concerne à entrada e ao trânsito ilegais, a previsão da punição da conduta daquele que age ainda que sem intenção lucrativa justifica-se pelo facto de, por essa via, o agente expor o cidadão estrangeiro à situação de ilegalidade, não se encontrando justificação bastante para essa atitude.

Em tais casos, verificando-se que o agente actuou com intenção lucrativa, a responsabilidade e, por inerência, a punição será agravada, isto é, a intenção lucrativa constitui então circunstância qualificativa do tipo legal.

Tendo presente o que ora se descreveu, que se traduz numa adequada conformação por via legislativa das variantes associadas às condutas em apreciação, é possível retirar uma conclusão no tocante ao auxílio à permanência ilegal de cidadãos estrangeiros, que é a conduta que ora nos interessa, uma vez que o arguido responde a esse título e não pela entrada ou o trânsito ilegais de cidadãos estrangeiros, conforme resulta da conformação do elemento subjectivo (2.1.35).

Assim, a prática pelo agente de actos que, por qualquer forma, constituam um auxílio à permanência constitui crime de auxílio à emigração ilegal desde que o agente actue com intenção lucrativa, mesmo que se trate de actos da vida normal, isto é, actos que estejam despidos de intrínseca ilicitude (empregar o cidadão estrangeiro em situação ilegal; transportá-lo ao local de trabalho, assim lhe permitindo exercer uma profissão; fornecer-lhe alojamento, etc.).

Ora, no caso vertente provou-se que o arguido, sabendo que algumas das mulheres, se encontravam em situação ilegal, colocou-as a prestar serviço de acompanhamento, striptease e relacionamento sexual, proporcionando-lhes a possibilidade de angariarem rendimentos, para além daqueles que o próprio arguido recebia, e assim facilitando a permanência em Portugal das mulheres que estavam em situação ilegal. Acresce que o arguido agiu com intenção lucrativa, beneficiando economicamente com a actividade exercida pelas mulheres em situação ilegal.

Inexistem, por isso, dúvidas quanto ao preenchimento dos elementos típicos do crime de auxílio à imigração ilegal p. e p. pelo nº 2 do artigo 183º do Código Penal.”

A simples leitura do acórdão revela que nenhuma censura merece a decisão no que respeita ao mencionado enquadramento jurídico.

Aliás, conforme Ac. do TRP, de 11.09.2013, in www.dgsi.pt, relator Ernesto Nascimento, citado no Parecer do MP, o tipo legal basta-se com a permissão - lucrativa - das cidadãs estrangeiras “trabalharem” no estabelecimento comercial do arguido na actividade de alterne e prostituição, auferindo desse modo rendimentos para o seu sustento ao mesmo tempo que lhes facilita a permanência no país – cfr. sumário do referido Acórdão, que se transcreve:

“Comete um único crime de auxílio à imigração ilegal o arguido que permite que várias cidadãs estrangeiras “trabalhem” no seu estabelecimento comercial na actividade de alterne e prostituição, auferindo desse modo rendimentos para o seu sustento ao mesmo tempo que lhes facilita a permanência no país”.

Sobre a evolução do núcleo do crime em questão “auxílio à imigração ilegal” cfr ac Rel Coimbra de 11-10-2006, realtor Des Belmiro Andrade.

Também o interessante artigo “ O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais, de Paulo Manuel Costa, inhttp://pmcosta.com.sapo.pt/wp03.pdf

Pelo exposto, improcede esta parte do recurso.

2.10 - Nulidade do acórdão por falta de suficiente fundamentação de direito

Na sequência da invocação da inexistência dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de auxílio à imigração clandestina o recorrente limita-se a declarar a nulidade do acórdão por falta de suficiente fundamentação de direito.

Do extracto transcrito verifica-se que não ocorre a aludida nulidade.

O recorrente pode não concordar com o tratamento jurídico da questão, mas não pode ignorar que ele foi efectuado de forma minuciosa e ponderada.

Os argumentos do recorrente de que não tinha consciência da ilicitude, não aparecem reflectidos na matéria de facto fixada.

Assim sendo, e porque “ O tribunal só tem que se pronunciar sobre as questões que lhe foram submetidas e sobre as que podia conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não também os argumentos e doutrinas invocadas para a sustentação das teses em confronto - Cfr. Acórdão do STJ de 11/12/2008,disponível em www.dgsi.pt/jstj. - resta concluir que improcede também o recurso neste segmento.

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2.11 - Consumpção dos crimes de detenção de arma proibida

Sobre o enquadramento jurídico dos crimes de detenção de arma proibida consta da decisão recorrida o seguinte: (transcrição)

“Ao arguido é ainda imputada a prática de dois crimes de detenção de arma proibida.

À data das apreensões da arma e das munições - 18 de dezembro de 2008 - dispunha o artigo 86º, nº 1, alíneas c) e d), do Regime Jurídico das Armas e Munições na sua redação original:

"1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo:
c. Arma das classes B, Bl, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objeto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
d. Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 artigo 3°, armas lançadoras de gases, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3°, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, munições, bem como munições com os respetivos projéteis expansivos, perfurantes, explosivos ou incendiários, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias".

Posteriormente, esta norma sofreu alterações que, todavia, não interferem com a integração de cada um dos objetos na correspondente previsão legal, uma vez que a arma em causa sempre esteve integrada na classe D e, por sua vez, a detenção ilegal de armas da classe D sempre foi punida no artigo 86º, nº 1, alínea c), do Regime Jurídico das Armas e Munições, o mesmo sucedendo com a detenção de munições, que nunca deixou de integrar a previsão da alínea d).

Assim, as alterações legislativas trouxeram implicações unicamente ao nível da medida da pena.

Com a Lei nº 17/2009, de 6 de maio, a alínea c) passou a prever o mínimo de 1 ano de prisão, mantendo o máximo de 5 anos, enquanto a alínea d) passou a prever o máximo de 4 anos de prisão e de 480 dias de multa, molduras abstratas que foram mantidas com a Lei nº 12/2011, de 27 de abril.

Atenta a matéria de facto julgada provada - detenção ilegal de uma arma da classe D e de munições, com conhecimento da ilicitude da conduta -, mostram-se verificados ambos os imputados ilícitos. “

Sobre a questão importa relembrar os factos provados nºs 29, 30, 32, e 40 a 42:

“29.

Além disso, naquele dia, na sequência das mencionadas buscas efetuadas ao estabelecimento « Y..», foram ainda apreendidos: uma (1) espingarda de caça, classe D, marca IMU282; uma (1) bolsa de transporte de arma, em tecido camuflado; e dez (10) cartuchos de caça, carregados, de marca Melior, calibre 12 mm, pertencentes ao arguido, que ali os tinha depositado e ali os conservava, como pretendia.

30.

A espingarda de caça apreendida, era da marca IMU282, com o número 65558, calibre 12, com 2 canos laterais, a qual submetida a exame pericial, revelou estar em razoável estado de conservação, pertencia ao arguido, a favor de quem se encontrava registada desde 22 de abril de 1985, correspondendo-lhe o livrete de manifesto com o n.º H54464, encontrando-se a respetiva licença de uso e porte de arma, também emitida em nome daquele arguido, caducada, já que a mesma apenas dizia respeito aos anos de 2000 a 2002.

32.

Ainda no dia 18 de dezembro de 2008, entre as 10.20 horas e as 10.30 horas, no Cruzamento de Alcaria - Fundão, foram encontrados e apreendidos, na viatura de matrícula Y...-TF, possuída, à data, pelo arguido: além de um taco de basebol e uma navalha, um saco de plástico contendo cinco (5) cartuchos de caça, carregados de marca Melior, calibre 12mm, e uma (1) munição de revólver calibre 38" (9 mm), utilizada em armas da classe B.

39.

O arguido tinha conhecimento das características da supra mencionada espingarda apreendida, já que a mesma lhe pertencia e a tinha registado a seu favor e tinha solicitado licença para o seu uso e porte, todavia aquele arguido não cuidou de renovar tal licença, pese embora soubesse que a respetiva validade já havia terminado há mais de cinco anos, conhecendo também as características das munições que foram encontradas na sua disponibilidade (15 cartuchos de caça, carregados, de marca Melior, calibre 12 mm e 1 munição de revólver calibre 38" (9 mm), utilizada em armas da classe B).

40.

Deste modo, aquele arguido detinha aquela arma e as citadas munições sem que estivesse devidamente habilitado a tê-las em seu poder, como bem sabia.

41.

Ainda assim, e não obstante isso, quis este arguido ter em seu poder aquela espingarda e aquelas munições, ainda que soubesse que não tinha autorização válida para tal e que assim atuava fora das condições legais e em contrariedade com as prescrições das autoridades competentes, bem querendo e sabendo também que detinha aqueles objetos que constituem armas e munições não permitidas.

42.

Este arguido agiu livre, deliberada e conscientemente e tinha perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida criminalmente, ainda assim não se absteve de a levar a cabo.”

O crime de detenção de arma proibida é um crime de realização permanente e de perigo abstracto, em que o que está em causa é a própria perigosidade das armas, visando-se, com a incriminação da sua detenção, tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas face aos riscos da livre circulação e detenção de armas - Ac Rel Évora, de 30 de Outubro de 2012.

É pacífico que, através da disposição incriminadora violada o que se se pune é a detenção – fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente – de armas de fogo, de munições ou de instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão – artigos 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Da análise daqueles factos provados conclui-se que o arguido detinha, na mesma data, diversas “armas”, sem que se tenha apurado se tais objectos chegaram ao seu poder em ocasiões distintas, o que inviabiliza a afirmação de mais do que uma resolução criminosa, a qual apenas integra um único crime de detenção ilegal, por tal conduta apenas ser susceptível de um único juízo de censura.

Com efeito, atento o disposto no artigo 30.º do Código Penal, o número de armas e lote de munições detidas pelo arguido não pode constituir o critério determinante para a contabilização do número de crimes de detenção de arma proibida pelo mesmo cometido.

Neste sentido, ac Rel de Coimbra 16-05-2012 “ Estando em causa dois tipos de armas, integrando-se uma delas na previsão da alínea c) e duas delas na alínea d), do citado artigo 86º, havendo unidade resolutiva criminosa e identidade do bem jurídico protegido, deve o recorrente ser condenado por um crime de detenção de arma proibida do artigo 86.°, n° 1, alínea c), ( disposição mais grave), funcionando as outras armas como agravantes na determinação da medida concreta da pena.”

Em conformidade haverá que condenar-se o arguido recorrente pela prática, de apenas um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º86º, n.º1, alínea c).

*

2.12 - Prescrição do crime de detenção de arma proibida

O crime consumou-se em 18 de Dezembro de 2008, iniciando-se nessa data o prazo de prescrição – art. 119º, n.º 1, do CP.

Sendo o crime previsto na al. c) do nº 1 do artº 86 da Lei 5/2006 de 23.02 punível com pena de prisão até 5 anos ou pena de multa, corresponde-lhe o prazo de prescrição de 10 anos - art 118º, nº 1 al. b) do CP.

O curso da prescrição pode ser suspenso ou interrompido, nas situações previstas nos n.ºs 1 dos artigos 120º e 121º do CP.

Há suspensão quando o tempo decorrido antes da verificação da causa de suspensão conta para a prescrição, juntando-se, portanto, com o tempo decorrido após a causa de suspensão ter desaparecido. Inversamente, verifica-se interrupção, quando o tempo decorrido antes da causa de interrupção fica sem efeito, devendo portanto reiniciar-se o período, logo que desapareça a causa de interrupção (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques em anotação ao art. 120º).

E, a fim de evitar que o processo se eternize, porquanto a interrupção implica o decurso de novo prazo, estabeleceu-se no n.º 3 do artigo 121º um prazo máximo a partir do qual o procedimento criminal já não pode prosseguir, nos termos do qual “A prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.” Ou seja, in casu, 10 anos + 5 anos. Ou seja o prazo máximo termina em 18 de Dezembro de 2023, sendo certo que a prescrição do procedimento criminal se interrompeu com a constituição de arguido, e com a notificação da acusação e com a notificação do despacho que designa dia para audiência de julgamento - art. 121º nº 1, als a) e b) e d) do Cod. Penal, decorrendo dos autos que o recorrente foi notificado da acusação em 21.11.2011 e notificado do despacho que designou data para julgamento em 27.04.2012.

Em conformidade, é improcedente nesta parte, o recurso do arguido.

*

3 - Da medida das penas

Como resultado da absolvição do recorrente do crime de lenocínio praticado no X... por força do caso julgado e da decisão que reduz a um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º86º, n.º1, alínea c), há que reformular a medida das penas parcelares e da pena única, balizados pela decisão recorrida que adoptou os critérios legais aplicáveis de forma criteriosa.

À data das apreensões da arma e das munições - 18 de dezembro de 2008 - dispunha o artigo 86º, nº 1, alíneas c) do Regime Jurídico das Armas e Munições na sua redacção original:

"1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo:
e. Arma das classes B, Bl, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objeto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;

As alterações posteriormente introduzidas à norma não interferem com a integração dos objectos na correspondente previsão legal, uma vez que a arma em causa sempre esteve integrada na classe D e, por sua vez, a detenção ilegal de armas da classe D sempre foi punida no artigo 86º, nº 1, alínea c), do Regime Jurídico das Armas e Munições.

As alterações legislativas trouxeram implicações unicamente ao nível da medida da pena.

Com a Lei nº 17/2009, de 6 de maio, a alínea c) passou a prever o mínimo de 1 ano de prisão, mantendo o máximo de 5 anos, moldura abstracta que foi mantida com a Lei nº 12/2011, de 27 de Abril.

O artigo 70º do Código Penal confere prevalência às penas não privativas de liberdade perante as penas privativas de liberdade, quando aquelas realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

A escolha da pena deverá ser efectuada unicamente no que respeita ao crime de detenção de arma proibida, porque o crime de lenocínio e o crime de auxílio à emigração legal, são puníveis exclusivamente com pena de prisão.

Tendo em conta que o recorrente já tem uma condenação anterior pelo crime de detenção de arma proibida, condenação em pena de multa, transitada em julgado a 24 de Fevereiro de 2005, insuficiente para o desmotivar do cometimento de novos crimes, mesmo de idêntica natureza, impõe-se a opção pela pena detentiva.

Importa atender ao critério legal, o inserto do art. 71 do código, ou seja, “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, atendendo a “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”.

Individualizando a pena a aplicar, verifica-se a concordância com os critérios legais, enunciados no art. 71 do código, nos seus nºs 1 e 2, o Tribunal Colectivo procedeu em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, ou seja, atendendo “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”.

Na aplicação da medida da pena deve ter-se em conta o disposto no art. 71º do C. Penal que no seu nº 1 prescreve que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral e especial).

Visando-se, com a aplicação das penas, a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente, art. 40 nº1 do Cód. Penal.

No que se refere à prevenção geral, haverá que dizer que esta radica no significado que a "gravidade do facto" assume perante a comunidade, isto é, importa aferir do significado que a violação de determinados bens jurídico penais tem para a comunidade (na sociedade ocidental releva a insegurança pelo perigo da posse de armas não autorizada) e satisfazer as exigências de protecção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito (cfr. ANABELA RODRIGUES, A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra, 1995, págs. 371 e 374) ou, por outra forma, a consideração da prevenção geral procura dar "satisfação à necessidade comunitária de punição do caso concreto, tendo-se em conta de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos" (Ac. STJ de 4-7-1996, CJSTJ, II, p. 225).

Sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, art. 40 nº 2 do C. Penal.
Decorre, assim, de tais normativos que a culpa e a prevenção constituem os parâmetros que importa ter em apreço na determinação da medida da pena.

Na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele – art. 71 nº 2 do C. Penal.

Enunciando-se, de forma exemplificativa, no mesmo nº 2 quais as circunstâncias que podem ter tal função. Tendo em conta estes considerandos, importa referir que as exigências de prevenção neste tipo de situações demandam necessidade de punição.

O arguido agiu com dolo directo sendo acentuada a ilicitude da sua actuação.

As anteriores condenações do arguido, circunstância mitigada pelo facto de, à data da prática dos factos, o arguido só ter a condenação no Processo Especial Sumário nº 2/05.0GAFND, mas agravada quanto aos crimes de detenção de arma proibida, dado que a condenação nesse processo se reporta a esse tipo legal de crime;

A ausência de um juízo crítico por parte do arguido;

O facto de, apesar de tudo, o arguido ter mantido, em tempos, licença de uso e porte de arma, que entretanto não renovou;

Tendo sempre presente que apenas os factos referentes ao Café « X...» podem ser considerados, salvo na parte em que os factos no Bar « Y..» se traduzem em antecedentes criminais, do elenco de factos apurados relevam para estes efeitos:

A estrutura organizativa no Café « X...», no qual o arguido quase nunca se encontrava, carecendo necessariamente de pessoas da sua inteira confiança para gerirem o estabelecimento, revelando assim uma particular intensidade da resolução criminosa;

O facto de o arguido se vir mantendo na actividade de lenocínio há longo tempo, não lhe sendo conhecidas actividades lícitas, mantendo-se, mesmo nos tempos mais recentes, a exercer a atividade de exploração de Bares e Cafés;

As anteriores condenações do arguido, circunstância mitigada pelo facto de, à data da prática dos factos, o arguido só ter a condenação no Processo Especial Sumário nº 2/05.0GAFND, mas agravada quanto aos crimes de detenção de arma proibida, dado que a condenação nesse processo se reporta a esse tipo legal de crime;

A ausência de um juízo crítico por parte do arguido;

O lucro auferido pelo arguido com cada uma das relações sexuais, que não se mostra desmesurado (€ 5,00 em € 20,00 a € 30,00, corresponde a uma percentagem de cerca de 16% a 25%);

O facto de, apesar de tudo, o arguido ter mantido, em tempos, licença de uso e porte de arma, que entretanto não renovou.

De acordo com o artigo 2º, nº 4, do Código Penal:

4 - Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior".

O problema da sucessão de leis no tempo coloca-se quanto ao crime de auxílio à emigração ilegal, uma vez que o artigo 183º, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, na sua redação original estabelecia uma moldura legal de 1 a 4 anos de prisão, prevendo, após a alteração empreendida pela Lei nº 29/2012, de 9 de agosto, uma moldura legal de 1 a 5 anos de prisão. Mas coloca-se ainda a propósito dos crimes de detenção de arma proibida, pois, como se referiu, na sua redação original, o artigo 86º, nº 1, alíneas c), do Regime Jurídico das Armas e Munições, consagrava moldura legal de prisão até 5 anos, prevendo, após a Lei nº17/2009, de 6 de maio, e até à actualidade, pena de 1 a 5 anos de prisão.

Há assim que determinar os regimes penais mais favoráveis ao arguido.

No presente caso não se suscitam dúvidas quanto aos regimes mais favoráveis, uma vez que aquelas foram as únicas alterações introduzidas, não havendo, por isso, que ponderar outros elementos.

Assim, na medida em que a alteração legislativa introduzida pela Lei nº 29/2012, de 9 de agosto, incidiu exclusivamente sobre o limite máximo da moldura abstracta da pena, que actualmente se cifra em 5 anos, quando, à luz da redação anterior, era de 4 anos, não há dúvida que o regime anterior é o mais favorável. De modo idêntico, também o regime original dos crimes de detenção de arma proibida se revela mais favorável ao arguido, dado que, por um lado, na alínea c) houve uma agravação do limite mínimo da moldura, mantendo-se o limite máximo, enquanto na alínea d), mantendo-se o limite mínimo, se verificou uma agravação do limite máximo.

É manifesta a prevalência de circunstâncias que depõem contra o arguido, praticamente não havendo circunstâncias que deponham a seu favor.

Neste quadro, julgam-se ajustadas as penas de 2 anos e 6 meses de prisão pelo crime de lenocínio, 15 meses de prisão pelo crime de auxílio à imigração ilegal e1 ano de prisão pelo crime de detenção ilegal de arma.

Dada a pluralidade de crimes efectivamente cometidos pelo arguido encontram-se preenchidos os pressupostos do concurso real de crimes (artigo 30º, nº 1, do Código Penal), razão pela qual se impõe a realização de cúmulo jurídico das penas, como resulta do disposto no artigo 77º, nº 1, do Código Penal, segundo o qual:

"1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente".

Como refere Figueiredo Dias, tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.

Assim, importante na determinação concreta da pena conjunta será a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso.

O mínimo da pena única corresponde à mais elevada das penas parcelares ( 2 anos e 6 meses de prisão), identificando-se o máximo com a soma das penas parcelares (4 anos e 9 meses de prisão), como dispõe o nº 2 do artigo 77º do Código Penal.

O arguido revela uma personalidade adaptada a viver numa faixa muito próxima da ilegalidade, frequentemente ultrapassando esse patamar.

Apesar de tudo, não se pode olvidar o facto de não se mostrar sequer indiciado o uso de violência por parte do arguido, o que, no mundo em que se desenvolve a actividade de lenocínio e de prostituição, não deixa de ser positivo.

Assim, julga-se ajustada a pena única de 3 (três) anos de prisão.

De acordo com o artigo 50º, nº 1, do Código Penal:

"1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".

Como é jurisprudência pacífica, a suspensão da execução da pena apenas deverá ser aplicada nos casos em que seja possível fazer um juízo de prognose favorável, centrado no arguido e no seu comportamento futuro.

Como juízo de prognose que é, não encerra em si uma certeza, mas apenas a esperança fundada de que a socialização do arguido em liberdade se consiga realizar, ou seja, como ensina o Professor Figueiredo Dias, “o que aqui está em causa não é qualquer «certeza», mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco — digamos: fundado e calculado — sobre a manutenção do agente em liberdade.

Contudo, “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização –, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime» ” dado que há que levar em conta “considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico”, pois “só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise”, oi seja importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal.

É certo existirem elementos que colocam entraves à substituição da pena, designadamente o aparente facto de o arguido não se ter afastado do mundo em que se mantém desde 2005 ou 2006.

Acresce a ausência de um juízo crítico por parte do arguido, aparentemente conformado com o rumo da sua vida, desprezando o drama humano associado à prostituição.

É relevante o facto de não haver conotação de violência no exercício da actividade, o que revela, apesar de tudo, uma personalidade orientada por alguns princípios de respeito pelo outro.

Por outro lado, à data da prática dos factos, o arguido apresentava apenas uma condenação em pena de multa.

Não está, por isso, afastada a possibilidade de a suspensão da execução da pena de prisão, com sujeição a regime de prova, ser suficientemente motivadora para que o arguido se abstenha da prática de novos crimes.

Deste modo, mantém-se a decisão do Tribunal recorrido julgando suficiente e adequada a simples censura da prática do facto e a ameaça de cumprimento da pena de prisão, mantendo-se a sujeição do arguido às regras de conduta complementares ao plano de readaptação a elaborar pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (artigo 54º, nº 3, do Código Penal).

Assim, a suspensão da execução da pena de prisão será condicionada ao cumprimento das regras de conduta indicadas no acórdão recorrido: proibição de explorar, directa ou indirectamente, estabelecimentos de Café ou Bar que funcionem para além do período das 7 às 22 horas (assim se pretendendo afastar a possibilidade de o arguido se envolver na gestão de estabelecimentos com potencial para o exercício da prostituição, sem, contudo, retirar a possibilidade de o arguido se manter no ramo da restauração ou similar); proibição de o arguido acompanhar com pessoas conotadas com a atividade de prostituição ou de alterne; e proibição de acompanhar, alojar ou receber cidadãs e cidadãos de nacionalidade estrangeira que se encontrem em situação ilegal ou irregular em Portugal [artigo 52º, nº 2, alíneas a) e d), do Código Penal].

Além disso, o arguido terá de responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social; receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência; informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a 8 dias e sobre a data do previsível regresso; e obter autorização prévia do magistrado responsável pela execução para se deslocar ao estrangeiro (artigo 54º, nº 3, do Código Penal).

*
III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação nos seguintes termos:

I) Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido A... e em consequência:

a) Declarar a excepção de caso julgado quanto ao crime de lenocínio praticado no bar X...

b) Condenar o arguido pela prática de um crime de lenocínio p. e p. pelo artigo 169º, nº 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 meses de prisão;

c) Condenar o arguido pela prática de um crime de auxílio à imigração ilegal p. e p. pelos artigos 2º, nº 4, do Código Penal, e 183º, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, na sua redacção original, na pena de 15 (quinze) meses de prisão;

d) Condenar o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelos artigos 2º, nº 4, do Código Penal, e 86º, nº 1, alínea c), do Regime Jurídico das Armas e Munições, na sua redacção original, na pena de 1 (um) ano de prisão;

II) Operando o cúmulo jurídico das penas, nos termos do disposto no artigo 77º do Código Penal, condenar o arguido A... na pena única de 3 (três) anos de prisão.

III. Nos termos do disposto nos artigos 50º, 52º, nº 2, alíneas a) e d], 53º, nº 3, e 54º, nº 3, do Código Penal, manter a suspensão da execução da pena única de prisão determinada ao arguido A... agora reduzida ao período de 3 (três) anos, com sujeição a regime de prova e às seguintes regras de conduta e obrigações estabelecidas no acórdão recorrido:

IV - No mais manter o acórdão recorrido.

Sem tributação.

Coimbra, 10 de Julho de 2014

(Isabel Valongo - Relatora)

 (Fernanda Ventura)