Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1155/13.0TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: CASO JULGADO
SERVIDÃO POR USUCAPIÃO
SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
LIBERDADE
JUIZ
APLICAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 05/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OURÉM - 1.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 664.º DO VCPC = 5.º DO NCPC
Sumário: 1 - Não têm a mesma causa de pedir e pedido acções em que, numa, se pede o reconhecimento de servidão constituída por usucapião e, na outra, se pede o reconhecimento de servidão constituída por destinação de pai de família; sendo o respectivo título constitutivo que define o conteúdo, extensão e modo de exercício duma servidão, não tratam ambas as acções da mesma concreta servidão (por muitas semelhanças que a alegação factual e o pedido possam ter).

2 - A regra do art. 664.º do VCPC = 5.º do NCPC tem que conter-se e mover-se dentro do princípio do pedido; isto é, sem que seja formulado um concreto e exacto pedido/direito, o tribunal não pode apreciá-lo e decidi-lo, não podendo extrair todas e quaisquer virtualidades/ilações jurídicas dos factos que haja reunido, mas apenas as compreendidas no espectro do pedido.

3 – Assim, pedido o reconhecimento, por usucapião, duma servidão, não pode sequer o tribunal, julgado improcedente este modo de aquisição (único invocado), debruçar-se sobre a aquisição por destinação de pai de família.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A... , viúvo, residente na Rua (...), Ourém, intentou a presente acção declarativa sob a forma sumária (hoje, única) contra B... , divorciada, residente na Rua (...), Ourém, peticionando o seguinte:

- que se declare que o prédio da ré, descrito no artigo 4.º da PI, está onerado a favor do prédio do A com uma servidão de pé e carro, com pelo menos 3 metros de largura e cerca de 32 metros de extensão, que se inicia a Sul do prédio da ré e se estende ao longo da sua estrema nascente até desembocar no prédio do A, a Norte, constituída e adquirida por destinação de pai de família;

- que se declare que o prédio do A, nomeadamente a parte urbana do mesmo, não dispõe de outro acesso não pedonal à via pública, sem ser através da serventia implantada no prédio da ré, e que também não tem condições de a estabelecer sem custos elevados e injustificados;

- que se declare que o prédio da ré está onerado com uma servidão legal de presa e com uma servidão legal de aqueduto, relativamente ao uso da água do poço existente no prédio da ré, e à sua condução até ao prédio do A, e a favor deste prédio do A, situado a norte, direitos estes constituídos e adquiridos por destinação de pai de família;

- que se declare que o prédio do A não dispõe de qualquer fonte ou forma de captação autónoma de água, que possa assegurar as necessidades do seu prédio, a não ser através do uso da água do poço situado no prédio da ré, nomeadamente para a rega das culturas que o mesmo permite efectuar.

- que se condene a ré a demolir, à sua custa, o muro que construiu recentemente na entrada da serventia, e a manter sempre livre, desimpedido e transitável o leito da serventia e a não impedir o uso e a condução da água do poço a favor e até ao prédio do A e a abster-se de por qualquer forma ou acto, diminuir, dificultar, impedir ou estorvar ao prédio do A o uso e gozo da servidão de pé e carro e da servidão de presa e aqueduto, e assim, o uso e a fruição da água do poço.

Alegou os factos conducentes à aquisição, por destinação de pai de família, das servidões (de passagem e do aproveitamento de águas) invocadas; bem como os factos respeitantes às consequentes servidões legais de presa e de aqueduto.

A R. contestou, invocando, além do mais, a excepção de caso julgado, decorrente do trânsito da decisão sobre o mesmo objecto, no processo n.º 1176/08.4TBVNO, do mesmo juízo.

O A. respondeu, pugnando pela improcedência de tal excepção, alegando que, na 1.ª acção, invocou que ambas as servidões se haviam constituído por usucapião e que, nos presentes autos, invoca a sua constituição por destinação de pai de família, pelo que, na sua perspectiva, não existe identidade de causas de pedir.

Conclusos os autos, foi proferido “saneador-sentença”, em que se declarou a instância no essencial regular e em que se declarou procedente a excepção de caso julgado e, consequentemente, com tal fundamento – verificação da excepção do caso julgado – absolveu-se a R. da instância.

Inconformado com tal decisão, interpôs o A. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que julgue improcedente a excepção do caso julgado e que ordene o prosseguimento dos autos.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

3) Na contestação a Ré veio invocar a excepção de caso julgado, alegando ter transitado decisão sobre o mesmo objecto, no processo n.º 1176/08.4TBVNO do mesmo juízo;

4) O recorrente, na resposta pugnou pela improcedência da invocada excepção, alegando que na referida acção peticionou que se declarasse que o prédio da Ré estava onerado como uma servidão de aqueduto relativa ao uso da água do poço, situado no prédio doado, e com uma servidão de pé e carro, ambas as servidões constituídas por usucapião. E nos presentes autos peticiona o recorrente que se declare que o prédio da Ré está onerado com uma servidão de pé e carro, de presa e aqueduto, mas constituídas todas elas em qualquer dos casos, por destinação de pai de família, pelo que não existe identidade de causa de pedir;

(…)

7) Contrariamente ao entendimento da Meritíssima Juiz a quo, inexiste identidade da causa de pedir nesta ação e naquela que sob o processo n.º 1176/08.4TBVNO, correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Ourém e já transitada em julgado;

(…)

9) Verifica-se que enquanto na ação n.º 1176/08.4TBVNO a causa de pedir assenta na constituição das servidões aí referidas por usucapião, já nesta ação a causa de pedir assenta na constituição das servidões acima referidas por destinação de pai de família;

10) Usucapião e destinação do pai de família são dois modos diferentes de constituição das servidões prediais, conforme resulta do disposto nos artigos 1547º, 1548º e 1549º do Código Civil;

11) Modos de constituição de servidões prediais que se fundam em requisitos e factos distintos;

12) Verifica-se assim, que a causa de pedir nesta acção é distinta e diferente daquela que é invocada na acção n.º 1176/08.4TBVNO, já transitada em julgado, pelo que não existe, conforme foi entendido pela Meritíssima Juiz a quo, identidade de causa de pedir;

13) Os pedidos formulados no final de cada uma das ações são também diferentes;

14) Inexiste também identidade de sujeitos em ambas as ações;

15) Violou assim a Meritíssima Juiz a quo o disposto no artigo 581º do Código de Processo Civil;

16) Deve assim revogar-se a sentença que declarou verificada a excepção de caso julgado, devendo os autos prosseguir os seus termos;

(…)

A R. respondeu, defendendo a manutenção do decidido.

Termina a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª.- O caso julgado visa evitar a contradição prática e não uma mera contradição teórica de decisões.

2ª.- Apesar de a nossa lei ter abraçado a teoria de substanciação (que obriga a levar em conta o pedido e a causa de pedir) é, todavia, o principio da autoridade de caso julgado que leva o juiz a prescindir da análise conjunta de três identidades do artº 498º do C.P.C..

3ª.- O caso julgado forma-se sobre o pedido deduzido na acção; mas o Autor pode e deve fazer uma descrição completa da causa de pedir; tem até a faculdade de alterar o pedido e causa de pedir, em dadas circunstâncias até à audiência final; se o não fez por erro, lapso ou omissão… sibi imputet.

4ª.- quando a sentença julgue improcedente a acção, preclude-se, para o A., a possibilidade de vir em novo processo, não só invocar o já deduzido, como o dedutível.

5º.- Quando a questão posta tem a sua relação com o tempo (o direito depende de um termo dilatório ou de uma condição suspensiva) a acção poderá ser renovada como será de lógica elementar: nos demais casos, como o presente impor-se-à a autoridade de caso julgado.

6ª.- Parece, pois, claro que perante os factos conhecidos e provados na primeira acção, nomeadamente perante a escritura de doação outorgada pelo ora apelante, além autor as conclusões retiradas foram erróneas, houve uma descrição incompleta de causa de pedir, por omissão ou lapso do autor que agora pretende corrigir a destempo.

7ª.- Na verdade, a ser atendida agora a pretensão do A., seria conceder-lhe uma segunda oportunidade de accionar, por não ter sido bem sucedido na primeira, por omissão ou lapso seu próprio, o que acabaria por violar o princípio da igualdade substancial das partes (artº3º A- da C.P.C), acr. Revista para o STJ, Pr. 1747/11.1 TBFIG-A.C1.S1.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação

A – Os factos pertinentes são os que, conclusivamente, estão referidos no relatório inicial; e que, detalhadamente, são alegados na PI desta acção e na PI da acção 1176/08.4TBVNO (entretanto, solicitada à 1.ª Instância).

B – Quanto ao Direito:

Na decisão recorrida, entendeu-se que havia identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedido entre esta acção e a acção 1176/08.4TBVNO havida entre as partes; e estando esta acção 1176/08.4TBVNO já decidida, com trânsito em julgado, considerou-se verificada e procedente a excepção do caso julgado.

Com o devido respeito, sem razão.

E, ainda com o devido respeito, por motivo que está claramente exposto na decisão recorrida.

Efectivamente, escreveu-se na decisão recorrida:

“ (…) da análise do processo n.º 1176/08.4TBVNO, deste juízo, verifica-se que A... intentou acção declarativa sob a forma sumária contra B... e marido peticionando que se declare que o prédio desta, que descreve, está onerado a favor do prédio do A com uma serventia de pé e carro com pelo menos 3 metros de largura e cerca de 32 metros de extensão, que se inicia a sul do prédio da ré e se estende ao longo da sua estrema nascente até desembocar no prédio do autor a norte; que se declare que o A tem o direito de uso da água do poço, existente no prédio dos RR, o qual está também onerado com uma servidão de aqueduto a favor do prédio do A e, por último, que sejam os réus condenados a manterem sempre livre, desimpedido e transitável o leito da serventia e a absterem-se de por qualquer forma ou acto, diminuírem, dificultarem, ou estorvarem ao A o uso e gozo da serventia de pé e carro e de aqueduto, e de usar e fruir da água do poço.

Para o efeito, alegou que doou à ré, no dia 20 de Dezembro de 2004, o prédio rústico inscrito na matriz predial (…) sob o artigo 6 (...), que confronta no seu lado norte com prédio do autor inscrito na matriz predial (…) sob o artigo 8 (…) e 2 (...), sendo que o prédio do autor não tem acesso próprio e directo à via pública, tendo o seu acesso a ré e de carro sempre sido feito pelo prédio da ré por uma serventia com 3 metros e largura e cerca 32 m. de extensão, existindo sinais visíveis e permanentes em ambos os prédios. Mais alega que no prédio da ré existe um poço de água nativa, o qual, desde sempre abasteceu de água o prédio do A, onde este colocou há mais de vinte anos um dínamo eléctrico e um chupador, comandado a partir da moradia existente no prédio do A a norte, ao qual a água chega através de um tubo plástico enterrado no solo, existindo sinais visíveis e permanentes em ambos os prédios.

Ora, confrontando os presentes autos e a referida acção n.º 1176/08.4TBVNO, constata-se que o autor é a mesma pessoa nesta e na acção anterior, não se podendo colocar quanto a ele qualquer questão. Já no que respeita à ré, se é certo que esta, na presente acção, não está acompanhada do co-réu no processo n.º 1176/08.4TBVNO, não é menos verdade que surge na mesma posição jurídica, como proprietária do mesmo prédio. (…) Conclui-se, então, pela identidade de sujeitos nas duas acções.

Por outro lado, verifica-se que tanto na mencionada acção como nos presentes autos o que se pretende, em síntese, é que se declare a existência de uma servidão de passagem e de uma servidão de presa e aqueduto que oneram o prédio da ré a favor do prédio do autor, bem como se condene a ré a abster-se de impedir o autor de usufruir das referidas servidões.

Conclui-se, por isso que há, também, identidade de pedidos.

Acresce que, em ambas as acções, a causa de pedir consiste, no essencial, no facto de o acesso ao prédio do autor, a pé e de carro, sempre ter sido feito pelo prédio da ré, por uma serventia com 3 metros de largura e cerca 32 m. de extensão, existindo sinais visíveis e permanentes em ambos os prédios e que o poço de água existente no prédio da ré sempre abasteceu de água o prédio do autor, onde este colocou há mais de trinta anos uma electrobomba e um chupador, ao qual a água chega através de um tubo plástico enterrado no solo, existindo sinais visíveis e permanentes em ambos os prédios.

A questão fundamental é, portanto, a mesma, existindo, assim, identidade de causa de pedir.

A tal não obsta o facto de, na primeira acção, o autor ter fundado a constituição das referidas servidões no instituto de usucapião e nos presentes autos ter fundado tal constituição na destinação do pai de família. Na verdade, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º do Código de Processo Civil), pelo que a apreciação da existência da mesma causa de pedir deve reportar-se aos factos concretos alegados pelas partes e não à qualificação jurídica por estas levada a cabo.

Efectivamente, nas duas referidas acções, o autor alega precisamente os mesmos factos essenciais, apenas procedendo à sua qualificação jurídica de forma diversa, razão pela qual se entende que a causa de pedir é a mesma, o que obsta à apreciação do mérito da presente causa.

Tudo bem – nada a censurar – até aos últimos 6 parágrafos; em que o que é dito devia conduzir justamente à conclusão oposta.

Efectivamente, não têm a mesma causa de pedir e pedido acções em que, numa, se pede o reconhecimento de servidões constituídas por usucapião e, na outra, se pede o reconhecimento de servidões constituídas por destinação de pai de família; sendo o respectivo título constitutivo que define o conteúdo, extensão e modo de exercício duma servidão, não estamos a falar, em ambas as acções, das mesmas concretas servidões (por muitas semelhanças que a alegação factual e o pedido possam ter).

Mas vejamos, um pouco mais circunstanciadamente:

A “excepção de caso julgado” visa evitar que o órgão jurisdicional contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior.

Garante, portanto, a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente e a inviabilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica.

“Excepção de caso julgado” cujos requisitos se encontram enumerados no artigo 498º do VCPC = 581.º do NCPC, a saber: identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.

Identidade de sujeitos que reside no facto de as partes serem as mesmas nas duas acções sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

Identidade da causa de pedir que existe quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo concreto facto jurídico, identidade que tem de ser procurada não relativamente às demandas formuladas mas na questão fundamental levantada nas duas acções[1]; razão pela qual – tendo a nossa lei adoptado a chamada teoria da substanciação, que exige sempre a indicação do título ou facto jurídico em que se baseia o direito do autor – a causa de pedir numa acção que tem basicamente em vista o reconhecimento/declaração de servidões (de passagem e de águas) será formada pelos concretos factos em que se consubstanciam os respectivos títulos constitutivos.
Identidade do pedido que tem de ser apreciada não só em relação ao que se pede nas duas acções mas também em relação ao que se alega a respeito da questão fundamental que comanda o pedido das acções.
Isto dito, é indiscutível a identidade de sujeitos nas duas acções.
As causas de pedir e os pedidos, porém, é que não são idênticos.
Entre a causa de pedir e a pretensão processual existe um nexo de individualização caracterizado pela reciprocidade: a causa de pedir individualiza a pretensão delimitada e a pretensão delimitada individualiza a causa de pedir.
Esta reciprocidade permite determinar a causa de pedir em razão da pretensão processual individualizada e a pretensão processual individualizada em razão da causa de pedir, estabelecendo-se entra ambas uma relação de implicação mútua[2].
Daí que se diga que “é a resposta dada na sentença à pretensão do A., delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado[3]; ou, por outras palavras, que a “eficácia do caso julgado apenas cobre a decisão contida na parte final da sentença, ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do A. ou do R., concretizada no pedido ou na reconvenção e limitada através da respectiva causa de pedir[4],[5].

O que significa que a sentença proferida na acção 1176/08.4TBVNO – e essa sentença foi o Acórdão desta Relação de 17/12/2012 – definiu a relação material controvertida apenas e só tal como ali foi apresentada, na tal relação de implicação mútua entre a causa de pedir e a pretensão processual, ou seja, a causa de pedir (sendo delimitada pela pretensão deduzida) apenas compreendia os factos respeitantes à aquisição das servidões por usucapião e o pedido (sendo individualizado pela causa de pedir) apenas compreendia e dizia respeito a servidões constituídas por usucapião.
Tudo o mais, ainda que a partir e com base em factos constantes da e na acção 1176/08.4TBVNO, não podia ser conhecido/apreciado; não valendo e sendo convocável a regra do art. 664.º do VCPC = 5.º do NCPC, porque, naturalmente, tal regra tem que conter-se e mover-se dentro do princípio do pedido, pelo que, sem que seja formulado um concreto e exacto pedido/direito – no caso e em relação à 1.ª acção, o pedido/direito a servidões constituídas por destinação de pai de família – o tribunal não pode apreciá-lo e decidi-lo; em síntese, a regra do art. 664.º do VCPC = 5.º do NCPC não significa que o tribunal possa/deva extrair todos e quaisquer virtualidades/ilações jurídicas dos factos que haja reunido, mas apenas que pode/deve extrair as virtualidades/ilações jurídicas compreendidas no apertado espectro do pedido (ou seja, o tribunal apenas está autorizado a enveredar por uma diferente construção jurídica para conceder o pedido/direito formulado e não a conceder todos os direitos que tenham suporte jurídico nos factos).
E foi justamente isto – o que acaba de ser dito sobre o recorte conceitual da causa de pedir e pedido e sobre o sentido do antigo art. 664.º do CPC – que ficou dito e decidido na acção 1176/08.4TBVNO; ou seja, o que acaba de ser dito é até o único modo de corresponder à confiança que é suposto as decisões dos tribunais transmitirem e merecerem.
Efectivamente – trata-se de ponto não irrelevante no contexto da decisão recorrida e do presente recurso – ocorreu o seguinte na anterior acção 1176/08.4TBVNO:
Na decisão proferida em 1.ª instância, a Exma. Juíza, após considerar improcedente a aquisição das servidões com fundamento em usucapião, entendeu, com base no já referido art. 664.º do VCPC, que podia/devia debruçar-se sobre os pressupostos de aquisição por destinação de pai de família; e, nesta linha de raciocínio, acabou por concluir e decidir (1) pela improcedência da aquisição da servidão de passagem por destinação de pai de família e (2) pela procedência da aquisição da servidão voluntária de águas e aqueduto por destinação de pai de família.
Improcedência e procedência de que recorreram, respectivamente, o A. e a R.; recursos sobre os quais foi proferido o Ac. desta Relação de 17/01/2012, de que aqui respigamos as seguintes e expressivas – por razões que é ocioso explicar – passagens (sendo nossos os sunlinhados):
“ (…)

Apelação interposta pelos RR..

Porque contida no objecto do recurso, importa analisar apenas a questão da constituição e reconhecimento de uma servidão de aqueduto por destinação do pai de família, a favor do prédio do A. e sobre o prédio dos RR.. (…)

A justificar o pedido, alega que no prédio doado à ré existe um poço de água nativa, o qual desde sempre abasteceu de água o prédio situado a norte, propriedade do A., e que, nesse poço e há mais de 20 anos, colocou um dínamo eléctrico e um chupador, comandado a partir da moradia existente no prédio a norte. Mais alega que quer o A., quer os ante possuidores vem usando a água captada nesse poço para abastecer o dito prédio a norte.

Estes factos vieram a provar-se (item 11.1-20 a 27), e assente neles, a 1a instância afastou a aquisição do direito às águas e a existência duma servidão de aqueduto por usucapião, como fora peticionado. O pedido de constituição de servidão de águas por usucapião improcedeu, portanto, e como o A. dele não recorreu, transitou em julgado e não está agora em apreciação.

Em substituição — digamos assim — desse pedido, e partindo desses mesmos factos, reconheceu a 1.ª instância ao A. a constituição em benefício do seu prédio, duma servidão voluntária permanente de águas e de aqueduto, por destinação do pai de família.

Os RR. insurgem-se contra tal decisão, e com razão como se verá, embora não de todo coincidente com a nossa.

Antes de mais, importa notar que, tal como vem desenhada a pretensão ajuizada e o que se veio a provar, a servidão a constituir a favor do prédio do A., será uma servidão legal de presa, prevista no art.1559°, e não a servidão legal de aqueduto a que se refere o art.1561°. É que, enquanto aquela é o encargo imposto no prédio alheio onde existe a água, afim de a água ser utilizada no prédio dominante, a servidão de aqueduto é a que tem por encargo a condução de águas por um prédio alheio, mas, prédio esse, que não é o prédio onde existe a água a utilizar. (…)

De todo o modo, quer a servidão de presa, quer a de aqueduto, constituem simples acessório do direito à água, o que pressupõe, portanto, que o titular activo tenha direito ao uso das águas particulares existentes em prédio alheio.

(…)

Na hipótese em análise, a 1.ª instância considerou a existência do direito à água proveniente do poço existente no prédio dos RR.. Porém, os factos provados não autorizam a concluir pelo direito ao uso da água.

Na verdade, não basta ter-se por provado que o poço sempre abasteceu o prédio do A., e que quer ele quer os antepossuidores usam a água captada nesse poço para abastecer o prédio. Importava alegar e provar a necessidade efectiva de represar ou de conduzir a água para a casa de habitação para aí ser utilizada nos gastos domésticos ou para a agricultura. Nada disto articulou o A. em vista a justificar o direito ao uso da água proveniente do poço em benefício do seu prédio.

Portanto, não estando provado o direito ao uso da água, não há que falar em servidão de aqueduto ou de presa, que são um acessório daquele direito; a servidão existe se ele existir.

Mas conforme atrás se assinalou, na sentença considerou-se a constituição duma servidão voluntária de aqueduto, por destinação do pai de família.

Um dos títulos justos de aquisição do direito de servidão de águas (fontes e nascentes ou subterrâneos), é a sua constituição por destinação do pai de família (arts.1390°, 1395° e 1549°). Nos termos destas disposições legais, se existir separação, quanto ao domínio, entre dois prédios do mesmo dono, ou entre duas fracções de um só prédio, e houver sinal ou sinais visíveis e permanentes postos em um ou ambos, que revelem serventia de um para com o outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio vierem a separar-se salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento.

O título invocado pelo A. para a constituição da servidão de aqueduto é o da usucapião. Coisa diferente é a possibilidade de constituição de um direito de servidão sobre água alheia por destinação do pai de família, reportada ao momento da escritura de partilha do acervo hereditário  (item 11.1-31), pois a servidão constitui-se no preciso momento em que os prédios passam a pertencer a proprietários diferentes.

Sucede que o A. não pede o reconhecimento da existência duma servidão por destinação do pai de família, nenhuma referência lhe faz, e por isso, nenhum facto alega quanto a tal. Também não alterou ou ampliou o pedido e a causa de pedir até ao momento próprio (art.273°/C.P.C.). Como se disse, o título que invoca é o da usucapião e foi assim, que os RR. o entenderam e sobre ele se pronunciaram.

Ora, uma vez deduzido o pedido, o mesmo delimita os poderes do juiz que, nos termos do art.661°/C.P.C., não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir. Por outro lado; a par do anterior princípio do dispositivo (arts.3°/1, 264°, 467°/1-e), C.P.C.), o acatamento do princípio do contraditório consagrado no art.3°/3C.P.C. impunha que os RR. deduzissem as suas razões antes da operada “convolação” da servidão. A coberto do princípio da liberdade de qualificação dos factos pelo juiz emergente do art.664°/C.P.C. as partes não podem ser confrontadas com soluções jurídicas inesperadas, por não terem sido objecto de discussão no processo.

Por isso, indicando o A. a servidão de aqueduto por usucapião, e não ficando esta provada, não podia o tribunal apurar se à situação fáctica conviria providência diversa, como fez, ao reconhecer a constituição da servidão de aqueduto por destinação do pai de família, que é um título de constituição de servidão diferente daquele.

Aqui chegados, tem que se considerar procedente o recurso dos RR..

Apelação interposta pelo A..

A sentença julgou improcedente a peticionada aquisição por usucapião de servidão de passagem, por inverificados os pressupostos para a sua constituição.

Porém, a coberto do referido princípio consagrado no art.664°, entendeu apurar se os factos provados preenchiam os pressupostos para a aquisição da mesma servidão, agora por destinação do pai de família, concluindo pela sua não verificação.

É desta última decisão que o A. não se conforma.

Sem razão. Valem aqui os argumentos acima expendidos quanto à convolação do reconhecimento duma servidão predial adquirida por usucapião para outra, constituída por destinação do pai de família.

Na verdade, o pedido formulado foi o de constituição duma servidão de passagem de pé e carro com as característica descritas na petição inicial, a onerar o prédio dos RR. e a favor do prédio do A.. O título invocado foi a usucapião, articulando-se os pertinentes factos demonstrativos dessa forma de constituição e alegando-se no art .20° da petição que “(...) na ausência de outro título, adquiriu o ora A. tal servidão por usucapião, aquisição que aqui expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos.”.

Assim, atenta a norma do art.661°/C.P.C., a sentença deveria inserir-se no âmbito do pedido e como tal, estava vedado ao juiz sobrepor-se à vontade da parte para, em face da improcedência do pedido de reconhecimento da constituição da servidão por usucapião, cuidar de saber se à situação apurada conviria outro título de constituição. A decisão — favorável ao A. — que viesse a proferir-se seria de condenação em objecto diverso do pedido, violando assim a norma daquele art.661°. Para além disso, desrespeitou-se o princípio do contraditório contido no assinalado art.3°/3, por não se ter dado à parte contrária a possibilidade de se pronunciar sobre a solução jurídica que se propunha adoptar.

Deste modo, conformando-se o A. com o insucesso da sua pretensão de ser reconhecida a servidão de passagem por usucapião, uma vez que não recorreu da respectiva decisão, não pode agora reagir contra a sentença na parte em que não reconheceu a constituição da servidão de passagem, por destinação do pai de família, de que não houve formulação de pedido nesse sentido, o que implicaria, portanto, alteração do pedido e causa de pedir iniciais. E a Relação, caso desse guarida à pretensão do recorrente de convolação de pedido, iria também condenar em objecto diverso do que se pediu, porquanto, e conforme acima salientado, é distinto o título de constituição de servidão predial por usucapião do de por destinação do pai de família, cada um com disciplina jurídica autónoma (arts.1548° e 1549°).

Por tudo isto, não pode proceder o recurso do A. (…) ”
Enfim – resumido em poucas palavras tudo o que já aconteceu entre as partes – temos que, na acção 1176/08.4TBVNO (na decisão final proferida nesta Relação), foi dito, claramente, às partes que não fazia parte do objecto de tal acção – da sua causa de pedir e do seu pedido – o reconhecimento de servidões por destinação de pai de família, não podendo o tribunal assim pronunciar-se sobre tal modo de constituição das mesmas.
Em face (e na esteira) do decidido em tal Ac. da Relação, veio então o A. intentar nova acção, invocando, agora, como modo de constituição das servidões, o modo – destinação de pai de família – que lhe havia sido dito que não fazer parte do objecto da acção 1176/08.4TBVNO.
Ao que o tribunal – a 1.ª instância – agora diz, ao arrepio do decidido no Ac. da Relação proferido na outra acção, que o decidido na 1.ª acção fez caso julgado material também em relação à constituição das servidões por destinação de pai de família.
Concluindo:
Não se verifica, como supra se explicou (traçando o recorte conceitual da causa de pedir e do pedido e explicando o sentido do art. 664.º do VCPC = 5.º do NCPC), qualquer caso julgado material[6].
Mais do que isso, em face do ocorrido – do que foi dito e do que foi decidido – na anterior acção 1176/08.4TBVNO, mal se compreenderia que pudesse ser doutro modo.

Impõe-se pois julgar improcedente a excepção de caso julgado e, em consequência, julgar procedente o recurso.

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III - Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se a decisão que, na procedência da excepção de caso julgado, absolveu a R. da instância, decisão que se substitui por outra a julgar não verificada a excepção do caso julgado e a ordenar que os autos sigam os seus termos (art.590.º e ss. do NCPC).

Custas da apelação pela R.

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Coimbra, 13/05/2014

 (Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)


[1] Ac. 26.10.89, BMJ 390, pág. 379.
[2] Miguel Teixeira de Sousa, BMJ 325, pág. 106
[3] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág. 693
[4] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág. 695
[5] Em síntese, o art. 498º do VCPC e 581.º do NCPC coloca os 2 requisitos da identidade objectiva - pedido e causa de pedir - precisamente no mesmo plano, sem qualquer diferença de projecção, alcance, valor e importância – cfr. Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado, pág. 161.
[6] O único caso julgado que se verifica – mas será apenas formal – é o consistente na oposição entre o decidido no 1.º processo pelo Acórdão desta Relação e o decidido neste processo pela 1.ª instância.