Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
62/04.1JAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: MEIOS DE PROVA
DEPOIMENTO INDIRECTO
PROVA PROIBIDA
IN DUBIO PRO REO
CONVICÇÃO DO TRIBUNAL
Data do Acordão: 10/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 124.º, 125.º, 127.º, 128.º, 129.º E 340.º, DO CPP; ART. 32.º DA CRP
Sumário: I - O objecto da prova é constituído por todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis.

II - Uma das formas de garantir os direitos dos cidadãos contra as práticas abusivas no exercício da perseguição penal é o estabelecimento de proibições de prova isto é, a criação de barreiras colocadas à determinação dos factos que constituem objecto do processo, portanto, o estabelecimento de limites à descoberta da verdade (cfr. Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 1992, pág. 83). Entre estes limites, conta-se o depoimento indirecto, nas suas formas proibidas.

III - A testemunha tem conhecimento directo dos factos, quando os percepcionou de forma imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos e tem conhecimento indirecto dos factos quando, do que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 3ª Ed., pág. 158).

IV - A valoração do depoimento das testemunhas de ouvir dizer depende da observância de certos procedimentos que visam a assegurar o contraditório relativamente aos depoimentos envolvidos. Assim, o depoimento indirecto só pode ser valorado como meio de prova, se o juiz proceder à sua confirmação através da audição das pessoas a quem a testemunha ouviu dizer, salvo quando for inviável proceder à confirmação, seja por morte, por anomalia psíquica superveniente ou por impossibilidade de ser encontrada da pessoa a quem a testemunha ouviu dizer.

V - Sendo chamada a depor a fonte da testemunha por ouvir dizer, o depoimento indirecto pode ser valorado, mesmo nos casos em que a aquela se recusa a prestar depoimento ou, por exemplo, quando diz nada recordar, uma vez que foi possível assegurar o contraditório, através do interrogatório e do contra-interrogatório, quer da testemunha de ouvir dizer, quer da testemunha fonte.

VI - Não constitui depoimento indirecto e portanto, prova proibida, o depoimento em que a testemunha relata o que o arguido lhe disse, ainda que este, presente na audiência, não tenha prestado declarações. Na verdade, como sucede no caso em apreço, o que a testemunha relatou e por isso, constituiu o objecto do depoimento, foi, i) o facto, por si percepcionado de forma imediata – através do sentido da audição – de o arguido lhe ter dito que não tinha ocorrido qualquer furto, e ii) o facto, por si percepcionado também de forma imediata – através dos sentidos da visão e da audição – de o arguido lhe ter mostrado três chaves e dito que eram as do veículo cujo desaparecimento tinha sido participado.

VII - A convicção do tribunal resulta pois, da conjugação dos dados objectivos consubstanciados nos documentos e em outras provas constituídas, com as impressões proporcionadas pela prova por declarações, tendo em conta a forma como esta foi produzida, relevando designadamente, a razão de ciência dos declarantes e depoentes, a sua serenidade e distanciamento, as suas certezas, hesitações e contradições, a sua linguagem e cultura, os sinais e reacções comportamentais revelados, e a coerência do seu raciocínio.

VIII - Quando na sentença o Juiz expôs o raciocínio lógico que o conduziu à convicção alcançada, valorando de forma conjugadas, provas credíveis e consistentes, com plena observância das regras da experiência comum pelo que, mostrando-se plenamente observado o princípio da livre apreciação da prova, não merece reparo a decisão de facto proferida.

IX - A dúvida relevante, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas a dúvida que este não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


 

I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Moimenta da Beira – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J1, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em concurso real, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1, a) e 3 e de um crime de burla qualificada na forma tentada, p. e p. pelos arts. 217º e 218º, nº 2, a), por referência ao art. 202º, b), todos do C. Penal.

Por despacho proferido na audiência de julgamento de 5 de Fevereiro de 2015 [acta de fls. 664 a 665] foi comunicada uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nada tendo sido requerido.

Por sentença de 5 de Fevereiro de 2015 foi o arguido condenado, pela prática do imputado crime de falsificação de documento e pela prática de um crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 217º e 218º, nº 1, por referência ao art. 202º, a), todos do C. Penal, nas penas de quatrocentos dias de multa e de duzentos e cinquenta dias de multa, respectivamente e, em cúmulo, na pena única de quinhentos e cinquenta dias de multa à taxa diária de € 6,5, perfazendo a multa global de € 3.575.


*

            Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

                1 – Vem o presente recurso interposto que condenou o arguido aqui recorrente pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, previsto e punido pelo artigo 256 nº. 1 alínea a) e nº.3, com referência à alínea a) do artigo 255 todos do CP, na pena de 400 dias de multa, bem como na prática de crime de burla qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22, 23, 217, nº 1 , 218, nº 1 , por referência à alínea a) do artigo 202 todos do CP., na pena de 250 dias de multa e efectuado o cúmulo jurídico das penas acima referidas, condenar o arguido na pena de 550 dias de multa, à razão diária de 6,5 € no montante global de 3.575,00 € e ainda no pagamento das custas processuais criminais, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

2 – O Tribunal "a quo" ao dar como provada toda a factual idade constante da acusação e referida no artigo 3º deste requerimento, tomou por base o teor dos documentos de fls. 124 e 131 e fundamentalmente pelo depoimento da testemunha D... e B... , sendo certo que o depoimento destas testemunhas conjugado com o teor daqueles documentos de fls. 124 e 131 não são suficientes para criar a convicção de que o arguido havia cometido todos os factos constantes da acusação, não obstante o principio da livre apreciação da prova por parte do douto julgador.

3 – Ora o depoimento daquelas testemunhas conjugado com aqueles documentos de fls. 124 e 131 bem como o teor do relatório de fls. 147 e 168 e ainda os documentos de fls. 30 e 31 e o relatório fotográfico de fls. 68 a 71 não são suficientes para o tribunal criar a convicção de que o arguido havia cometido os factos dados como provados na douta sentença recorrida e referidos nos vários pontos do artigo 3º.

4 – Não obstante isso a verdade é que com base no depoimento daquelas testemunhas e dos documentos acima referidos e que no essencial constam da fundamentação dos factos provados e não provados, a M. Juiz "a quo" não teve qualquer dúvida em exarar na mesma sentença (pasme-se) que foi "o arguido que fez desaparecer o veículo em causa com vista a defraudar a Companhia de Seguros e obter uma indemnização indevida".

5 – Não obstante isso e sem fazer qualquer referência ao facto de ter sido o arguido que havia mudado as chapas da matrícula do veículo Mercedes para as matriculas do veículo Audi, vem condenar o arguido pelo crime de falsificação ou contrafacção de documento, sem que para o efeito tenha feito qualquer referência à actuação material do mesmo arguido ao mudar as chapas da matrícula do Mercedes para o Audi.

6 – Repete-se e de acordo com as premissas a que se faz referência nas alíneas a) e b) do artigo 59 destas alegações de recurso, não há prova clara e concludente de que havia sido o arguido que fez desaparecer do local o veículo Audi para simular um crime e ainda que tenha sido o mesmo arguido que colocou no mesmo veículo Audi as matrículas falsas.

7 – Basta para tanto tomar em linha de conta a fundamentação da matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida que no fundo corresponde a uma súmula daquilo que as testemunhas disseram e ainda quanto à análise crítica dos documentos supra referidos.

8 – Embora o arguido tenha negado a prática dos factos quando prestou o seu depoimento inicial e posteriormente e quando foi ouvida a testemunha B... e quando este refere que o arguido tinha todas as chaves do veículo consigo e que alegadamente tinha sido ele próprio que havia referido à testemunha não ter havido qualquer furto, impunha-se que a M. Juiz “a quo” após o depoimento daquela testemunha teria que dar a palavra ao arguido afim de o mesmo poder contradizer o depoimento daquela testemunha.

9 – Resulta da acta de julgamento que o arguido não foi chamado a depor para naturalmente contradizer aquele depoimento falso daquela testemunha B... para assim dizer ser absolutamente falso o facto de ter mostrado as chaves fotografadas à testemunha B... bem como lhe ter referido que não houve qualquer furto do veículo.

10 – Não foi dada assim oportunidade ao arguido para contrariar o depoimento da testemunha para deste modo referir que esta estava a mentir.

11 – Pelo que assim o arguido havia sido condenado com base num depoimento indirecto que não pode servir como meio de prova, tomando em conta o disposto no nº 1 do artigo 129 do C.P.P.

12 – Se é certo que a testemunha B... refere que o arguido lhe teria dito não haver qualquer furto, repete-se e tomando em conta os fundamentos invocados, esse depoimento não pode servir como meio de prova, já que se trata de um depoimento indirecto – artigo 129 do C.P.P.

13 – Sendo certo que a mesma testemunha nunca referiu qualquer alegada conversa com o arguido em que este lhe tivesse referido que apôs matrículas falsas no veículo Audi.

14 – Refere a testemunha B... que ouviu dizer ao arguido de que este lhe havia referido que não houve qualquer furto do veículo,

15 – Ora os factos narrados pela testemunha B... do ouvir dizer não foram susceptíveis de serem submetidos ao contraditório.

16 – Impunha-se pois que a M. Juiz "a quo" após o depoimento da referida testemunha desse a palavra ao arguido afim de o mesmo dizer aquilo que tinha por conveniente, podendo contrariar naturalmente o depoimento daquela testemunha, já que o arguido entende que aquele mentiu descaradamente.

17 – Nesse sentido o tribunal "a quo' não poderia valorar como meio de prova o depoimento da testemunha B... que disse ter ouvido o próprio arguido confirmar que não houve qualquer furto quando não se deu oportunidade ao mesmo recorrente de prestar declarações e de se pronunciar sobre o teor dessa alegada conversa.

18 – Ora impunha-se pois que o tribunal "a quo" tivesse fundamentado a sua convicção na prova produzida em audiência e depois de analisada na sua globalidade, com conjugação com as regras da experiência comum a qual pelas dúvidas razoáveis e inultrapassáveis em que deixaram o tribunal não permitir para além da dúvida razoável julgar não provada a factualidade provada.

19 – Ficou o tribunal perante 2 versões antagónicas sobre a ocorrência ou não ocorrência de tais factos.

20 – Nenhuma delas suficientemente convincente mas que em obediência ao principio "in dubio pro reo" na ausência de outros elementos probatórios não permitam ultrapassar a dúvida razoável que levasse o tribunal a dar como não provados os factos dados como provados.

21 – Ora no caso em análise não há uma certeza absoluta de que o arguido/recorrente havia retirado o veículo do local onde estava estacionado levando-o para um lugar ermo para assim conseguir enganar a Companhia de Seguros.

22 – Muito menos se provou que o arguido havia mudado as chapas da matrícula colocando as matrículas do veículo Mercedes no veículo Audi, apondo-lhe assim matrículas falsas para assim dificultar que o mesmo veículo fosse encontrado.

23 – Houve portanto uma violação do princípio in dubio pro reo já que é manifesto que a M. Juiz "a quo" face às dúvidas suscitadas e perante uma dúvida relevante deveria decidir contra a acusação, acolhendo assim decisão que favorece o arguido.

24 – Ora na sequência desses considerandos e em obediência ao principio in dubio pro reo e na ausência de outros elementos probatórios, deveria o tribunal "a quo" face à dúvida razoável existente, dar como não provados os factos provados e consequentemente absolver o arguido dos crimes porque vem acusado.

25 – Sendo que caso assim se não entender e tomando em conta o alegado nos artigos 67 e 81, quando muito deverá o arguido ser absolvido do crime de falsificação e contrafacção de documentos.

26 – Já que quanto aos factos integrados nesse mesmo crime não foi feita qualquer prova, já que além de ninguém ter visto o recorrente apor matrículas falsas no veículo Audi, a testemunha B... não relatou qualquer conversa que tivesse tido com o arguido em que este lhe tivesse referido que havia colocado matrículas falsas no Audi, para deste modo dificultar que o mesmo fosse encontrado ao contrário da alegada conversa em que o mesmo arguido lhe havia referido não ter havido qualquer furto do veículo.

27 – A sentença recorrida violou ou não fez uma aplicação correcta do disposto nos artigos 22, 23, 202 alínea a), 217 n.º 1, 218 n.º 1, 255 alínea a). 256 n.º 1 e n.º 3 alínea a), 128 n.º 1, 129 do C.P.P. e 32 n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que,

Tomando em conta os fundamentos supra invocados e fundamentalmente com o douto suprimento de V.Exas. deve dar-se provimento ao presente recurso no sentido do arguido aqui recorrente vir a ser absolvido dos crimes porque foi condenado ou quando assim se não entender deverá o mesmo arguido/recorrente apenas e tão só ser condenado pelo crime de burla qualificada na forma tentada, devendo ser absolvido do crime de falsificação ou contrafacção de documentos.

Decidindo-se me tal conformidade será feita justiça!


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando ter sido feita correcta avaliação da prova documental e testemunhal, resultando os factos provados da ponderação global de toda a prova produzida e não apenas, do depoimento da testemunha B... e dos documentos de fls. 124 e 131, não decorrer qualquer nulidade do depoimento desta última testemunha designadamente, na parte em que foi depoimento indirecto, e concluiu pelo não provimento do recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a contramotivação do Ministério Público, e concluiu pela improcedência do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A valoração de meio proibido de prova [depoimento indirecto];

- A incorrecta valoração da prova e a violação do princípio in dubio pro reo.


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

                        A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

1. A mãe do arguido, C... , nascida em 12/06/1941, celebrou em 20 de Abril de 2001 um contrato de seguro, do ramo automóvel, com a “Companhia de Seguros E... Portugal, S.A”, através do qual transferiu para aquela entidade a responsabilidade civil emergente da condução do veículo automóvel de ligeiro de passageiros, de matrícula (...) RM, marca Audi, modelo Allroad 2.5 TDI titulado pela apólice n.º 5070/870907, de sua propriedade, veículo esse que era exclusivamente conduzido pelo arguido.

2. Tal contrato de seguro tinha uma cláusula adicional, com a epígrafe “valor de substituição em novo”, que dispunha que, nos três primeiros anos de vida de matrícula do referido veículo, em caso de perda total, furto ou roubo do mesmo, a segurada beneficiaria de uma indemnização equivalente ao valor do veículo em novo, sem qualquer desvalorização.

3. O valor do aludido veículo em novo era, à data, de, pelo menos, 60.000,00 €.

4. Em data não concretamente apurada, mas não superior a 24 de Março de 2004, em Trevões – S. João da Pesqueira, o arguido retirou do referido veículo as matrículas que lhe correspondiam, (...) RM, colocando no lugar das mesmas, em substituição, colocou as matrículas (...)SA pertencentes ao veículo de marca Mercedes, modelo 814/42, da classe tractor, tipo mercadoria, de sua propriedade, e abandonou-o na berma da estrada de acesso a Freixo do Numão, do lado direito, no sentido Foz Côa – Freixo do Numão, a fim de o mesmo não vir a ser localizado.

5. Em 24 de Março de 2004, nas mesmas circunstâncias de lugar, ao abrigo do aludido contrato de seguro, o arguido preencheu, falsamente, uma declaração amigável de acidente automóvel, no qual declarou que no dia 23 de Março de 2004, pelas 08h00, o veículo automóvel referido, de matrícula (...) RM, tinha sido furtado, e entregou essa declaração à sua mãe, C... , que, na qualidade de segurada, a assinou, na ignorância do sucedido.

6. O arguido diligenciou e logrou que constasse na dita declaração amigável que o veículo de matrícula (...) RM, tinha sido furtado, declarando que se encontrava estacionado em Trevões, num armazém que se encontrava em obras, e no dia 23 de Março de 2004, pelas 08h00, ao chegar ao armazém, a viatura não se encontrava no local onde no dia anterior havia sido estacionada, o que não correspondia à verdade.

7. Depois, com o propósito de levar a “Companhia de Seguros E... Portugal, S.A” a pagar uma indemnização pelo furto do veiculo, no valor de 60.000,00 €, a qual não seria devida, e a se apropriar dessa indemnização, o arguido entregou em data não concretamente apurada, mas não inferior a 24 de Março de 2004, a declaração amigável de acidente automóvel já preenchida por si, e assinada por C... , a qual era completamente alheia ao sucedido, nos escritórios daquela companhia de seguros, por via também não apurada.

8. Estranhando que o veículo seu segurado de matrícula (...) RM tivera sido furtado, uma vez que o furto tinha ocorrido numa data muito próxima da data de vencimento da referida cláusula com a epígrafe “valor de substituição em novo”, os competentes serviços da “Companhia de Seguros E... Portugal, S.A “, determinaram a realização de uma averiguação, através da qual se concluiu que a seguradora deveria declinar a indemnização pretendida pela segurada, porquanto se apurou que as declarações prestadas na participação de sinistro não correspondiam à verdade, pois o dito veículo não tinha sido furtado.

9. Com efeito, o veículo em causa, foi localizado no dia 22 de Abril de 2004, na berma da estrada de acesso a Freixo do Numão, do lado direito, no sentido Foz Côa – Freixo do Numão, aparentando estar abandonado, tendo apostas matrículas falsas, (...)SA, com as portas trancadas, e sem vestígios de arrombamento de qualquer uma das fechaduras ou do canhão de ignição.

10. O arguido sabia que colocava no veículo de matricula (...) RM matrículas que não lhe pertenciam e que as matriculas se destinam a identificar os diversos veículos.

11. Ao colocar no referido veículo matrículas que sabia não lhe pertencerem, agiu o arguido com o propósito de obter para si benefício ilegítimo, sabendo que ao actuar da forma descrita colocava em causa a força probatória de tais elementos, enquanto sinais identificativos de um veículo determinado, assim causando prejuízo ao Estado ao pôr em causa a fé pública de tal “documento”, prejudicando o regular tráfico probatório.

12. O arguido previu e quis, fazer constar, falsamente, da declaração amigável de acidente automóvel que o veículo de matrícula (...) RM foi furtado no dia 23 de Março de 2004, de forma a ludibriar a “ Companhia de Seguros E... Portugal, S.A “, com o intuito não concretizado de levar aquela entidade seguradora apagar, devidamente e em seu prejuízo, uma indemnização no valor de 60.000,00 €, e se apropriar dessa indemnização, o que só não conseguiu devido às averiguações daquela companhia de seguros que descortinou a falta de veracidade da versão apresentada na referida declaração amigável.

13. O arguido sabia que tais condutas eram proibidas e penalmente punidas e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições, ainda assim quis agir da forma descrita.

14. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

15. O arguido divorciado, é empresário de profissão, aufere um rendimento declarado de € 420 mensais; não tem filhos, nem empréstimos bancários, reside em casa própria, tem o 9º ano de escolaridade.

(…)”.

A) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

[Da Contestação]

16. Em Março de 2004, veículo Audi foi furtado quando estava num armazém em obras, na Quinta do Lugar de Vale de Parada, em Trevões, São João da Pesqueira.

17. Sendo que também desapareceu a chave desse mesmo veículo que estava guardada nesse armazém, podendo concluir-se que era alguém que conhecia os hábitos do arguido.

18. E quando o arguido reparou que o veículo havia sido furtado, após chamar a GNR participou o sucedido à Companhia de Seguros.

19. Limitou-se o arguido a dar à sua mãe para assinar um documento que lhe foi entregue pelo mediador de seguros, para participação de sinistro/furto, ignorando que se tratasse de qualquer Declaração Amigável de Acidente Automóvel.

20. O arguido ao dar à sua mãe o referido papel a fim desta o assinar fê-lo apenas e tão só para participar o furto e posteriormente vir a receber o valor veículo à data do furto sinistro e não para se apropriar de qualquer valor ilegítimo.

21. Não prestou para o efeito falsas declarações, limitando-se o arguido a participar apenas e tão só o sucedido.

22. E é certo que, no interior do mesmo veículo furtado existiam duas matrículas, designadamente (...)SA, que diziam respeito, não a um trator mas sim a um veículo que estava a ser reparado e que pertencia ao aqui contestante.

23. Acontece que esse veículo tinha as matrículas completamente ilegíveis e tinham que ser substituídas.

24. Sendo que o arguido mandou fazer essas duas matrículas para logo que o veículo estivesse arranjado as colocar.

25. E, se o veículo furtado e acima identificado, posteriormente apareceu tendo apostas essas referidas matriculas que estavam no seu interior, (...)SA, de certo que foram os autores do furto que fizeram a substituição dessas matrículas e não o arguido.

26. Desconhece o arguido em que condições é que o veículo apareceu, designadamente se foi encontrado na berma da estrada de acesso a Freixo do Numão, do lado direito, no sentido Foz Côa Freixo do Numão, e se tinha as portas trancadas sem vestígios de arrombamento, por não ter visto o aludido veículo.

27. O arguido apenas visualizou o aludido veículo quando foi notificado para ir ao posto da GNR de Vila Nova de Foz Côa, passado algum tempo depois de ter parecido o referido veículo, sendo que o mesmo se encontrava completamente danificado.

28. Não pretendeu assim o arguido obter qualquer benefício ilegítimo, nem querendo causa qualquer prejuízo quer para a Companhia de Seguros quer ao Estado, por não pôr em causa a fé pública de tal documento.

29. De resto o arguido é uma pessoa de bem, séria e honesta incapaz de se apropriar de qualquer quantia que não lhe pertença.

(…)”.

C) E dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

A motivação do Tribunal fundou-se com base na valoração probatória dos documentos juntos aos autos e na livre apreciação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, todos sopesados em consonância com as máximas da experiência.

Assim, teve em consideração o Tribunal o depoimento do arguido que negou a prática dos factos.

Em concreto, o arguido defendeu que deixava normalmente o veículo em causa no armazém de que é proprietário em Trevões, São João da Pesqueira, o que aconteceu igualmente no dia em que o veículo desapareceu e deixava também a chave suplente do veículo também nesse armazém e defendeu que o veículo simplesmente desapareceu desse armazém que, à data estava em obras e ficava aberto.

Por outro lado, defendeu que, por coincidência, tinha no veículo Audi guardadas as matrículas que tinha mandado fazer para o veículo Mercedes (...)SA e que, quem furtou o veículo Audi seria alguém conhecido, que furtou igualmente a chave do veículo Audi, andou com ele e trocou-lhe as matrículas, tendo-lhe aposto as matrículas do veículo Mercedes.

Admitiu, por outro lado, ter preenchido e levado à sua mãe, C... , para esta a assinar, a declaração amigável de fls. 131, de onde fez constar que no dia 23 de Março de 2004, pelas 08h00, o veículo automóvel referido, de matrícula (...) RM, tinha sido furtado e que depois enviou tal documento à Companhia de Seguros, com vista a obter a indemnização mas por entender que tal indemnização seria devida.

Confrontado com o facto de no auto de denúncia por furto não existir qualquer referência ao facto de terem sido furtadas as chaves do veículo, defendeu que se tratou de um lapso do agente autuante, asseverando que relatou aquando da denúncia que lhe furtaram igualmente as chaves do veículo Audi.

Argumentou ainda que não precisava de praticar os factos em causa nos autos até porque não tinha quaisquer problemas monetários.

Ora, diga-se que da forma como o arguido prestou o seu depoimento, a sua postura, as suas afirmações e hesitações foram suficientes para o Tribunal se convencer amplamente que o arguido, à medida que apresentava a sua versão dos factos, faltava à verdade ao Tribunal.

Mais, atenta a demais prova constante dos autos, não tem o Tribunal qualquer dúvida em julgar provados os factos constantes da acusação e não provada a versão constante da contestação, que foi, no essencial, a versão trazida aos autos pelo arguido.

Mas vejamos com mais detalhe.

Em primeiro lugar, atendeu o Tribunal ao teor dos documentos de fls. 124 e 131 e seguintes, de onde decorre que a mãe do arguido, C... , nascida em 12/06/1941, celebrou em 20 de Abril de 2001 um contrato de seguro, do ramo automóvel, com a “Companhia de Seguros E... Portugal, S.A”, através do qual transferiu para aquela entidade a responsabilidade civil emergente da condução do veículo automóvel de ligeiro de passageiros, de matrícula (...) RM, marca Audi, modelo Allroad 2.5 TDI titulado pela apólice n.º 5070/870907, de sua propriedade.

Dos documentos em referência decorre ainda que na Companhia de Seguros em causa foi apresentada uma declaração amigável de acidente automóvel, no qual se declarava que no dia 23 de Março de 2004, pelas 08h00, o veículo automóvel referido, de matrícula (...) RM, tinha sido furtado.

Por outro lado, considerou o Tribunal o depoimento de C... , mãe do arguido que, num depoimento confuso e pouco assertivo, em que se preocupou em tentar convencer o Tribunal de que houve efetivamente “um furto”, admitiu que efetivamente tinha comprado o carro em causa, mas asseverou que quem utilizava o veículo, quem cuidava do seguro e tratava de todas as coisas relacionadas com o veículo era exclusivamente o seu filho, o arguido, já que a própria nem sequer tem carta de condução, asseverando ainda que “comprou o carro para o filho” mas ficou registado em seu nome.

Por outro lado e quanto ao desaparecimento do veículo, defendeu esta testemunha que o filho deixava habitualmente o veículo em causa guardado no interior do armazém que fica perto da sua residência, em Trevões, São João da Pesqueira, e que normalmente ficava fechado à chave, sendo que, no dia em causa, quando lá chegou constatou que a porta do armazém havia sido arrombada.

Admitiu, por outro lado, que foi o seu filho quem preencheu a declaração de furto, tendo sido ela própria a assina-la; já quanto ao documento de fls. 168, que consubstancia na declaração de desistência da participação, defendeu já que não foi o seu filho, mas “os do seguro” que lhe deram a assinar.

Por outro lado, mais tomou em consideração o Tribunal o depoimento de D... , inspetor da Polícia Judiciária, que, de forma assertiva, explicou que foram chamados a intervir no caso dos autos por o veículo Audi ter sido encontrado com matrículas falsas apostas.

Explicou ainda que quando chegaram ao local constataram que o veículo tinha as fechaduras intactas e que tentaram abri-lo com recurso a um arame mas que foi impossível.

Asseverou ainda que só conseguiram aceder ao interior do veículo partindo um vidro do mesmo e que, depois, conseguiram ver o número de chassis e, por esse elemento, conseguiram verificar qual a matrícula verdadeira do veículo e, pela inserção no sistema Schengen constataram que o veículo tinha sido declarado furtado.

Explicou ainda que desconfiaram que não teria havido qualquer furto porque, em primeiro lugar, o barracão onde o veículo alegadamente estaria guardado na data em que teria sido furtado, não tinha qualquer sinal de arrombamento; por outro lado, quando o encontraram, o veículo Audi não tinha qualquer sinal de arrombamento ou dano, tanto que foi aberto pelo arguido com as chaves do mesmo.

Com relevo, tomou ainda em consideração o Tribunal o depoimento de B... , averiguador de sinistros, funcionário da empresa SGS-PT e que explicou que foi o averiguador do sinistro em causa nos autos.

Explicou esta testemunha, de forma plenamente assertiva e coerente, que logo que iniciou a averiguação estranhou todo o processo, em primeiro lugar, porque quando se deslocou a São João da Pesqueira e fez perguntas na localidade sobre o que se teria passado, apercebeu-se que quase ninguém sabia do alegado desaparecimento do veículo, o que o fez desde logo estranhar porque normalmente, nos casos de desaparecimento de veículos, os lesados imediatamente questionam na localidade se alguém viu alguma coisa ou se sabe de alguma coisa, sobretudo numa localidade tão pequena como Trevões, São João da Pesqueira.

Asseverou ainda que as suas suspeitas se consolidaram quando teve notícia de que o veículo tinha sido avistado e que, depois, quando a polícia vai ao local onde o veículo tinha sido avistado, constata-se que o veículo já lá não estava, só tendo vindo a aparecer vários dias depois.

Explicou ainda que ao longo do processo de averiguações teve vários reuniões com o arguido e este nunca lhe falou de qualquer desaparecimento das chaves do veículo, pelo contrário, asseverou que se informou junto da SIVA e da Audi e que as duas entidades lhe garantiram que são fornecidas com o veículo 3 chaves, chaves essas que, em reunião com o arguido, este as exibiu e permitiu que ele as fotografasse.

Mais acrescentou que, depois, numa conversa com o arguido e tendo-o pressionado, este acabou por lhe relatar que efetivamente não tinha havido qualquer furto e admitiu desistir da participação do sinistro, pedindo, no entanto, uns dias para fazer o veículo “reaparecer.”

Asseverou ainda que a desistência da participação foi preenchida na sua presença e que foi o arguido quem levou a referida desistência a casa para a mãe a assinar.

Juntamente com este depoimento, teve ainda em consideração o Tribunal o teor do relatório de fls. 147 a 168 e que consiste no relatório que a testemunha em causa elaborou sobre o sinistro e onde, com mais pormenor e detalhe, relata os factos, tal como os relatou ao Tribunal.

Ademais, considerou ainda o Tribunal o teor dos documentos de fls. 30 e 31, que consubstanciam no livrete do veículo de Audi de matrícula (...) RM e o documento de fls. 66 que consiste num documento emitido pela DGV e que contém as características do veículo de matrícula (...)SA e que comprova que o veículo em causa é efetivamente um trator de mercadorias (que aliás se mostra retratado a fls. 269 no relatório elaborado pela testemunha B... ) e não um reboque, como defendeu o arguido.

Valorou-se ainda o teor do relatório fotográfico de fls. 68 a 77 feito ao veículo Audi na data do seu “reaparecimento” e o teor do auto de exame direito e avaliação, junto aos autos a fls. 90 a 95, sendo que comprovam ambos os documentos que efetivamente o veículo Audi não tinha qualquer sinal de arrombamento; neste ponto considerou ainda o Tribunal o teor do termo de entrega de fls. 13 do apenso de restituição de bens, sendo que de todos estes elementos resulta que os únicos danos no visíveis no veículo Audi são os decorrentes da sua abertura forçada pelos militares da GNR e Inspetores da Polícia Judiciária, não tendo o veículo Audi qualquer dano no interior, contrariamente ao que defendeu o arguido.

Mais tomou em consideração o Tribunal o teor dos elementos de fls. 114 a 118 e 121 de onde se retira que não há registo na Audi de ter sido pedida qualquer segunda via das chaves do veículo Audi.

Por outro lado, mais tomou em consideração o Tribunal o depoimento de F... , delegado técnico da SIVA, e que explicou que efetivamente sem a chave é impossível abrir ou por a trabalhar um veículo da marca Audi; mais explicou que quando se compra uma chave nova de um veículo da marca Audi tal facto fica obrigatoriamente registado.

Quanto ao número de chaves que são entregues com veículos da marca Audi, asseverou que normalmente são entregues 3 chaves, duas com comando via rádio e uma com chave propriamente dita, quanto aos veículos de marca Audi Allroad, defendeu ter a perceção de que seria exatamente igual, eram duas fornecidas 3 chaves, duas com comando e uma com chave, embora, como se trata de um modelo já antigo, não conseguia afirmar com toda a certeza.

Conjugados todos os meios de prova, dúvida não há para o Tribunal de que efetivamente não houve nunca qualquer furto do veículo Audi, mas que foi tudo um plano do arguido que “fez desaparecer” o veículo em causa, com vista a defraudar a companhia de seguros e obter uma indemnização indevida.

Veja-se:

- o arguido é o único e exclusivo condutor do veículo Audi e é unicamente o arguido quem usufrui desse veículo;

- O veículo em causa só podia ser posto a trabalhar com as chaves do mesmo;

- Nunca foram feitas quaisquer outras chaves para o veículo Audi;

- O arguido era o único detentor das chaves e tinha consigo, à data dos factos, todas as chaves do veículo;

- Mais, no veículo Audi foram apostas matrículas pertencentes ao veículo Mercedes, modelo 814/42, veículo este propriedade do arguido.

- Note-se ainda, no período em que a seguradora se encontra a fazer averiguações, o veículo Audi é avistado num local diferente daquele onde mais tarde vem a ser encontrado.

Ora, daqui resulta com clareza e certeza bastante que foi o arguido quem movimentou o veículo Audi de lugar e o ocultou, apondo-lhe matrículas falsas, para dificultar que o mesmo fosse encontrado, participando, através da sua mãe, à companhia de seguros o seu desaparecimento com vista a receber uma indemnização.

Diga-se que o arguido procurou trazer uma explicação para todas as incongruências verificadas, explicações essas que não merecem qualquer credibilidade.

Em concreto, o arguido em audiência de julgamento defendeu que além do veículo, lhe furtaram igualmente as chaves suplentes do veículo Audi, chaves essas que o arguido guardava precisamente no mesmo local onde deixava estacionado o veículo Audi.

Ora, quanto a este ponto, salienta-se que do auto de denúncia, cuja certidão se mostra junta a fls. 522, resulta precisamente o oposto daquilo que o arguido relata, em concreto, do auto de denúncia resulta que “(…) o veículo se encontrava totalmente fechado encontrando-se as chaves do mesmo com o denunciante.”, não tendo o Tribunal qualquer dúvida em depositar a sua confiança no teor do auto de denúncia em detrimento da versão do arguido.

Por outro lado, como é óbvio, nenhuma credibilidade merece a versão do arguido quando diz que essa menção constante do auto “foi um lapso do agente autuante”.

Se o arguido tivesse dito que as chaves estavam no armazém e tinham sido furtadas juntamente com o veículo necessariamente tal ficaria a constar do auto e imediatamente a investigação teria sido dirigida de outra forma, salientando-se ainda que o arguido assinou o auto de denúncia!

Neste ponto, salienta-se ainda que da declaração amigável de fls. 133 e 134 resulta que o arguido também não mencionou que além do veículo, tinham desaparecido também as chaves do veículo.

Nem se mostra plausível, à luz das regras da experiência, que o arguido fosse guardar as chaves do veículo no mesmo sítio em que guarda o veículo, sítio esse que se é um armazém agrícola, alegadamente em obras.

Por outro lado, há prova direta nos autos de que o arguido tinha todas as chaves do veículo consigo.

Com efeito, neste ponto, não tem dúvida o Tribunal em valorar o depoimento de B... , a que já se aludiu, e que defendeu que o arguido lhe exibiu as três chaves do veículo e permitiu que a testemunhas as fotografasse e que são as constantes de fls. 159.

Neste ponto, o arguido negou que tivesse as chaves, defendendo que a testemunha em causa estava a mentir, para beneficiar a companhia de seguros.

Com o devido respeito, no confronto entre os dois depoimentos em causa, não tem o Tribunal qualquer dúvida em depositar plena confiança no depoimento da testemunha B... , que foi um depoimento isento, imparcial, coerente e assertivo, salientando-se ainda que tendo havido desistência da participação, a testemunha em causa nunca teria qualquer interesse em beneficiar a companhia, porque o interesse da companhia de seguros estava garantido.

Neste ponto, o arguido juntou aos autos ainda um documento de onde consta a informação de que na compra de uma viatura nova são entregues 2 chaves, cfr. documento de fls. 629.

No entanto, em primeiro lugar, a entidade prestadora de tal informação é desconhecida para o Tribunal e, não sendo a SIVA, não merece credibilidade, depois, de tal documento não consta a que modelo se refere o “carro novo”, pelo que tal documento em nada altera a convicção do Tribunal.

Por outro lado ainda, o arguido defendeu que o veículo estava guardado no armazém, que por sua vez estava em obras e que estava aberto e que até já nem era a primeira vez que lhe desapareciam de lá objetos.

No entanto, mais uma vez, este depoimento não merece qualquer credibilidade.

Em primeiro lugar, neste ponto o seu depoimento nem pelo depoimento da sua mãe foi corroborado, já que esta, a testemunha C... , defendeu que o filho nunca lhe falou de terem sido furtados objetos do armazém, além do carro, e referiu expressamente que as portas do armazém tinham sido arrombadas.

Por outro lado, a testemunha D... asseverou que teve conhecimento que não havia qualquer sinal de arrombamento no armazém e, finalmente, a testemunha B... explicou, sem qualquer dúvida, que o armazém tinha fechadura e não existia qualquer sinal de arrombamento das portas, como aliás se constata das fotografias de fls. 160 e 161.

Ademais, o arguido, pretendendo consubstanciar a sua versão dos factos, defendeu que o veículo Audi apareceu com o seu interior todo estragado.

No entanto, do teor do relatório fotográfico de fls. 68 a 77 e, com mais relevo, do teor auto de exame direito e avaliação, junto aos autos a fls. 90 a 95, e do teor do termo de entrega de fls. 13 do apenso de restituição de bens resulta com clareza, que o veículo estava em bom estado de conservação, não tinha quaisquer danos no seu interior e os únicos danos visíveis eram os decorrentes da sua abertura forçada pelos militares da GNR e Inspetores da Polícia Judiciária.

Ademais, o próprio arguido confirmou à testemunha B... que efetivamente não houve qualquer furto, não tendo o Tribunal qualquer dúvida em confiar no depoimento da testemunha B... .

Sobre este ponto, acrescenta-se que este depoimento pode ser valorado pelo Tribunal, já que não se trata de um depoimento indireto, nos moldes referidos no artigo 129º do Código de Processo Penal.

Com efeito, o artigo 129º do Código de Processo Penal proíbe a valoração como prova dos depoimentos de “ouvir dizer”, quando a pessoa de quem se “ouviu dizer” não seja chamada a depor ou a testemunha não indique a pessoa de quem “ouviu dizer”, impedindo, desta forma, o pleno exercício do direito de contraditório, uma das garantias fundamentais do processo penal português.

Ora, no caso, a pessoa de quem a testemunha em causa “ouviu dizer” é o arguido, que compareceu na audiência de julgamento, apresentou a sua versão dos factos e ouviu o depoimento em causa.

Por outro lado, foi devidamente representado pelo seu Ilustre Defensor que interrogou a testemunha em causa, testemunha esta que depôs sobre todas as questões formuladas e respondendo sempre de igual forma a todas as questões, independentemente de quem lhe formulava as questões.

No mesmo sentido se defendeu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 440/99 que o tribunal pode valorar como meio de prova, sujeitando-o à sua livre apreciação, o depoimento de uma testemunha que disse ter ouvido do próprio arguido os factos que relata, quando este, chamado a prestar declarações, não o quis fazer, no exercício do seu direito ao silêncio, consultado em www.tribunalconstitucional.pt.

Igualmente vem sendo decidido nos tribunais superiores, atente-se, entre outros, no decidido pelo Tribunal da Relação do Porto de 5/5/2010, Rec. Penal nº 219/08.6GAMDB.P1 - 4ª Secção, e de 09/02/2011, Rec. Penal nº 195/07.2GACNF.P1 - 1ª Secção, onde se decidiu, que não constitui depoimento indireto o depoimento de uma testemunha que relata o que ouviu o arguido dizer, isto mesmo que o arguido não preste declarações na audiência, no exercício do seu direito ao silêncio, consultado em www.trp.pt.

Finalmente, quanto ao argumento aduzido pelo arguido de que não precisava de praticar os factos em causa nos autos, porque não tinha quaisquer problemas monetários, neste ponto, o depoimento do arguido foi contraditado pelo depoimento da própria mãe do arguido, a testemunha C... , que afirmou que, de facto, o arguido não tinha muito dinheiro e que o mesmo veio até e de forma repentina, logo a seguir aos factos em causa, a “emigrar para o Brasil”, só tendo a testemunha, mãe do arguido, sabido dessa “emigração” uma semana depois de o arguido ter ido para o Brasil.

Assim, quer pela forma como foi prestado, quer em face dos demais meios de prova, como já se disse, o depoimento do arguido não logrou merecer qualquer confiança por parte do Tribunal, tendo-se convencido amplamente o Tribunal que os factos se deram tal qual relatados na acusação pública.

No mais, no que concerne à motivação do arguido, isto é, a intencionalidade com que agiu, esta é-nos revelada pela sua conduta objetiva, não havendo dúvida, por ser do conhecimento comum da população, que o arguido sabia que não podia alterar a matrícula do veículo Audi.

Por outro lado, agiu o arguido com o propósito de obter para si benefício ilegítimo, traduzido na ocultação do veículo da seguradora e das forças de autoridade, assim causando prejuízo ao Estado ao pôr em causa a fé pública de tal “documento”, prejudicando o regular tráfico probatório.

Ademais, da conduta objetiva do arguido resulta que este agiu procurando obter para si o montante que sabia não ser devido, induzindo em erro a companhia de seguros, só não o conseguindo porque esta detetou o embuste atempadamente.

Quanto ao valor do veículo automóvel, tomou em consideração o Tribunal o teor do auto de denuncia, de onde consta que o valor do veículo em novo era de € 65.000 e quanto ao local onde o veículo foi encontrado, atendeu o Tribunal ao teor da informação de fls. 3.

Finalmente, para prova dos antecedentes criminais do arguido o Tribunal valorou o certificado de registo criminal junto aos autos.

Já quanto à situação económica do arguido convenceu-se o Tribunal que, tal qual quanto aos factos, o arguido faltou amplamente à verdade ao Tribunal.

Em concreto, o arguido defendeu em audiência de julgamento auferir um rendimento variável que se podia fixar entre “50.000 e 100.000”, não tendo referido a moeda; perguntado expressamente sobre qual a sua remuneração no mês de Dezembro de 2014 referiu que auferiu cerca de € 5.000 (cinco mil euros) e saliente-se, referiu expressamente cinco mil euros mensais.

No entanto, posteriormente e reinquirido sobre esta matéria em face do requerimento que juntou aos autos a 28 de Janeiro de 2015 veio alegar que se enganou na moeda e queria referir-se a “reais” e não a euros e também defendeu que “talvez não entendesse” quando o Tribunal lhe perguntou qual o seu rendimento no mês de Dezembro de 2014 e referiu-se à sua situação económica de há seis meses atrás.

Com o devido respeito, como é notório, mais uma vez, a versão do arguido de que “se enganou” e “talvez não entendesse” o que lhe era perguntado, não convenceu o Tribunal, atendo-se o Tribunal quanto às condições económicas do arguido ao teor do documento de fls. 637, julgando-se provado qual o rendimento declarado do arguido.

(…)”.


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*


            Da valoração de meio proibido de prova [depoimento indirecto]

            1. Alega o recorrente – conclusões 8 a 12 e 14 a 17 – que parte do depoimento da testemunha B... foi depoimento por ouvir dizer, sem que lhe tenha [ao recorrente] sido dada a oportunidade de o contradizer, pelo que, para além de se tratar de depoimento em que a testemunha mentiu descaradamente, se trata também de depoimento indirecto e portanto, insusceptível de ser valorado, sendo certo que, como resulta da motivação de facto, em muito contribuiu para a formação da convicção da Mma. Juíza a quo.  

            Vejamos.

            Nos termos do disposto no art. 124º, nº 1 do C. Processo Penal o objecto da prova é constituído por todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis.

            As provas estão sujeitas ao princípio da legalidade, estabelecendo o art. 125º do C. Processo Penal que são admissíveis as que não forem proibidas por lei. A legalidade dos meios de prova, as regras da sua produção e as proibições de prova são, assim, condições de validade processual da prova e por isso, critérios da verdade material (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 197). Com efeito, cabendo ao julgador, nos termos do disposto no art. 340º, nº 1 do C. Processo Penal, investigar e esclarecer o facto sujeito a julgamento e por essa via, atingir a descoberta da verdade material, certo é que esta não é uma verdade absoluta ou ontológica mas antes uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a qualquer preço mas uma verdade processualmente válida ou seja, procurada e obtida através dos meios legalmente admissíveis (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 194).

            Uma das formas de garantir os direitos dos cidadãos contra as práticas abusivas no exercício da perseguição penal é o estabelecimento de proibições de prova isto é, a criação de barreiras colocadas à determinação dos factos que constituem objecto do processo, portanto, o estabelecimento de limites à descoberta da verdade (cfr. Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 1992, pág. 83). Entre estes limites, conta-se o depoimento indirecto, nas suas formas proibidas.

A regra na produção da prova testemunhal é a de que a testemunha é inquirida sobre os factos de que possui conhecimento directo (art. 128º, nº 1, do C. Processo Penal). A testemunha tem conhecimento directo dos factos, quando os percepcionou de forma imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos e tem conhecimento indirecto dos factos quando, do que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 3ª Ed., pág. 158).

O art. 129º do C. Processo Penal regula as formas admissíveis da prova por ouvir dizer, e define as formas proibidas da mesma. Dispõe este artigo, no seu nº 1: Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.

A valoração do depoimento das testemunhas de ouvir dizer depende da observância de certos procedimentos que visam a assegurar o contraditório relativamente aos depoimentos envolvidos. Assim, o depoimento indirecto só pode ser valorado como meio de prova, se o juiz proceder à sua confirmação através da audição das pessoas a quem a testemunha ouviu dizer, salvo quando for inviável proceder à confirmação, seja por morte, por anomalia psíquica superveniente ou por impossibilidade de ser encontrada da pessoa a quem a testemunha ouviu dizer.

Sendo chamada a depor a fonte da testemunha por ouvir dizer, o depoimento indirecto pode ser valorado, mesmo nos casos em que a aquela se recusa a prestar depoimento ou, por exemplo, quando diz nada recordar, uma vez que foi possível assegurar o contraditório, através do interrogatório e do contra-interrogatório, quer da testemunha de ouvir dizer, quer da testemunha fonte.

Validamente produzido o depoimento indirecto, a sua valoração está sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, ínsito no art. 127º do C. Processo Penal, devendo ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o respectivo depoimento directo, quando prestado. Quando o depoimento indirecto não tenha obedecido aos pressupostos enunciados, o art. 129º, nº 2 do C. Processo Penal interdita a sua utilização como meio de prova, estabelecendo uma proibição de prova.

Posto isto.

2. Na perspectiva do recorrente, o depoimento indirecto insusceptível de valoração, tem por objecto o segmento das declarações da testemunha B... na parte em que este, de acordo com o alegado no corpo da motivação, afirmou na audiência de julgamento que o arguido lhe havia exibido as três chaves da viatura cujo desaparecimento participara, e que lhe havia dito que não tinha ocorrido o furto da mesma pois que, apesar de ter negado a prática dos crimes nas declarações que inicialmente produziu e mesmo, em declarações posteriores, na dita audiência, certo é também que, no termo do depoimento da testemunha referida, a Mma. Juíza a quo não lhe deu a palavra para contradizer a testemunha e afirmar a falsidade da declaração por esta produzida.

Não existindo unanimidade sobre a questão, temos para nós, no seguimento, aliás, de jurisprudência maioritária das Relações (cfr. Acs. da R. de Coimbra de 26 de Junho de 2013, Processo nº 220/11.2GBTND.C1, de 15 de Fevereiro de 2012, processo nº 41/07.7FDCBR.C1, de 20 de Dezembro de 2011, processo nº 160/10.2JACBR.C1 e de 13 de Dezembro de 2011, processo nº 473/08.3PAPTS.C1, da R. do Porto de 9 de Novembro de 2011, processo nº 11263/08.3TDPRT.P1, de 9 de Fevereiro de 2011, processo nº 195/07.2GACNF.P1, de 25 de Junho de 2008, processo nº 0742789 e de 27 de Fevereiro de 2008, processo nº 0810050, e da R. de Lisboa de 22 de Setembro de 2009, processo nº 1496/09.0YRLSB-5 e de 24 de Janeiro de 2012, processo nº 35/07.2PJAMD.L1-5, todos in, www.dgsi.pt) que não constitui depoimento indirecto e portanto, prova proibida, o depoimento em que a testemunha relata o que o arguido lhe disse, ainda que este, presente na audiência, não tenha prestado declarações. Na verdade, como sucede no caso em apreço, o que a testemunha relatou e por isso, constituiu o objecto do depoimento, foi, i) o facto, por si percepcionado de forma imediata – através do sentido da audição – de o arguido lhe ter dito que não tinha ocorrido qualquer furto, e ii) o facto, por si percepcionado também de forma imediata – através dos sentidos da visão e da audição – de o arguido lhe ter mostrado três chaves e dito que eram as do veículo cujo desaparecimento tinha sido participado.

Mesmo que assim não se entendesse, tão pouco existiria qualquer prova proibida. Com efeito, o recorrente, como o próprio reconhece, esteve presente em todas as sessões da audiência de julgamento, nas quais foi sempre assistido pelo seu Ilustre Mandatário. Teve pois plena possibilidade de contraditar o depoimento da testemunha e, portanto, de se defender. Esta possibilidade, como é evidente, não estava dependente de qualquer acto processual da Mma. Juíza a quo, designadamente, ‘dar a palavra ao arguido a fim de o mesmo poder contradizer o depoimento’ da testemunha, já que o arguido havia sido expressamente informado, antes de iniciar as suas declarações, do direito que lhe assistia de as prestar em qualquer momento da audiência sem, no entanto, a tal estar obrigado [cfr. acta da audiência de julgamento de 14 de Janeiro de 2015, a fls. 488]. Por outro lado, ouvido o registo gravado do depoimento da testemunha, fácil é constatar que o Ilustre Mandatário do arguido iniciou as suas instâncias, circa 00:20:00 do depoimento, tendo, designadamente, instado a testemunha no sentido de saber se alguma vez o arguido havia perante si assumido que tinha pretendido enganar a seguradora, tendo a testemunha respondido [circa 00:23:13 do depoimento] que, não podendo precisar as palavras, o arguido lhe tinha dito que precisava de cinco dias para fazer aparecer o carro, e no sentido de saber quem lhe tinha mostrado as chaves e que chaves eram as fotografadas nos autos, tendo a testemunha respondido [circa 00:24:58 do depoimento] que tinha sido o arguido que lhas tinha exibido como sendo as originais da viatura. Acresce que ouvida a gravação das declarações finais do recorrente, é-lhe logo perguntado pela Mma. Juíza a quo sobre se queria contraditar alguma coisa, tendo de imediato dito [circa 00:00:10 das declarações] que pretendia contradizer o perito – a identificada testemunha – tendo negado qualquer intervenção na desistência da participação à seguradora, bem como a existência de qualquer acordo que tenha feito com a testemunha e, mais adiante [circa 00:10:08 das declarações], tendo justificado as afirmações da testemunha como forma de fazer jus ao que lhe é pago pela seguradora.       

É assim inquestionável que não só o Ilustre Mandatário do recorrente pôde contraditar e contraditou, a testemunha, como o próprio recorrente o fez, negando a veracidade das afirmações por aquela produzida, o que torna completamente infundada, para mais não dizer, a alegação de valoração de prova proibida tendo por objecto o depoimento da testemunha B... .

Em conclusão, improcede a invocada proibição de prova.


*

            Da incorrecta valoração da prova e a violação do princípio in dubio pro reo

3. Alega o recorrente – conclusões 6, 7 e 18 – que basta atentar na fundamentação da matéria de facto da sentença para se concluir que não foi produzida prova clara e concludente de que tenha feito desaparecer o veículo, simulando o crime, e nele tenha aposto chapas de matrícula falsas. No corpo da motivação precisa que, tendo negado a prática dos factos, não é a omissão na participação a subtracção das chaves da viatura justificadora da conclusão de que mentiu, que os documentos de fls. 124 e 131 não podem fundamentar a conclusão de que cometeu os factos imputados pois que a testemunha C... não os confirmou, a testemunha D... apenas desconfiou da inexistência do furto e criou a suspeita de que o arguido teria usado as chaves da viatura para simular o crime, a testemunha B... , que criou no tribunal a convicção de ter sido o arguido a praticar os factos, prestou depoimento indirecto que conduziu à valoração de prova proibida, a testemunha F... limitou-se a dizer que sem as chaves é impossível abrir ou por em funcionamento um Audi, o relatório de fls. 147 a 168 corresponde ao depoimento desta última testemunha, os documentos de fls. 30 e 31 e 68 a 77 não são nem elucidativos nem seguros e o auto de exame apenas refere que não existiam sinais de arrombamento no veículo, concluindo ser tudo isto insuficiente para, com base no princípio da livre apreciação da prova, o tribunal considerar provados os factos preenchedores dos tipos pelos quais foi condenado.

O direito ao recurso, de facto e de direito, integra o conteúdo constitucional das garantias de defesa do processo penal, tendo assento no art. 32º, nº 2 da Lei Fundamental. No entanto, e como decorre do ponto 7 da Exposição do Dec. Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, o legislador infraconstitucional «aposta confiadamente na qualidade da justiça realizada a nível da 1ª instância», como primeira forma de assegurar a garantia decorrente do duplo grau de jurisdição.

Deste modo, instrumento privilegiado da realização da justiça é o julgamento da 1ª instância, momento que constituindo o palco por excelência para a revelação do facto, é irrepetível no processo (cfr. Ana Maria Brito, Revista do CEJ, 1º Semestre 2008, nº 9 Especial, Jornadas sobre a revisão do Código de Processo Penal, Recursos em Processo Penal, pág. 384).

A lei ordinária concebe o recurso como um remédio para sanar o que tem por excepcional no julgamento feito pela 1ª instância, o erro na definição do facto. Deste pressuposto decorre, em primeiro lugar, que o recurso não pode ser perspectivado como um novo julgamento, como se o efectuado na 1ª instância não tivesse existido e, em segundo lugar, que compete exclusivamente ao recorrente fixar o seu objecto, através da indicação precisa do erro que entende ter sido cometido na decisão. Por isso, a impugnação ampla da matéria de facto ou, preferindo-se, o recurso da matéria de facto, tal como a lei a configura – essencialmente, no art. 412º, nºs 3 e 4 do C. Processo Penal – impõe ao recorrente a observância do ónus de uma tripla especificação, a saber: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art. 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio], acrescendo, relativamente às concretas provas, que quando estas tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na acta, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação. Por outro lado, estas especificações devem constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (cfr. art. 417º, nº 3 do C. Processo Penal). Em todo o caso deve sempre ter-se presente que a modificação da decisão de facto por via do recurso só pode ocorrer se e quando as provas especificadas impuserem decisão diversa da recorrida, não bastando para este efeito que apenas permitam decisão diversa [o que, frequentemente, é ignorado pelos recorrentes].

Pois bem. Compulsando o corpo da motivação e as conclusões formuladas pelo recorrente há que reconhecer que não deduziu impugnação ampla da matéria de facto, na medida em que não deu cumprimento mínimo ao ónus de especificação referido. Com efeito, o recorrente, apesar de ter transcrito no corpo da motivação todos os factos provados que constam da sentença, não especificou os que, de entre eles, considerava incorrectamente julgados [não sendo de aceitar que a todos pretendesse impugnar, até porque vários deles lhe são favoráveis], como não especificou as concretas provas que, em seu entender, impunham diversa decisão, e muito menos, indicou as concretas passagens da prova gravada em que fundava a impugnação.

Na verdade, o recorrente funda a sua argumentação em torno da apreciação e valoração da prova que o tribunal recorrido fez constar da motivação de facto da sentença, contrapondo a sua própria convicção à convicção alcançada pelo julgador, para depois concluir pela insuficiência da prova para permitir que os factos provados como tal tivessem sido julgados.

Assim, a ‘impugnação’ deduzida pelo recorrente prende-se apenas com uma diferente valoração da prova produzida que, em seu entender, não tem a credibilidade que lhe foi atribuída pela 1ª instância.

Ora, cabe antes de mais dizer as provas têm por função a demonstração da verdade dos factos (cfr. art. 341º do C. Civil), mas a verdade material, fim de todo o processo penal, não é uma verdade absoluta, mas antes uma verdade judicial, prática e, sobretudo, processualmente válida (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, pág. 194), estando na sua busca o tribunal sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, previsto no 127º, do C. Processo Penal, segundo o qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

Este princípio não tem o significado de o julgador poder valorar a prova determinado por um convencimento exclusivamente subjectivo. A ‘livre convicção’ não significa arbítrio ou decisão irracional. Bem pelo contrário, a valoração da prova exige-se uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência e na percepção da personalidade dos depoentes, tendo como horizonte a dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo. Da conjugação de todos estes elementos deve resultar uma convicção objectivável e motivável, únicas características que permitem que a decisão se imponha, dentro e fora do processo. E esta convicção é também uma convicção pessoal, nela tendo papel de relevo, para além da actividade meramente cognitiva, elementos não racionalmente explicáveis, como a própria intuição, e mesmo elementos exclusivamente emocionais (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 205).

A convicção do tribunal resulta pois, da conjugação dos dados objectivos consubstanciados nos documentos e em outras provas constituídas, com as impressões proporcionadas pela prova por declarações, tendo em conta a forma como esta foi produzida, relevando designadamente, a razão de ciência dos declarantes e depoentes, a sua serenidade e distanciamento, as suas certezas, hesitações e contradições, a sua linguagem e cultura, os sinais e reacções comportamentais revelados, e a coerência do seu raciocínio. Esta conjugação só pode ser alcançada, pelo menos, no grau desejável, através da imediação e da oralidade da prova. Só o contacto directo do julgador com a prova, o ‘frente a frente’ entre o juiz e o declarante ou a testemunha, o coloca em perfeitas condições de proceder, primeiro, à avaliação individual, e depois, à avaliação global da prova.

Vigorando o princípio da livre apreciação da prova em todas as instâncias que conhecem de facto, deve reconhecer-se a substancial diferença entre a valoração da prova por declarações efectuada na 1ª instância e a apreciação que sobre ela pode ser feita pelo tribunal de recurso, limitado que está à audição – mais raramente, à visualização – das passagens concretamente indicadas pelos intervenientes processuais e de outras, eventualmente consideradas relevantes, e nesta medida, incapaz de apreender, em grande parte, os elementos atrás enunciados, por impossibilidade do seu registo audio, elementos que, porém, foram apreendidos, interiorizados e valorados na sua globalidade por quem os presenciou ou seja, pelo juiz do julgamento. Por isso, quando a 1ª instância atribui, ou não, credibilidade a uma fonte de prova por declarações, fundando a opção tomada na imediação, o tribunal de recurso, em princípio, só a deva censurar se for feita a demonstração de que a opção carece de razoabilidade ou viola as regras da experiência comum. Daí que, como já referimos, o art. 412º, nº 3, b) do C. Processo Penal exija a especificação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que significa que a modificabilidade da decisão de facto não se basta com a indicação de provas que apenas permitam uma decisão diversa da recorrida.

Posto isto.

4. Dando por reproduzida a motivação de facto que consta da sentença, supra transcrita, vejamos então se algo lhe há a censurar, em particular, os aspectos focados pelo recorrente, à luz do que se deixou dito.    

Assim, desde logo, e quanto à invocada proibição de prova e consequente invalidade da valoração probatória do depoimento da testemunha B... , remetendo para o que se expôs em 1. e 2., que antecedem, resta reafirmar a inexistência da apontada proibição.

Quanto aos documentos de fls. 124 – denominado «Histórico de contratos para a matrícula» – e 134 e 135 [e não 131 como, certamente por lapso, consta da motivação de facto, e foi reproduzido no corpo da motivação] – denominado «Participação amigável de acidente automóvel» – se é evidente que, cada um deles, isoladamente, é incapaz de provar a prática dos crimes, basta ler a motivação de facto para perceber que o tribunal a quo deles retirou a existência de contrato de seguro celebrado em 20 de Abril de 2001, entre C... e a E... Portugal, SA, sendo o veículo seguro o Audi desaparecido, e a existência de uma declaração amigável de acidente, dando conta do furto daquele veículo em 23 de Março de 2004.

Quanto à valoração do depoimento da testemunha C... , basta ler a motivação de facto para concluir que o tribunal a quo dele não retirou o convencimento de ter o arguido simulado o furto e colocado as matrículas no veículo, mas apenas, além da titularidade do veículo, sua utilização pelo arguido, guarda habitual do mesmo no armazém, assinatura da participação amigável e da declaração de desistência da participação, que se preocupou em convencer o tribunal da ocorrência do furto.

Quanto à valoração do depoimento da testemunha D... , basta ler a motivação de facto para concluir que o tribunal a quo, através dele, apenas ficou ciente de que a testemunha suspeitava, enquanto inspector da Polícia Judiciária, de que não tinha ocorrido o furto, porque o barracão e o veículo não tinham sinais de arrombamento, não tendo logrado abrir este último com recurso a um arame, que veio a ser aberto pelo arguido, com a própria chave.

Quanto à valoração do depoimento da testemunha F... , basta ler a motivação de facto para concluir que o tribunal a quo dele não retirou, sem mais, que foi o arguido quem, com as chaves, retirou o veículo e mudou a matrícula, simulando o crime, já que tal depoimento relevou quanto à impossibilidade de abertura e colocação em funcionamento de um Audi sem ser através da chave respectiva e quanto a serem três as chaves entregues com veículos dessa marca, com ressalva de assim poder não acontecer com modelos menos recentes.

Finalmente, no que concerne à valoração do depoimento da testemunha B... , resulta da motivação de facto que o mesmo desempenhou papel relevante na formação da convicção do tribunal recorrido, na medida em que a testemunha, tendo sido encarregada de averiguar o furto participado à seguradora, para além de circunstâncias que lhe pareceram estranhas [o não conhecimento, em Trevões, do desaparecimento da viatura, o avistamento da viatura depois de ter desaparecido, e o novo desaparecimento dela], relatou na audiência conversas que teve com o arguido nas quais este, admitindo não ter ocorrido qualquer furto, solicitou alguns dias para fazer aparecer a viatura.

Pois bem.

Próximo do termo de vigência de uma cláusula do contrato de seguro que conferia à tomadora e proprietária do veículo segurado – mãe do arguido – de que este era o único utilizador, o direito de, em caso de furto, receber o seu valor em novo – o veículo foi matriculado em Abril de 2001 [fls. 31] e em Novembro de 2002 tinha cerca de 36.000 km [fls. 114] – que era de cerca de € 60.000, a tomadora do seguro assinou, em Março de 2004, uma declaração amigável de acidente automóvel, preenchida pelo arguido, onde é participado o furto da viatura.

Iniciadas as diligências para apurar o sucedido com a viatura, foi verificado que o barracão onde o mesmo era guardado não apresentava sinais de arrombamento. Tão-pouco o veículo, quando foi encontrado pela Polícia Judiciária, apresentava sinais de arrombamento das portas e violação da ignição, tendo as portas sido abertas por chave que o arguido detinha.

Quando foi encontrado, o veículo tinha apostas chapas de matrícula com a combinação de letras e números integrantes da matrícula atribuída a uma viatura de mercadorias pertencente ao arguido. Note-se, a propósito, que o arguido, nas declarações iniciais prestadas na audiência de julgamento, afirmou que essas chapas de matrícula se encontravam no interior da viatura desaparecida porque as havia mandado fazer de novo, dois dias antes, para a viatura a quem a matrícula pertencia, por se encontrarem danificadas as originais. Porém, sendo visíveis, através dos documentos fotográficos de fls. 72 e 73, vários furos nas chapas que o veículo desaparecido ostentava, que revelam, claramente, terem tais chapas estado anteriormente colocadas noutro veículo, torna-se evidente a falta de credibilidade das declarações produzidas.

Por outro lado, o arguido exibiu à testemunha B... três chaves, fotografadas a fls. 159 – duas electrónicas e uma, manual – como sendo as do veículo desaparecido, sendo certo que, com uma delas, procedeu à sua abertura, depois de reaparecido e aprendido. E sabemos que o veículo apenas poderia ser colocado em movimento com uma das chaves, não havendo registo de que tenha sido pedida qualquer cópia. O arguido afirmou que uma das duas chaves que lhe tinham entregue, que guardava no armazém, tinha desaparecido uma semana ou duas antes da subtracção da viatura o que é incompatível com a existência de três chaves fotografadas e, por outro lado, com a regra de normalidade referida na motivação, que o próprio reconhece, mas afasta, com a singela afirmação de que, in casu, ocorreu uma excepção à mesma.

Acrescentando a tudo isto, a circunstância de a declaração de desistência da participação do furto referir, expressamente, que foi feita no dia 21 de Abril de 2004, às 18h, embora esteja datada de 24 de Abril de 2004 [cfr. fls. 168], quando o veículo só foi encontrado pela Polícia Judiciária depois das 11h do dia 22 de Abril de 2004 [cfr. fls. 62], e de a testemunha B... ter afirmado que o arguido solicitou alguns dias para fazer aparecer o veículo [daqui, como explicou a testemunha, a diferença de dias que consta da declaração] de e que foi ele quem levou a declaração de desistência da participação para a tomadora assinar, outra conclusão não seria, nem lógica, nem racional, de extrair, que não fosse a de que o arguido foi o responsável pelo desaparecimento do veículo e posterior participação de furto, pois só assim se compreende que tivesse possibilidades de o fazer reaparecer, como efectivamente, veio a acontecer.     

Por último, sendo verdade que nenhuma testemunha afirmou ter visto o arguido a colocar as chapas de matrícula no veículo que este ostentava quando foi reencontrado, e que o arguido negou a prática de tais factos, não só a justificação por si ensaiada – a presença de chapas novas no interior do veículo – é incongruente, como o beneficiário do sucedido, visando manter o desaparecimento do veículo, só podia ser o arguido, atento o propósito visado. Portanto, as regras de normalidade permitem inferir, com toda a razoabilidade, que foi o arguido quem colocou tais chapas de matrícula.

Em conclusão, podemos dizer que a Mma. Juíza expôs o raciocínio lógico que a conduziu à convicção alcançada, valorando de forma conjugadas, provas credíveis e consistentes, com plena observância das regras da experiência comum pelo que, mostrando-se plenamente observado o princípio da livre apreciação da prova, não merece reparo a decisão de facto proferida.

5. Alega ainda o recorrente – conclusões 19 a 24 – que foi violado o princípio in dubio pro reo uma vez que, perante duas versões antagónicas e nenhuma convincente, não podia ser ultrapassada a dúvida razoável que levasse o tribunal a considerar não provados os factos que como provados considerou.

Sem razão, porém. Explicando.

O pro reo, decorrência do princípio da presunção de inocência previsto no art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao julgador que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido. Isto é, se produzida a prova, no espírito do julgador subsiste um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.
Na fase de recurso, a demonstração da violação do pro reo passa pela sua notoriedade, aferida pelo texto da decisão o que vale dizer que tem que resultar clara e inequivocamente dos termos da sentença que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.
Em qualquer caso, a dúvida relevante, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas a dúvida que este não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada.

Lida a sentença recorrida e particularmente, a sua motivação de facto, dela não resulta que a Mma. Juíza a quo tenha permanecido na dúvida quanto a qualquer dos factos que considerou provados na decisão. Pelo contrário, na motivação de facto foi claramente exposto o processo lógico que conduziu à certeza alcançada sobre os factos integradores do objecto do processo, plasmados na decisão de facto proferida. Evidentemente que no processo, como se referiu já, foram credibilizados determinados meios de prova e desconsiderados outros, mas a opção feita mostra-se sempre explicada e racionalmente justificada.

Em conclusão, não se mostra violado o in dubio pro reo, pelo que se considera definitivamente fixada a matéria de facto, nos exactos termos em que o foi pela 1ª instância.

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            6. Os factos provados preenchem os tipos, objectivo e subjectivo, dos crimes de falsificação de documento e de burla, não vindo posta em causa a qualificação da burla pelo art. 218º, nº 1 do C. Penal.
            As penas, parcelares e única, observam os princípios aplicáveis, previstos nos arts. 40º, nºs 1 e 2, 70º, 71º e 77º, nºs 1 e 2, todos do C. Penal.    

Assim, com a improcedência das conclusões do recurso, impõe-se a manutenção da sentença recorrida.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.


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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS. (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra,  7 Outubro de 2015


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves – adjunto)