Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
54/13.0JAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: SUSPENSÃO COM REGIME DE PROVA
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO
CULPA GROSSEIRA
Data do Acordão: 02/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 56.º, N.º 1, AL. A), DO CP
Sumário: I – Nos termos e para os efeitos previstos na al. a) do n.º 1 do artigo 56.º do CP, a culpa grosseira do condenado não se pode presumir. Tem de resultar de factos ou elementos concretos.

II – Inexistem esses eventos conducentes à revogação da suspensão quando são desconhecidos os motivos determinantes da não comunicação aos autos, pelo condenado, da sua nova morada e das razões pelas quais o mesmo não diligenciou pelo início do regime de prova.

Decisão Texto Integral:








            Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No âmbito dos autos de Processo Comum (Tribunal Coletivo) registados sob o n.º 54/13.0JAGRD, do Tribunal de Comarca de Castelo Branco – Castelo Branco – Instância Central – Secção Criminal – J3, em 23/4/2019, foi proferido o seguinte

Despacho:

 “Da revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

O arguido A. foi condenado por acórdão de 14.07.2016, e transitado em julgado a 14.05.2018, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova.


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Apesar das diligências da DGRSP, veio esta entidade informar, em síntese, que não foi possível elaborar o plano de reinserção social em virtude do arguido não ter comparecido às entrevistas agendadas, não justificado as suas faltas nem contactado aquela entidade.

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Designada data para audição do arguido, este não compareceu nem justificou a sua falta.

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Notificado para se pronunciar sobre a promoção do M. Público de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, nada disse.

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Conclui-se da factualidade exposta que o arguido não permitiu a elaboração do Plano de Reinserção Social e, assim, inviabilizou o cumprimento do regime de prova a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão, não o tendo feito apenas por virtude da sua postura de desresponsabilização com que encarou e encara a condenação imposta nos autos, conduta que consubstancia uma – reiterada - violação grosseira dos deveres que lhe foram impostos, estando pois reunidos, no que concerne ao fundamento previsto na alínea a), do nº 1, do artº 56º do Código Penal, os pressupostos de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, pelo que deverá o arguido A. cumprir a pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão a que foi condenado.

Notifique.

(…)”.


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Inconformado com tal despacho, dele recorreu, em 30/7/2019, o arguido, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1. O tribunal não envidou suficientes esforços para ouvir o Recorrente na audiência a que se refere o art. 495.º, n.º 1 e 2 CPP nos autos.

2. O tribunal a quo não considerou na decisão qualquer facto a que pela lei processual está obrigado como exigência para a fundamentação da decisão de revogação da suspensão da pena de prisão, quer a audição do arguido, quer o relatório social, quer o certificado de registo criminal.

3. O tribunal a quo decidiu de forma “automática” em face da comunicação da D.G.R.S. de que o Arguido duas vezes convocado mais de cinco anos após os factos, mais de dois anos após a condenação, não compareceu à entrevista agendada.

4. O tribunal a quo não cuidou sequer do motivo pelo qual o Recorrente não correspondeu à convocatória, nem sequer se o mesmo recebeu efetivamente a convocatória – importante para fundamentar que foi grosseiramente que o mesmo infringiu o dever imposto de comparecer a tais entrevistas.

5. Os crimes que deram origem à condenação do Recorrente nos presentes autos foram cometidos no dia 10 de abril de 2013. A decisão que revoga a suspensão da execução da pena de prisão imposta nos presentes autos foi proferida no dia 23 de abril de 2019. O Recorrente durante este período prosseguiu a sua vida de forma correta e adequada ao direito.

6. O Recorrente atualizou sempre a sua morada nos serviços do ministério da justiça, na segurança social, e automaticamente também junto da Autoridade Tributária, quer quando se mudou para o X (...) , quer quando se mudou para a Suíça.

7. Não andou fugido à sociedade, ao Estado, à Justiça, ou aos presentes autos.

8. Mudou de morada e não a comunicou aos autos, como lhe era devido.

9. O Recorrente não recebeu nenhuma convocatória da D.G.R.S. para entrevista, na morada em que o Tribunal a quo conhecia, inequivocamente, que o Recorrente então se encontrava, no X (...) .

10. O tribunal a quo não verificou se o Recorrente fora efetivamente notificado dos atos a que se referiu ele não corresponder, ou se lhe foi dada a oportunidade leal de conhecer tais notificações.

11. O tribunal a quo revogou a suspensão da pena de prisão efetiva com fundamento em violação grosseira e reiterada cuja razão de ciência, não é clara na decisão, resultando de ilação de uma falta do Recorrente a uma alegada convocatória para uma reunião agendada com a D.G.R.S..

12. O contraditório devido ao Recorrente teria dado a este a oportunidade de justificar a única falta de comparecência à primeira e única entrevista que foi marcada.

13. Bem como, o contraditório devido ao Recorrente teria dado a este a oportunidade de informar os autos de que constituiu família, com esposa e dois filhos, a quem é responsável por prover com os rendimentos que aufere do seu trabalho, na ordem dos 1.600,00 francos suíços mensais.

14. O contraditório devido ao Recorrente teria dado a este a oportunidade de requerer como pretende a modificação dos deveres impostos para a manutenção da suspensão da pena efetiva de prisão, nomeadamente, em face da sua fixação de residência, vida profissional e familiar no estrangeiro, a substituição do regime de prova por pena de multa, cfr. Ao art. 51.º, n.º 3 CPP.

15. O tribunal a quo não teve em consideração a situação atual do Recorrente, não diligenciou pelo devido relatório social que lhe exigia o art. 4.º do Decreto-Lei 401/82 sobre o Recorrente para apurar factos referentes às condições pessoais, económicas e da personalidade do Recorrente, ora passados mais de seis anos dos factos crime cometidos enquanto jovem e ao abrigo do respetivo regime.

16. O tribunal a quo nem diligenciou pela junção aos autos de certificado de registo criminal para a audiência a fim de instruir sobre a personalidade do Recorrente.

17. Perante a ausência do Recorrente à audiência, mais importante se tornou a informação do relatório social sobre o Recorrente para que o tribunal a quo pudesse aferir da adequação da decisão da revogação da suspensão da pena de prisão.

18.. As finalidades de prevenção geral e especial da pena em que o Recorrente foi condenado foram aparentemente alcançadas, dado o percurso do Recorrente desde a condenação até à presente data.

19. Não há indícios de que faliu a esperança afirmada na condenação de reintegração do jovem delinquente na sociedade sem voltar a cometer crimes.

20. Para as finalidades da pena a revogação da suspensão em nada beneficia.

21. Para as finalidades da pena a revogação da suspensão apenas prejudicará no que ao respeito pelo direito fundamental á liberdade e dignidade da pessoa humana, valores fundamentais da ordem em que nos estabelecemos.

22. Perante a falta que não foi reiterada, pois foi só uma vez que o Recorrente faltou à única convocatória agendada, o tribunal a quo estava obrigado a ponderar - cfr. ao art. 55.º CPP.

23. A boa aplicação das leis, a especial prudência na privação da liberdade do cidadão, exige que os factos a atender sejam tanto, ou preferencialmente, os atuais quanto os mais antigos para avaliar do juízo de prognose sobre o comportamento do Arguido aquando da decisão de revogação de suspensão que torna em efetiva pena de prisão por factos praticados há mais de seis anos.


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O recurso, em 3/9/2019, foi admitido.

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O Ministério Público, em 4/10/2019, respondeu ao recurso, defendendo que o despacho recorrido deve ser substituído por outro que determine a notificação do arguido da promoção do MP de fls. 496 e 497, concluindo do seguinte modo:

1. A notificação do despacho revogatório da suspensão ao arguido, por via postal simples, com depósito na morada fornecida aquando da prestação de termo de identidade e residência, a par da notificação ao defensor nomeado, é suficiente para desencadear o prazo dos meios de reação contra o despacho revogatório (a este respeito cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 109/2012, in Diário da República n.º 72/2012, Série II de 2012-04-11).

2. O douto despacho que revogou a suspensão da execução da pena de prisão foi notificado ao arguido e seu defensor por cartas remetidas a 24.04.2019 (cfr. refªs 31112754 e 31112759).

3. O recurso apresentado pelo arguido deu entrada a 30.07.2019, ou seja, em nosso entender, volvido, há muito, o prazo para interposição de recurso

4. O arguido foi condenado nestes autos por acórdão de 14.07.2016, transitado em julgado a 14.05.2018, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova.

5. Não se logrou até ao momento elaborar o Plano Individual de Readaptação Social e, envidados todos os esforços necessários à audição presencial do arguido, tal não veio a acontecer por não ter o mesmo comparecido nem junto da DGRSP, nem deste tribunal.

6. De todo o modo, a jurisprudência tem decidido que o contraditório imposto no art.495.º, n.º 2 do C.P.P. se tem como cumprido com a notificação do defensor do arguido – cfr., entre outros, o Ac. TRP, de 09.09.2015, citado em anotação ao artº 56º do Código Penal na pág. www.pgdl.pt.

7. Acresce que a impossibilidade de conhecer o paradeiro do arguido e de proceder à sua audição presencial não obsta, por si só, à revogação da pena suspensa, motivando tal entendimento a eficácia e a credibilidade do sistema de justiça

8. A infração grosseira, a que alude o artº 56º, nº 1, al. a), do Código Penal, não tem de ser dolosa, sendo bastante a infração que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade, sendo que a colocação intencional do condenado em situação de incapacidade de cumprir as condições da suspensão constitui violação grosseira essas condições.

9. Tal foi o caso dos autos, sendo de salientar que o arguido em momento algum respondeu aos contactos da DGRSP, ou compareceu junto desta entidade com vista a viabilizar a elaboração do aludido Plano; não compareceu à audição a que se reporta o artº 495º, nº 2 do CPP; não reagiu, ainda que para tal tenha sido igualmente notificado, nem à promoção do Ministério Público que pugnou pela revogação da suspensão da execução da pena de prisão, nem ao douto despacho que revogou tal suspensão, apenas vindo reagir no momento em que é ordenada a emissão de mandados de detenção para cumprimento da pena de prisão.

10. Por tudo o exposto entendemos não assistir qualquer razão ao recorrente nas questões que formula devendo ser o recurso julgado improcedente, mantendo-se o douto acórdão proferido.


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Nesta Relação, em 22/10/2019, o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, tendo sido exercido, em 6/11/2019, o direito de resposta.

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir em conferência.

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II. Apreciação do Recurso:

            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), são duas as questões que vêm colocadas pelo recorrente à apreciação deste tribunal:

Saber se:

a) há violação do princípio do contraditório.

b) a suspensão da execução da pena deve ser mantida

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1) Da violação do princípio do contraditório:

Se o arguido sabe perfeitamente que tem um processo pendente, no âmbito do qual foi condenado em pena de prisão cuja execução ficou suspensa e, estando devidamente representado por defensor, se furta ao contacto com o tribunal, ignorando convocatórias e notificações ou ausentando-se para o estrangeiro ou mesmo para paradeiro desconhecido, sem cuidar de fazer chegar aos autos nova morada onde possa ser contactado, entendemos que, tendo as autoridades competentes feito inúmeras tentativas de o encontrar/ contactar e esgotados os meios ao seu dispor sem lograr atingir tal desiderato, não poderá depois, aquele, vir depois invocar o seu direito ao exercício pessoal do contraditório e audição presencial, por manifesto venire contra factum proprium, impondo a salvaguarda da harmonia de todos os interesses em presença que, nessa circunstância, se considere bastante a concessão da possibilidade de contraditório decorrente da notificação para o efeito ao defensor e ao arguido, este a notificar na morada indicada no processo e por via postal.

Neste sentido se pronunciou o Acórdão da relação do Porto, de 9/3/2016, proc. n.º25/06.2SFPRT-A.P1, relatado pelo Desembargador José Carreto, em cujo sumário se lê: «Deve proceder-se à decisão do incidente de incumprimento do regime de prova (relativo á suspensão da execução da prisão) sem a audição do condenado quando tal audição se revela inviável por o arguido se ter ausentado da residência constante do TIR sem dar conhecimento aos autos ou aos técnicos da DGRS e não se conseguir apurar ao seu paradeiro.»

No caso vertente, o arguido reconhece no seu recurso que mudou de morada e não a comunicou aos autos, como lhe era devido.

Assim sendo, a falta de audição pessoal do arguido teve lugar tão-só por força do comportamento do arguido.

Não houve, portanto, violação do disposto no artigo 495.º, n.º 2, do CPP, não se verificando a nulidade insanável prevista na alínea c), do art.119.º do CPP, nem existiu violação de algum direito constitucional da defesa

Improcede, assim, este fundamento do recurso.

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            2) Da manutenção da suspensão da execução da pena:

            O arguido A. foi condenado, por acórdão 14/7/2016, transitado em julgado a 14.05.2018, no âmbito dos presentes autos, pela prática de um crime de roubo, na pena de 10 meses de prisão, e pela prática de dois crimes de coação agravada, na pena de 8 meses de prisão, por cada um, o que perfez a pena única de 1 ano e 6 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por igual período mediante sujeição do arguido a regime de prova.

As causas de revogação da suspensão da execução da pena de prisão estão expressamente previstas no artigo 56.º, do Código Penal, cujo teor é o seguinte:

1 - A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:

a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social, ou

b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

            2 – A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado.

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Temos por pacífico que a revogação da suspensão da execução da pena por incumprimento de qualquer dever ou condição pelo condenado, uma vez que está afastada revogação automática da suspensão, só pode ocorrer se esse incumprimento se ficar a dever a culpa grosseira do mesmo.

Sendo clara e inequívoca esta exigência da culpa grosseira, entendemos que a mesma não está concretizada no presente caso.

Os elementos objetivos dos autos apenas nos dizem que o arguido impossibilitou a sua audição, nos termos previstos na lei.

Concede-se que a conduta do arguido revela incúria (negligência), ao não informar no processo a alteração da sua morada.

Contudo, tal é insuficiente para se concluir por uma culpa grosseira.

A culpa grosseira do condenado não se pode presumir. Tem de resultar de factos ou elementos concretos.

O Tribunal, em 2019, ao revogar uma suspensão de execução de uma curta pena de prisão (18 meses), relativa a factos ocorridos em 2013, tem de estar ciente do que levou o arguido a eximir-se dos seus deveres, assim como da sua atual situação, designadamente, saber se está integrado socialmente.

Só assim poderá concluir pela existência de culpa no incumprimento bem como pela culpa grosseira.

A suspensão da pena foi decretada em função de razões de prevenção e porque foi feito um juízo de prognose positiva nesse sentido.

A nosso ver, a revogação só seria justificável se o tribunal, fundamentadamente, formulasse a convicção no sentido de que o juízo de prognose que estivera na base da suspensão da execução da prisão não seria já viável.

Ora, os elementos processuais existentes não permitem formular, com o devido grau de certeza, ainda, esse juízo.

O que equivale a dizer que a revogação da suspensão pelo tribunal a quo é excessiva para a conduta do arguido, desde logo por ser prematura, face ao desconhecimento em concreto dos reais motivos que levaram à não comunicação aos autos da nova morada e aos motivos pelos quais não diligenciou pelo início do regime de prova.

Em resumo, deverá o tribunal a quo, através de relatório social e da audição do arguido proceder à recolha para o processo dos respetivos elementos a ponderar, tendo em vista, decidir quanto a algo tão importante como a liberdade de um cidadão.

Então sim, e perante uma eventual culpa grosseira, deverá ser ponderada a aplicação da última e mais gravosa das medidas previstas na lei - a revogação da suspensão com a implicação do cumprimento da pena de prisão aplicada.


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IV. Decisão:

Face ao exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do recorrente e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, devendo o tribunal a quo, oportunamente, vir a decidir, após estar na posse dos necessários elementos, sobre a revogação da suspensão da execução da pena.

Sem custas.


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(Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

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Coimbra, 19 de fevereiro de 2020

José Eduardo Martins (relator)

Maria José Nogueira (adjunta)