Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
596/14.0TBPBL-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: EXECUÇÃO
HABILITAÇÃO DO ESTADO
HERANÇA JACENTE
ACEITAÇÃO DA HERANÇA
LIQUIDAÇÃO DA HERANÇA VAGA
PROCESSO ESPECIAL
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - JUÍZO EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.2032, 2046, 2050, 2133 Nº1 E), 2155 CC, 938, 939, 1039, 1040 CPC
Sumário: 1 – A aquisição sucessória depende da aceitação da herança; mantendo-se jacente a herança que ainda não foi aceite (por algum sucessível) e que ainda não foi declarada vaga para o Estado.

2 – Prevê a lei, no art. 1039.º e 1040.º do CPC e no art. 938.º e ss do CPC, providências que ponham termo a tal situação, indesejável, de jacência, ou seja, que conduzam ou à sua aceitação ou à sua vacância para o Estado.

3 – É apenas pelo processo especial do art. 938.º do CPC – após o juiz o declarar nos termos do art. 939.º/1 do CPC – que o Estado passa a ser herdeiro e adquire a herança.

4 – Assim, tendo falecido os executados e tendo os seus filhos e netos repudiado as heranças, não se pode, com fundamento em não serem conhecidos quaisquer outros sucessores/herdeiros, requerer a habilitação do Estado para prosseguir nos autos, no lugar dos executados/falecidos.

5 – E, tendo sido requerida uma tal habilitação, não pode a mesma ser convertida no processo especial do art. 938.º e ss. do CPC, uma vez que a legitimidade activa para tal meio processual é exclusiva do Ministério Público.

6 – Em tal hipótese – tendo falecido os executados, tendo os herdeiros legitimários repudiado as heranças, não sendo conhecidos do exequente quaisquer outros sucessores/herdeiros e não tendo o Ministério Público intentado o processo especial do art. 938.º do CPC – deve a execução continuar contras as heranças jacentes dos executados/falecidos, sendo, na habilitação a intentar, citados os interessados incertos para deduzir a sua habilitação, após o que, não aparecendo ninguém a habilitar-se, serão as heranças jacentes habilitadas, nomeando-se depois, no processo principal, oficiosamente, quem represente as heranças jacentes em tribunal.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

N (…) SA., exequente nos autos – tendo falecido os executados/mutuários, tendo os seus herdeiros legitimários repudiado as heranças e não conhecendo a existência de quaisquer outros herdeiros – veio, por apenso à execução para pagamento de quantia certa que havia movido, requerer a habilitação do Estado.

Conclusos os autos, cumprido o art. 3.º/3 do CPC, a Exma. Juíza mandou que o incidente siga os termos do processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado, corrigindo-se a distribuição e a autuação.

Para o que expendeu a seguinte argumentação/fundamentação:

“ (…) O exequente veio deduzir incidente de habilitação de herdeiros contra o Estado, por não existirem parentes sucessíveis dos devedores para prosseguir a execução.

Notificado para se pronunciar quanto ao erro na forma do processo, disse o exequente existir erro na forma de processo e requereu o prosseguimento dos autos como processo especial de liquidação de herança vaga a favor do Estado.

Atendendo a que o que o exequente pretende é a declaração de vacatura da herança para o Estado para que este, na qualidade de herdeiro, seja habilitado para prosseguir os termos da execução, existe erro na forma do processo (artigos 193.º e 938.º a 940.º do Código de Processo Civil).

Face ao exposto e atendendo à fase processual em que os autos se encontram, determino que o presente incidente siga os termos do processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado, corrigindo-se a distribuição e a autuação. (…)”


*


Inconformado com tal decisão, interpõe o Estado o presente recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que “ (…) dê sem efeito a decisão judicial que determinou a conversão do incidente intentado em processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado”.

Terminou com as seguintes conclusões:

“ (…)

1.º - Os autos à margem referenciados foram instaurados por “N (…), S.A.” como incidente de habilitação, nos termos do artigo 351.º e ss do C.P.C., contra o Estado, sendo requerido que este fosse “habilitado para contra ele prosseguir a acção, na situação processual dos executados repudiantes…”.

2.º - A 20/06/2016 foi proferido despacho judicial em que a M.ª Juiz recorrida, entendendo existir erro na forma do processo, convolou o incidente de habilitação de herdeiros contra o Estado em processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado e determinou ainda que após citação dos interessados incertos para deduzirem a sua habilitação como sucessores e decorrido o respectivo prazo, caso nada seja junto, fosse citado o M.P., por força do artigo 21.º, nº 1, do Código de Processo Civil.

3.º - O M.P. foi a 03/11/2016 citado, nos termos do disposto no art.º 21º do CPC, para, querendo, em 30 dias contestar a acção (sendo esta a primeira notificação/citação que lhe é feita nos presentes autos – artigo 638.º, n.4, do Código de Processo Civil).

4.º - A correcção do meio processual utilizado não é admissível porque o autor “ N (...) , S.A.” não é parte legítima para intentar a acção em causa. Carece de legitimidade a instituição bancária autora para intentar o referido processo especial e como tal não poderia o incidente de habilitação instaurado ter sido convolado num processo que tem natureza especial e que apenas o M.P. pode intentar (em representação dos interesses do Estado colectividade e na sua interpretação).

5.º - A decisão judicial recorrida violou o preceituado nos artigos 24.º, n.1 (“O Estado é representado pelo M.P.”), 193.º, n.3 e 1132.º, todos do Código de Processo Civil, na interpretação que lhe foi dada.

6.º - Estes artigos deveriam ter sido interpretados no sentido que apenas o Ministério Público tinha legitimidade para intentar um processo especial de liquidação de herança em benefício do Estado (regime processual destinado a declarar a herança jacente – herança que não tem titular conhecido - vaga para o Estado e proceder à sua subsequente liquidação), o que só por si impedia a concretização da convolação do incidente nos termos em que oficiosamente ocorreu (cessando como incidente e sendo convertido em acção).

7.º - Apenas o M.P. tem legitimidade para a instauração de tal acção uma vez que a este está confiada legalmente a representação dos interesses do Estado neste particular, o que implica também que não pode representar eventuais ausentes/incertos, nos termos do artigo 21.º do Código de Processo Civil, na acção em causa (encontrando-se violado tal normativo legal também na interpretação que lhe foi efectuada no despacho judicial recorrido).

8.º Nunca poderia o M.P. surgir na acção como representante de terceiros ausentes/incertos uma vez que lhe cumpre acautelar neste tipo de acção os interesses do Estado-Colectividade, porventura incompatíveis com a representação de herdeiros ausentes/incertos. Assim esta citação deverá ser a dada sem efeito por violação do artigo 21.º, n.1, do C.P.C.

9.º - Por outro lado, a competência em razão da matéria das secções de execução limita-se aos processos de execução de natureza cível nos termos das competências previstas no Código de Processo Civil, não tendo competência para tramitar a referida acção especial, que não é um mero incidente.

10.º - A presente secção de execução é incompetente em razão da matéria para a tramitação de uma acção desta natureza. Ao decidir-se de modo diferente violou-se o preceituado nos artigos 65.º do C.P.C., 129.º e 130.º, n.1, ambos da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26/08. (…)”

Não foi apresentada qualquer resposta.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação

A - Os elementos factuais são os constantes do relatório inicial, ou seja:

- Os primitivos executados faleceram;

- Os seus filhos e netos repudiaram as heranças;

- O exequente desconhece a existência de herdeiros que concorram às heranças.

B – Direito

Começando pela requerida habilitação do Estado:

Enquanto a vocação sucessória se processa ex lege (art. 2032.º do C. Civil), a aquisição sucessória depende da aceitação da herança; que (assim como o repúdio da herança) é um acto jurídico (unilateral e não receptício), individual e livre.

Ou seja, não é por se gozar de prioridade na hierarquia dos sucessíveis (vocação sucessória) que logo, de imediato e automaticamente, se adquire a herança, o que só acontece e tem lugar (sem prejuízo da presunção constante do art. 2049.º/2 do C. Civil) aquando da sua aceitação (cfr. art. 2050.º/1 do C. Civil).

E, enquanto uma herança aberta não é aceite, fica e diz-se jacente (cfr. art. 2046.º do c. Civil).

E é exactamente esta a situação das heranças dos executados, uma vez que se mantém na situação de jacência a herança que ainda não foi aceite e que ainda não foi declarada vaga para o Estado[1].

Situação esta (de haver um património que não tem titular) que a ordem jurídica reputa de “anormal” e que não aprova que se eternize (uma vez que não há qualquer vantagem económica em um património ficar abandonado durante muito tempo), razão pela qual prevê providências que conduzam ou à aceitação da herança ou à sua vacância para o Estado.

Assim:

Para a aceitação, prevê, adjectivando o disposto no art. 2049.º do C. Civil, o procedimento (de jurisdição voluntária) do art. 1039.º e 1040.º do CPC; e, se nenhum herdeiro (notificado em tal procedimento) tiver aceite, não pode logo a herança declarar-se vaga para o Estado, isto é, uma vez que pode haver herdeiros desconhecidos que devam preferir ao Estado, não pode, imediatamente, “por exclusão de partes”, concluir-se que o herdeiro é o Estado, nos termos do art. 2133.º/1/e) do C. Civil).

Sendo justamente neste ponto que “entra” o processo especial de liquidação de herança vaga em benefício do Estado, previsto no art. 938.º e ss do CPC, em cujo art. 938.º/1 se estabeleça que, antes de ser declarada vaga a herança, se citam os interessados incertos para virem habilitar-se como herdeiros.

E, citados tais interessados, se alguém se habilita, chega-se à aceitação (a herança passa a ter titular); se ninguém se habilita, cai-se na vacância da herança, que é então – e só então – declarada vaga para o Estado[2].

Sendo que só nesse momento – em que o juiz declara (cfr. art. 939.º/1 do CPC) a herança vaga para o Estado – o Estado passa a ser herdeiro e adquire a herança.

Como refere Jorge Duarte Pinheiro[3]:

“ O Estado é um herdeiro legítimo especial: sucede após declaração de herança vaga, que implica o reconhecimento judicial da inexistência de outros sucessíveis legítimos designados como herdeiros (cfr. art. 2155.º do C. Civil) e não precisa de aceitar nem pode repudiar (cf. art. 2154.º do C. Civil). (…) A declaração de herança vaga, que precede a aquisição sucessória do Estado, enquanto sucessível legítimo, é objecto de um processo especial regulado nos arts. 938.º e 939.º do CPC.”

Enfim – resulta do que vimos de expor – a requerida habilitação do Estado para prosseguir nos autos, no lugar dos executados/falecidos, foi “precipitada”, uma vez que o Estado ainda não é herdeiro dos executados/falecidos e só o passará a ser (se e) no momento em que o juiz declarar, no processo especial do art. 938.º e ss. do CPC, a herança vaga para o Estado.

E, claro está, a indevidamente requerida habilitação do Estado (para prosseguir nos autos, no lugar dos executados/falecidos) não pode ser convertida no processo especial do art. 938.º e ss. do CPC.

Desde logo, por o banco exequente, requerente em tal habilitação, não ter legitimidade para instaurar tal processo especial.

Como refere o Prof. Alberto dos Reis[4]

“A questão foi posta (…) pelo Ministro, que perguntava se a citação só poderia ser promovida pelo Ministério Público e pelos credores ou também por outros interessados.

Respondi: a citação só pode ser promovida pelo Ministério Público como representante do Estado; os credores, se quiserem valer os seus direitos contra a herança, provocam a nomeação dum curador, nos termos do art. 1522.º do CPC (de 1939), e propõem contra ele acção de dívida. Não são directamente interessados no processo tendente a fazer declarar vaga a herança para o Estado. A comissão revisora aceitou o meu ponto de vista.”

Sendo suficientemente claro, da letra do art. 938.º do CPC, que a legitimidade activa para tal meio processual é exclusiva do Ministério Público.

Temos pois, em síntese, que a conversão processual operada pelo despacho recorrido não pode subsistir (por falta de legitimidade do banco requerente para o “novo” meio processual)[5]; e que a habilitação inicialmente requerida também não está bem, padecendo, como começámos por explicar, do vício de resultar do alegado pelo próprio banco requerente que o Estado não é (ou ainda não é) herdeiro dos executados/falecidos.

A solução – para a situação ocorrida na execução – está no que irradia do que se começou por referir:

Tendo os herdeiros legitimários repudiado as heranças (dispensando assim o uso do meio processual do art. 1039.º do CPC), não sendo conhecidos quaisquer outros sucessores/herdeiros[6] e não tendo ainda o Ministério Público intentado o processo do art. 938.º do CPC, as heranças estão e continuam jacentes, pelo que, tendo as heranças jacentes personalidade judiciária (cfr. art. 12.º/a) do CPC), deve a habilitação ser deduzida – e pedir as suas habilitações – contra as próprias heranças jacentes dos executados/falecidos[7], sendo citados, no incidente de habilitação, os herdeiros/interessados incertos para poderem deduzir a sua habilitação[8], após o que, não aparecendo ninguém (interessados incertos) a habilitar-se, serão habilitadas as heranças jacentes dos executados/falecidos; e, depois, voltando-se à execução, será nomeado oficiosamente quem represente as heranças jacentes em tribunal[9].


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III - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida e determina-se que, em sua substituição, seja proferido despacho a convidar o banco requerente a aperfeiçoar, nos termos expostos, a PI da habilitação.

Sem custas.


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Coimbra, 05/03/2019

Barateiro Martins ( Relator )

Arlindo Oliveira

Emídio Santos


[1] Como refere Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, pág. 6, a herança jacente “nasce no momento da abertura da sucessão, aquando da morte do de cujus (art. 2031.º do C. C.), e finda quer no momento em que é aceite pelos herdeiros quer no momento em que, por falta ou repúdio dos demais sucessíveis, é declarada vaga para o Estado

[2] Como explica o Prof. José Alberto dos Reis., in Processos Especiais, Vol. II, pág. 293; o que faz, é certo, a propósito da anterior legislação, porém, a lei vigente não sofreu qualquer alteração.

[3] In “O direito das sucessões contemporâneo”, pág. 75.
[4] Obra citada, pág. 296.

[5] A tramitação da reclamação e verificação dos créditos prevista em tal meio processual (no seu art. 940.º do CPC) desaconselha de todo que as coisas que aí se refere possam ocorrer num incidente por apenso à execução; mais, até se prevê (no seu n.º 5) que as execuções pendentes sejam apensas ao processo de liquidação, o que afasta claramente a ideia da conversão decretada.
[6] Impondo observar-se que, em termos de experiência comum, o não haver mesmo outros sucessores/herdeiros é relativamente incomum, uma vez que, na falta de cônjuge, parentes na linha recta, irmãos e seus descendentes, são chamados à sucessão legítima os parentes na linha colateral até ao 4.º grau, isto é, os tios, os tios-avós e os primos direitos ou em 1.º grau.
[7] Como o inculca a previsão do art. 940.º/4 do CPC, em cuja previsão se alude à hipótese de haver acção pendente contra a herança ou contra os herdeiros incertos da pessoa a falecida; estando esta previsão implícita no número seguinte.

[8] Em termos práticos, dir-se-á, não é muito diferente da citação que se iria fazer nos termos do art. 938.º/1 do CPC, porém, insiste-se, para este meio processual só o Ministério Público tem legitimidade. Assim, caso o Ministério Público intente o processo especial do art. 938.º do CPC e caso em tal processo especial as heranças sejam declaradas vagas a favor do Estado (cfr. art. 939.º/1 do CPC), estaremos caídos na hipótese prevista no art. 940.º/5 do CPC, sendo a presente execução apensada ao processo de liquidação.

[9] Como também refere o Prof. Alberto dos Reis, na obra e local citado (pág. 295):

“Enquanto subsiste o estado de jacência, devem tomar-se as providências necessárias para assegurar a conservação de bens. Que providências? O arrolamento e depósito dos bens ou a nomeação dum curador. Se os bens carecem de administração ou se há necessidade de que a herança jacente seja representada em juízo, nomeia-se curador, ao qual se faz a entrega dos bens; no caso contrário, procede-se ao arrolamento e depósito.”