Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
362/14.2TAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: DIFAMAÇÃO
CRIME PARTICULAR
ACUSAÇÃO PÚBLICA SEM DEDUÇÃO PRÉVIA DE ACUSAÇÃO PARTICULAR
PRESSUPOSTO PROCESSUAL
ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Data do Acordão: 05/18/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DA GUARDA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 180.º E 188.º DO CP; ARTS. 48.º, 50.º, 285.º, DO CPP
Sumário: Deduzida acusação pública por crime de natureza particular (difamação), sem a formulação prévia de acusação particular, falta uma condição do procedimento criminal - ilegitimidade do MP para o referido acto -, cognoscível oficiosamente, a todo o tempo, com ressalva do caso julgado formal, cuja inexorável consequência é o arquivamento do processo, nos termos conjugados dos artigos 180.º, 188.º, n.º 1, do CP, e 50.º do CPP.
Decisão Texto Integral:




Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

1. No âmbito do inquérito registado sob o n.º 362/14.2TAGRD, que correu termos nos Serviços do Ministério Público da Comarca da Guarda, o MP deduziu, em 29 de Maio de 2015, a fls. 167 e 126/128, acusação contra A..., completamente identificado nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de difamação agravado, p. e p. nos artigos “181.º, n.º 1, e 184.º, por referência à al. l) do n.º 2 do artigo 132.º, todos do Código Penal”.

O referido libelo acusatório teve o acompanhamento do assistente B... (cfr. fls. 174/175).


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2. Inconformado com o despacho de acusação, o arguido requereu a abertura da instrução, nos precisos termos de fls. 176/181.

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3. Admitida a abertura da instrução, teve lugar o respectivo debate, tendo a final sido proferido despacho, no qual ficou decidido não pronunciar o arguido pelo referido crime de difamação agravado (cfr. fls. 226-241).

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4. Da decisão de não pronúncia recorreu o assistente, formulando na respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1.ª - A acusação recorrida incorre em erro notório na apreciação da prova indiciária.

2.ª - Não apreciou correctamente a existência de duas cartas e não de uma.

3.ª - Não compreendeu que o arguido só tomou posse a 20/10/2013 porque a pessoa que se lhe seguia não poderia estar presente.

4.ª - Não verificou que o arguido na sua comunicação à Assembleia refere a primeira carta e não a segunda.

5.ª - Não deu conta que é totalmente ilógica a tese do arguido.

6.ª - Os documentos juntos e os testemunhos referidos são fatais para o arguido.

7.ª - Quer um quer outros demonstram que o arguido quis e conseguiu difamar o assistente.

8.ª - A decisão recorrida não pode ser mantida.

9.ª - Revogando-se o douto despacho de não pronúncia e pronunciando-se o arguido pelo crime participado e acusado se fará justiça.


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5. Apresentaram resposta o Ministério Público e o arguido, cujo teor passamos a reproduzir:

A) Ministério Público:

1. Face ao teor do supra exposto, não nos merece qualquer reparo a decisão ora posta em crime pelo assistente.

2. Não vislumbramos como se possa afirmar que a decisão recorrida incorra em erro na apreciação da prova indiciária ou nos outros itens levantados pelo assistente, já que esta se mostra exaustiva e eloquentemente fundamentada.

3. As expressões da missiva em apreço, ou os seus envolvimentos não se traduzem na prática do ilícito de difamação em apreço.

4. Assim sucedendo, tal não pode ir mais ao encontro do bem fundado da decisão posta em crise. Ou seja, inexiste, “in casu”, e por parte da actuação do arguido, “animus difamandi”. Caindo a sua actuação no campo do comentário conclusivo, “qua tale”, aliás como é referido no despacho recorrido.

5. Daí que não se concorde com o assistente quando refere que tais factos são objectivamente difamatórios, já que não contêm qualquer ataque à honra ou consideração devidos à sua pessoa.

Termos em que, deve ser mantido, nos seus precisos termos, o despacho de não pronúncia, ora em recurso, como é de justiça e direito.

B) Arguido:

1. Não resultam do teor da acusação rejeitada elementos objectivos e subjectivos que permitam imputar ao arguido a prática de um crime de difamação agravada.

2. Em qualquer momento o recorrido afirmou que o recorrente tinha falsificado a sua assinatura.

3. Assumiu a existência de duas cartas em declarações em sede de inquérito.

4. Contudo, quando redigiu a carta ao Presidente da Assembleia no dia 6/11/2013 só referiu a carta com data de 21/10/2013, dado que, a primeira carta que assinara (com data de 6/10/2013) tinha ficado sem efeito, por falta de conteúdo pois, a pessoa que se seguia na lista (D. C... ) não poderia ir à tomada de posse.

5. Para além do mais, a carta com data de 21/10/2013 foi assinada ainda antes da tomada de posse:

6. Primeiro, porque a mesma ainda era dirigida à Presidente da Assembleia cessante;

7. Segundo, porque naquela missiva o recorrido resignava ao cargo para o qual tinha sido eleito não ao cargo que tinha tomado posse;

8. Terceiro, o recorrido no dia anterior tinha tomado posse do cargo e dirigiu-se ao recorrente, perante todos os presentes na Assembleia a quem lhe pediu para esquecer as cartas/os documentos que tinha em seu poder, pois era sua intenção assumir a função.

9. Para além do mais, o recorrido apenas escreve a sua versão dos factos, emitindo a sua opinião, em tom de desabafo, mas sem lhe fazer qualquer ataque pessoal.

10. Não agiu, assim, o recorrido dolosamente, uma vez que, nunca quis ofender a honra e bom nome do assistente/recorrente.

11. Assim, deve o despacho de não pronúncia ser mantido nos seus precisos termos, devendo ser negado provimento ao recurso, assim se fazendo justiça.


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6. Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer infra transcrito, nos segmentos relevantes.

«No que respeita ao mérito do recurso, parece-me que o recorrente terá razão quanto à indiciação suficiente da prática do crime de difamação, mas apenas na sua forma simples e não agravada, como aliás o despacho recorrido já deixa subentendido na sua parte final, sendo que, embora por remissão, existe acusação por parte do assistente, como decorre de fls. 174, não havendo assim qualquer obstáculo à apreciação e prossecução do procedimento.

Com efeito, o aqui relevante em termos criminais, a frase “usou e abusou da minha boa vontade, agindo de má-fé, levando-me a pensar que não seja uma pessoa de confiança”, na sua parte final, constante da carta enviada pelo arguido ao presidente da Assembleia de Freguesia da (...) , que constitui o documento n.º 4, não se reporta ao assistente na sua qualidade de membro da aludida assembleia, ou seja, não o atinge em termos de exercício de funções, nem o faz por motivo de tal exercício, sendo embora certo que o que despoleta a missiva é a continuação do cargo por parte do recorrido, que não do recorrente. Ou seja, a mesma dirige-se ao assistente enquanto cidadão e não o atinge enquanto membro da autarquia por causa das funções que nela exerce, não tendo justificação a agravação que é mencionada no art. 13.º da acusação.

(…).

Deverá pois o recorrido ser pronunciado pela prática de um crime de difamação p. p. pelo art. 180.º, n.º 1, do CP.

Pelo que sou de parecer que o recurso merece provimento nos termos aludidos».

Cumprido o art. 417.º, n.º 2 do CPP, o assistente e o arguido não exerceram os seus direitos de contraditório.


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7. Colhidos os vistos, foi o processo submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação

1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:  

Como flui do disposto no n.º 1 do art. 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.

No presente processo, as conclusões do assistente circunscrevem o recurso à questão de saber se existem, ou não, indícios suficientes que determinem a pronúncia do arguido pela prática de um crime de difamação agravado, p. e p. nos artigos 180.º, n.º 1 e 184.º do Código Penal.

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2. Para além do excurso que contém sobre a estrutura e ratio da instrução, “resultado das diligências realizadas na instrução quanto aos factos imputados”, “ponderação global dos indícios, por referência ao crime imputado”, está escrito no despacho recorrido:

«A folhas 2 a 5 encontra-se a queixa apresentada pelo assistente contra o arguido, na qual veio denunciar o teor de uma carta dirigida ao Presidente da Assembleia de Freguesia da (...) , pelo arguido, e que o mesmo considera que lhe são dirigidas imputações que colocam a sua honra e bom nome em crise, sendo ainda ofensivas desse seu bom nome e sua honra por ter referido que o assistente utilizou meios indevidos – falsificação de uma carta – para prejudicar o arguido.

Para melhor compreensão passaremos a transcrever o teor dessa carta:

“Tendo recebido na minha residência um aviso de receção endereçado a V. Exa em 22/10/2013; fiquei surpreendido, porque na realidade não procedi ao envio de qualquer documento.

Nesse sentido solicitei informação verbal a V. Exa, sobre o conteúdo desse documento, onde fui informado que tinha resignado ao cargo para o qual fui eleito nas últimas eleições Autárquicas.

Em relação ao referido assunto passo a informar:

Antes da tomada de posse para a qual fui convocado deixei em posse do Sr. B... um documento assinado, onde exprimia essa minha vontade, esse documento nunca foi enviado dentro da data legal, tendo eu tomado posse no dia 20/10/2013 para cumprir o meu mandato para o qual fui eleito. Informei nesse mesmo dia o Sr. B... da minha vontade em exercer a minha função dentro da Assembleia de Freguesia e que portanto considerasse nula a carta que eu lhe deixei assinada. No dia 23/10/2013 recebi o AR em minha casa. Acho tudo isto muito estranho porque esse documento estava endereçado à Presidente da Assembleia cessante e o aviso de receção esta endereçado ao Presidente da Assembleia atual. Algo não bate certo.

Leva-me a concluir que o Sr. B... enviou a carta a minha revelia, à posterior, fato que ele me confirmou. Usou e abusou da minha boa vontade, agindo de má-fé, levando-me a pensar que não seja uma pessoa de confiança.

Neste seguimento solicito a V. Exa que considere nula a referida carta com o registo n.º (...) , expressando assim a minha continuidade nesta Assembleia de Freguesia e dar o meu contributo para o desenvolvimento na (...) .

Com os melhores comprimentos

(...) , 06 de Novembro de 2013”

A folhas 42 foi ouvido o arguido, o qual declarou que:

Efectivamente foi o segundo candidato na Lista do Partido (...) , nas últimas eleições Autárquicas de 29 de Setembro de 2013, sendo o denunciante, B... o cabeça de lista à Assembleia de Freguesia da (...) . O ora arguido refere que a sua lista, não foi a vencedora, mas foram eleitos membros da Assembleia de Freguesia, nomeadamente o ora arguido, o denunciante, B... e a testemunha D... .

O ora arguido na altura em que saíram os resultados, manifestou a intenção de resignar ao cargo, por motivos pessoais, informando-o B... da sua vontade.

O ora arguido no dia seguinte foi interpolado pelo denunciante, B... que trazia uma carta escrita pelo mesmo, onde era visível o Doc 1, tendo o denunciante dito para o ora arguido que a assinasse depois de a ter lido, não havendo nada a alterar.

O ora arguido dias mais tarde foi novamente interpolado pelo denunciante, B... , o qual trazia uma outra carta onde era visível o Doc 2, tendo dito para o ora arguido que a primeira carta que tinha assinado ficava sem efeito, por falta de conteúdo, o ora arguido assinou novamente a outra carta depois de a ter lido rapidamente, uma vez que estavam à espera do ora arguido para ir para o trabalho, mas antes disso foi informado pelo denunciante, B... que era o ora arguido que a deveria enviar a carta com AR, para a Presidente de Assembleia de Freguesia da (...) .

O ora arguido pensou sobre o assunto durante a noite e no dia seguinte, foi informar o denunciante, B... da sua intenção de não resignar ao cargo para o qual tinha sido eleito e que não ia enviar a carta que tinha assinado no dia anterior, o denunciante, B... nada disse à sua nova intenção de assumir o cargo.

O ora arguido, mais concretamente no dia 23 de outubro de 2013, foi-lhe entregue pelo secretário da junta de Freguesia, um Aviso de Receção de entrega com a referência (...) , em seu nome e com o destinatário o Presidente da Assembleia de Freguesia de (...) , cuja cópia se anexa aos autos.

O ora arguido ficou surpreso com o aviso de receção que recebeu e foi confrontar o denunciante, B... acerca de quem tinha enviado o Aviso, uma vez que o ora arguido não o tinha enviado, tendo o denunciante, B... , respondido que tinha sido ele a enviar acarta, uma vez que o ora arguido não a tinha enviado, mas novamente o ora arguido frisou que não tinha enviado a carta, uma vez que como lhe tinha sido dito anteriormente tinha dito que iria aceitar o cargo para o qual tinha sido eleito, tendo discutido os dois, mas sem qualquer agressão.

A folhas 81 foi ouvida a testemunha E... l, o qual referiu que conhece a denúncia apresentada pelo assistente, que foi ele que ajudou a invocar o motivo para o arguido renunciar ao cargo e que o assistente é pessoa honesta e nunca iria falsificar uma carta.

A folhas 85 foi ouvida a testemunha D... , o qual referiu que também fazia parte da Lista à Assembleia de Freguesia da (...) , nas últimas eleições autárquicas de 29 de Setembro de 2013, sendo o denunciante, B... o cabeça de lista e o denunciado, A... o segundo na lista do Partido (...) .

Teve logo conhecimento no próprio dia que o denunciado, A... tinha a intenção de resignar ao cargo, uma vez que o mesmo era funcionário do Município da (...) , mas destacado a tempo inteiro na Junta de Freguesia da (...) , tendo sido esse o motivo que alegou para a sua resignação, uma vez que estava numa lista da oposição à Presidente da Junta de Freguesia.

A ora testemunha como também pertence à Assembleia de Freguesia da (...) , tem conhecimento das duas cartas que estão assinadas pelo denunciado, A... e com a intenção de resignar ao cargo para o qual foi eleito, inclusivamente este assunto já foi discutido por mais que uma vez na referida Assembleia de Freguesia da (...) .

A ora testemunha pensa que supostamente terá havido alguma intenção por parte de segundas pessoas que aconselharam o denunciando, A... , a ficar na Assembleia de Freguesia da (...) , mas para a ora testemunha é irrelevante que seja o A... ou a C... conforme sempre o defendeu.

A ora testemunha, refere ainda que o denunciante, B... é uma pessoa íntegra, pelo que nunca iria agir conforme refere o denunciado, A... , nomeadamente que tinha falsificado a carta.

A ora testemunha por fim verificou e analisou as cartas e não viu qualquer tipo de irregularidade, sendo assim supostamente terá sido o denunciado, A... , que assinou as duas cartas, que constam nos autos.

A folhas 102 foi ouvido o assistente, tendo o mesmo confirmado o teor da queixa apresentada e que foi o arguido que lhe pediu para enviar a carta.

F) Subsunção dos factos aos referidos elementos do tipo legal do crime em causa

Analisando as declarações prestadas pelas testemunhas ouvidas em sede de inquérito, teremos que frisar que não se entende o que as mesmas querem dizer quando referem que o assistente é pessoa íntegra e que não iria falsificar uma carta, pois analisando o teor da carta que o arguido enviou, em lado algum o mesmo refere que o assistente falsificou a carta, mas sim que a enviou à sua revelia, por uma lado, por outro, é estranho que tais testemunhas refiram que sabiam de tudo, mas nenhuma referiu o que se terá passado na tomada de posse, pois se eram “políticos”, o mais normal é que tivessem ido à tomada de posse da nova Assembleia.

Depois, temos as testemunhas ouvidas em sede de instrução que vieram frisar que o arguido se dirigiu ao assistente e lhe disse para ignorar “os documentos, as cartas”.

Por último, analisemos as expressões da carta e que o assistente refere que são ofensivas da sua honra:

Leva-me a concluir que o Sr. B... enviou a carta a minha revelia, à posterior, fato que ele me confirmou. Usou e abusou da minha boa vontade, agindo de má-fé, levando-me a pensar que não seja uma pessoa de confiança.

Assim, inicialmente o arguido refere que “leva-me a concluir”, ou seja, não imputa nada em directo, acabando com a expressão “levando-me a pensar que não seja uma pessoa de confiança”.

Pelo que as expressões contidas na referida carta não são idóneas a provocar a ofensa da honra do assistente e a sua consideração, uma vez que o arguido tira uma conclusão para si e não uma imputação directa da honra e consideração do assistente.

Analisando ainda a carta, o seu cabeçalho e quem era o Presidente da Assembleia antes e depois das eleições (antes era uma senhora e depois um senhor), teremos que concluir que ela foi escrita antes da tomada de posse.

Assim, se a mesma foi escrita antes da tomada de posse, se o arguido tomou posse e disse que ia cumprir o seu mandato, por que razão no dia seguinte havia de enviar uma carta?

O mais normal seria resignar ao cargo em Assembleia, pedindo a sua demissão.

Por último, analisando o teor da carta, e se o arguido já tinha tomado posse, porque consta da respetiva missiva o texto “resigno ao cargo para o qual fui eleito” e não “resigno ao cargo para o qual tomei posse”?

Assim, teremos que concluir que, pese embora o arguido tenha assinado a referida carta, não se fez prova que tenha sido o mesmo a enviar tal carta e que tenha dado instruções ao assistente para a enviar após a tomada de posse, pelo que as expressões que o mesmo dirigiu ao Presidente da Assembleia é mais em jeito de desabafo, não sendo as mesmas idóneas a ofender a honra e bom nome do assistente dado todo o contexto circunstancial ocorrido entre o arguido e assistente.

Perante todo este quadro factual e probatório é manifesto que a prova até este momento recolhida torna muito mais provável que o arguido, em sede de julgamento, venha a ser absolvido do crime que lhe é imputado.

Assim, consideram “suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança” (artigo 283º, n.º2, do Código de Processo Penal).

O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16 de Outubro de 2012, do Relator ANTÓNIO JOÃO LATAS estabelece que: “1. A existência de indícios suficientes significa que os indícios, com o sentido de conjunto da prova recolhida nas fases preliminares, são suficientes para submeter o arguido a julgamento, o que se verifica quando deles resultar uma possibilidade razoável de o arguido vir a ser condenado. 2. O juízo ou convicção a estabelecer na fase de instrução, como no termo da fase de inquérito, há-de ser equivalente ao de julgamento, designadamente no que respeita à apreciação do material probatório e ao grau de convicção, que não se compadece com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem “razoável” de dúvida. A prova suficiente há-de corresponder à que “… em julgamento levaria à condenação, se aquele ocorresse com o quadro probatório, no tempo e nas circunstâncias que determinam o libelo acusatório” ou o despacho de pronúncia. (…)” (disponível em www.dgsi.pt).

Por outro lado, prevê o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, do Relator ARTUR OLIVEIRA, de 20 de Janeiro de 2010, que “Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito democrático e da presunção da inocência impõem que a expressão indícios suficientes (308º/1CPP) seja interpretada no sentido de exigir uma probabilidade particularmente qualificada de futura condenação, fruto de uma avaliação dos indícios tão exigente quanto a contida na sentença final.” (disponível em www.dgsi.pt).

Ora, conforme já se referiu anteriormente, nos termos do artigo 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o juiz de instrução profere despacho de pronúncia sempre que se tenham recolhido indícios suficientes de que se praticou um crime e de quem foram os seus autores.

Atento o supra exposto, os indícios apurados não se mostram idóneos e suficientes para garantir, com qualquer probabilidade, que ao arguido, venha a ser aplicada uma pena à final, devendo, em consequência, ser proferido despacho de não pronúncia quanto à prática, pelo arguido, do crime de que vem acusado.

Nestes termos, não se encontrando, indiciariamente preenchidos os elementos do tipo base de crime de difamação, desnecessário se torna analisar, neste sede, a sua qualificação, contudo, resta referir que, mesmo assim, não se compreende em que funções o aqui assistente estava investidos e que foi no exercício dessas funções e por causa delas que foi “supostamente” difamado.

Nestes termos e sem necessidade de mais considerações, decide-se proferir despacho de não pronúncia do arguido A... , pela suposta prática em autoria material e sob a forma consumada de um crime de difamação agravado, previsto e punido pelos artigos 180.ºe 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do CP».


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3. Por sua vez, a participação criminal do assistente contra o arguido e a acusação pública têm o conteúdo abaixo transcrito:

A) A primeira das duas referidas peças processuais:

«I - O expoente foi candidato à Assembleia de Freguesia da (...) nas últimas eleições autárquicas (29 de Setembro de 2013), como cabeça de lista.

II - Da lista submetida a sufrágio constava também o Sr. A... .

III - A lista encabeçada por B... , e da qual também fazia parte A... não foi a lista vencedora.

IV - Ainda assim, ambos foram eleitos como membros da respectiva Assembleia de Freguesia.

V - Antes da tomada de posse, o Sr. A... deu a conhecer ao Sr. B... a sua intenção de resignar ao cargo para o qual tinha sido eleito.

VI - Informando-o até da sua intenção de não querer, sequer, tomar posse.

VII - Para tanto, deixou na posse do Sr. B... um manifesto assinado pelo próprio, com data de 6 de Outubro de 2013, contendo exactamente essa posição (Doc. 1).

VIII - Manifesto esse onde constava, sumariamente, que por motivos pessoais resignaria ao cargo, não tomando sequer posse, e que deveria ser convocada para o efeito a Sra. C... que lhe seguia na ordem da respectiva lista.

IX - Ficando o Sr. B... , por sua vez, incumbido de o fazer chegar à Assembleia de Freguesia.

X - Esta missiva nunca chegou a sair da mão do participante (…).

XI - C... , ao lhe ser dada a conhecer a intenção do Sr. A... , logo informou da sua impossibilidade de comparecer à cerimónia da tomada de posse.

XII - Perante a impossibilidade da Sra. C... estar presente na cerimónia aquela data, o Sr. A... decidiu tomar posse, e fazer o pedido de resignação a posteriori.

XIII - Daí a tal missiva assinada pelo Sr. A... a 6 de Outubro de 2013 nunca ter saído da mão do participante.

XIV - Após a tomada de posse, que tem lugar a 20 de Outubro de 2013, o Sr. A... reitera perante o Sr. B... a sua intenção de resignar ao cargo que ocupava na Assembleia de Freguesia.

XV - Para tanto, deixa novamente na posse do participante um manifesto assinado por si, com data de 21 de Outubro de 2013, onde constava essa intenção (Doc. n.º 2).

XVI - Ficando, novamente, o participante, incumbido de o fazer chegar à Assembleia de Freguesia.

XVII - O que fez, no dia seguinte, mediante carta registada com aviso de recepção, endereçada à Presidente da Assembleia de Freguesia da (...) (Doc. n.º 3).

(…)

XIX - No dia 6 de Novembro de 2013, o Sr. A... dirige ao Sr. Presidente da Assembleia de Freguesia da (...) uma carta que iremos reproduzir e comentar, com o seguinte teor (Doc. 4):

“Tendo recebido na minha residência um aviso de recepção endereçado a V. Exª. em 22/10/2013, fiquei surpreendido, porque na realidade não procedi ao envio de qualquer documento”.

XX - O que é de facto verdade, com a excepção de ter, oportunamente, omitido o facto de que teria incumbido alguém de o fazer por si. Ou então terá de explicar melhor o porquê de ter assinado uma carta no dia 21 de Outubro onde manifestava as suas intenções, dia seguinte ao da tomada de posse, e o porquê de esta estar na posse do Sr. B... …

XXI - E continua:

“Nesse sentido solicitei informação verbal a V. Exª.  sobre o conteúdo desse documento, onde fui informado que tinha resignado ao cargo para o qual fui eleito nas últimas eleições autárquicas”.

XXII - Não sabia o conteúdo do documento? Só por anedota ou piada (de mau gosto), é que pode negar conhecer o conteúdo da carta que assinou no dia 21 de Outubro de 2013…

XXIII - Segue:

“Em relação ao referido assunto passo a informar:

Antes da tomada de posse para a qual fui convocado deixei em posse do Sr. B... um documento assinado, onde exprimia essa minha vontade, esse documento nunca foi enviado dentro da data legal, tendo eu tomado posse no dia 20/10/2013 para cumprir o meu mandato para o qual fui eleito”.

XXIV - Mau…afinal conhecia ou não o conteúdo da carta? Pelos vistos conhecia muito bem…Ainda assim, “enganou-se”, pois está a referir-se a carta de dia 6 de Outubro (Doc. 1) que nunca saiu da mão do participante, pelos motivos supra expostos, em vez da que assinou a 21 de Outubro (Doc. 2), e que sim realmente foi enviada a dia 22 mediante carta registada com AR para a Assembleia de Freguesia.

XXV - E porque colocamos “enganou-se” dentro do parêntesis? Porque o engano é intencional. O Sr. A... não se enganou, pelo simples facto de que ninguém se engana intencionalmente, e o Sr. A... , intencionalmente refere a carta de dia 6, para poder eventualmente negar que terá assinado uma segunda carta, ou alegar o seu desconhecimento.

XXVI - Mas não se fica por aqui:

“Informei nesse mesmo dia o Sr. B... da minha vontade em exercer a minha função dentro da Assembleia de Freguesia e que portanto considerasse nula a carta que eu lhe deixei assinada”.

XXVII - Quando se refere “nesse mesmo dia”, estará, pensamos nós, a referir-se ao dia 20 de Outubro, tomada de posse. A ser verdade o que alega, então qual a razão de ter deixado uma carta assinada ao Sr. B... no dia seguinte, dia 21 de Outubro (Doc. 2), precisamente com a ideia contrária?

XXVIII - Mais uma vez volta, oportunamente, a referir-se a carta de dia 6 de Outubro (Doc. 1), porventura pelos motivos já expostos…

XXIX - E conclui:

“No dia 23/10/2013 recebi o AR em minha casa. Acho tudo isto muito estranho porque esse documento estava endereçado à Presidente da Assembleia cessante e o aviso de recepção está endereçado ao Presidente da Assembleia actual. Algo não bate certo.

Leva-me a concluir que o Sr. B... enviou a carta à minha revelia, à posterior (querendo porventura referir-se a posteriori), fato (querendo porventura referir-se a facto) que ele confirmou. Usou e abusou da minha boa vontade, agindo de má-fé, levando-me a pensar que não seja uma pessoa de confiança” (Doc. 4).

XXX - Nós também achamos tudo isto muito estranho. Muito estranho que uma carta datada de 21 de Outubro, assinada, e que resume as intenções do seu subscritor, esteja na posse de alguém em quem ele não confia, que age de má-fé, e que abusa da sua boa vontade.

XXXI - Em suma:

1 - Encarregou o participante de enviar a carta a resignar ao cargo.

2 - Nega a sua autoria.

3 - Acusa o participante de má-fé.

4 - E deixa o epíteto de não ser o participante pessoa de confiança.

XXXII - No dia 7 de Novembro de 2013 o Sr. Presidente da Assembleia recebe a carta do participado e, naturalmente, pensa que o participante teria falsificado a carta.

XXXIII - E marcou Assembleia de Freguesia para o dia 15/11/2013 (Doc. 5).

XXXIV - Nessa Assembleia o participado reitera mais de uma vez que não foi mais do que uma carta, ficando o participante na fama de falsificador (Doc. 2).

XXXV - O participante resignou mas continuou na Assembleia.

XXXVI - O participante ficou com a fama de burlão.

XXXVII - Nessa Assembleia o participante deixou declarações de voto escrito (Doc. 6)

(…)».

B) a acusação do MP:

«1.º - Nas eleições autárquicas de 29/09/2013, o arguido integrou uma das listas candidatas à Assembleia de Freguesia de (...) , concelho da (...) , lista esta encabeçada pelo assistente B... .

2.º - Pese embora a lista não tenha sido vencedora, o assistente e o arguido foram eleitos como membros daquela Assembleia de Freguesia.

3.º - Sucedeu que o arguido decidiu, alguns dias depois das eleições, resignar ao cargo para o qual tinha sido eleito.

4.º - Para tanto, o arguido assinou um escrito dirigido à Sr.ª Presidente da Assembleia de Freguesia, datado de 06/10/2013, dando-lhe conta dessa sua intenção e indicando a sua substituta legal que participaria já na cerimónia de tomada de posse.

5.º Então, o arguido entregou esse escrito ao assistente que, apesar de ter sido incumbido de o fazer chegar à Assembleia de Freguesia, o não chegou a fazer - e disso mesmo deu conhecimento -, em razão da substituta legal não estar disponível para participar na cerimónia da tomada de posse.

6.º - Por conseguinte, o arguido decidiu participar na dita cerimónia, realizada no dia 20/10/201, e tomou posse do cargo.

7.º - No dia imediatamente seguinte à cerimónia, e porque mantinha o propósito de resignar ao cargo, o arguido entregou ao assistente um segundo escrito por si assinado e datado de 21/10/2013, uma vez mais manifestando a sua intenção, dirigido à Sr.ª Presidente da Assembleia de Freguesia.

8.º - Tal como havia antes acontecido, o arguido incumbiu o assistente de fazer chegar esse escrito à Assembleia de Freguesia, o que este fez, por via postal registada.

9.º - Não obstante o supra relatado, o arguido, no dia 06/11/2013, dirigiu um terceiro escrito ao Sr. Presidente da Assembleia de Freguesia, declarando-se surpreendido por ter recebido, no dia 22/10/2013, um aviso de recepção de uma correspondência que, segundo o mesmo aviso, lhe fora dirigida, pese embora não lhe tivesse enviado qualquer correspondência.

10.º - Acrescentou, em seguida, que entregara ao assistente, em data anterior à tomada de posse, um escrito de manifestação da sua vontade de resignar ao cargo, mas que, entretanto, decidiu assumir o exercício do cargo e tomar posse e que disso mesmo deu conhecimento àquele, no dia da dita cerimónia.

11.º - Concluiu que o assistente enviou a carta à sua revelia, usando e abusando da sua boa vontade, agindo de má-fé, levando-o a pensar que não é uma pessoa de confiança.

(…)».


*

4. Ocorre uma questão prévia, obstativa do conhecimento do mérito do recurso.

Como já acima demos conta, o Ministério Público, na sequência de queixa do ofendido B... , constituído assistente, procedeu a inquérito e, a final, deduziu acusação, imputando ao arguido A... a autoria material, sob a forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 181.º - porventura, quis-se referir o artigo 180.º - e 184.º, por referência à al. l) do n.º 2 do artigo 132.º, todos do CP (serão deste diploma os demais artigos que se vierem a citar, sem indicação de fonte legal).

Dispõe o n.º 1 do artigo 180.º:

«Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias».

E o artigo 184.º:

«As penas previstas nos artigos 180.º, 181.º e 183.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade».

Evidencia a norma acabada de citar a agravação das penas previstas nos tipos matriz dos crimes de injúria e difamação, justificada pela intensificação do valor da honra, decorrente de o visado estar em exercício de funções ou, ao menos, não estando, de o acto violador da honra, porque ainda resultante daquelas funções, se ligar retroactivamente ao exercício das mesmas - Cfr. José Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora 1999, Tomo I, anotação do artigo 184.º, pág. 652.

Cotejando os elementos supra expostos, com particular destaque para a descrição fáctica e objectiva da queixa do assistente B... e da acusação deduzida pelo Ministério Público, não existe a mínima dúvida de nos situarmos perante um caso de todo arredado da  axiologia normativa do artigo 184.º.

O assistente interveio no processo factual narrado naquelas peças processuais, não na qualidade, efectivamente detida, de membro da Assembleia de Freguesia de (...) , concelho da (...) - nem sequer a conduta em causa está minimamente conexionada com o exercício dessas funções -, mas sim na veste de pessoa, a esse nível funcional, indiferenciada.

Consequentemente, o crime de difamação que pudesse ser imputado ao arguido é o simples, do artigo 180.º, que tem natureza particular, face à previsão, a contrario, do artigo 188.º.

Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime, de natureza pública ou semi-pública, e de quem foi o seu agente, o Ministério Público deve deduzir acusação (arts. 48.º, 53.º, n.º 2, al. c), e 283.º, n.º 1, do CPP). Após a notificação da acusação pública, no prazo previsto no artigo 284.º do CPP, o assistente pode também deduzir acusação pelos factos acusados pelo MP, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles.

Quando, como no caso dos autos, o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público, findo o inquérito, notifica o assistente para que este deduza, no prazo de 10 dias, a referida peça processual (artigo 285.º do CPP), podendo o MP, nos cinco dias posteriores à apresentação da mesma, acusar nos precisos termos definidos no n.º 4, parte final, do mesmo artigo 285.º.

Decorre impressivamente deste quadro legal a impossibilidade de o Ministério Público deduzir, motu próprio, acusação por crime particular.

Incontroversamente, dele ressuma a imperatividade da ordem na sucessão das acusações a deduzir pelo Ministério Público e pelo assistente relativamente a crime de natureza particular - vertente que, considerados os parâmetros do recurso, importa ter em conta -, surgindo a pública/semi-pública, na precisa dimensão qualitativa consagrada no n.º 4 do art. 285.º do CPP, necessariamente na sequência da particular.

Verificada a situação dos autos, traduzida na dedução de acusação pelo Ministério Público por crime particular, seguida de acusação do assistente, a qual se limita a acompanhar a primeira, qual a consequência jurídico-processual?

É de largo espectro a dissidência na jurisprudência dos nossos tribunais superiores sobre a resposta a tal questão.

Assim, nos Acs. da Relação do Porto de 10-05-2006 (proc. n.º 0516510),  25-11-2015 (proc. n.º 848/13.6TAVRF.P1), 17-01-2011 e 27-04-2015, publicados, os dois primeiros, em www.dgsi.pt, e, os restantes, in Colectânea - respectivamente, tomo I, pág. 311/313, e tomo II, pág. 294 -, foi considerada a ocorrência da nulidade prevista no segmento inicial da alínea b) do artigo 119.º do CPP, consubstanciada na falta de promoção do procedimento pelo Ministério Público, nos termos do art. 48.º daquele diploma penal.

Porém, enquanto os 1.º, 3.º e 4.º arestos determinaram, em virtude da declarada invalidade da acusação pública e dos actos subsequentes, o reenvio do processo ao MP, para sanação do vício verificado, com cumprimento do disposto no artigo 285.º, n.º 1, do CPP, o outro acórdão decidiu pela inviabilidade definitiva de o arguido poder ser condenado pelo crime particular.

Por sua vez, a declaração de voto aposta no já mencionado Ac. n.º 0516510 expressa o entendimento de o vício existente ser a irregularidade, de conhecimento oficioso, nos termos do art. 123.º, n.º 2, do CPP, por afectar o valor do acto em que se concretizou a promoção do processo: acusação pública em lugar da notificação do assistente para, querendo, deduzir acusação particular, cuja reparação implica a invalidade da acusação pública, com regresso do processo à fase em que possa ser dado cumprimento ao disposto no n.º 1 do art. 285.º.

Igual nas consequências, diverso na fundamentação, está escrito no Ac. da Relação do Porto de 03-05-2006 (proc. n.º 0546518):

«quando (…) na decisão instrutória se concluiu pela ilegitimidade do Ministério Público, porque o crime em causa não é um crime semi-público, mas apenas um crime particular, isso configura uma alteração não substancial, art. 303.º e 1.º al. f) do Código de Processo Penal, mas que obsta a que o processo prossiga, em obediência e estrito respeito pela estrutura acusatória do nosso processo penal».

Concretizando-a, mais se diz nesse acórdão:

«No caso o ofendido apresentou oportunamente queixa e constitui-se assistente ainda durante o inquérito. Findo o inquérito o Ministério Público entendeu que se verificava crime semi-público deduzindo acusação. Requerida instrução pelo arguido e decidindo-se que o crime imputado ao arguido assume a natureza particular, verifica-se a excepção de ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, o que obsta ao conhecimento do mérito da causa. Sendo o crime de natureza particular, o ofendido (…) tem o direito a formular a acusação pelo crime particular. Essa notificação tem que ser feita em inquérito, art. 285.º do Código de Processo Penal, não pode ser ordenada pelo Ex.mo juiz de instrução criminal. Nos casos em que o ofendido apresentou tempestivamente a queixa e se constituiu assistente, alterando-se em sede de instrução [requerida pelo arguido] a qualificação de crime semi-público para crime particular, como o assistente não foi notificado para deduzir acusação nos termos do art. 285.º do Código de Processo Penal, o que só pode ser feito em inquérito e pelo Ministério Público, sem prejuízo de se declarar a falta de legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação impõe-se também por um princípio de economia processual e respeito pela estrutura acusatória do processo que o juiz de instrução criminal ordene a sua remessa ao Ministério Público para reabrir o inquérito. Esta solução tem apoio, via aplicação analógica, no art. 303.º n.º 3 do Código de Processo Penal (…)».

Solução com projecção processual manifestamente diferente ficou consagrada no Ac. da Relação de Lisboa de 29-11-2010 (proc. n.º 479/07.0TABRR.L1-3), publicado no site do ITIJ. Perante a verificada falta de legitimidade do Ministério Público para deduzir a acusação, foi, sem mais, declarado extinto o procedimento criminal, nos termos conjugados dos artigos 203.º, n.º 1, 207.º, al. b), do CP [normas que, no caso versado nesse processo, definiam o crime como particular] e 50.º do CPP - no mesmo sentido, v.g., Ac. da Relação de Évora de 30-09-2014 (proc. n.º 556/0PBSTB.E1).

Se no domínio da jurisprudência assim é, no âmbito da doutrina, Pinto de Albuquerque, em breve nota, manifesta-se no sentido de a assinalada patologia processual constituir a nulidade (sanável), prevista na al. d) do n.º 2 do art. 120.º do CPP.

Não nos parece juridicamente sustentável a primeira de todas as enunciadas posições, desde logo porque a casuística não integra o segmento inicial da al. b) do art. 119.º do CPP. No rigor dos princípios, não existe falta de promoção pelo MP, porquanto este deduziu acusação. Verifica-se, isso sim, erro de promoção do processo: o MP acusou quando devia ter ordenado a notificação do assistente para, querendo, deduzir acusação particular.

A nosso ver, também não é consentânea com as regras processuais a solução vertida no voto de vencido acima identificado, por afastar indelevelmente as consequências decorrentes da inexistência do pressuposto processual traduzido na ilegitimidade do MP para a dedução de acusação pública quando em causa está um crime particular.

Ainda menos concordância nos merece o tratamento da questão, ainda que por via de interpretação analógica, no quadro de previsão normativa do art. 303.º, do CPP, e, por razão de identidade, do art. 308.º, n.º 1, do mesmo Código.
Tanto a alteração substancial, como a alteração não substancial dos factos, pressupõem sempre uma acusação processualmente apta, ou seja, cujo objecto, se comprovado em julgamento, permita a condenação do agente pela prática de determinado crime, aptidão inexistente no específico caso que nos ocupa.
Sem campo de aplicação no específico contexto tratado é, afigura-se-nos, a singela referência doutrinária registada supra.
O vício previsto na 1.ª parte da al. d) do n.º 2 do art. 120.º do CPP é determinado pela insuficiência de inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, onde patentemente não se situa a dedução de acusação por quem não detém legitimidade para tanto. Realidade confinante, mas ainda assim diversa, configuradora desse vício, será, estritamente, a omissão de cumprimento do disposto no artigo 285.º, n.º 1, do CPP.
Remanesce a posição sustentada nos indicados Acs. da Relação de Lisboa e da Relação de Évora, que tem a nossa inteira adesão.
Estamos perante uma excepção ao princípio da dedução da acusação pelo Ministério Público, consubstanciando a formulação, pelo assistente, de acusação particular, tal como, antes, a queixa, um verdadeiro pressuposto processual [art. 50.º, n.º 1, do CPP], que, uma vez não verificado, só pode conduzir ao arquivamento do processo.
Trazendo de novo à colação o Ac. da Relação de Lisboa, dele respigamos:
«Ora o conhecimento dos pressupostos processuais obedece a um regime próprio, distinto do regime das nulidades, com excepção da violação do pressuposto da competência do tribunal e da propriedade da espécie do processo, que se enquadram no regime taxativo das nulidades, por estarem expressamente referenciados nas alíneas e) e f) do art. 119.º
(…)».
Tais pressupostos «devem (…) ser oficiosamente conhecidos pela autoridade judiciária, consoante a fase em que o processo se encontre.
(…).
O que denota ser este um pressuposto processual que se mantém em aberto ao longo de toda a tramitação do processo penal, o que bem se compreende, maxime quando a questão da legitimidade surge com nova configuração em virtude de um distinto enquadramento jurídico da conduta imputada ao arguido no processo, em julgamento ou, mesmo, já em via de recurso, como sucedeu “in casu”».
«Estando o presente procedimento afectado deste vício genérico», na medida em que a assistente «não deduziu acusação particular previamente à acusação do Ministério Público, deverá este tribunal declarar a falta de legitimidade do MP para o exercício da acção penal e abster-se de conhecer de mérito».
Em síntese, deduzida acusação pública por crime de natureza particular (no caso, difamação), sem a formulação prévia desta, inexiste uma condição do procedimento criminal, cognoscível oficiosamente, a todo o tempo, com ressalva do caso julgado formal, cuja inexorável consequência é o arquivamento do processo, nos termos conjugados dos artigos 180.º, 188.º, n.º 1, do CP, e 50.º do CPP.

*
III. Dispositivo:
Posto o que precede, os Juízes da 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Coimbra julgam verificada a falta de legitimidade do Ministério Público para deduzir a acusação pública e, em conformidade, declaram extinto o procedimento criminal e determinam o (oportuno) arquivamento dos autos.
Sem custas.

Coimbra, 18 de Maio de 2016
(Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário)

(Alberto Mira - relator)
(Elisa Sales - adjunta)