Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2109/11.6YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
CESSAÇÃO
LIQUIDAÇÃO
Data do Acordão: 12/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE PEQUENA E MÉDIA INSTÂNCIA CÍVEL DE ANADIA DA COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.344, 349, 360 C COMERCIAL, 405, 1148 CC
Sumário: 1.- O contrato de abertura de crédito – nomeado, entre outras operações bancárias, no art. 362º do C. Comercial – é o contrato “consensual” em que a instituição financeira se obriga a disponibilizar ao cliente a utilização de determinada quantia em dinheiro durante certo período de tempo, obrigando-se este a, para além das comissões e dos juros, a reembolsar os montantes que efectivamente foram colocados à sua disposição.

2.- Por força da sua atipicidade, não é objecto de previsão específica, o aspecto da cessação desse contrato.

3.- Rege neste domínio, em toda a sua extensão, o princípio da autonomia privada: o modo, a forma e as consequências da cessação do contrato são as reguladas por convenção das partes (artºs 405º, nº 1 e 406º, nº 1 do C.Civil).

4.- Na falta dessa convenção, serão aplicáveis, se for esse o caso, as regras da conta corrente em geral, as regras do mandato, relativamente à disponibilidade, e quanto ao saldo, no caso de cessação, as regras do mútuo.

5.- Se não se tiver convencionado qualquer prazo de duração do contrato, qualquer das partes pode pôr-lhe termo; em tal caso o mutuário dispõe do prazo de 30 dias para pagar o saldo em débito (artºs 349º do C. Comercial e 1148º, nº 2 do C.Civil).

6.- Deste regime decorre que a obrigação de reembolso só nasce se e na medida da disponibilização/utilização efectiva do crédito, donde, sendo acordado entre as partes que tal seria reflectido e objecto de “conta corrente” entre elas, apurado que seja a existência de um saldo devedor, será axiomático que seja o cliente (leia-se o aqui R.) condenado no correspondente pagamento.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

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            1 – RELATÓRIO
A..., S.A.”, com sede na Av. (...) ALGÉS, propôs providência de injunção, depois transmutada em acção, contra J (…), residente na Rua (...)ANADIA, alegando, nos termos do seu articulado aperfeiçoado, em síntese, que:
- A Autora dedica-se à concessão de crédito ao consumo;
- No âmbito da sua actividade, a Autora emitiu o “cartão de crédito Jumbo Mais”, possibilitando ao Réu a utilização do crédito para aquisição de bens e serviços no Jumbo; Pão de Açúcar e lojas da Rede Júpiter;
- No âmbito da sua actividade, a Autora emitiu, por solicitação do Réu, o denominado «cartão jumbo» consistente numa concessão de crédito em conta corrente, utilizável pelo Réu por via do uso do cartão emitido, que permitia ao seu titular a utilização do crédito para aquisição de bens e serviços nos hipermercados Jumbo e Pão de Açúcar e nos estabelecimentos das Galerias Comerciais;
- Para tanto, o Réu subscreveu, em 16/06/2001 uma proposta de adesão, a qual foi analisada pela Autora em conformidade com os documentos entregues pelo Réu para validação, designadamente, cópia de bilhete de identidade, cartão de contribuinte, comprovativo de titularidade de conta bancária que possibilita aos seus subscritores a aquisição de bens e serviços através do crédito concedido;
- O Réu, simultaneamente, subscreveu uma autorização de débito bancário, para pagamento do crédito utilizado;
- Em 16/06/2001 o Réu enviou à Autora uma proposta de adesão ao referido Serviço, tendo a Autora, para analise do mesmo, solicitado o envio de documentação identificativa do Réu e que por este foi, consequentemente, remetida à Autora, para concessão do supra citado crédito;
- Consequentemente o Réu, no uso do cartão, fez compras a crédito, as quais resultam discriminadas nos extracto de conta corrente que eram remetidas ao Réu de forma mensal para a morada por este indicada no contrato (cfr. Extractos de conta corrente juntos em anexo);
- As modalidades de pagamento eram opção do Réu, em conformidade com as opções contratuais constantes na cláusula 10.2 das Condições Gerais de Utilização do Cartão Jumbo, podendo o mesmo, no acto da compra, optar por uma das opções de pagamento que descreve [a) «FIM DO MÊS», b) «DÉBITO IMEDIATO» e c) «CONTA PERMANENTE»];
- O Réu utilizou o crédito em conformidade com os extractos de conta juntos, tendo procedido ao pagamento devido até 16/04/2009;
- A 16/04/2009, por falta de pagamento que se traduziu num incumprimento reiterado e definitivo, a Autora encerrou o contrato de crédito e a consequente utilização do cartão, ficando em dívida um valor de € 3.588,07;
- Os pagamentos eram efectuados pelo Réu através débito directo na conta bancária indicada pelo Réu à Autora em Autorização de Débito em Conta (ADC) fornecida por aquela, pagamentos esses que se venciam a cada dia 16 de cada mês seguinte ao da disponibilização do crédito;
- No entanto, a 16/04/2009 o Réu deixou de liquidar os montantes mensais devidos pela atribuição do referido crédito, uma vez que os vários débitos bancários autorizados vieram devolvidos, não liquidando igualmente os demais encargos da conta corrente associada a tal financiamento;
- Ficando assim com um capital em dívida no valor de € 3.588,07, que a Autora vem judicialmente exigir;
- A este capital em dívida vencem juros à taxa contratualmente acordada, correspondente a uma TAEG de 2,66%/ Mês, acrescendo ainda uma sobretaxa devida pelo incumprimento, de 12%, conforme cláusula 13º, nº 4 das Condições Gerais de Utilização do Cartão Jumbo,
termos em que concluiu no sentido da condenação do Requerido/Réu a pagar-lhe o montante total de € 6.604,67, sendo € 3.588,07 de capital em dívida,  € 2.965,60 de juros calculados desde o incumprimento (16.04.2009) até à data da interposição do requerimento injuntivo (5/01/2011), contabilizados, à taxa contratual (26.88%) acrescida da cláusula penal de 12% (cláusula 13ª das Condições Gerais de Utilização do Cartão Jumbo Mais) e juros vincendos até efectivo e integral pagamento, e  € 51,00 de taxa de justiça liquidada com a interposição do requerimento injuntivo.
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            Frustrada a notificação do R., a injunção foi remetida à distribuição como acção declarativa de condenação sob a forma de processo especial destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de valor não superior a € 15.000,00.
Uma vez mais, não lograda a citação pessoal do R., foi o mesmo citado editalmente, não tendo contestado, nem constituído mandatário.
Citado o Ministério Público em representação do ausente, não apresentou contestação.
Foi então proferido despacho convidativo da A. ao suprimento de insuficiências ou imprecisões na matéria de facto alegada, ao que a mesma correspondeu com a apresentação do articulado que, em síntese, supra se explicitou.
Notificado desse novo articulado, o Ministério Público não se pronunciou.
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Efectuou-se julgamento, com observância de todas as formalidades legais, conforme consta da respectiva acta, tendo na sequência sido proferida Sentença na qual se considerou, em suma, que apesar de terem resultado provados todos os factos alegados pela A., na medida em que “sendo o montante exigido ao R., respeitante ao “saldo” da “conta corrente” à data de 16/04/2009, meramente conclusivo e permanecendo sem se saber quais os valores efectivamente mutuados (e se o foram) devidamente circunstanciados, pois que do teor dos extractos consta uma panóplia de inscrições, respeitantes a compras, a pedidos de financiamento, a juros e a imposto de selo, nada disso tendo sido exposto com detalhe bastante no requerimento inicial oferecido em sequência da prolação de despacho convidativo ao suprimento de insuficiências ou imprecisões na matéria de facto alegada pelas partes”, tinha, portanto, a acção que improceder, termos em que se julgou improcedente a acção, consequentemente se absolvendo o R. do pedido contra si deduzido pela A..
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   Inconformada com essa sentença, apresentou a Requerente /Autora recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…)

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Por sua vez, apresentou o Exmo. Magistrado  do MºPº as suas contra-alegações a fls. 247-249, nas quais formulou as seguintes conclusões :
(…)
                                                                       *
            Foi sustentada pelo Exma. Juíza do Tribunal “a quo” a inverificação da arguida nulidade (cf. fls. 260).
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            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
                                                                       *
            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Autora/Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635, nº4 e 639º, ambos do N.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine”, do mesmo N.C.P.Civil):
 - nulidade da sentença, por violação do disposto na al. c) do nº1 do art. 668º do C.P.Civil;
- incorrecção da decisão de mérito, por ter julgado improcedente a acção face aos factos que considerou estarem provados.
                                                                                  *
3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Consiste a mesma na enunciação do elenco factual que foi considerado/fixado pelo tribunal “a quo”, e sendo certo que o recurso deduzido não questiona a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto[1]
            São então os seguintes os factos que se consideraram provados na 1ª instância:
1 – A A., A..., S.A., anteriormente denominada D..., S.A, dedica-se à concessão de crédito ao consumo;
2 – No âmbito da sua actividade, a A. emitiu, por solicitação do R., J (…), o denominado “cartão jumbo”, consistente numa concessão de crédito em conta corrente, utilizável pelo R. por via do uso do cartão emitido, permitindo ao seu titular a utilização do crédito para aquisição de bens e serviços nos hipermercados “Jumbo” e “Pão de Açúcar” e nos estabelecimentos das Galerias Comerciais;
3 – Para tanto, o R. subscreveu, em 16/06/2001, a “proposta de adesão” cuja cópia constitui o documento n.º 1 junto com o requerimento inicial e cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido;
4 – E entregou à A. cópia do bilhete de identidade, do cartão de contribuinte, e de informação do NIB de conta bancária de sua titularidade;
5 – E subscreveu “autorização de débito bancário”, para pagamento do crédito utilizado;
6 – O R., no uso do cartão, fez compras;
7 – Estes extractos eram remetidos ao R. de forma mensal, para a morada por este indicada no contrato;
8 – As modalidades de pagamento eram opção do R., em conformidade com o constante da cláusula 10.ª.2 das Condições Gerais de Utilização do Cartão Jumbo podendo o mesmo, no acto da compra, optar por uma das seguintes opções de pagamento:
a) «FIM DO MÊS» “o titular pagará o total das compras efectuadas em dia certo do mês”;
b) «DÉBITO IMEDIATO» “O titular do cartão pagará o valor total das compras efectuadas dois dias úteis após a realização das mesmas”;
c) «CONTA PERMANENTE» “O titular pagará de forma parcial e em mensalidades fixas à taxa de juro contratual, uma quantia pré-definida em função do valor em dívida à data do fecho do extracto de conta ao dia 20 de cada mês, conforme relação da seguinte tabela”;
9 – Os pagamentos eram efectuados pelo R. através de “débito directo” na conta bancária indicada pelo mesmo à A. na referida “autorização de débito em conta”;
10 – Os pagamentos venciam-se a cada dia 16 do mês seguinte ao da disponibilização do crédito;
11 – Em 16/04/2009, o R. deixou de liquidar os montantes mensais devidos pela atribuição do referido crédito, vindo devolvidos os vários “débitos bancários autorizados”;
12 – A 16/04/2009, a A. encerrou o contrato de crédito e a consequente utilização do cartão;
13 – Nessa ocasião, o saldo da conta-corrente respeitante à utilização do cartão apresentava o valor de € 3.588,07.
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            Constata-se uma necessidade de ampliação da matéria de facto, sem que contudo se torne necessário a anulação do julgamento para esse efeito, pois que se trata afinal de uma mera omissão pelo Juiz de 1ª instância na enunciação dos factos que os documentos revelavam (cf. art. 659º, nº2 do C.P.Civil), tarefa que este tribunal de recurso pode suprir face aos dados constantes dos autos, nessa medida não se tornando indispensável a dita anulação.[2]
            Mais concretamente estamos a reportar-nos ao teor relevante de cláusulas do contrato de abertura de crédito em conta corrente ajuizado que foi celebrado entre as partes, o qual se encontra junto aos autos (cf. fls. 73-74) sob a designação de “proposta de adesão”, e foi considerado na sentença como integralmente reproduzido.[3]
Deste modo, entende-se proceder ao aditamento de tal factualidade ao elenco dos factos provados elencados na sentença, passando tal a figurar num novo facto, do seguinte concreto teor:
14 – Consta do clausulado da “proposta de adesão” subscrita pelo R. a que se aludiu no facto “3 - ” supra, nas “condições particulares”, que a taxa de juro era de 2,24% mês, e, das “condições gerais de utilização do cartão Jumbo”, integrantes da mesma “proposta de adesão”, além do mais, o seguinte:
(…)
5.4 Caducando o contrato o Titular devolverá imediatamente o cartão e deverá reembolsar a D..., de imediato, do saldo devedor.
(…)
10.6 Independentemente da modalidade escolhida o Titular pode, a qualquer momento, pagar parcial ou totalmente o saldo devedor da sua conta através do sistema Multibanco (em “Pagamentos de Serviços”) ou pelo envio de cheque ou vale postal para a sede da D....
 (…)
11.2 Nos casos previstos nos nºs 5.2 a 11.1, o dever de reembolso do crédito utilizado e respectivos custos mantém-se até integral pagamento, podendo este ser exigido antecipadamente a partir do momento da verificação dos factos referidos nas ditas cláusulas.
(…)
13.3 O crédito concedido ao abrigo deste contrato vence juros à taxa indicada na proposta.
13.4 Em caso de não pagamento do montante devido nos termos do nº 10.2 al.c) ou de mora no pagamento de qualquer quantia devida pelo titular à D..., acrescerá à taxa de juro referida no número anterior uma taxa de penalização de 12% ao ano, que incidirá sobre as quantias em atraso, bem como despesas e encargos administrativos.      
(…)
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            4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1– Cumpre então começar por apreciar a questão da invocada nulidade da sentença por violação do disposto na al. c) do nº1 do art. 668º do C.P.Civil:
Segundo o dito artigo 668º, nº1, al.c), a sentença será nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”: obviamente que quando se fala, a tal propósito, em “oposição entre os fundamentos e a decisão”, está-se a aludir à contradição real entre os fundamentos e a decisão; está-se a aludir à hipótese de a fundamentação apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto.[4]
Ora, o que se detecta como tendo ocorrido na sentença, foi o perfilhar um certo enquadramento de direito, designadamente quanto aos pressupostos de procedência da acção face à factualidade apurada, mais concretamente aí se entendendo que o apurado “saldo” da “conta corrente” era meramente conclusivo, permanecendo sem se saber quais os valores efectivamente mutuados, donde a fatal improcedência da acção, entendendo a Autora/recorrente que a outra e diferente conclusão se deveria ter chegado no caso, mas isso não configura claramente a nulidade a que se reporta este dispositivo.
Dito de outro modo: o que foi citado em termos de fundamentação jurídica pelo tribunal a quo, quando muito poderia contender com um alegado erro de julgamento (de direito) sobre a questão sub judice, que nunca com um qualquer vício estrutural da sentença, que tivesse virtualidades para conduzir à nulidade da mesma.
Neste conspecto, entendemos não ocorrer esta invocada nulidade!
Em todo o caso, o efeito prático de uma decisão de sinal contrário neste particular seria precisamente o mesmo, pois que importaria a este Tribunal ter de suprir a nulidade em causa, conhecendo de tais matérias (art. 715º, nº 1, do C.P.Civil)…
Ora, tal não deixará de se fazer de seguida, no contexto da apreciação do mérito da decisão recorrida nesse particular!
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4.2 – A Autora/recorrente pugna igualmente pela incorrecção da decisão de mérito, por se ter julgado improcedente a acção face aos factos que na sentença se considerou estarem provados:
Será assim?
O aspecto crucial para a dilucidação desta questão prende-se afinal com o singelo aspecto de decidir se ao ter-se considerado como provada a existência de um saldo devedor de € 3.588,07 por parte do Réu enquanto mutuário – perante a Autora mutuante – no contrato de abertura de crédito em conta corrente ajuizado, podia ainda assim improceder a acção de condenação no correspondente pagamento (e acrescido).
Entendeu-se na sentença recorrida que apesar do conspecto fáctico apurado – que reconheceu ser a totalidade do que fora alegado na acção – a acção tinha de improceder, porquanto o apurado “saldo” da “conta corrente” era meramente conclusivo, permanecendo sem se saber quais os valores efectivamente mutuados.
Acontece que – e releve-se o juízo antecipativo! – não podemos de todo concordar com uma tal linha de entendimento.
Salvo o devido respeito, só se entende a mesma por deficiente compreensão das características jurídicas do contrato de abertura de crédito em conta corrente, designadamente quanto ao aspecto da exigibilidade do saldo da conta-corrente do mesmo resultante.
Senão vejamos.
Está inquestionado nos autos que foi celebrado entre as partes aquilo que se designa por “contrato de abertura de crédito em conta corrente”.
            Ora, o contrato de abertura de crédito – nomeado, entre outras operações bancárias, no art. 362º do C. Comercial – é o contrato “consensual”[5] em que a instituição financeira se obriga a disponibilizar ao cliente a utilização de determinada quantia em dinheiro durante certo período de tempo, obrigando-se este a, para além das comissões e dos juros, a reembolsar os montantes que efectivamente foram colocados à sua disposição; daqui decorre que a obrigação de reembolso só nasce se e na medida da disponibilização/utilização efectiva do crédito, donde, sendo acordado entre as partes que tal seria reflectido e objecto de “conta corrente” entre elas, apurado que seja a existência de um saldo devedor, será axiomático que seja o cliente (leia-se o aqui R.) condenado no correspondente pagamento.
Não tem sentido qualquer exigência adicional, designadamente que resultem elencados e discriminados nos factos provados todas e cada uma das concretas operações de utilização da conta por parte do cliente.
Nem tal é necessário do ponto de vista jurídico-legal, nem cumpre qualquer justificação razoável.
Note-se que nos termos legalmente definidos no Código Comercial quanto ao conceito de conta corrente, “Dá-se contrato de conta corrente toda as vezes que duas pessoas tendo de entregar valores uma a outra, se obrigam a transformar os seus créditos em artigos de "deve", e  "há-de haver", de sorte que só o saldo final resultante da sua liquidação seja exigível.” (cf. art. 344º deste normativo).
Este mesmo entendimento, cremos resultar bem evidenciado pela descrição  dogmática da natureza e características deste dito contrato de abertura de crédito em conta corrente a que se procedeu em recente aresto desta mesma Relação de Coimbra, pelo que, a ele aderindo sem mais, passamos, com data venia, a reproduzir o excerto mais elucidativo de tal aresto[6] como fundamentação para a decisão dos presentes autos:
“(…)
De forma deliberadamente simplificadora, bem pode dizer-se que o contrato de abertura de crédito é aquele pelo qual o banco – creditante – se obriga a colocar à disposição do cliente – creditado – uma determinada quantia pecuniária – acreditamento ou linha de crédito – por tempo determinado ou não, ficando o último obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respectivos juros e comissões.
Este contrato, de grande alcance prático, serve os interesses de ambas as partes.
Por força dele, o cliente sabe de antemão que dispõe de crédito bancário e em que condições; por seu lado, o banco creditante assegura o percebimento de uma remuneração sem risco – a comissão de abertura de crédito ou comissão de reserva – eventualmente acrescida, relativamente aos fundos disponibilizados mas não utilizados pelo cliente, de uma comissão de imobilização, que surge como contrapartida da desvantagem de ter dinheiro tendencialmente imobilizado e não produtivo.
O contrato de abertura de crédito constitui um contrato nominado mas atípico (artº 362 do Código Comercial).
Trata-se, porém, de um contrato socialmente típico, meramente consensual, num duplo sentido: no sentido de não estar, quanto à sua formação, sujeito a qualquer exigência legal especial, embora a praxis bancária subordine a sua celebração invariavelmente a documento escrito, e possa mesmo ser requerida a escritura pública, se a abertura de crédito incluir um negócio que a exija, como sucede quando surge associada a garantias hipotecárias; no sentido de que a sua validade não se encontra dependente de qualquer acto de entrega do montante pecuniário: ao contrário do que sucede no empréstimo bancário, a abertura de crédito pode ficar perfeita com o mero acordo tendente à disponibilização daquele montante, que, aliás, poderá nem sequer chegar a ser movimentado ou mobilizado pelo cliente.
Dito doutra forma: a abertura da conta corrente não é um contrato quoad constitutionem.
O contrato de abertura de crédito pode assumir diversas modalidades.
De harmonia com o critério das suas garantias, a abertura de crédito pode ser caucionada ou a descoberto, conforme o cumprimento da obrigação do creditado seja ou não assegurado por garantias reais, v.g., hipoteca, ou pessoais, v.g., livranças; de acordo com o critério da sua realização, a abertura de conta pode ser simples ou em conta corrente, consoante o crédito é utilizado de uma só vez ou em tranches.
Quanto ao seu conteúdo, o contrato é fonte de uma pluralidade de direitos e deveres.
Do lado do banco creditante, destaca-se, naturalmente, a obrigação de disponibilização da soma pecuniária convencionada, obrigação que pode ser cumprida de múltiplas formas e através de prestações de tipo diverso, como, por exemplo, a entrega directa de dinheiro ou pagamento de cheques sacados pelo creditado, sendo lícito às partes estipular os pressupostos ou limites da sua realização.
Do lado do creditado, avulta, evidentemente, a obrigação do pagamento de comissões e juros, sendo corrente a prestação, por este, de garantias de reembolso do crédito, v.g., através de livranças.
A abertura de crédito produz, portanto, este efeito fundamental: uma disponibilidade de dinheiro, através de actos subsequentes.
Dado que vale, neste domínio, em toda a sua plenitude, o princípio da autonomia privada, tudo dependerá daquilo que for convencionado: o cliente poderá movimentar as importâncias através de pedido escrito dirigido ao banqueiro ou através da celebração sucessiva de verdadeiros e próprios contratos de mútuos bancários, ou mesmo automaticamente, sacando a descoberta sobre uma conta de depósitos à ordem acoplada ou anexa à abertura de crédito.
Por força da sua atipicidade, um ponto, deveras sensível, que também não é objecto de previsão específica, é o da cessação do contrato.
Rege, portanto, também neste domínio, em toda a sua extensão, o princípio da autonomia privada: o modo, a forma e as consequências da cessação do contrato são as reguladas por convenção das partes (artºs 405 nº 1 e 406 nº 1 do Código Civil).
Na falta dessa convenção, serão aplicáveis, se for esse o caso, as regras da conta corrente em geral, as regras do mandato, relativamente à disponibilidade, e quanto ao saldo, no caso de cessação, as regras do mútuo.
Em qualquer caso, serão sempre aplicáveis, subsidiariamente, as regras do mandato.
Assim, por exemplo, se não se tiver convencionado qualquer prazo de duração do contrato, qualquer das partes pode pôr-lhe termo; em tal caso o mutuário dispõe do prazo de 30 dias para pagar o saldo em débito (artºs 349 do Código Comercial e 1148 nº 2 do Código Civil).
Discute-se a exacta natureza do contrato de abertura de crédito. Seja ela qual for, neste contrato salienta-se o seu fundamento final - a disponibilidade de dinheiro, mas que não equivale a um crédito: o crédito surge, mas posteriormente, por via potestativa, em simples execução do contrato.
Trata-se, assim, de um contrato-quadro, que faz surgir entre as partes uma relação obrigacional complexa.
O contrato de abertura de crédito corresponde a uma operação económica unitária e a um tipo contratual autónomo, sedimentado na praxis comercial e bancária, designadamente através de cláusulas contratuais gerais e usos bancários.
Pelos seus efeitos imediatos, é um contrato único, mas exige, no seu desenvolvimento e para que seja possível atingir a sua plena função económico-social a constituição de outras relações jurídicas, designadamente contratuais.
Quer dizer, nos seus efeitos imediatos, o contrato de abertura de crédito é susceptível de conduzir à celebração de outros contratos, v.g. de mútuo bancário.
O reconhecimento desta realidade e a utilização, neste contexto, da categoria do contrato-quadro – para caracterizar a relação entre o contrato inicial e os sucessivos contratos a que pode dar origem – não podem, porém, ter como consequência prejudicar a coerência e a unidade da operação económica nem a autonomia e o carácter unitário do contrato de abertura de crédito.
Pelo contrário, deste modo sublinha-se o carácter instrumental e dependente dos sucessivos actos – designadamente contratos – que concretizam o programa fixado no contrato-quadro.
(…)”
                Ora, revertendo mais uma vez ao caso presente, temos até que foi expressamente convencionado entre as partes que em caso de cessação do contrato seria exigível do titular do cartão (leia-se, do aqui Réu) o reembolso do que constasse como saldo devedor pelo mesmo na  “conta corrente”.
            Obrigação de reembolso que igualmente resulta em geral das normas do contrato de mútuo e do contrato de conta-corrente (cf. art. 1148º, nº2 do C.Civil e 349º do C.Comercial).
            De facto, encontra-se estatuído o seguinte quanto ao contrato de “conta corrente” em geral:
“Art.º 349.º
         Termo do contrato
O contrato de conta corrente termina no prazo da convenção, e, na falta de prazo estipulado, por vontade de qualquer das partes e pelo decesso ou interdição de uma delas. 
Art.º 350.º
           Efeitos do encerramento da conta
Antes do encerramento da conta corrente nenhum dos interessados será considerado como credor ou devedor do outro, e só o encerramento fixa invariavelmente o estado das relações jurídicas das partes, produz de pleno direito a compensação do débito com o crédito corrente e determina a pessoa do credor e do devedor.”
            Assim, só se pode aceitar o entendimento perfilhado na sentença recorrida como resultado de um juízo de insuficiência ou inconcludência probatória face à prova documental e testemunhal que tiveram lugar na audiência de julgamento.
Mas se assim era, o que se impunha era não considerar provado o dito saldo da conta-corrente…
Ao invés, muito inequívoca e claramente deu-se como provado na sentença, sob o facto “13-” que “Nessa ocasião, o saldo da conta-corrente respeitante à utilização do cartão apresentava o valor de € 3.588,07.”
Sendo certo que este facto não contém, em si, um juízo “conclusivo de facto” que se possa ou deva considerar como não provado no quadro do art. 646º, nº4 do C.P.Civil.
Pelo que, na decorrência de tudo o exposto e porque resultam assim verificados todos os pressupostos de procedência da acção, importa concluir em conformidade.
Na verdade, resulta apurado que foi validamente celebrado entre as partes o  ajuizado contrato de abertura de crédito em conta corrente, passando na sequência disso o Réu a efectuar movimentos/operações registados em conta corrente, e sendo emitidos extractos mensais enviados ao Réu, para a morada por este indicada, por via do que o Réu sempre teve conhecimento do valor em dívida decorrente da utilização do cartão de crédito concedido, por sua solicitação, e deduzidos os pagamentos realizados conforme acordado.
E sendo os pagamentos efectuados por este através de débito conforme Autorização de Débito em Conta, o Réu, contudo, deixou de cumprir com os pagamentos a que estava obrigado, em 16/04/2009, não procedendo assim, desde então, aos pagamentos dos valores mensais relativos às operações efectuadas/utilização do crédito concedido, não liquidando, igualmente, os encargos da conta corrente, ficando assim um capital em dívida de € 3.588,07, conforme saldo dessa conta-corrente que nessa data foi encerrada pela A..
Assiste, então, nos termos contratuais (cf. art. 405º, nº1 do C.Civil, em que se encontra consagrado o princípio da liberdade contratual, por força do qual decorre o dever de cumprimento pontual dos contratos) e legais (estes já melhor anteriormente explicitados), o dever por parte do Réu de pagar não só o valor do saldo da conta-corrente, respeitante à utilização do cartão, de € 3.588,07, como igualmente os juros vencidos e vincendos sobre tal quantia, desde 16/04/2009 até efectivo e integral pagamento, à taxa contratual de 26,88% ao ano (juros “remuneratórios” convencionados entre as partes), acrescida da cláusula penal de 12% ao ano, e ainda o montante de € 51,00 de taxa de justiça liquidada com a interposição do requerimento injuntivo pela A..
Procede nestes termos a apelação.     
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5 – SÍNTESE CONCLUSIVA
I – O contrato de abertura de crédito – nomeado, entre outras operações bancárias, no art. 362º do C. Comercial – é o contrato “consensual” em que a instituição financeira se obriga a disponibilizar ao cliente a utilização de determinada quantia em dinheiro durante certo período de tempo, obrigando-se este a, para além das comissões e dos juros, a reembolsar os montantes que efectivamente foram colocados à sua disposição.
II – Por força da sua atipicidade, não é objecto de previsão específica, o aspecto da cessação desse contrato.
III – Rege neste domínio, em toda a sua extensão, o princípio da autonomia privada: o modo, a forma e as consequências da cessação do contrato são as reguladas por convenção das partes (artºs 405º, nº 1 e 406º, nº 1 do C.Civil).
IV - Na falta dessa convenção, serão aplicáveis, se for esse o caso, as regras da conta corrente em geral, as regras do mandato, relativamente à disponibilidade, e quanto ao saldo, no caso de cessação, as regras do mútuo.
V – Se não se tiver convencionado qualquer prazo de duração do contrato, qualquer das partes pode pôr-lhe termo; em tal caso o mutuário dispõe do prazo de 30 dias para pagar o saldo em débito (artºs 349º do C. Comercial e 1148º, nº 2 do C.Civil).
VI – Deste regime decorre que a obrigação de reembolso só nasce se e na medida da disponibilização/utilização efectiva do crédito, donde, sendo acordado entre as partes que tal seria reflectido e objecto de “conta corrente” entre elas, apurado que seja a existência de um saldo devedor, será axiomático que seja o cliente (leia-se o aqui R.) condenado no correspondente pagamento.
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6 - DISPOSITIVO
Pelo exposto, decide-se a final, julgar procedente o recurso de apelação interposto pela A./recorrente, em consequência do que se revoga a sentença recorrida, que se substitui por outra nos termos da qual se condena o Réu a pagar à A. a quantia de € 3.588,07, acrescida dos juros vencidos e vincendos sobre a mesma, desde 16/04/2009 até efectivo e integral pagamento, à taxa contratual de 26,88% ao ano, acrescida da cláusula penal de 12% ao ano, e ainda o montante de € 51,00 de taxa de justiça liquidada.
            Custas em ambas as instâncias pelo R..
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                                                                                   Coimbra, 10 de Dezembro de 2013

 Luís Filipe Cravo ( Relator)
  Maria José Guerra
António Carvalho Martins

[1] Nessa medida até tornando legítima a concreta dispensa de enumeração dessa factualidade (cf. art. 713º, nº6 do C.P.Civil), mas que optamos por fazer para tornar mais explícita e facilitada a exposição e compreensão da solução que se vai dar às questões que constituem o “thema decidendum”.
[2] Neste sentido e vincando o entendimento de reservar a anulação do julgamento para os ditos casos, isto é, como uma medida de último recurso, veja-se A. ABRANTES GERALDES, in “Recursos em Processo Civil Novo Regime”, 2ª edição revista e actualizada, Livª Almedina, 2008, a pags. 295-297.
[3] Qualificando como “tecnicamente incorrecto” um tal modo de proceder, vide ABRANTES GERALDES, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II Volume, 4ª ed., Livª Almedina, 2010, a págs. 149.
[4] Cf. sobre este fundamento de nulidade, o que sobre tal discorrem LEBRE DE FREITAS / MONTALVÃO MACHADO / RUI PINTO, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, a pags. 704.
[5] Por contraponto a “real”, de que o mútuo comummente é dado como exemplo.

[6] É o Acórdão do T. da Rel de Coimbra de 19-12-2012, no proc. nº 132/12.2TBCVL-A.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.