Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
15/12.6TBSRE-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL NO TEMPO
Data do Acordão: 03/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA, COIMBRA, INSTÂNCIA CENTRAL – SECÇÃO DE EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 456.º, N.º 2 DO CPC (ACTUAL ARTIGO 542.º, N.º 2 DO NCPC)
Sumário: 1. A lei aplicável ao instituto da litigância de má fé é a vigente à data da prática dos factos/condutas ilícitos que geram a alegada má fé.
2. Tanto os pressupostos como as consequências da litigância de má fé deve ser apreciados à luz do mesmo regime legal.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

A..., B... , C... e D... , Lda. deduziram a presente oposição contra E..., Lda., à execução para pagamento de quantia certa que corre termos sob o n.º15/12.6TBSRE, e na qual figuram comos Executados, e esta como Exequente, pedindo, a final, que sejam julgadas procedentes por provadas “as excepções de ilegitimidade do portador, a excepção de inexistência da dívida e a excepção de preenchimento abusivo, declarando as letras dadas à execução feridas de nulidade”.

Alegaram, para o efeito, e grosso modo, que entre as sociedades aqui Executada e Exequente nunca houve qualquer relação comercial, tendo, sim, existido entre aquela e a sociedade F..., a qual intentou uma ação executiva contra aquela primeira, finda por força de um acordo de pagamento, no âmbito do qual foram “entregues, pelo B... e pelo C... , duas letras para pagamento dos montantes que a executada ainda tinha em dívida”, ou seja, “como garantia do pagamento dos valores em dívida caso aquele acordo não fosse cumprido”, e “em branco, já avalizadas pelos ora executados, pessoas singulares, sendo que as mesmas seriam preenchidas em caso de incumprimento”. Nesta ordem de ideias, e argumentando que o dito acordo de pagamento foi cumprido, bem assim que nada ficou a sociedade Executada/Opoente a dever àquela sociedade F... , concluiu que “a ora exequente não é legítima portadora da letra o que (…) conduz à excepção de legitimidade e assim à consideração de que não estamos perante um título executivo”, acrescendo “que, e consequentemente, na medida em que tal relação nunca existiu, e assim a dívida também não existe, nunca se poderia falar em pacto de preenchimento, ainda que tácito”.

Aduziram, ainda, e por conseguinte, que “a ora exequente sabe não ter qualquer facto que a legitime ser portadora das” letras dadas à execução, “sabe que nunca teve relações comerciais, ou quaisquer outras, com a ora executada” e que “[a]o peticionar os valores em causa, deduziu pedido que manifestamente saber ser destituído de todo e qualquer fundamento, alterando a verdade dos factos de forma grosseira e grotesca”, peticionando, a final, a sua condenação e dos seus representantes “de forma solidária, em multa e indemnização, desde logo, a favor dos ora executados”, arguindo, com relação à indemnização, que haverá de ser arbitrado “aos ora executados, para além do reembolso de todas as despesas, nomeadamente advindas da contratação de mandatário, e de outros técnicos, que os mesmos suportarem e a que foram obrigados, face à má fé litigante, e que neste momento não é possível contabilizar (…), mas em montantes, por ora calculados, nunca inferiores a 25.000,00€”.

Regularmente notificada, a Exequente (aqui Oposta) veio apresentar contestação, contrariando as afirmações, feitas pelos Executados/Opoentes, de inexistência da relação jurídica subjacente, porquanto “não existe identidade de causas de pedir nem de sujeitos processuais” com relação à sobredita ação executiva que correu termos no Tribunal Judicial de Pombal, sendo, ademais, “irrelevante face ao portador das letras de câmbio”.

Igualmente explicou que “os sócios daquela sociedade ( FF... ) e os sócios gerentes da exequente que, estavam presentes, aceitaram as duas letras de câmbio devidamente preenchidas para garantia preenchidas para garantia daqueles planos de pagamento com a condição de cederem, aqueles créditos à E... , Lda, a quem transmitiram os estabelecimentos comerciais, [o] que aqueles executados concordaram, e aceitaram, no intuito de obviarem à penhora dos bens móveis”.

Por fim, defendeu-se da peticionada condenação como litigante de má fé, acusando serem os Executados/Opoentes quem litiga de má fé.

Notificada da contestação, os Executados/Opoentes nada vieram dizer.

Seguindo o processo os termos do processo sumário de declaração, foi proferido despacho datado de 27.09.2012, onde se proferiu despacho saneador tabelar e o Tribunal se absteve de proceder à seleção da matéria de facto.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, à qual se procedeu, como consta das respetivas atas, com a inteira observância do formalismo legal aplicável.

Finda a qual, o Tribunal, por despacho de fls.426-431 dos autos, declarou quais os factos que julgava provados e não provados, decisão da qual não foram formuladas quaisquer reclamações, tendo os Executados/Opoentes, ulteriormente, e ao abrigo do disposto no artigo 657.º do C.P.C., oferecido as suas alegações por escrito (cfr. a fls.439-451 dos autos).

Após o que foi proferida a sentença de fl.s 452 a 459, na qual se decidiu o seguinte:

“Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas,

3.1. julgo procedente, por provada, a presente oposição à execução e, em consequência

3.1. 1. determino a extinção da execução principal de que é apenso para pagamento das quantias inscritas na letras de câmbio dadas à execução; e

3.1.2. condeno a sociedade Exequente/Oposta no pagamento das custas processuais devidas pela presente oposição à execução, por a ela ter dado causa (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do novo C.P.C.);

e

3.2. julgo procedente por provado o incidente de condenação como litigante de má fé da sociedade Exequente/Oposta e, consequentemente

3.2.1. condeno-a no pagamento de uma multa no montante de 4 (quatro) UC’s;

3.2.1. convido os Executados/Opoentes a, no prazo de 10 dias, liquidarem discriminadamente as suas despesas judiciais acarretadas e prejuízos sofridos conforme supra exposto; e

3.2.2. condeno a sociedade Exequente/Oposta no pagamento das correspondentes custas processuais (cfr. o artigo 539.º, n.º1, in fine do novo C.P.C.).”.

Notificados da mesma, vieram os executados-opoentes, cf. seu requerimento de fl.s 460 a 463, requerer a respectiva aclaração, com o fundamento em da mesma não resultar se a condenação por litigância de má fé abrange apenas a sociedade ou também os seus sócios gerentes, defendendo que assim deve ser e solicitando, em conformidade, fosse proferido despacho “no sentido de que essa mesma condenação englobe a condenação como litigantes de má fé dos seus legais representantes.”.

De seguida, cf. requerimento de fl.s 465 a 476 (posteriormente rectificado através do requerimento de fl.s 480 a 492, o que foi aceite), os executados-opoentes vieram quantificar as despesas e os prejuízos sofridos em consequência da actuação dolosa da exequente, cf. ordenado na sentença acima já referida, peticionando a condenação da exequente e dos seus representantes, no pagamento de uma indemnização por litigância de má fé, no montante global de 29.283,40 € e de acordo com as parcelas mencionadas a fl.s 491 v.º e 492.

Conclusos os autos à M.ma Juiz a quo, esta, como consta de fl.s 498 a 499, no tocante ao supra referido requerimento de aclaração, decidiu o seguinte:

“I. Da aclaração da sentença

[a condenação da sociedade e/ou dos seus representantes legais?]

Vieram os Executados/Opoentes requerer a “aclaração da sentença no sentido de evitar interpretações dúbias e assim de novas questões processuais a serem levantadas, por forma a tornar indiscutível a responsabilidade daqueles mesmos representantes”, arguindo que “tal condenação como litigante de má-fé da ora exequente abrange, nos termos do artigo 458ºdo CPC, os seus representantes, pelo que a responsabilidade pelo pagamento da indemnização é também desses mesmos Representantes”.

*

Lê-se no atual artigo 544.º do novo Código de Processo Civil (com correspondência, ainda que não integral conforme, precisamente, se salientará, no antigo 458.º do C.P.C.), que, «[q]uando a parte for um incapaz, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu representante que esteja de má-fé na causa».

Por referência ao anteriormente consagrado no referido artigo 458.º do C.P.C., os tribunais portugueses, de uma forma geral, entendiam que, «[q]uando [fosse] parte na causa um incapaz ou uma pessoa colectiva, a actividade processual que conta é a do respectivo representante. É este que age em nome do representado; se no exercício da acção ou da defesa puder descobrir-se dolo substancial ou instrumental, há-de imputar-se ao representante, e não ao próprio incapaz ou à pessoa colectiva» (assim, e inter alia, o aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.03.2009, processo n.º8176/2008-1, Maria Rosário Barbosa, onde se concluiu que «não pode a Sociedade A. ser condenada como litigante de má-fé pois no caso não podemos deixar de reconhecer que os autos não contém quaisquer elementos que permitam determinar a que representante da R. poderia ser imputável a má-fé»).

Contudo, e justamente, «[o] artº 544º, do novo CPC, que alterou o artº 458º do anterior, passou a admitir a possibilidade de condenação, como litigantes de má fé, das pessoas colectivas e sociedades e eliminou a responsabilização do representante que estivesse de má fé na causa», sendo «[t]al norma (…) de aplicação imediata, pelo que, apreciando-se em recurso uma tal condenação, esta não pode subsistir». Com efeito, «[n]o domínio do Código de Processo Civil que vigorou até 31-08-2013, dispunha o artº 458º que, na hipótese de a parte litigante de má fé ser uma sociedade, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização previstas no artº 456º, recai sobre a pessoa do seu representante que esteja de má fé na causa. As consequências da conduta típica e censurável da pessoa colectiva manifestada no processo, violadora dos interesses públicos fundamentais que o inspiram (artºs 456º, nº 2, e 266º-A[1]) eram, portanto, imputadas a quem, agindo processualmente em nome da sociedade, corporizou e subjectivou (com dolo ou negligência grave) os inerentes actos, ou seja, a quem, na realidade, esteve de má fé na causa. Era assim em face da especial natureza da parte litigante que, só se considerando pessoa enquanto como tal ficcionada pelo Direito, não tem vida, acção e vontade próprias, no sentido físico e psíquico, qualidades pressupostas da acção praticada e a cujo agente se dirige a reprovação ético-jurídica em que se traduz a punição. (…) Este modelo remonta ao tempo, hoje ultrapassado, em que praticamente se rejeitava a responsabilidade penal das pessoas colectivas, na medida em que insusceptíveis de um juízo de culpa (segundo o princípio de que societas delinquere non potest) e apenas se admitia a punição de quem individualmente agisse em seu nome. (…) Vem isto a propósito da entrada em vigor, no pretérito dia 1 de Setembro, do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho. Cotejando o texto do artº 548º, agora revogado, com o do novo artº 544º vigente, constata-se que foi eliminada a responsabilidade individual da pessoa singular que aja de má fé em representação da parte pessoa colectiva. No regime de agora, portanto, a eventual conduta litigante de má fé da aqui autora sociedade comercial ser-lhe-ia directamente imputável, respondendo o seu património, em termos gerais, pelas custas, multa e indemnização em que, a esse título, devesse ser condenada. Tal responsabilidade, portanto, deixou de recair sobre o seu representante, ainda que este esteja de má fé na causa. Ora, nos termos do artº 5º, nº 1, do diploma que aprovou o novo Código, este “é imediatamente aplicável às acções declarativas pendentes”. Sendo assim, à face do novo artº 544º do Código, a conduta do aqui apelante, enquanto representante da parte pessoa colectiva no processo, deixou de estar tipificada e, portanto, de ser punível. Tal consequência, está em linha de sintonia com o, na essência, similar regime penal: o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções (descriminalização); sendo diferentes as disposições penais vigentes ao tempo da prática do facto das posteriormente estabelecidas (alteração), é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente (artº 2º, nºs 2 e 4, do CP). E corresponde ao princípio constitucional de que são aplicadas retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável (artº 29º, nº 4, da CRP). Formalmente, não estamos, claro, ante lei penal, como já se disse.

Todavia, comungando ela, como se viu, de princípios e valores fundamentalmente idênticos, ajusta-se a tal regime a legalmente preconizada aplicação imediata da lei processual nova – aplicação esta, afinal, correspondente ao princípio geral aceite na matéria e sobre que o legislador nenhuma excepção ou restrição, neste caso, estabeleceu. Princípio que, aliás, concebido como de inspiração processual, reconhecidamente assenta no interesse público subjacente ao direito adjectivo e que se justifica no entendimento de que “a nova lei é, do ponto de vista público ou estadual, a tida como a melhor para a defesa dos interesses que estão na base do direito processual”[5] mas que, exactamente por isso, também se aproxima do da descriminalização ou do da retroactividade da lei penal mais favorável, uma vez que se o legislador resolveu deixar de considerar como ilícito punível certa conduta ou atenuar a respectiva punição é porque, “em mais adequada e actualizada visão dos valores legalmente protegidos”[6], entendeu que os factos não são merecedores de censura, ou não o são nos termos gravosos em que o eram. De resto, no instituto em apreço, a norma em causa, não regula actos processuais, estabelece, sim, um meio de tutela, de cariz sancionatório, da boa fé processual» (vide o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.09.2013, processo n.º4351/08.9TBVNG.P2, José Amaral).

*

In casu, portanto, indefere-se a aclaração requerida da sentença proferida, já, na vigência do novo Código de Processo Civil (e que de seguida se complementará), mantendo-a nos seus precisos termos, designadamente no constante sob o seu ponto 3.2., atinente à condenação como litigante de má fé da Sociedade Exequente/Oposta, na multa fixada em 3.2.1. e na indemnização que infra se determinará.

Tal afirmação/conclusão não é contrariada pelo disposto no n.º4 do artigo 6.º da Lei n.º41/2013, de 26 de Junho (que aprovou o novo Código de Processo Civil, com a Retificação n.º36/2013, de 26 de Agosto) – onde se lê que «[o] disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos procedimentos e incidentes de natureza declarativa apenas se aplica aos que sejam deduzidos a partir da data de entrada em vigor da presente lei» –, porquanto, segundo o entendimento deste Tribunal, as novas regras que não sejam as especificamente previstas e/ou conexas com os ditos incidentes de natureza declarativa, como seja a oposição à execução, não são de subsumir àquela previsão legal; o mesmo será dizer que as novas regras que sejam reconduzíveis às disposições gerais e comuns, como é o caso das regras insertas no título «[d]as custas, multas e indemnização] e, aqui, as relativas às «[m]ultas e indemnização» (contidas nos artigos 542.º a 545.º), são de aplicação imediata (nos termos do n.º 1 do referido artigo 6.º). “.

E, conforme decisão de fl.s 499 v.º a 503 v.º, no que concerne à quantificação da indemnização a pagar pela exequente aos executados, a título de litigância de má fé, decidiu-se o seguinte:

“Pelo exposto, condeno a Sociedade Exequente/Oposta a pagar aos Executados/Opoentes, a título de litigância de má fé, a indemnização global de €18.327, 60 (dezoito mil, trezentos e vinte e sete euros, e sessenta cêntimos), sendo:

1. €14.250,00 (catorze mil, duzentos e cinquenta euros), a título de despesas com os honorários do Ilustre Mandatário e com o Técnico Oficial de Contas;

2. €1.652,40 (mil seiscentos e cinquenta e dois euros, e quarenta cêntimos), referentes a taxas de justiça pagas pelos Executados/Opoentes;

3. €8,40 (oito euros e quarenta cêntimos) a cada um dos Executados/Opoentes, relativos despesas de deslocação dos Executados/Opoentes às audiências de julgamento, num total de €25,20 (vinte e cinco euros e vinte cêntimos; e

4. €800,00 (oitocentos euros) a cada um dos Executados/Opoentes, a título de danos não patrimoniais, num global de €2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros).”.

            Inconformados com a mesma, interpuseram recurso os opoentes-executados, A... ; B... ; C... e D... , L.da, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 524), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

a.Os presentes autos de execução tiveram a sua origem com a apresentação do requerimento executivo pela exequente, apresentando aquela, como título executivo, duas letras alegadamente devidas pelos ora recorrentes, no valor global de € 73.504,29 (com juros incluídos), a executada pessoa colectiva responsável pelo montante advindo de fornecimentos prestados pela exequente no exercício das suas actividades, e os executados/pessoas singulares como avalistas.

b.Em sede de oposição à execução alegaram que nada deviam à exequente, a qualquer título, não existindo qualquer relação comercial ou outra relação entre os executados, e mesmo entre a executada pessoa colectiva (ora recorrentes) e a exequente e seus legais representantes, e ainda ter havido um preenchimento abusivo de letras, bem como ter existido um pagamento no âmbito de um outro processo judicial nada restando em dívida. E, na mesma sede mais peticionaram os ora recorrentes a condenação da exequente, e dos seus gerentes, por litigância de má fé, na modalidade de dolo, e assim, ao pagamento de todas as despesas, incluindo os honorários do mandatário, custas dos presentes autos, procuradoria, multa e indemnização a favor dos executados a arbitrar pelo Tribunal e a calcular após ser proferida sentença final.

c.A exequente/oposta apresentou contestação, contrariando o afirmado pelos executados (ora recorrentes), sendo que após várias sessões da audiência de discussão e julgamento - nomeadamente por impossibilidade de se efectivar o depoimento de parte daqueles mesmos gerentes pela sua contínua não presença e por nunca se ter obtido a sua notificação - ao 23 de Setembro de 2013 foi proferido despacho (de fls.426-431 dos autos) de resposta à matéria de facto, a que se seguiu a apresentação – pelos ali executados/opoentes, ora recorrentes - e ao abrigo do disposto no artigo 657.º do CPC (anterior e aplicável in casu), de requerimento quanto ao aspecto jurídico da causa, tendo este sido aceite e assim junto aos autos.

d.Em 22 de Outubro de 2013 foi proferida sentença que decidiu julgar procedente, por provada a oposição à execução, determinando a extinção da execução da qual o processo de oposição é apenso, e declarou procedente por provado o incidente de condenação como litigante de má fé da sociedade Exequente/Oposta.

e.O tribunal a quo determinou que os sócios-gerentes da exequente, filhos do sócio da sociedade F... e, designadamente, tendo o seu sócio-gerente H... acompanhado a gestão, aos seus vários níveis da referida F... , ao instaurar a ação executiva de que estes autos são apenso, não poderia nem deveria ignorar que as letras dadas à execução o foram no âmbito de um acordo de pagamento e que a dívida ali em causa foi integralmente liquidada pela Executada/Opoente.

f.O tribunal a quo considerou que a sociedade Exequente/Oposta actuou com «negligência grave», em face, pois, das relações próximas (de família, inclusivamente), entre os sócios-gerentes das sociedades F... e da E... e, sobretudo, do acompanhamento, pelo sócio-gerente desta H... , da gestão daquela.

g.Da decisão de condenação como litigante de má fé, não se depreendia – salvo o devido respeito, assim se afigurou aos executados/opoentes - de forma clara, quais as pessoas afectadas com tal condenação, ou seja, se a condenação incluía, nos termos peticionados em sede de oposição à execução, os sócios gerentes da exequente ou se limitava à exequente/oponida pessoa colectiva, tendo sido apresentado pedido de aclaração de sentença que foi recebido e obteve o competente despacho.

h.O pedido teve como fundamento o facto de ao abrigo da lei aplicável aos autos (CPC anterior), o artigo 458.º do CPC determinar que recai(a) sobre os legais representantes a responsabilidade por condenação em custas, multa e indemnização da parte que esteja de má fé na causa.

i.Em sede de despacho de decisão quanto ao requerimento de pedido aclaração, vem o tribunal decidir que aos autos se aplica o novo Código de Processo Civil (NCPC), nos termos do artigo 6.º, n.º1 da Lei n.º 41/2013 que aprovou o NCPC determinando a aplicação ao caso do actual 544.º, e assim isentando de qualquer responsabilidade os legais representantes da exequente.

j.Os presentes autos iniciaram-se na vigência de uma lei (CPC anterior a Setembro de 2013), tendo sido publicada nova lei e assim entrado em vigor um Novo Código de Processo Civil (NCPC) em 01 de Setembro de 2013.

k.A apresentação do requerimento de discussão do aspecto jurídico da causa, aceite nos autos, e do requerimento de aclaração, também aceite, e sobre o qual foi proferido despacho após a sua devida apreciação, ocorreram após 01 de Setembro de 2013 e assim ao abrigo do “velho” CPC, por quanto o NCPC eliminou tais institutos jurídicos.

l.Nas disposições transitórias previstas pela Lei 41/2013 que aprovou o NCPC, estabelecem-se regras especiais de aplicação da lei às acções pendentes Dispõe o artigo 6.º, n.º4 da mesma lei, ao contrário do disposto para as acções declarativas e executivas pendentes, cuja aplicação do NCPC é imediata, relativamente aos procedimentos e incidentes de natureza declarativa a nova lei apenas se aplica aos apresentados após 01 de Setembro de 2013. E, assim, se a própria oposição à execução constitui, só por si, um incidente de natureza declarativa que corre por apenso à acção executiva que origina os autos, tendo in casu sido aplicado o anterior CPC, então, nestes termos, também a litigância de má fé, ela mesmo, um incidente, e um incidente de natureza declarativa que, in casu, foi deduzido aquando da apresentação da oposição à execução, e assim, em momento anterior à entrada em vigor do presente código de processo civil (NCPC), deve obter a mesma resposta quanto à aplicação do anterior regime. Se assim não for, estaremos perante um sério caso de violação da própria norma transitória. Isto é, no que tange à condenação como litigante de má fé deveria o tribunal a quo aplicar o anterior regime, plasmado no artigo 456.º e ss. do CPC, na medida em que se trata de um incidente da instância a tramitar nos termos do artigo 302.º e ss. do anterior CPC.

m.Por outro lado, e ademais, carece de sentido e fundamento a diferença de tratamento e de regime entre todos os incidentes da instância anteriores a Setembro de 2013 seguirem o regime antigo para depois consentir na aplicação da nova regra que consagra a própria litigância de má fé. Por uma questão de coerência do ordenamento jurídico e de igual tratamento de todos os incidentes da instância e assim de unidade do sistema, deve, in casu, na condenação proferida, aplicar-se o regime plasmado no artigo 456.º e ss do anterior CPC, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei 41/2013.

n.Ao considerar a aplicação do nº 1 do artº 6º em detrimento do nº 4 estamos assim perante um erro na determinação da norma aplicável, nos termos da alínea c) do nº 2 do artº 639º do NCPC. Na verdade, ao estipular a norma vertida no n.º 4 do artigo 6.º da Lei 41/2013, foi clara a intenção do legislador no sentido de que aos incidentes da instância anteriores a Setembro de 2013 devem ser aplicadas as normas do 302.º e ss. do anterior CPC. E, consequentemente, quanto à litigância de má-fé, ter-se optado pelo regime das custas, multa e indemnização consagrado nos artigos 456º e segs do “velho” CPC e assim serem os legais representantes da exequente condenados como litigantes de má-fé, e assim responsabilizados pela indemnização a pagar aos ora recorrentes, porquanto, como resulta dos factos provados foram estes que litigaram de má fé na causa (artigo 458.º anterior CPC). E, não sendo assim estaremos perante a violação dos normativos aduzidos (leia-se 456º, 458 do anterior CPC e artigo 6.º, n.º 4 da Lei 41/2013).

o.A aplicação de diferentes regimes, como se concluiu em “M”, no âmbito do mesmo incidente viola o princípio da segurança jurídica e o princípio basilar da processualística – e com consagração constitucional – de evitar decisões surpresa.

p. Esta duplicidade de critérios leva-nos ainda a uma contradição notória que afecta assim a unidade da decisão de um qualquer processo judicial, e por sua vez a unidade do próprio sistema procedimental porquanto, os seus fundamentos (nomeadamente no que concerne à aplicabilidade da lei) estão em oposição com o facto de a própria aclaração ser aceite.

q. A decisão de que ora se recorre viola, de forma manifesta o prescrito pelo artigo 615.º, n.º1 al. c) do NCPC (que corresponde ao anterior 668.º), porquanto o Tribunal a quo fundamenta no sentido de que as normas jurídicas novas, reconduzíveis às normas da parte geral, são de aplicabilidade imediata, porquanto não têm qualquer conexão com o incidente de natureza declarativa, aceitando, contudo, o pedido de aclaração (pronunciando-se sobre o mesmo e afirmando o seu entendimento sobre a matéria em causa), sendo que as normas que regem tal pedido são, também elas, de aplicabilidade geral e as novas regras (NCPC) não prevêem a possibilidade de pedido de aclaração.

r. Pelo que a decisão proferida pelo Tribunal a quo deve ser declarada nula no que concerne a esta matéria.

s.Por outro lado, não se aceita o fundamento da douta aclaração no que respeita à similitude com o direito penal já que não estamos formalmente ante lei penal, nem substancialmente. De facto, estamos perante o regime de processo civil e perante um incidente próprio do mesmo, que não tem qualquer aplicabilidade no processo penal, bem como se terá de afirmar que multa prevista no art. 456.º do CPC não é uma multa penal, como se infere claramente da inserção do preceito. Processo penal e processo civil regem-se por princípios, regras, institutos manifestamente diferentes, podendo apenas afirmar-se que o processo penal é a última ratio do sistema jurídico, não devendo, em caso algum, ser aplicado ao processo civil, mas sim, o seu contrário. E os princípios subjacentes ao incidente de litigância de má fé são os princípios do processo civil, nomeadamente os princípios da cooperação entre partes e da busca da verdade material. De facto, devem as partes concorrer para a justa composição do litígio, cooperando entre si e com o tribunal. Assim, a condenação como litigante de má fé procura, essencialmente, evitar a violação dos princípios estruturantes do processo civil, sendo objectivo evitar que se use o processo em sentido contrário da justiça e dos fins do mesmo.

t.Nesta senda, e por outro lado, ainda que se entenda que in casu se aplica o novo código de processo civil, a verdade é que as alterações ao processo civil devem ser analisadas como um conjunto e com um fim global, e assim afirmar que as alterações ao processo civil que entraram em vigor em Setembro de 2013 (NCPC) tem como fim primeiro a busca da verdade material, acentuando tal busca, e dando mais poderes ao juiz (ao nível do inquisitório, gestão e direcção do processo) para que se apure a realidade dos factos, devendo esta prevalecer em detrimento da forma. Tudo num reforço dos poderes de direcção, agilização, adequação e gestão processual do juiz, com vista à obtenção (e prevalência) de uma decisão de mérito, em prazo razoável, para além de se ampliar o princípio da adequação formal.

u.Neste contexto, foi também acentuada a necessidade de sancionar o bom cumprimento das regras processuais e assim o dever de cooperação e diligência das partes, sancionando o uso indevido do processo com expedientes meramente dilatórios, de que é exemplo o actual artigo 531.º do NCPC (que corresponde com alterações ao anterior artigo 447.º-B) que abre o leque de casos em que é aplicável uma taxa sancionatória excepcional que procura diminuir – evitar – os casos de uso indevido do processo civil.

v.Ora, assim, se a lógica das alterações e o fim prosseguido é o da busca da verdade material e a prevalência da substância sob a forma, com o acompanhamento da concessão de maiores poderes de direcção do processo ao juiz, em prol do apuramento da verdade material, e paralelamente um sancionamento agravado do indevido uso do processo, então, a alteração da norma contida no artigo 544.º, articulada com o 542º e demais normativos do mesmo capítulo (multas e indemnização), ao ser retirada a expressão «sociedade», não pode significar “uma porta aberta para, ao abrigo de uma pessoa jurídica, os gerentes possam usar e abusar do processo civil” ou para actos de completa libertinagem dos representantes das pessoas colectivas que, apesar de todo e qualquer comportamento processual nunca serão – pela via da litigância de má-fé – responsabilizados. São estes que agem, pensam, requerem, corporizam e subjectivam a vontade da pessoa colectiva. Deste modo, pela condenação por litigância de má fé, deve também ser responsabilizado, além da pessoa colectiva – ela mesma, por si – o legal representante que agiu, que quis, que representou o facto de estar a agir de má fé, e mesmo assim não se coibiu de o fazer.

w.Uma leitura contrária leva-nos mesmo, na maioria dos casos, à própria denegação da justiça. Além da questão adjectiva/processual, a verdade é que, uma interpretação das normas constante dos artigos 541º e 544.º do NCPC, no sentido da “desresponsabilização” dos legais representantes pela litigância de má fé da pessoa colectiva colocará em causa a boa aplicação do direito, violando-se os princípios estruturantes de todo o ordenamento jurídico e constitucionalmente previstos, de que é exemplo a tutela jurisdicional efectiva, porquanto o direito a uma qualquer indemnização por condenação da contra parte em litigância de má fé se frustraria na maior parte dos casos, sendo o presente caso um exemplo paradigmático (por exemplo situação de insolvência da pessoa colectiva).

x.Assim, teremos de afirmar que em causa está a violação dos normativos referentes à litigância de má-fé, ou seja os artigos 542º, 543º e 544º do NCPC e bem assim o artigo 20º da CRP, porquanto a interpretação conjugada de todas estas normas conduz-nos a considerar também como responsáveis pela litigância de má-fé dos representantes da pessoa colectiva, ora exequente/oponida. Em causa está, não apenas uma busca de uma melhor aplicação do direito processual mas deriva daqui, isso sim, uma melhor aplicação do direito material com uma sempre tentativa de que o princípio da justiça material seja alcançado. Em causa está também a unicidade do sistema jurídico e o seu entendimento global.

y.Sem conceder, se se entender a articulação dos artigos 544.º, 541º e demais artigos do capítulo onde estes se encontram inseridos, do NCPC no sentido de “desresponsabilizar” os legais representantes das pessoas jurídicas no caso de condenação em custas, multa ou indemnização por litigância de má fé, tal entendimento só se poderá considerar inconstitucional, por contrário aos principio de justiça, de tutela jurisdicional efectiva e de unicidade de todo o sistema jurídico.

Ou seja, e em jeito de pedido

Deve ser aplicado à condenação como litigantes de má fé, o artigo 6.º, n.º 4 da Lei 41/2013 e, e em consequência, ser aplicado o regime prescrito pelo CPC em vigor anteriormente a Setembro de 2013 e assim serem os legais representantes responsabilizados pelo pagamento da indemnização por litigância de má fé determinada pela sentença;

Sem conceder, se assim não se entender,

Deve a douta sentença, no que concerne ao pedido de litigância de má fé, ser considerada nula, nos termos do artigo 615.º, nº 1, al. c) do actual CPC (anterior 668.º, n.º1, al. c);

E ainda, sem conceder, caso assim não se entenda,

Deve ser considerada inconstitucional a leitura conjugada dos artigos 542.º, 543.º, e 544.º do actual CPC no sentido de isentar os legais representantes das pessoas colectivas de qualquer responsabilidade no âmbito de condenação destas como litigantes de má fé.

Assim decidindo V. Exas, Venerandos Conselheiros, farão JUSTIÇA

            Não foram apresentadas contra-alegações.

           

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se em consequência da entrada em vigor do NCPC, só as sociedades podem ser condenadas por litigância de má fé e não os seus representantes legais, ainda que por condutas ocorridas em data anterior à sua vigência.

B. Se a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do NCPC e;

C. Se a decisão recorrida viola o disposto no artigo 20.º da CRP, por contrária aos princípios de justiça, de tutela jurisdicional efectiva e de unicidade de todo o sistema.

            É a seguinte a matéria de facto dada por provada na sentença recorrida:

2.1.1. A exequente E... , Lda. instaurou acção executiva para pagamento da quantia de € 73.504,29 contra A... , B... , C... e D... , Lda., alegando que, para pagamento de fornecimentos prestados pela Exequente, a executada D... , Lda., apôs o seu aceite em duas letras de câmbio, uma no valor de 30.617,93, datada de 21.02.2011 e com vencimento a 31.08.2011, e outra no valor de € 42.835,36, datada de 21.02.2011 e com vencimento a 31.08.2011, as quais foram avalizadas pelos demais executados, sendo que, na data de vencimento os Executados não reformaram as letras, que permanecem em dívida, bem como os respectivos juros e a taxa de justiça paga.

2.1.2. No lugar destinado ao aceite, nas referidas letras, apresentadas como título executivo, encontra-se a expressão “ D... Lda, contribuinte nº 507 802 900 A Gerência” e sobre ela a assinatura de B... .

2.1.3. A Exequente figura nas mencionadas letras no lugar destinado ao sacador.

2.1.4. No verso das letras e sob a expressão “Dou o meu aval à firma subscritora”, encontram-se as assinaturas dos executados A... , C... e B... .

2.1.5. Os Executados, designadamente a executada D... , Lda., não mantiveram qualquer relação comercial com a Exequente.

2.1.6. A executada D... , Lda. manteve uma relação comercial com a sociedade F... , Lda., no âmbito da qual esta última forneceu à primeira diversos produtos do seu comércio.

2.1.7. Os sócios-gerentes da exequente, G... e H... , são filhos de I... , sócio da referida F... , Lda.

2.1.8. H... sempre acompanhou a gestão da referida F... , Lda., fazendo entregas de mercadoria, recebendo pagamentos da sociedade ora Executada e acompanhando os sócios desta em diligências judiciais.

2.1.9. As letras de câmbio dadas à execução foram emitidas no âmbito da relação comercial referida em 2.1.6..

2.1.10. A sociedade F... , Lda. intentou ação executiva, que correu termos no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal sob o n.º 79/10.7TBPBL, contra a aqui executada D... , Lda., para pagamento da quantia de € 28.676,96, dando como título executivo cheques.

2.1.11. As letras dadas à execução foram entregues no âmbito de diligência de penhora realizada no aludido processo n.º 79/10.7TBPBL, em 21.02.2011, como parte de um acordo de pagamento com a sociedade F... , Lda., aí exequente, de modo a obviar à concretização da diligência.

2.1.112. Pelo menos em 28.09.2012 a quantia exequenda peticionada no âmbito do aludido processo n.º 79/10.7TBPBL encontrava-se paga.

2.1.13. Da contabilidade da sociedade F... , Lda. não constam outras dívidas da ora sociedade executada para com a mesma.

            A. Se em consequência da entrada em vigor do NCPC, só as sociedades podem ser condenadas por litigância de má fé e não os seus representantes legais, ainda que por condutas ocorridas em data anterior à da sua vigência.

Como resulta das conclusões do recurso ora em análise, os recorrentes defendem que deve ser atendível, para efeitos de condenação por litigância de má fé dos representantes da sociedade, aqui recorrida, a lei vigente à data da prática dos factos que consubstanciam a má fé, ou seja, o regime previsto no anterior CPC, com fundamento em a aplicação imediata do novo regime estar ressalvada no artigo 6.º, n.º 4, da Lei 41/2013, de 26 de Junho.

Ao invés, na decisão recorrida, sustentou-se ser de aplicação imediata a tal situação o previsto no novo CPC, por força do disposto no artigo 6.º, n.º 1, da mesma Lei, de acordo com o qual, o novo regime se aplica às execuções pendentes à data da sua entrada em vigor, não se aplicando o seu n.º 4 por este apenas regular o processamento dos incidentes de natureza declarativa ali referidos (como o é, pacificamente, a oposição/embargos a uma execução) mas não às disposições gerais e comuns, como é o caso, dado o seu carácter substantivo, das regras que definem a litigância de má fé.

Previamente à questão de saber se a qualificação das condutas processuais em causa (relativamente à pessoa dos representantes da sociedade exequente e aqui recorrida) consubstanciam ou não a litigância de má fé, tal como definida no artigo 456.º, n.º 2 do CPC (actual artigo 542.º, n.º 2 do NCPC), importa fixar a lei que lhe deva ser aplicável, ou seja, se a lei vigente à data da prática dos factos/condutas que geram a alegada má fé ou a lei vigente no momento em que se profere a decisão condenatória por litigância de má fé, com as consequências daí resultantes.

Efectivamente, não obstante a sentença na qual se considerou que a sociedade exequente litigou de má fé, condenando-a, com base em tal fundamento, no pagamento de uma multa de 4 Uc.s e se determinar, por parte dos executados, a liquidação dos prejuízos de tal decorrentes, ter sido proferida em 25 de Outubro de 2013 e a decisão em que se decidiu o requerimento de aclaração que sobre a mesma incidiu e em que se fixou o montante da respectiva indemnização ter sido proferida em 14 de Março de 2014, o certo é que todas a condutas processuais que estão na génese da condenação da mesma como litigante de má fé (bem como da pretendida condenação dos respectivos representantes) ocorreram em data anterior à da vigência do NCPC.

Este, como decorre do que estabelece o artigo 8.º da supra citada Lei 41/2003, entrou em vigor no dia 01 de Setembro de 2013 e de acordo com o seu artigo 6.º, n.º 1, com as necessárias adaptações, teve aplicação imediata a todas as execuções pendentes à data da sua entrada em vigor, ressalvando-se, como acima já se aludiu, a sua aplicação imediata aos incidentes de natureza declarativa (n.º 4 deste artigo 6.º).

Como é óbvio, não se colocariam problemas de maior se ambos os regimes fossem iguais ou semelhantes. Acontece, porém que (talvez devido à polémica que antes já vinha sendo travada no sentido de saber se era legítima a condenação dos gerentes das sociedades e não destas, directamente, por litigância de má fé, dado que as sociedades podem ser directamente responsabilizadas que civil quer penalmente e as relações entre o gerente e a sociedade são de cariz interno e podem motivar o exercício do direito de regresso desta para com aquele) o regime consagrado no NCPC, no que a esta questão respeita, é substancialmente diferente do anterior.

Efectivamente, ao passo que no artigo 456.º, n.º 1, do CPC, se estabelecia que no caso de ter litigado de má fé, a parte seria condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir e no caso de se tratar de uma pessoa colectiva ou sociedade, a responsabilidade decorrente da actuação a título de litigância de má fé recaia sobre o representante que esteja de má fé na causa (sublinhado nosso) – cf. artigo 458.º, do CPC, no actual regime, como consagrado no artigo 544.º do NCPC, deixou de se prever tal responsabilidade por parte dos representantes das sociedades, mantendo-se o regime anteriormente previsto, apenas para a hipótese de a parte condenada por litigância de má fé ser um incapaz, caso em que a mesma recai sobre o seu representante que esteja de má fé na causa.

Assim, como decorre da comparação directa entre ambos os regimes em causa, verifica-se que deixou de estar prevista a responsabilidade do representante de uma pessoa colectiva ou de uma sociedade que esteja de má fé na causa, o que equivale a concluir que a responsabilidade daí decorrente passa a ser, em via directa, da própria sociedade ou pessoa colectiva.

Tal, como o refere A, Menezes Cordeiro, in Litigância de Má Fé Abuso do Direito de Ação e Culpa “In Agendo”, 3.ª edição aumentada e atualizada à luz do CPC de 2013, Almedina, Janeiro de 2014, pág. 61, através desta alteração de regime, limitou-se a eficácia do instituto da litigância de má fé, com a supressão da responsabilidade autónoma do representante de pessoas colectivas, acrescentando a pág. 70 que “A condenação dos seus administradores ou representantes legais era dissuasória. A revogação do artigo 458.º e a sua substituição pelo actual 544.º, que já não prevê tal condenação é, objectivamente, uma medida que retira eficácia ao instituto aqui em estudo.”.

À luz do anterior regime, considerava-se que a responsabilidade do representante da sociedade se baseia na actividade processual que levou a cabo em nome da sociedade, pelo que a actuação dolosa que consubstancia a litigância de má fé devia imputar-se ao representante e não à própria sociedade, em face do que, como se concluiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 103/95, de 22/02/1995, disponível no respectivo sítio da internet, a responsabilidade do representante não é cumulativa com a do seu representado, ao lado da deste, mas sim uma responsabilidade substitutiva, uma responsabilidade do representante em vez do representado.

Ou seja, a responsabilidade do representante da sociedade, embora decorra por uma actuação em nome de outrem, assenta numa ideia de culpa, num juízo de censura de um comportamento que o gerente adoptou em nome da sociedade.

Uma vez que no regime consagrado no NCPC se limitou a responsabilidade ora em apreço apenas à hipótese de se tratar de representante de um incapaz e de a regra ser a aplicação imediata da lei processual civil (neste sentido, veja-se, Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, 1981, vol. I, pág. 56 e Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, pág. 47 e seg.s), coloca-se, então, a questão de saber qual o regime legal aplicável.

A resposta a dar-lhe, com o devido respeito por opinião em contrário, radica na razão de ser da existência do instituto da litigância de má fé, dito de outro modo, tem de justificar-se com a sua natureza e consequências que daí advêm, já que não pode perder-se de vista que visa sancionar uma conduta que se tem por desconforme àquela que o legislador idealizou como sendo a que os litigantes devem seguir ao submeter a apreciação das suas pretensões em juízo e no desenvolvimento da lide que lhe está inerente, mediante a sujeição destes a diversos deveres que, violados, os podem fazer incursos em litigância de má fé.

Resposta, esta, que embora a ainda curta vigência do NCPC, não tem vindo a merecer uma solução uniforme.

Na decisão recorrida seguiu-se o decidido no Acórdão da Relação do Porto, de 26 de Setembro de 2013, Processo 4351/08.8TBVNG.P2, disponível no respectivo sítio do itij, no qual se decidiu ser de aplicar imediatamente o regime do NCPC ainda que a situações ocorridas antes da sua vigência mas que no seu âmbito de aplicação tenham de ser decididas, fundamentalmente, por, como aí se refere, a responsabilidade do representante da sociedade nele ter sido eliminada e, portanto, deixou de ser punível e estabelecendo um paralelismo com a lei penal e o princípio da lei mais favorável, tem de se aplicar, de imediato, a lei nova, ainda que se trate de situações ocorridas no anterior regime.

Ao invés, conforme Acórdão do mesmo Tribunal da Relação do Porto, de 16 de Junho de 2014, Processo 117/13.1TBPNF.P1, disponível no mesmo sítio do anterior, considerou-se que dada a natureza do instituto da litigância de má fé, com uma vertente sancionatória e ressarcitória, deve aplicar-se a lei vigente à data da prática dos factos.

A esta solução chegou, igualmente, o STJ, conforme seu Acórdão de 05 de Novembro de 2014, Processo 279/08.0TTBCL.P1.S1, disponível, no respectivo sítio da dgsi/itij.

Com o devido respeito por opinião em contrário, dada a especial natureza do instituto da litigância de má fé e fins tidos em vista, somos de parecer que a sua aferição (verificação dos respectivos pressupostos e respectivas consequências) deve ser vista à luz da lei vigente no momento da sua prática.

Efectivamente, como se escreve no citado Acórdão da Relação do Porto, de 16/06/2014 e que, com a devida vénia, se passa a transcrever:

“Não obstante a aplicação imediata em regra do novo Código de Processo Civil, na nossa perspectiva, isso não significa que seja aplicável a condutas ocorridas em data anterior à sua vigência. Importa distinguir a aplicação imediata e aplicação retroactiva, ou seja, a aplicação a factos ocorridos sob o império da nova lei e aplicação a factos praticados antes da vigência da nova lei de aplicação imediata.

Ora, o instituto da litigância de má fé tem em certa medida uma natureza bifronte porquanto tem uma natureza sancionatória, disciplinadora da conduta das partes e dos seus patronos e uma vertente ressarcitória geradora da obrigação de indemnizar com base na prática de facto ilícito.

Em qualquer das vertentes por que se considere o instituto da litigância de má fé, afigura-se-nos que a lei aplicável será a que vigorava na data da prática dos factos e não aquela que exista à data da prolação da decisão e ainda que a lei nova seja eventualmente mais favorável.”.

Reforçando-se na sua nota 7 que não obstante no novo regime se tenha eliminado a responsabilidade do representante de uma sociedade, por litigância de má fé, se mantém a responsabilidade daquele, a tal título, porque a sua conduta continua a ser legalmente qualificada como litigância de má fé, continua a ser ilícita e foi por si praticada pessoalmente, apenas tendo havido alteração no sujeito directamente responsável e continuando a responsabilização do representante perante a sociedade, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 500.º do Código Civil.

Este Aresto veio a obter comentário concordante de M. Teixeira de Sousa, no blogue do IPPC, cujo endereço é o que se segue: blogippc.blogspot.com, justificando-se, no seu entender, a solução apresentada, com base no duplo carácter das consequências da litigância de má fé – ressarcitórias e sancionatórias – acrescentando, ainda, para abono do ali defendido, que “embora deva ser realçado não apenas o duplo carácter daquelas consequências, mas também o carácter indissociável dessas consequências. É isto que permite confirmar a solução defendida no acórdão através do disposto no art.º 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil: dado que a multa e a indemnização não podem abstrair do facto ilícito que constitui a sua fonte, só é possível aplicar a lei vigente no momento da prática do facto ilícito.”.

Concordamos com esta conclusão.

Se as consequências a extrair da litigância de má fé são a multa e a indemnização à parte contrária, no caso de esta a pedir, e estas decorrem da prática do facto ilícito consubstanciado em qualquer das condutas que corporizam a má fé, tal obriga a que se tenha em consideração, aplicando-a, a lei vigente aquando da prática de tal facto/conduta, dada a relação de causa e efeito entre o facto ilícito e as respectivas consequências, o que, tudo, deve ser apreciado em conjunto e uniformemente, isto é, à luz do mesmo regime legal.

No caso em apreço, como decorre da sentença recorrida, decisão de aclaração da mesma e decisão que fixou a indemnização devida aos ora recorrentes por litigância de má fé, foi a mesma (litigância de má fé) considerada apenas sob o prisma da actuação da sociedade e não dos seus representantes, por se considerar que era de aplicar a lei nova, que não permite, seguindo o entendimento nela exposto, a condenação e responsabilização dos gerentes da exequente.

Como já exposto, outro é o nosso entendimento, sendo de apreciar a conduta da sociedade e dos seus representantes à luz do regime consagrado no CPC.

Consequentemente, impõe-se a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que aprecie a conduta dos representantes da sociedade exequente, à luz da lei antiga, a fim de averiguar se algum ou alguns dos seus representantes litigaram de má fé e daí retirar as devidas consequências.

Em face da revogação da decisão recorrida, com os fundamentos expostos, inútil se torna conhecer das demais questões acima elencadas.

Nestes termos se decide:      

Julgar procedente o presente recurso de apelação, em função do que se revoga a decisão recorrida, na parte em que considerou que os representantes da exequente, ora recorrida, não podiam ser responsabilizados por litigância de má fé e consequências daí decorrentes, que se substitui por outra que ordena que, na 1.ª instância, se conheça, de novo, da existência de litigância de má fé e consequências respectivas, por parte de algum ou alguns dos representantes da exequente, aplicando-se, para tal, o regime previsto no CPC.

Custas, nesta instância, pela apelada.

            Coimbra, 03 de Março de 2015.

Arlindo Oliveira (Relator)

Emidio Francisco Santos

Catarina Gonçalves