Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1145/14.5TBLRA-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
DESPESAS
Data do Acordão: 12/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.239 CIRE
Sumário: I – As despesas a considerar para efeitos do disposto na subalínea iii) da alínea b) do nº 3 do artigo 239º do CIRE são as despesas que, não se integrando nas duas subalíneas anteriores, visam assegurar a satisfação de concretas necessidades que, por variadas razões, sejam essenciais para o devedor (ou para algum dos elementos que compõem o seu agregado familiar) e que, pela sua natureza e relevância, devam ser consideradas como prioritárias ou prevalecentes sobre o interesse dos credores na satisfação dos seus créditos.

II – Assim, a exclusão do rendimento disponível – ao abrigo da referida subalínea – do valor necessário para aquisição de um veículo automóvel só poderá ser equacionada quando a utilização desse veículo surja como uma necessidade que, pela sua relevância e essencialidade, se deva ter como prioritária e prevalecente relativamente ao interesse dos credores na satisfação dos seus créditos, seja porque se destina a assegurar a satisfação de direitos fundamentais que não poderão ser satisfeitos de outra forma, seja porque se destina a assegurar a efectiva possibilidade de o devedor exercer a sua actividade profissional – caso em que a situação até poderia, eventualmente, ser integrada na subalínea ii) – por ser absolutamente necessário para assegurar as deslocações do devedor para o seu local de trabalho em virtude de a distância não ser compatível com o percurso a pé e não existir qualquer outra alternativa – designadamente transporte público – que permita essa deslocação.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Nos autos de insolvência referentes a E (…), residente (…) em (...) – insolvência que foi declarada por sentença de 21/03/2014 – foi proferido despacho (em 24/11/2014) que admitiu o pedido de exoneração do passivo restante, determinando, designadamente, que “…durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível, ou seja, tudo o que o devedor aufira e que exceda por mês o correspondente ao salário mínimo nacional, acrescido de meio salário mínimo até que os filhos deixem de estudar, que deve ser comprovado no inicio do período da cessão, para a insolvente, se considera cedido ao fiduciário”.

O encerramento do processo foi declarado por despacho proferido em 14/03/2017, data em que se iniciou o período da cessão.

Em 23/05/2017, a Insolvente, invocando a existência de um problema dentário e juntando um orçamento, requereu que, para a resolução desse problema, lhe fosse fixado um valor de 2.580€, ao abrigo do disposto no art.º 239, nº 3 aliena b), subalínea iii), do CIRE.

 

Tal requerimento foi objecto de despacho proferido em 03/07/2017 com o seguinte teor:

…Tendo em conta a natureza das despesas invocadas, ao abrigo do disposto no art.º 239º, nº 3 aliena b), subalínea iii), do CIRE, autoriza-se que as despesas que forem apresentadas, até ao limite de 2580€, como já efectivamente pagas, sejam tidas em consideração para efeitos do montante de rendimento indisponível para efeitos de cessão para além do montante já fixado mensalmente”.

Em 05/08/2019, a Insolvente veio apresentar requerimento dizendo: que se desloca para a cidade onde exerce a sua actividade profissional juntamente com um colega, no carro deste; que, por motivos que lhe são alheios, deixará de ter essa possibilidade a partir do próximo mês de Setembro de 2019; que não existem transportes públicos com horário compatível com o trabalho da requerente; que, recentemente, surgiu a necessidade de auxiliar o seu pai na residência deste, em virtude dos cuidados de que precisa diariamente e que, por essa razão, tem necessidade de adquirir uma viatura para seu uso pessoal.

Com esses fundamentos e juntando um orçamento no valor global de 7.000,00€ que declara pretender liquidar em prestações mensais de 200,00€, pede que lhe seja fixado esse valor ao abrigo do artigo 239, nº 3 alínea b), subalínea iii), do CIRE.

O Sr. Fiduciário veio declarar nada ter a opor ao requerido.

O B (…) S.A. veio manifestar a sua oposição, dizendo que não se encontram preenchidos os pressupostos estatuídos no artigo 239.º, n.º 2, alínea b), subalínea iii) do CIRE, sendo certo que a devedora não tem ajustado as suas despesas à sua nova realidade, o que se traduz no prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, mais dizendo que a Insolvente não juntou qualquer documento comprovativo da factualidade por si alegada.

Aquela pretensão – formulada pela Insolvente – veio a ser indeferida por despacho proferido em 11/09/2019.

Em 02/10/2019, o Sr. Fiduciário veio apresentar relatório do qual resulta que, até ao momento, não havia sido entregue qualquer quantia sendo que os rendimentos obtidos pela Insolvente eram inferiores aos valores que lhe haviam sido reservados para prover ao seu sustento.

A devedora/insolvente veio interpor recurso do despacho proferido em 11/09/2019, formulando as seguintes conclusões:

1. O Douto despacho ora recorrido, entende que não deve ser concedida à insolvente a exclusão da quantia necessária para adquirir uma viatura para as suas deslocações casa-trabalho.

2. Não existem alternativas de transporte publico para a insolvente.

3. Se não puder deslocar-se em carro próprio, atentos os horários do seu trabalho e os dos transportes, gastará cerca de 4 horas diárias só à espera.

4. Também, o seu pai está incapacitado e doente e precisa da sua ajuda, para se alimentar, vestir e tomar a medicação.

5. O montante atual, não permite assegurar o sustento minimamente digno da recorrente, atendendo a que, deixará de ter transporte para o emprego e não pode assistir o seu pai.

6. O Douto despacho ora recorrido, com o devido respeito, não considerou tais circunstâncias.

7. O entendimento jurisprudencial dominante é o de que, atendendo à letra da lei e ao espírito do legislador, o valor que se deve considerar excluído do rendimento disponível do devedor, para efeitos do disposto no art. 239º, nº 3, b) i) do CIRE, é o valor que, atendendo às concretas necessidades do devedor e respetivo agregado familiar, seja considerado adequado e razoável para prover ao seu sustento minimamente digno.

8. Na fixação do valor do rendimento da insolvente a excluir da dação a efetuar em benefício dos credores tendo em vista a eventual exoneração do passivo restante terá de se levar em consideração as particularidades de cada caso, e por outro lado atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana, assegurar as necessidades básicas da insolvente e do seu agregado familiar.

9. Para garantir a conformidade constitucional e prosseguir o espírito da Lei, atento o caso particular da insolvente, à quantia a ceder, no presente caso, deverá ser excluído o montante peticionado, por forma a que a recorrente possa manter o seu emprego e possa assistir o pai doente.

10. O dever de respeito, auxílio e assistência a que pais e filhos se encontram mutuamente sujeitos (art. 1874º, n.º 1 do CC), embora assentem em preceitos éticos e morais que o legislador reconheceu, aceitou e considerou aquando da regulamentação jurídica das relações familiares, configuram verdadeiros deveres jurídicos, deles emergindo verdadeiros direitos subjetivos dos pais em relação aos filhos e vice-versa.

11. O dever de auxílio importa a obrigação dos filhos de socorrerem e auxiliarem os pais em situações de crise, urgentes e anómalas, como é o caso de doença ou de vulnerabilidade decorrente da velhice e implica para os filhos um conjunto de obrigações, de conteúdo complexo, de assistência moral ou espiritual, de apoio físico e material, consoante as efetivas necessidades dos pais, da essencialidade/imprescindibilidade dos concretos serviços que os pais se encontrem carenciados para ultrapassar essa situação de dificuldade com que se vejam deparados e das efetivas possibilidades dos filhos em lhes prestar esses serviços essenciais.

12. O dever de auxílio, assim como o de assistência, não têm natureza incondicional, posto que o cumprimento desses deveres jurídicos depende das efetivas necessidades dos pais (ou dos filhos) de receberem esse auxílio e/ou assistência e das efetivas possibilidades do obrigado para os cumprir.

13. O dever de auxílio dos filhos em relação aos pais não obriga a que os filhos deixem de exercer a sua atividade profissional para passarem, em exclusivo, a dedicar-se a cuidar dos pais, face à idade avançada e/ou à situação de doença destes.

14. A insolvente sem possuir viatura própria deixará de poder cumprir o seu dever de auxilio.

15. Resultando assim (também) na violação flagrante do art. 239º, nº 3, b) i) do CIRE,

Nestes termos, deve ser julgado procedente o recurso revogando-se a douta decisão recorrida, ordenando-se a sua substituição por outra que declare que deverá ser excluída da quantia disponível, conforme requerido, a quantia de 200 euros mensais para a recorrente poder cumprir os seus deveres.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se deve (ou não) ser deferida a pretensão da Apelante no sentido de ser excluído do rendimento disponível o valor necessário para aquisição de um veículo automóvel.


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III.

Os factos que resultam dos autos e relevam para a decisão são os seguintes:

1. Por despacho proferido em 24/11/2014, foi admitido o pedido de exoneração do passivo restante aí se determinando que a Insolvente ficava obrigada a ceder ao fiduciário todo o rendimento que auferisse e que excedesse – em cada mês – o valor correspondente ao salário mínimo nacional, acrescido de meio salário mínimo até que os filhos deixem de estudar

2. Em tal despacho, julgou-se provado que a Insolvente é divorciada desde 4/11/1996; exerce a sua actividade profissional por conta da “U (…)Lda.”, auferindo o vencimento mensal médio líquido de cerca de €701,00 e tem dois filhos, um nascido a 08 de Janeiro de 1992 e o outro a 27 de Janeiro de 1990, um que se encontra a estudar e outro que irá retomar os estudos.

3. Por despacho proferido a 14-03-2017 declarou-se iniciado o período de cessão.

4. Por despacho proferido a 03/07/2017 autorizou-se que as despesas médicas dentárias apresentadas como pagas, até ao limite de €2.580,00, fossem tidas em consideração para efeitos do montante de rendimento indisponível para efeitos de cessão para além do montante já fixado mensalmente.

5. Durante os dois primeiros anos do período da cessão (Abril de 2017 a Março de 2019), a Insolvente não entregou qualquer valor ao Sr. Fiduciário, sendo certo que, de acordo com a informação que prestou, os rendimentos que auferiu durante esse período foram inferiores ao valor que lhe estava reservado e que foi fixado pelo despacho de 24/11/2014.


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IV.

Apreciemos então o objecto do recurso.

Dispõe o nº 2 do artigo 239º do CIRE que o despacho inicial da exoneração do passivo “…determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte”.

Concretizando o conceito de rendimento disponível, dispõe o nº 3 da citada disposição que integram esse rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor”.

No caso que analisamos, já foi fixado o valor que estava excluído do rendimento disponível por força do disposto na alínea b), i), da norma citada e que se entendeu ser o valor razoavelmente necessário para prover ao sustento da devedora e respectivo agregado familiar (valor correspondente ao salário mínimo nacional, acrescido de meio salário mínimo até que os filhos da Insolvente deixem de estudar).

Pretende agora a Insolvente/Apelante que seja igualmente excluído do rendimento disponível – ao abrigo do disposto na alínea b), iii) – o valor correspondente a 200,00€ mensais até perfazer o valor total de 7.000,00€ com vista à aquisição de um veículo automóvel para uso pessoal.

A decisão recorrida indeferiu tal pretensão, considerando, no essencial, que o valor que já havia sido excluído do rendimento disponível era adequado, proporcional e, como tal, justo, face à situação de vida da Requerente, tendo em conta o padrão atendível do mínimo de subsistência segundo a ideia de dignidade humana, tanto mais que esse valor já havia sido acrescido das despesas médicas dentárias que fossem comprovadas até ao limite de €2.580,00.

Discordando dessa decisão, argumenta a Apelante, em resumo: que não existem alternativas de transporte público para a insolvente; que, caso não possa deslocar-se em carro próprio, atentos os horários do seu trabalho e os dos transportes, gastará cerca de 4 horas diárias só à espera; que o seu pai está incapacitado e doente e precisa da sua ajuda, para se alimentar, vestir e tomar a medicação; que, sem possuir viatura própria, ficará impossibilitada de cumprir o dever de auxílio relativamente ao seu pai e ficará impossibilitada de trabalhar.

Mas, salvo o devido respeito, não lhe assiste razão.

Vejamos.

Conforme se diz no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, a exoneração do passivo visa conceder ao devedor a oportunidade de alcançar a sua efectiva reabilitação económica mediante a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. Tal oportunidade será concedida a quem dela se revele merecedor, seja por efeito da conduta anterior (que relevará para efeitos de admissão ou indeferimento liminar do pedido nos termos do artigo 238º), seja por efeito da sua conduta no decurso do processo de insolvência e, designadamente, durante o período da cessão (os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência) onde lhe são impostas uma série de obrigações.

Não obstante tenha pretendido conceder essa oportunidade ao devedor que dela seja merecedor, o legislador não esqueceu aquele que é o princípio e objectivo fundamental do processo de insolvência, ou seja, a satisfação dos direitos dos credores e por isso determinou que, durante o período da cessão, o devedor fica obrigado a entregar o seu rendimento disponível tendo em vista a satisfação, na medida do possível, desses direitos. É certo, no entanto, que a satisfação dos direitos dos credores não poderia pôr em causa direitos fundamentais do devedor como sejam o direito a uma sobrevivência condigna e a efectiva satisfação de outras necessidades concretas que lhe sejam essenciais, tal como não poderia pôr em causa a efectiva possibilidade de o devedor angariar rendimentos pelo seu trabalho que lhe permitam prover à sua subsistência (e do respectivo agregado) e que lhe permitam satisfazer, pelo menos em parte, os direitos dos credores. E são esses direitos e interesses que se pretendem proteger e salvaguardar com o disposto na alínea b) do nº 3 do citado artigo 239º.

A subalínea i) da citada alínea b) visa salvaguardar o direito fundamental do devedor – e respectivo agregado familiar – a uma sobrevivência minimamente condigna, determinando que fica excluído do rendimento disponível o valor que, em termos de razoabilidade, se deva ter como necessário para prover ao seu sustento minimamente digno. A subalínea ii), determinando que fica excluído do rendimento disponível o valor que seja razoavelmente necessário para o exercício pelo devedor da sua actividade profissional visa salvaguardar e assegurar a possibilidade de o devedor angariar rendimentos com o produto do seu trabalho que lhe permitam prover ao seu sustento – e do seu agregado – e satisfazer algum do seu passivo, evitando-se, desta forma, que, por não dispor do valor necessário para assegurar as despesas inerentes à sua actividade profissional, o devedor fique impossibilitado de angariar rendimentos, pondo em causa a sua subsistência e eliminando – ou reduzindo – a possibilidade de os credores obterem a satisfação (ao menos parcial) dos seus direitos. Sob a alçada da subalínea iii) ficam as despesas que, não se integrando nas duas subalíneas anteriores, visam assegurar a satisfação de concretas necessidades que, por variadas razões (designadamente em função de uma concreta doença, patologia ou condição física) são essenciais para o devedor (ou para algum dos elementos que compõem o seu agregado familiar) e que, pela sua natureza e relevância, devam prevalecer sobre o interesse dos credores na satisfação dos seus créditos.

No caso em análise, a devedora pretende ver excluído do rendimento disponível o valor necessário para aquisição de um veículo automóvel com vista a assegurar as suas deslocações para o trabalho e o cumprimento do seu dever de auxílio relativamente ao pai.

Ora bem.

Em primeiro lugar, não poderemos deixar de assinalar que os meros transtornos e incómodos (incluindo o maior tempo despendido) resultantes da utilização de transportes públicos ou da realização de percursos a pé não relevam para efeitos de conceder ao devedor insolvente o valor necessário para aquisição de um veículo que, com maior comodidade e menor dispêndio de tempo, lhe permitam fazer tais deslocações. Na verdade, o devedor insolvente não pode reclamar para si uma situação mais favorável do que aquela a que está sujeita uma parte significativa da população que, não estando em situação de insolvência, não dispõe de rendimentos necessários para usufruir de um veículo e que, como tal, tem necessidade de recorrer a transportes públicos para assegurar as suas deslocações (para o trabalho e outras), sofrendo os incómodos inerentes e perdendo o tempo necessário (por vezes muito significativo) que é inerente à utilização desses transportes. E, como é evidente, não será pelo facto de estar insolvente que o devedor tem o direito de reclamar um tratamento mais favorável, podendo dizer-se, pelo contrário, que, estando em situação de insolvência, tem o dever e a obrigação de suportar maiores sacrifícios no sentido de contribuir, ao máximo, para a satisfação do passivo que contraiu e que desembocou na situação de insolvência.

É certo, portanto, que a concessão ao devedor/insolvente do valor necessário para aquisição de um veículo automóvel nunca poderá ser equacionada para o efeito de solucionar os incómodos ou transtornos resultantes da utilização de outros meios de transporte; a concessão desse valor ao devedor/insolvente só poderá ser equacionada quando a utilização desse veículo surja como uma necessidade que, pela sua relevância e essencialidade, se deva ter como prioritária e prevalecente relativamente ao interesse dos credores na satisfação dos seus créditos, seja porque se destina a assegurar a satisfação de direitos fundamentais que não poderão ser satisfeitos de outra forma, seja porque se destina a assegurar a efectiva possibilidade de o devedor exercer a sua actividade profissional, caso em que a situação até poderia, eventualmente, ser integrada na subalínea ii).

Nessas circunstâncias, poder-se-ia admitir que o valor necessário para aquisição de um veículo automóvel pudesse ser excluído do rendimento disponível, ao abrigo da referida subalínea iii), se tal veículo fosse absolutamente necessário para assegurar as deslocações da devedora para o seu local de trabalho em virtude de a distância não ser compatível com o percurso a pé e não existir qualquer outra alternativa – designadamente transporte público – que permita essa deslocação ou se esse veículo fosse absolutamente necessário – por falta absoluta de alternativas – para assegurar a satisfação de outros direitos fundamentais ou necessidades relevantes onde se poderia, eventualmente, enquadrar a necessidade de prestar apoio a algum familiar.

Sucede, no entanto, que não dispomos de qualquer elemento que nos permita concluir ser essa a situação da devedora, ora Apelante.

Com efeito, para justificar a sua pretensão, a Apelante apenas alegou que não existem transportes públicos com horário compatível com o seu trabalho e que, recentemente, surgiu a necessidade de auxiliar o seu pai na residência deste para o efeito de lhe prestar os cuidados de que ele precisa diariamente, sendo certo, no entanto, que não há a mínima prova desses factos. Na verdade, não sabemos – porque a Apelante nem sequer alegou – quais os transportes públicos que existem entre a residência da Apelante e o seu local de trabalho, não sabemos quais os concretos horários dos transportes públicos e os horários de trabalho da Apelante e não sabemos qual o tempo gasto nessas deslocações e, portanto, não dispomos de qualquer elemento concreto que nos permita formular um qualquer juízo acerca da existência de uma necessidade de veículo automóvel que, pela sua natureza e relevância, devesse prevalecer sobre o interesse dos credores. Não existe, por outro lado, qualquer prova referente ao estado de saúde do pai da Apelante e à necessidade de apoio de terceira pessoa e tão pouco sabemos onde fica a sua residência e quais os transportes públicos que, eventualmente, poderiam ser utilizados pela Apelante para se deslocar a casa do pai.

Nessas circunstâncias, a pretensão da Apelante não pode proceder.

Mas, além do mais, nem sequer vislumbramos a utilidade dessa pretensão.

Na verdade, o período da cessão está em curso há mais de dois anos e até à data, a Insolvente/Apelante não entregou ao Sr. Fiduciário qualquer parcela do seu rendimento, uma vez que, de acordo com as informações que prestou, os rendimentos que auferiu durante esse período foram sempre inferiores ao valor que lhe havia sido reservado para prover ao seu sustento. Importa notar que em 03/07/2017 foi determinada a exclusão do rendimento disponível de um valor suplementar correspondente às despesas médicas dentárias apresentadas como pagas até ao limite de €2.580,00 e até ao momento a Apelante não comprovou qualquer despesa dessa natureza (sendo certo, de todo o modo, que, conforme dissemos, os rendimentos declarados têm sido sempre inferiores ao valor que lhe estava reservado para prover ao seu sustento).

Ora, admitindo que a Insolvente/Apelante não ocultou rendimentos ao Sr. Fiduciário, ter-se-á que concluir que o rendimento que aufere não atinge sequer o valor que já lhe foi reservado com vista ao seu sustento e, nessas circunstâncias, não vislumbramos onde pretende a Apelante ir buscar os 200,00€ mensais (até atingir o valor de 7.000,00€) com vista a suportar a aquisição do veículo. De acordo com as informações que prestou, a Apelante não dispõe desse rendimento e, portanto, não tem qualquer utilidade a pretensão que veio deduzir.

 

Em face do exposto, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – As despesas a considerar para efeitos do disposto na subalínea iii) da alínea b) do nº 3 do artigo 239º do CIRE são as despesas que, não se integrando nas duas subalíneas anteriores, visam assegurar a satisfação de concretas necessidades que, por variadas razões, sejam essenciais para o devedor (ou para algum dos elementos que compõem o seu agregado familiar) e que, pela sua natureza e relevância, devam ser consideradas como prioritárias ou prevalecentes sobre o interesse dos credores na satisfação dos seus créditos.

II – Assim, a exclusão do rendimento disponível – ao abrigo da referida subalínea – do valor necessário para aquisição de um veículo automóvel só poderá ser equacionada quando a utilização desse veículo surja como uma necessidade que, pela sua relevância e essencialidade, se deva ter como prioritária e prevalecente relativamente ao interesse dos credores na satisfação dos seus créditos, seja porque se destina a assegurar a satisfação de direitos fundamentais que não poderão ser satisfeitos de outra forma, seja porque se destina a assegurar a efectiva possibilidade de o devedor exercer a sua actividade profissional – caso em que a situação até poderia, eventualmente, ser integrada na subalínea ii) – por ser absolutamente necessário para assegurar as deslocações do devedor para o seu local de trabalho em virtude de a distância não ser compatível com o percurso a pé e não existir qualquer outra alternativa – designadamente transporte público – que permita essa deslocação.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante (por ter decaído no recurso) sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.

                              Coimbra, 209/12/18

                                             Maria Catarina Gonçalves ( Relatora )

                                                  Maria João Areias

                                                     Ferreira Lopes