Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
458/17.9T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
JURISDIÇÃO COMUM
RELAÇÃO ADMINISTRATIVA
QUESTÃO INCIDENTAL
Data do Acordão: 10/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JC CÍVEL E CRIMINAL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS 91, 92 CPC, 212 CRP, 4 ETAF
Sumário:
1. A competência material do tribunal afere-se em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida e da natureza das normas que disciplinam a relação jurídica que está na base do litígio.
2. No processo declarativo comum, a regra é no sentido de que o tribunal competente para a acção também o é para as questões da competência do tribunal administrativo cuja apreciação se revele essencial para o conhecimento do objecto da acção, caso em que pode o juiz conhecer da questão prejudicial com efeitos circunscritos ao processo ou sobrestar na decisão, até que o tribunal competente - tribunal administrativo - se pronuncie, no prazo e termos do art.º 92, n.ºs 1 e 2 do CPC.
3. Se o A. cingiu a eficácia da decisão sobre os pedidos de declaração de invalidade dos actos administrativos à acção que intentou e as questões de índole administrativa conexas apresentam uma incindível ligação de prejudicialidade com o pedido impugnativo que formula, é de considerar que estamos perante questões incidentais de natureza administrativa para cuja apreciação é competente o tribunal comum (n.o 1 do art.º 91º do CPC), cabendo, pois, ao julgador trilhar um dos caminhos apontados pelo art.º 92º do CPC para as solucionar.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Em 04.4.2017, J (…), Lda., intentou, no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, a presente acção declarativa comum contra M (…) (1ª Ré), M (…) (2ª Ré) e H (…), Lda. (3ª Ré), pedindo que seja declarada a nulidade dos seguintes negócios:
a) Contrato de compra e venda titulado por escritura pública celebrada, em 09.6.2005, entre M (…), a 1ª e a 2ª Rés e a 3ª Ré, inerente ao prédio rústico denominado “L…”, situado no lugar de …, freguesia de …, concelho da Guarda, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial (CRP) da Guarda, sob o …o, daquela freguesia de …;
b) Contrato de compra e venda titulado por escritura pública celebrada em 19.3.2008, entre a 3ª Ré e a A., inerente ao prédio rústico, denominado “L…”, sito em …, freguesia de …, concelho da Guarda, descrito na CRP da Guarda, sob o número …, da indicada freguesia de ….
Peticiona, ainda, que se ordene o cancelamento de todos os registos posteriores ao registo de aquisição do mesmo prédio (designadamente os registos de negócios mencionados na alínea a) e quaisquer outros posteriores), bem como o cancelamento da inscrição do prédio urbano, participado à matriz através da declaração Mod.1 do IMI n.º …, entregue em 17.01.2005, sito em …, …, freguesia da …, com área total de terreno de 6 887 m2, inscrito sob o artigo provisório …, da freguesia de …, concelho da Guarda.
Alega, em síntese: adquiriu à 3ª Ré o prédio rústico que identifica, por se tratar de um terreno para construção urbana, fazendo-o exclusivamente com a finalidade de nele proceder à execução do projecto de edificação aprovado pela Câmara Municipal da Guarda (CMG), com licença de construção a pagamento, cujo processo camarário era o n.º …, dado que caso contrário, não o teria adquirido por preço nenhum, sendo certo que o preço que acordaram teve em vista, exclusivamente, a finalidade construtiva do Lar de Idosos; deu entrada na CMG o pedido de averbamento do processo de licenciamento, sendo que em 28.3.2008 a CMG emitiu o alvará de licenciamento de obras n.º …, em nome da 3ª Ré, referente ao processo de titulava a aprovação de tais obras; todavia, a área, configuração e confrontações do prédio, já não eram as que se encontravam descritas aquando da aprovação da informação prévia, em virtude de um destaque operado pelas 1ª e 2ª Rés, com conhecimento da 3ª Ré, o que determinou que, aquando da aquisição pela A., na realidade, não fosse possível a construção do lar de idosos porque as condições que haviam sido apreciadas no âmbito da informação prévia requerida pela 3ª Ré e que foram seguidas no processo de licenciamento foram alteradas por um destaque; o destaque produzido, ao fraccionar o terreno em dois, teve como efeito a duplicação de índices e a multiplicação dos parâmetros urbanísticos, pelo que deverá ser declarada a nulidade dos contratos de compra e venda; atento o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial, bem como o Pano Director Municipal (PDM) da Guarda, designadamente no que respeita à localização de equipamentos urbanos, é nula a deliberação da CMG de 31.3.2004 que atribuiu interesse municipal, não produzindo quaisquer efeitos, nulidade da deliberação camarária que pode ser declarada a todo o tempo por órgão administrativo ou qualquer Tribunal, pelo que sobre um acto nulo não pode constituir-se qualquer relação jurídica ou situação de facto, devendo o mesmo ser erradicado da ordem jurídica; a competência para atribuição de interesse municipal pertence à Assembleia, por ser o órgão que aprovou o PDM, o que no caso concreto não sucedeu, dado que foi uma deliberação da CMG, pelo que também por esse motivo - e atento parecer da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional Centro - tal deliberação é nula; a nulidade da deliberação da CMG tem por efeito a nulidade dos contratos de compra e venda titulados pelas escrituras públicas aqui em causa, por impossibilidade de objecto, nulidade decorrente também da violação de normas de carácter imperativo do RGEU; em virtude da alteração da área dos prédios e do destaque que foi feito, quando a CMG emitiu, em 28.3.2008, o alvará de licença de obras, a situação de facto do prédio, designadamente área, configuração e confrontações já se haviam alterado, pelo que tal impedia que se mantivesse o licenciamento, motivo pelo qual tal licenciamento padecia de nulidade insuprível; faltando um dos elementos essenciais do acto administrativo, tal gera a sua invalidade nos termos do art.º 133º, n.º 1 do CPA, pelo que a construção do lar de idosos, nunca poderia ser levada a cabo nas condições que haviam sido apreciados no pedido de informação prévia, motivo pelo qual as vendas são nulas por impossibilidade de objecto, sendo fisicamente impossível concretizar o projecto de edificação aprovado pela CMG.
As Rés vieram contestar a acção, alegando, para além do mais Que se prende com a eventual existência de litispendência ou prejudicialidade relativamente aos embargos de executado que referem e nos quais dizem ser peticionado pela aqui A., ali embargante/executada, a declaração de nulidade da deliberação da CMG por violação das normas que invoca, e invalidade também do acto administrativo por não ter sido tal deliberação submetida à Assembleia Municipal., que as 1ªs Rés apresentaram o requerimento de 26.10.2004 à CMG, tendo tido resposta favorável, por estarem cumpridos os requisitos legais, designadamente resultantes do PDM, tendo vendido posteriormente à 3ª Ré o terreno em causa, nos termos constantes da respectiva escritura pública, formal e materialmente válida e legal; reportam-se, ainda, aos pedidos de informação prévia efectuados junto da CMG e aos condicionantes do PDM por o terreno se encontrar em área rural, tendo, em consequência do mesmo, sido proferida a deliberação de 31.3.2004 da CMG, que deliberou conceder interesse municipal ao empreendimento, sendo tal deliberação válida e eficaz, sendo certo que era sempre a CMG, munida dos pareceres técnicos necessários, e não a Assembleia, a atribuir tal interesse municipal; assim, o projecto foi aprovado e à data da celebração da escritura pública entre a A. e a 3ª Ré, como era do conhecimento das partes, o projecto estava concluído, e licenciado, pelo que a A. apenas não edificou o projecto resultante do processo de obras aprovado pela CMG por razões que apenas ela sabe.
As Rés pediram a intervenção acessória provocada da Município da Guarda, invocando, designadamente: a posição processual da chamada tem por objecto e causa de pedir as nulidades imputadas às Rés por violação do PDM da Guarda e demais disposições de ordenamento, planeamento e edificação, pelo que decorrentes de actos de gestão municipal; estando pendente uma acção, pode nela intervir um terceiro que tenha interesse em que a causa não seja decidida favoravelmente a uma das partes, e pode também intervir um terceiro que tenha interesse em ser abrangido pelo caso julgado da decisão; resulta expresso dos pedidos da A., tal como configurados na acção, que uma eventual procedência daqueles, implicaria entre as Rés, uma sucessão de danos e prejuízos, pois, em caso de procedência do presente pleito, a A. ficaria desobrigada do pagamento do preço à 3ª Ré pela compra e venda descrita em b), supra, e esta, por sua vez, a exercer o seu direito de crédito sobre as 1ª e 2ª Rés, impendendo sobre estas a obrigação de restituição do preço pelo negócio titulado em a) do mesmo pedido; porém, dada a intervenção da CMG em todos os factos jurídicos em que actuou munida do seu ius imperii, as Rés teriam direito a ser indemnizadas pela anulação das respectivas escrituras; na medida em que o prejuízo para as Rés, na procedência da pretensão da A., é (ou possa ser) imputável à violação de procedimentos administrativos, que, afinal, estavam na base da relação contratual que (também) fundamenta a presente acção (o destaque e a impossibilidade do objecto, levando, no limite, à impossibilidade legal e física de edificação do lar de idosos) estabelecida fica a conexão legalmente exigida e a que se refere o art.º 321º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), dado que as Rés para se defenderem, terão de invocar a estrita conformidade entre a sua actuação privada e o decidido/deliberado pela CMG, pelo que se justifica que se faça intervir o restante sujeito desse procedimento, estando verificados os pressupostos exigidos pelo n.º 1 do art.º 321º e pelo n.º 2 do art.º 322º, do CPC, para se admitir a intervenção, como associada das Rés, da chamada CMG.
Por despacho de fls. 279, não obstante a oposição da A., foi admitida a requerida intervenção acessória do Município da Guarda, considerando-se preenchido o requisito a que alude a parte final do art.º 321º, n.º 1 do CPC.
O Município da Guarda contestou, pugnando, desde logo, pela incompetência do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda em razão da matéria, considerando, em síntese: pretende a A. que se venha declarar a nulidade dos contratos de compra e venda titulados pelas escrituras públicas de 09.6.2005 e de 19.3.2008; para tanto, vem invocar a existência de vícios de violação de lei e de violação do PDM da Guarda no procedimento administrativo prévio a tais escrituras, os quais inquinaram (de forma necessária e irremediável) os ditos contratos de compra e venda; sempre, e de acordo com a argumentação expendida pela A., tais vícios determinaram a existência de nulidades que, inquinando o procedimento administrativo conducente à emissão de alvará de licença de obras para construção de um empreendimento determinado (ao qual terá sido reconhecido interesse municipal) a ser edificado no terreno que foi objecto dos contratos de compra e venda titulados pelas referidas escrituras, acabaram por invalidar estes dois negócios; por esse motivo, pretende a A. o reconhecimento judicial da existência de tais vícios, e, por arrastamento, a declaração de nulidade dos negócios que tiveram por objecto o terreno onde presumidamente seria efectivado o empreendimento cujo processo de licenciamento de construção foi afectado pelas alegadas invalidades; os vícios do procedimento administrativo invocados pela A. devem ser analisados à luz das correspondentes disposições do novo Código de Procedimento Administrativo, resultando, pois dos normativos aplicáveis a tal situação (maxime, art.º 163º Cód. Proc. Administrativo) que os actos anuláveis devem ser impugnados perante a própria administração ou perante o tribunal administrativo competente; é incompetente, em razão da matéria, o Tribunal Judicial da Comarca da Guarda para conhecer dos vícios em apreço invocados pela A., o mesmo acontecendo em relação aos vícios de violação do PDM da Guarda também alegados pela A., e, segundo o seu raciocínio, determinantes da existência in casu de nulidades, as quais terão de ser conhecidas e declaradas pelos tribunais administrativos, ou pelos órgãos administrativos competentes para a anulação.
Em sede de audiência prévia, foi dada a palavra ao Exmo. Mandatário da A. para se pronunciar acerca das excepções invocadas, designadamente da excepção de incompetência do Tribunal em razão da matéria aduzida pelo interveniente.
A A. pronunciou-se, pugnando pela sua improcedência, alegando, desde logo, que o estatuto processual do interveniente não comporta a possibilidade de aduzir excepções, que o chamante, na contestação, não tenha deduzido e que o incidente em apreço visa a “produção de um efeito (reflexo) de caso julgado relativamente à verificação de certos pressupostos do direito de regresso ou de indemnização (...)”, sendo que “a posição processual é a de mero auxiliar da defesa, tendo em vista o seu interesse indirecto ou reflexo na improcedência da pretensão do autor, pondo-se, consequentemente, a coberto de ulterior e eventual acção de regresso ou de indemnização contra ele movida pelo réu da causa principal”, pelo que deve desatender-se, por tais razões, e em face do disposto no art.º 328°, n.º 2 do CPC, às arguidas excepções trazidas aos autos pelo interveniente acessório.
A Mm.ª Juiz a quo, em 11.5.2018, decidiu julgar verificada a excepção de incompetência absoluta, em razão da matéria do Juízo Central Cível e Criminal da Guarda, por a presente acção ser da jurisdição/competência dos Tribunais Administrativos, absolvendo as Rés da Instância.
Inconformada, a A. apelou formulando as seguintes conclusões:
(…)
Não houve resposta.
Ante o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa verificar e decidir, apenas, qual das duas ordens de tribunais - a dos tribunais judiciais/comuns ou a dos tribunais administrativos - é a competente, em razão da matéria, para julgar a presente acção.
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II. 1. Para a decisão do recurso releva a tramitação e o quadro fáctico supra referidos (ponto I), devendo ainda atentar-se na seguinte alegação da p. i. Suportada nos diversos documentos juntos aos autos.:
a) Constava da 1ª CRP da Guarda a descrição n.° …, relativa a um prédio denominado “L…”, com a área total de 28397,67 m2, inscrito na matriz sob o art.º …, mostrando-se aí inscrita a sua aquisição, em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor de M (…) e das 1ª e 2ª Rés.
b) Por requerimento apresentado, em 22.01.2004, na CMG, a 3ª Ré requereu, nos termos do n.ºs 1 e 3 do art.º 14º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, informação prévia, cujo processo foi registado nessa edilidade sob o n.º …, relativa à viabilidade de construção de um edifício destinado a Lar de Idosos, que pretendia mandar construir “(…) em …, freguesia da …, (…) descrito na matriz Conservatória de Registo Predial da Guarda com a matriz predial n.º …, possuindo uma área total de 28397,67 m2 (…)”.
c) Com o pedido de informação prévia, a 3ª Ré pretendia, designadamente, ver esclarecida a “[v]iabilidade de construção do anteprojecto apresentado em anexo” ao referido requerimento.
d) O prédio rústico descrito CRP da Guarda sob o n.° … e inscrito na matriz sob o art.º …, situa-se, segundo as disposições do PDM, em “área rural”.
e) No art.º 23º do PDM, no capítulo respeitante às regras de ocupação da Área Rural, dispõe-se que “1- Em parcelas de terreno constituídas é permitida a construção, desde que a parcela em causa possua uma área igual ou superior a 5000 m2, tenha acesso a partir de caminho público e a construção se destine a: (…) c) Equipamentos especiais de interesse municipal não enquadráveis na área urbana e urbanizável, nomeadamente equipamento hoteleiro e turístico”.
f) De acordo com o anteprojecto de arquitectura, de 19.01.2004, que instruiu o pedido de informação prévia, a área total de construção do edifício de Lar de Idosos que a 3ª Ré pretendia mandar construir no aludido prédio era de 3531,34 m2, distribuída por dois pisos, sendo um deles abaixo da cota de soleira; apresentava uma volumetria de 10,594 m3; a área de implantação era de 98,62 m2 e a cércea de 8,28 m.
g) Diz o parecer dos Serviços Técnicos do Departamento de Planeamento e Urbanismo da CMG, de 17.3.2004, elaborado no âmbito do referido processo n.º …, que “1. Está presente um pedido de informação Prévia relativo a um Lar de Idosos que se pretende levar a efeito numa parcela de terreno localizada, segundo as disposições do Plano Director Municipal, em “área rural”, com a área registada de 28397,67 m2, não abrangida por nenhuma condicionante assinalável, designadamente Reserva Agrícola Nacional ou Reserva Ecológica Nacional. (…) 3. Após análise dos elementos que instruem o pedido constata-se que o pretendido consiste num edifício destinado a funcionar como Lar de Idosos, com capacidade para 54 pessoas, englobando um conjunto de serviços complementares e relacionados com a satisfação de necessidades geriátricas, com uma área total de construção de 3531,34 m2, distribuída por 2 pisos (sendo um deles abaixo da cota da soleira do principal acesso), com uma implantação que se desenvolve acompanhando as características morfológicas do terreno. (…).
h) Depois de efectuado o enquadramento do pedido de informação prévia nas disposições do PDM pelos Serviços Técnicos do Departamento de Planeamento e Urbanismo da CMG, o dito parecer refere que a (…) pretensão poderá reunir condições para a sua viabilização caso a Câmara Municipal da Guarda Delibere atribuir interesse Municipal ao empreendimento, conforme disposto na aliena c) do n.º 1 do artigo 23º do Regulamento do Plano Director Municipal” .
i) Em reunião ordinária de 31.3.2004, a CMG deliberou (…) conceder interesse Municipal (…)ao empreendimento de construção do Lar de Idosos no referido prédio e solicitar “(…) os pareceres constantes do parecer Técnico”.
j) O processo de pedido de informação prévia em nome da 3ª Ré, “(…) para a construção de um Lar de Idosos na localidade de …, freguesia de …, apreciado e votado em Reunião de Câmara no dia 31 de Março de 2004, no seu ponto 8.1 e com a seguinte deliberação “A Câmara concordou com o Parecer Técnico e deliberou conceder interesse Municipal, solicitando-se os pareceres constantes no citado Parecer”, não foi submetido a apreciação e votação da Assembleia Municipal.
k) Por sua vez, em 14.9.2004, os Serviços Técnicos do Departamento de Planeamento e Urbanismo da CMG emitiram o seguinte parecer: “3. (…) dado que, esta Câmara Municipal Deliberou (…) a atribuição do Interesse Municipal a este equipamento, considera-se ser de emitir um Parecer Final Favorável ao pretendido pelo Requerente (…) 4. Deverá também ser dado conhecimento ao Requerente que (…) as obras de edificação correspondentes à operação urbanística pretendida se encontram sujeitas ao procedimento de “licenciamento municipal”. 5. Para o efeito deverá formular Requerimento nos termos do disposto no art.º 9º do D.L nº 555/99, de 16.12, alterado pelo DL n.º 177/2001 de 4.6 de instruir o respectivo processo de acordo com as disposições do art.º 11 da Portaria nº 1110/2001 de 19.9”.
l) Por ofício de 23.9.2004, o Director de Departamento de Planeamento e Urbanismo comunicou à 3ª Ré o seguinte: “Reportando-me ao pedido de Informação Prévia, oportunamente entregue nestes Serviços, (…) cumpre-me informar V. Exa. de que se emite parecer favorável, face ao Parecer dos Serviços Técnicos deste Município (…).
m) Aquando da deliberação da CMG, de 31.3.2004, existiam, de acordo com o PDM da Guarda, outras localizações viáveis à construção do empreendimento do Lar de Idosos em área urbana e urbanizável.
n) Depois de obtida a deliberação de interesse Municipal e o parecer favorável ao pedido de informação prévia para a construção de um Lar de Idosos no referido prédio rústico, com a área total de 28397,67 m2, M (…), a 1ª e a 2ª Rés, celebraram, na qualidade de promitentes vendedores, com a 3ª Ré, na qualidade de promitente compradora, em 28.9.2004, acordo escrito denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, onde estipularam que: “Pelo presente contrato os Promitentes Vendedores prometem vender ao Promitente Comprador e este promete comprar, 21500 m2 dos 28387 m2, do prédio rústico inscrito na matriz com o n.º …, da Freguesia … sito em … – … – Guarda com a denominação de L… inscrito na CRP com o artigo n.º …”.
o) Na cláusula segunda do referido acordo, foi ajustado que (…) Está em trâmite a desanexação de uma área de 6877 m2, área a retirar ao terreno identificado (…), que pertencerá aos Promitentes Vendedores, como uma fracção própria, estando esta área perfeitamente identificada e aceite pelas duas partes Vendedora e Comprador”.
p) Por sua vez, na cláusula quarta, estabeleceram que (…) O terreno descrito (…) terá como finalidade a construção de um Lar de Idosos conforme parecer favorável da C. M. Guarda”.
q) Em 11.10.2004, a 3ª Ré apresentou na CMG, nos termos do disposto no n.º 4 do art 20° do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação e no âmbito do processo 01-2004-360, pedido de licenciamento para a realização de obras de construção de um edifício destinado a lar de idosos, que pretendia mandar construir em …, no prédio rústico inscrito na matriz sob o n.º …, com a área total de 28397,67 m2, e a aprovação do projecto de arquitectura, conforme projecto que apresentou, cujo processo foi registado nessa edilidade sob o n.º ….
r) Com vista a comprovar junto da CMG a legitimidade para apresentar o referido pedido de licenciamento para a realização de construção do lar de idosos, a 3ª Ré juntou ao aludido requerimento (…) cópia do contrato de promessa de compra (…)aludido em II. 1. n).
s) Após a realização do referido acordo de 28.9.2004 e quando ainda não se encontrava concluído o aludido licenciamento para a realização de obras de construção de um Lar de Idosos nem a emissão do alvará respectivo, M (…) a 1ª e a 2ª Rés, dirigiram, em 26.10.2004, ao Presidente da CMG o seguinte requerimento: (…) se digne mandar certificar que o destaque da parcela do terreno abaixo identificado não constitui operação de loteamento (…)”.
t) Em 29.11.2004 foi emitida, pelo Director de Departamento de Planeamento e Urbanismo da CMG, certidão do seguinte teor: “CERTIFICO, em conformidade com o despacho da Presidência e Informação Técnica exarada no requerimento de M (…) e Outros (…), que o destaque de parcela não constitui operação de loteamento pois que se cumpriam cumulativamente as seguintes condições (…)
---- Na parcela a destacar só será construído edifício que se destina exclusivamente a fins habitacionais;
---- Na parcela restante observa-se a área da unidade de cultura fixada por lei geral para o Concelho da Guarda;
---- O ónus do não fraccionamento de outra parcela no mesmo prédio inicia-se a contar desta data, pelo prazo de 10 anos.
PARCELA A DESTACAR
---- Parcela de terreno com a área de 6887 m2, que fica a confrontar (…) a destacar do prédio rústico, inscrito na matriz sob o artigo n.º …, da freguesia de …, com a área de 28397,67 m2 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda com o número ….
PARCELA SOBRANTE
-----Terreno com a área de 21510,67 m2, com as seguintes confrontações: (…)
u) Em 27.12.2004, os Serviços Técnicos do Departamento de Planeamento e Urbanismo da CMG emitiram, no processo n.º 01-2004/360, em que era requerente a 3ª Ré, relativamente à obra “Nova construção Lar – Centro de Dia”, o seguinte parecer:(…) a) A requerente solicitou a título prévio a informação sobre a possível viabilidade de construção de um lar de idosos para o referido terreno, tendo apresentado para tal um anteprojecto.// b) Em 31/03/04 a Câmara Municipal deliberou reconhecer o equipamento como Interesse Municipal.// c) Por despacho de, de 16/06/04, e após pareceres emitidos pelo S.M.A.S. e E.D.P, a câmara Municipal emitiu parecer favorável ao pedido.// d) O Projecto de arquitectura agora apresentado segue em linhas gerais o anteprojecto referido na alínea a), encontrando-se, assim, em moldes de ser aprovado. (…). 4. Em face ao exposto parece de deferir o Projecto de arquitectura (…).
v) Sobre este parecer recaiu, em 30.12.2004, o seguinte despacho da Presidente da CMG: “Concordo”.
w) Por ofício de 07.01.2005, relativo ao processo n.º …, o Director de Departamento de Planeamento e Urbanismo comunicou à 3ª Ré a (…) aprovação do Projecto de Arquitectura (…)”.
x) Por escritura pública de compra e venda, outorgada no dia 09.6.2005 foi declarado perante a Notária que compareceram como Outorgantes: “PRIMEIRO//(…)
SEGUNDO//(…)
E pelo primeiro outorgante, foi dito:
Que, pela presente escritura, e pelo preço de cento e oitenta e nove mil quinhentos e quarenta e três euros e vinte cêntimos, que ora recebe, faz a venda à sociedade que o segundo representa de um prédio rústico, com a área de vinte e um mil quinhentos e dez virgula sessenta e sete metros quadrados, denominado “L…”, situando no lugar de …, freguesia de …, concelho da Guarda, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial da Guarda, sob o número …, daquela freguesia de …, com a aquisição registada a favor das vendedoras pela inscrição …, apresentação dezassete de Dezembro de dois mil e três, inscrito na respectiva matriz sob o artigo , com o valor patrimonial de 401,23 €.// Que sob sua inteira responsabilidade declara que sobre o imóvel incide um ónus de não fraccionamento pelo prazo de dez anos, registado na citada Conservatória pela inscrição …, apresentação dezasseis de 25 de Fevereiro de 2005, não possuindo as vendedoras outros prédios rústicos confinantes com o ora vendido.
Declarou o segundo outorgante: Que, para a sua representada aceita a venda nos termos exarados”.
y) Em 19.3.2008, no 1º Cartório Notarial de Competência Especializada da Guarda, a 3ª Ré, representada pelo seu sócio e gerente, declarou vender à A., representada pelo sócio e gerente, que declarou comprar, pelo preço de DUZENTOS MIL EUROS, que seria pago até à data limite de 30.11.2008, o seguinte imóvel: “Prédio RÚSTICO, denominado “L…”, sito em , freguesia de , concelho da Guarda, descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda, sob o número , da indicada freguesia de … onde se encontra registado a favor da Sociedade vendedora pela inscrição … – apresentação quatro de vinte e dois de Junho de dois mil e cinco, inscrito na respectiva matriz sob o artigo , com o valor patrimonial de € 25,77”.
z) O representante da 3ª Ré declarou ainda na referida escritura “[q]ue no imóvel se encontra um projecto de edificação aprovado pela Câmara Municipal da Guarda, com licença de construção a pagamento, cujo processo camarário é o número zero um traço dois mil e quatro barra trezentos e sessenta (…)”; Que “(…) a Sociedade Vendedora reserva o direito de propriedade sobre o identificado prédio até ao integral pagamento do preço”; E que “(…) sobre o identificado prédio existe um ónus real de não fraccionamento pelo prazo de dez anos, inscrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda pela inscrição … - apresentação dezasseis de vinte e cinco de Fevereiro de dois mil e cinco”.
aa) Consta da CRP da Guarda a descrição n.°1128/20031216, relativa a um prédio denominado “L…”, situado em …, que se compõe de terra de cultura e árvores de fruto, com a área total de 21510,67 m2, inscrito na matriz sob o artigo …, com o valor tributável de € 25,77, mostrando-se aí inscrita a sua aquisição a favor da A. pela Ap. … de 2008/04/02.
bb) O projecto aprovado pela CMG à 3ª Ré, com licença de construção a pagamento, cujo processo camarário era o n.º …, previa a área de construção do edifício de 3957 m2; a capacidade máxima prevista era de 72 utentes e encontrava-se projectado construir 35 quartos e 1 apartamento T1, 5 salas, espaço para cabeleireira, refeitório, ginásio, piscina e capela, com a distribuição funcional para os Pisos 0 e 1 mencionada nos art.ºs 56º e 57º da p. i..
cc) Através de ofício n.º …, de 15.12.2005, relativo ao assunto “EMISSÃO DE ÁLVARA” no processo n.º …, a CMG notificou a 3ª Ré que o projecto se encontrava deferido e para proceder à liquidação das taxas devidas no montante de € 15 372,07.
dd) A A. adquiriu o prédio rústico, por se tratar de um terreno para a construção urbana, fazendo-o exclusivamente com a finalidade de nele proceder à execução do projecto de edificação aprovado pela CMG, com licença de construção a pagamento, caso contrário não o teria adquirido por preço nenhum.
ee) Em 31.3.2008, a A. deu entrada na CMG ao pedido de averbamento do processo de licenciamento n.º … que se encontrava em nome da 3ª Ré.
ff) O acordo a que chegaram A. e 3ª Ré quanto ao preço do prédio objecto da escritura de compra e venda de 19.3.2008 teve unicamente como referência a finalidade construtiva do Lar de Idosos.
gg) Em 28.3.2008, a CMG emitiu o alvará de licenciamento de obras n.º …, em nome da 3ª Ré, referente ao processo de obras n.º …, que titulava a aprovação das obras que incidiam sobre o prédio sito em L…, …, da freguesia da …, descrito na CRP da Guarda sob o n.º …, inscrito na matriz sob o art.º ….
hh) No entanto, nesta altura, a área, configuração e confrontações do prédio descrito na CRP da Guarda sob o n.º …, inscrito na matriz sob o art.º …, já não eram as que ali se encontravam descritas aquando da aprovação da informação prévia em virtude do imóvel ter sido divido em dois devido ao destaque operado pela 1ª e 2ª Rés e pela M (…), o que foi feito com o conhecimento da 3ª Ré.
ii) Da referida divisão resultou que, aquando da aquisição do referido prédio pela A., não era possível a construção do Lar de Idosos nas condições que haviam sido apreciadas no âmbito da informação prévia requerida pela 3ª Ré e que foram seguidas no processo de licenciamento - depois de efectuado o destaque dito em II. 1. ff), o prédio descrito na CRP da Guarda sob o nº …, inscrito na matriz sob o art.º …, foi amputado da área de 6887 m2, passando a ter 21510,67 m2, quando, na realidade, a construção do Lar de Idosos nas condições apreciadas no âmbito da informação prévia requerida pela 3ª Ré e seguidas no processo de licenciamento tinham como pressuposto a sua edificação e implantação no prédio com a área de 28397,67 m2, além de que o destaque produzido, ao fraccionar o terreno em dois, teve como efeito a duplicação de índices e a multiplicação de parâmetros urbanísticos.
jj) De acordo com o art.º 2º, n.º 1 do DL n.º 380/99, de 22/9, a política de ordenamento do território e de urbanismo assenta no sistema de gestão territorial que se organiza num quadro de interacção coordenada no âmbito nacional, regional e municipal, sendo o âmbito municipal concretizado, além do mais, através dos planos municipais de ordenamento do território, compreendendo os planos directores municipais, os planos de urbanização e os planos de pormenor (Cf. n.º 4, al. b) do art.º 2º).
kk) De acordo com o estatuído no art.º 79º, n.º 1, do DL n.º 380/99, de 22/9, “[o]s planos municipais de ordenamento do território são aprovados pela assembleia municipal, mediante proposta apresentada pela câmara municipal”, momento a partir do qual, nos termos do art.º 81º, n.º 1, se considera concluída a elaboração do PDM.
ll) Determina o art.º 103º do DL n.º 380/99, de 22/9, que “[s]ão nulos os actos praticados em violação de qualquer instrumento de gestão territorial aplicável“.
mm) A alínea c) do n.º 1 do art.º 23º do PDM da Guarda permite a construção de equipamentos especiais (incluindo “equipamento hoteleiro e turístico”) em Área Rural, desde que cumpridas, cumulativamente, duas condições, que são o seu interesse municipal e o seu não enquadramento em área urbana e urbanizável.
nn) Tal disposição legal apenas admite a localização de equipamentos "não enquadráveis na área urbana e urbanizável" e a única leitura que se extrai desta exigência é a de que se mostra necessário fundamentar, in concretu, a indispensabilidade de implantação dos mesmos em área rural por inexistência de alternativa viável dentro do perímetro urbano, facto este que não é minimamente referenciável na deliberação da Câmara Municipal de 31.3.2004 e no parecer Técnico que lhe esteve subjacente.
oo) A deliberação da CMG, de 31.3.2004, que concedeu o interesse público municipal, viola o disposto no art.º 20º e na al. c), do n.º 1, do art.º 23º do PDM da Guarda, sendo, consequentemente, nula, pois é esta a solução que se encontra expressamente consagrada no art.º 103° do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial - DL n.º 380/99, de 22.9 -, já que a construção de um Lar de Idosos não se situa em área que, ao abrigo de plano de ordenamento do território, esteja expressamente afecta ao uso proposto (construção).
pp) O acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade, e esta é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal - art.º 134º, n.ºs 1 e 2 do Código de Procedimento Administrativo então em vigor -, sendo, assim, evidente que sobre ele não pode constituir-se qualquer relação jurídica ou mesmo qualquer situação de facto, sendo obrigação de todos determinar a sua erradicação da ordem jurídica.
qq) Relativamente à competência para a atribuição de Interesse Municipal, deve ser a Assembleia Municipal, enquanto órgão que aprovou o PD M - nos termos do regime dos planos municipais de ordenamento do território então em vigor, o DL n.º 380/99, de 22.9 (Cf. n.º 1 do art.º 79º) -, a deliberar sobre o enquadramento do equipamento em causa na alínea c) do n.º 1 do art.º 23º do PDM, sob proposta da Câmara Municipal, devidamente fundamentada nos termos atrás descritos, o que, no caso concreto, não sucedeu, já que tal interesse foi atribuído por deliberação da CMG de 31.3.2004.
rr) Entendimento que é sufragado pelo Parecer DAJ 172/08, de 11.12.2008, da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional Centro, que conclui o seguinte: "Quanto às competências de cada um dos órgãos no assunto, deverá ser a Assembleia Municipal, enquanto órgão que aprovou o Plano Director Municipal – nos termos do regime dos planos municipais de ordenamento do território então em vigor, o DL 69/90, de 2.3 (cf. n.º 2 do artigo 3º), a deliberar sobre o enquadramento do equipamento em causa na alínea b) do n.º 1 do Regulamento do PDM, sob proposta da Câmara Municipal, devidamente fundamentada nos termos atrás descritos".
ss) Daqui decorre que a deliberação da CMG, de 31.3.2004, que concedeu o interesse público municipal é nula nos termos do disposto no art.º 133º, n.º 2, al. b), do CPA e por violação da alínea c) do n.º 1 do art.º 23º do PDM da Guarda, sendo nulos todos os demais actos subsequentes, como é o caso da deliberação que licenciou a construção do dito lar de idosos, licença esta que também será, por este motivo, nula e de nenhum efeito, não podendo, por conseguinte, ser concretizada a construção do lar de idosos.
tt) Efectivamente, a nulidade da deliberação da CMG, de 31.3.2004, tem por efeito a nulidade dos contratos de compra e venda titulados pelas escrituras de compra e venda realizadas em 09.6.2005 e 19.3.2008, atenta a impossibilidade do seu objecto – art.ºs 280º, 286º e 289º, n.º 1, do CC.
uu) A compra e venda titulada pela escritura pública celebrada em 09.6.2005 é nula nos termos do disposto no art.º 280º do CC por violar disposições de carácter imperativo - art.ºs 41º do RJEU e 21º, n.º 1 do PDM - e por ser legalmente impossível em virtude do prédio se situar em solo rural.
vv) Esta nulidade opera ipso iuri, sendo invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal - art.º 286º do CC; tem efeito retroactivo, tudo se passando como se o negócio não tivesse sido realizado - art.º 289º do CC.
ww) Daqui resulta que a posterior venda de 19.3.2008, também não pode subsistir, uma vez que a invalidade daquele negócio, afecta, logicamente, todos os actos subsequentes, e, por outro, a invalidade do título de 09.6.2005 tem como consequência a nulidade do registo feito com base nele, não podendo, por conseguinte, subsistir a presunção de propriedade resultante do registo predial.
xx) Um dos pressupostos para que o licenciamento da construção do lar de idosos pudesse acontecer nos termos definidos no pedido de informação prévia passaria pela manutenção da área e localização da mesma que havia sido analisada nessa sede.
yy) Não foi isso que sucedeu, já que entre o pedido de informação prévia e a conclusão do licenciamento, mediou o procedimento de destaque, no qual foi emitida uma certidão com base na qual se operou o destaque na conservatória, dividindo o prédio em dois: o prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º …, com a área total de 6887 m2; e o prédio sobrante inscrito na matriz sob o n.º …, com a área remanescente de 21510,67 m2.
zz) Em 28.3.2008, quando a CMG emitiu o alvará de licenciamento de obras n.º …, a situação de facto, como seja área, configuração e confrontações do prédio, e de direito haviam-se alterado, o que impedia que se mantivesse legalmente aquele licenciamento, por os seus pressupostos base estarem modificados.
aaa) Este acto de licenciamento padecia de uma invalidade insuprível resultante do facto de o projecto ter sido aprovado para e tendo por base um prédio mais amplo do que aquele que, então, constituía propriedade da 3ª Ré e que foi transmitida à A. através da escritura de compra e venda de 19.3.2008.
bbb) Tal impossibilitava a construção pretendida e sua utilização por os actos nos quais se fundava a sua legalidade se mostrarem inquinados irremediavelmente, ao faltar um dos elementos essenciais do acto administrativo, o que gera a sua nulidade nos termos do disposto no art.º 133º, n.º 1, do CPA.
ccc) Donde resulta que a construção do lar de idosos, depois de efectuado o destaque, nunca poderia ter sido levada a cabo nas condições que haviam sido apreciadas no âmbito do pedido de informação prévia e seguidas no licenciamento principal.
ddd) Assim, quando em 19.3.2008, a 3ª Ré, vendeu à A. o referido prédio, inscrito na matriz sob o n.º …, com a área de 21510,67 m2, com um ónus de não fraccionamento pelo prazo de 10 anos e com projecto de edificação aprovado pela CMG, com licença de construção a pagamento, já esta edificação se encontrava impossibilitada, por não poder ser legalmente titulada, enquanto a situação predial não fosse idêntica à que esteve subjacente ao pedido de informação prévia inicial, o que tem como consequência a nulidade de tal contrato de compra e venda, atenta a impossibilidade do seu objecto – art.ºs 280º, 286º e 289º, n.º 1, do CC.
eee) É impossível executar uma operação urbanística "global" no prédio objecto de divisão, em que o novo prédio se encontra destinado à construção de edifício destinado exclusivamente a fins habitacionais.
fff) Uma tal impossibilidade tem como consequência a nulidade do contrato de compra e venda, titulado pela escritura de 19.3.2008, nos termos do disposto no art.ºs 280º, 286º e 289º, n.º 1, do CC.
2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão, sendo que a questão em apreço não é isenta de dificuldades.
Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4º deste Estatuto (art.º 1º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, na redacção conferida pelo DL n.º 214-G/2015, de 02.10); compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art.º 212º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa/CRP).
Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas: à tutela de direitos fundamentais, e outros direitos e outros interesses legalmente protegidos no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais; à fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal (b); à fiscalização da legalidade de actos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública; à fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos; à responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo; às relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores (art.º 4º, n.º 1, alíneas a), b), c), d), f) e o) do ETAF, na redacção conferida pelo DL n.º 214-G/2015, de 02.10).
São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art.ºs 64º, do CPC e 40º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário/LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8) - os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art.º 211º, n.º 1, da CRP).
3. Sob o capítulo IV (com a epígrafe “Da extensão e modificação da competência”), do Título IV (“Do Tribunal”) do Livro I (“Da Acção, das Partes e do Tribunal”), prevê-se nos art.ºs 91º e 92º da actual lei civil adjectiva (CPC), relativamente à competência do tribunal em relação às questões incidentais e questões prejudiciais, respectivamente:
O tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa (art.º 91º, n.º 1). A decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respectivo, excepto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia (n.º 2).
Se o conhecimento do objecto da acção depender da decisão de uma questão que seja da competência do tribunal criminal ou do tribunal administrativo, pode o juiz sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie (art.º 92º, n.º 1). A suspensão fica sem efeito se a acção penal ou a acção administrativa não for exercida dentro de um mês ou se o respectivo processo estiver parado, por negligência das partes, durante o mesmo prazo; neste caso, o juiz da acção decidirá a questão prejudicial, mas a sua decisão não produz efeitos fora do processo em que for proferida (n.º 2).
4. Sabemos que a competência material do tribunal se afere em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 91 e 95 e os Acórdãos do STJ de 12.01.1994, 22.01.1997, 20.5.1998 e 26.6.2001, in CJ-STJ, II, 1, 38 e V, 1, 65; BMJ, 477º, 389 e CJ-STJ, IX, 2, 129, respectivamente. e que o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor (i. é, o pedido) se encontra necessariamente correlacionado com o facto concreto que lhe serve de fundamento/causa de pedir.
Assim, ao determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, temos de atentar, sobretudo, na alegação do A. e no efeito jurídico pretendido, sabendo-se, como decorre do exposto, que a competência dos tribunais judiciais é uma competência residual, dado que são da sua competência todas as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional, nomeadamente à administrativa.
5. Tradicionalmente, a delimitação da competência material entre os tribunais da jurisdição administrativa e os da jurisdição comum faz-se em torno da dicotomia «acto de gestão pública» ou «acto de gestão privada» do Estado, reservando apenas para os primeiros a atribuição de competência aos tribunais administrativos e deixando os segundos, residualmente, sob a alçada dos tribunais comuns.
Efectivamente, no dizer da doutrina e jurisprudência, a distinção entre jurisdição comum e jurisdição administrativa está/estava na diferença entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.
Neste contexto, entre outros, Marcello Caetano considera gestão pública a actividade da Administração regida pelo direito público e a gestão privada como a actividade da Administração que decorre sob a égide do direito privado Manual de Direito Administrativo, tomo I, 10 edição, pág. 44 e nota (1)..
Desenvolvendo esta ideia e partindo do princípio de que o direito público que disciplina a actividade da administração é quase todo ele constituído por leis administrativas, define gestão pública como a actividade da Administração regulada por normas que conferem poderes de autoridade para a prossecução de interesses públicos, disciplinam o seu exercício ou organizam os meios necessários para esse efeito; por seu lado, os actos de gestão privada surgem no âmbito da actividade desenvolvida pela Administração no exercício da sua capacidade de direito privado, procedendo como qualquer outra pessoa no uso das faculdades conferidas por esse direito, ou seja, pelo direito civil ou comercial. Ibidem, tomo I, pág. 431.
No mesmo contexto, segundo Antunes Varela, actos de gestão pública são aqueles que, visando a satisfação de interesses colectivos, realizam fins específicos do Estado ou de outro ente público e assentam sobre o jus auctoritatis da entidade que os pratica, enquanto de gestão privada são os actos que, embora praticados pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares (o Estado ou a pessoa colectiva pública intervém como simples particular, despido do seu poder público). Das Obrigações em Geral, Vol. I, 1991, pág. 643.
No acórdão do Tribunal de Conflitos de 05.11.1981 Publicado no BMJ, 311º, 195. considerou-se que a solução do problema da qualificação como de gestão pública ou de gestão privada, dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou agentes de uma pessoa colectiva pública, reside em apurar: se tais actos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva em que esta, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado, ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas.
6. Existia, pois, consenso quanto ao essencial, isto é, como sendo actos de gestão pública os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, ou seja, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios coercivos; actos de gestão privada, os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida do poder público, e, portanto, numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, daí, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com inteira submissão às normas de direito privado e às mesmas jurisdições. Vide, sobretudo, o citado acórdão do STJ de 26.6.2001.
Sobre a matéria, vide ainda, numa perspectiva histórica (a partir do 3º quartel do séc. XIX…), Prosper Weil, O Direito Administrativo, Almedina, 1977, sobretudo, págs. 67, 68 e 77.
7. Na actualidade, partindo dos citados art.ºs 2l2°, n.° 3, da CRP Comentando o n.º 3 do art.º 212º da CRP, dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra Editora, 2º volume, 4ª edição, págs. 566 e seguinte: «Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1) as acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente administração); 2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal»., e l°, n.° 1, do ETAF, a competência dos tribunais administrativos e fiscais dependerá da ponderação sobre se se está, ou não, perante pleitos derivados de relações jurídicas administrativas (e fiscais), sendo que só no primeiro caso tal competência se verificará.
Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa.
Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que, por via de regra, confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração Vide Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2001, pág. 518.; devem ser consideradas relações jurídicas administrativas aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actua com vista à realização de um interesse público legalmente definido. Vide J. C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa - Lições, 3ª edição, 2000, pág. 79.
8. In casu, em rigor, em causa está tão só aferir se, em razão do pedido deduzido na acção pela apelante e da causa petendi que o alicerça/sustenta, deve a decisão apelada manter-se.
É em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos (causa petendi) em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição (quid disputatum/quid decidendum em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum), que cabe determinar/aferir da competência do tribunal para o conhecimento de determinada acção, sendo para tanto irrelevante o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente à viabilidade da acção, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão. Vide Manuel de Andrade, ob. cit., Coimbra Editora, pág. 91, citando Redenti; A. Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, pág. 379 e, ainda, entre outros, o acórdão do STJ de 09.7.2014-processo 934/05.6TBMFR.L1.S1, publicado no “site” da dgsi.
9. Assim, e considerado o demais enquadramento normativo aludido em II. 2. e 3., supra, face ao disposto no art.º 92º, do CPC, nada impede/obsta a que em sede de tribunal comum seja a questão prejudicial conhecida e decidida - o juiz tem apenas a faculdade de sobrestar na decisão, suspendendo a instância até que tal questão seja decidida pelo tribunal competente (n.º 1), mas estando obrigado a apreciá-la ele mesmo caso se verifique a situação prevista no n.º 2, ainda que, nessa parte, a decisão não produza efeitos fora do processo (cf. n.º 2, in fine, do mesmo art.º).
Ou seja, v. g., se em acção intentada em tribunal comum ou judicial, o conhecimento do respectivo objecto depender de uma questão que seja da competência do tribunal administrativo (como a nulidade de um acto administrativo, sendo que consubstancia também um acto administrativo a concessão pelas Câmaras Municipais de licenças para construção, reedificação ou conservação, bem como para aprovar os respectivos projectos, nos termos da lei - cf. al. a) do n.º 5, do art. 64º, da Lei das Autarquias Locais, aprovada pela Lei n.º 169/99, de 18.9, aplicável à data da prática dos actos Depois alterada, designadamente, pelas Leis n.ºs 75/2013, de 12.9 e 7-A/2016, de 30.3.), inquestionável é que pode o tribunal comum apreciar tal questão (v. g., desconsiderar um acto administrativo, porque nulo), não estando obrigado a remeter as partes para a jurisdição administrativa, e ainda que, forçosamente, a decisão proferida na referida parte se restrinja às partes do processo, não produzindo efeitos fora do processo. O que significa que, se a questão incidental ou prejudicial for da competência do foro administrativo ou criminal, não é possível requerer o seu julgamento com a amplitude da constituição de caso julgado material, pelo que a sua decisão no foro comum apenas tem força obrigatória dentro do processo, remetendo-se para o foro próprio a sua decisão com força de caso julgado material (Cf. também o n.º 2 do art.º 92º do CPC).
A questão incidental (ou prejudicial, porque constitui pressuposto necessário da decisão de mérito) é objecto apenas de conhecimento “incidentaliter tantum” e não “principaliter”, podendo ser objecto de nova acção, embora sem prejuízo da anterior, e, a decisão do juiz e a que alude o n.º 1, do art.º 92º, do CPC, em rigor, está sujeita ao seu prudente arbítrio, integrando um seu poder discricionário. Anotando ou comentando disposição similar dos CPC de 1939 e 1961, vide, entre outros, A. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, Almedina, 1982, pág. 45; Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, Vol. I, 2ª edição, Coimbra Editora, 1960, pág. 288; J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 170 e, entre outros, os acórdãos do STJ de 29.3.2007-processo 07B764 e de 06.12.2016-processso 886/15.4T8SXL.L1.S1, publicados no “site” da dgsi.
10. Na situação em análise, a causa petendi dos pedidos deduzidos pela A./apelante contra as Rés (nenhuma delas um órgão da Administração e que, ao abrigo de normas de direito público, são autores/agentes de actos administrativos que produzem efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, como v. g. uma Câmara Municipal), e por via principal, apenas demanda a apreciação - pelo julgador - e a aplicação de normas do direito privado, que não público ou de natureza jurídica administrativa.
Ao analisarmos o
quid disputatum/quid decidendum da acção intentada pela A., e outrossim os pedidos deduzidos, é evidente que o julgamento do objecto da acção implica a valoração e a aplicação de normas do direito privado, atinentes às circunstâncias e efeitos decorrentes da celebração dos contratos de compra e venda dos autos cuja nulidade se pretende ver declarada - neste enquadramento, o desiderato da acção não envolve a resolução de um litígio emergente de uma relação jurídico administrativa, envolvendo, sim, contratos cujos efeitos jurídicos relacionam-se com a criação/extinção de relação jurídica de natureza real, confinada ao direito civil lato sensu, impondo-se a sua qualificação como sendo de direito privado, que não, de todo, contratos administrativos. O já revogado Código do Procedimento Administrativo/CPA (aprovado pelo DL n.º 442/91, de 15.11), no respectivo art.º 178º, n.º 1, caracterizava o contrato administrativo como sendo o acordo de vontades pela qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa.
Já o actual CPA (aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 07.01) define os actos administrativos como as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta (art.º 148º) e refere que Os órgãos da Administração Pública podem celebrar contratos administrativos, sujeitos a um regime substantivo de direito administrativo, ou contratos submetidos a um regime de direito privado (art.º 200º, n.º 1). São contratos administrativos os que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicos ou em legislação especial (n.º 2). Na prossecução das suas atribuições ou dos seus fins, os órgãos da Administração Pública podem celebrar quaisquer contratos administrativos, salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer (n.º 3).
A pretensão da A. reveste natureza civil, pois assenta num litígio travado entre particulares, emergente de contratos de compra e venda de bem imóvel regulados pelo direito privado, e cujo remédio deve ser equacionado, conforme peticionado, à luz do ordenamento de direito privado, sendo que a requerida declaração de nulidade, que implica a aplicação de normas do direito privado, atenta a impossibilidade legal do objecto (art.ºs 280º, 286º e 289º, n.º 1, do CC), relaciona-se com a extinção das relações jurídicas objecto dos mencionados contratos de compra e venda de 09.6.2005 e 19.3.2008, impondo-se qualificá-los como de direito privado e não como contratos administrativos, e a A. alegou, entre o mais, a nulidade da deliberação da CMG de 31.3.2004, que nasce e insere-se no contexto de um litígio de direito civil.
Ademais, a relação jurídica administrativa é vista como uma relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) regulada/disciplinada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Vide, designadamente, Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 9ª Edição, Almedina, pág. 55, (quando considera que na falta de definição legal expressa, prudente é qualificar-se a “relação jurídica administrativa” partindo-se do entendimento do correspondente conceito constitucional, ou seja, no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração) e, de entre vários, o acórdão o do Tribunal de Conflitos de 15.5.2013-processo 024/13, publicado no “site” da dgsi.
11. Assim, em razão da causa petendi invocada pela apelante e que suporta os pedidos que formula na acção, não existe qualquer fundamento pertinente que justifique considerar que o litígio a dirimir na acção intentada se reporta a uma relação jurídica administrativa; acresce que a A./apelante não formula, por via principal, o pedido de declaração de nulidade de quaisquer actos administrativos [v. g., da deliberação da CMG de 31.3.2004, dita, designadamente, em II. 1. i) e ss), supra, e subsequente processo de licenciamento e fraccionamento (destaque) do prédio objecto dos autos], e, coerentemente, não demandou também a autora do acto em causa (como obrigada estava, caso tivesse deduzido um tal pedido) E, como bem se refere na “alegação” de recurso, “a circunstância de ter sido suscitada a intervenção do Município da Guarda não altera o que vem de ser dito, não apenas porque essa intervenção não se alicerçou em qualquer facto que se insira ao conceito de relação jurídico-administrativa, como não foi formulado qualquer pedido contra a chamada que tivesse de alguma forma alterado o objecto privatístico da causa tal como definido pela A. na sua p. i.”., pelo que não existe obstáculo adjectivo a que a questão - porque em rigor incidental e prejudicial do objecto da acção - da nulidade do acto administrativo em causa possa ser apreciada e julgada no Tribunal comum, nos termos do art.º 92º, do CPC, e em razão do disposto no art.º 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF. De resto, diz o n.º 1 do art.º 133º do CPA, então em vigor (aprovado pelo DL n.º 442/91, de 15.11), que são nulos os actos a que falta qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.
Nos termos do art.º 134º, n.º 2 do mesmo diploma, a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou qualquer tribunal, devendo entender-se, como se refere na “alegação” de recurso, que a norma do n.º 2 do art.º 134º do CPA não pode ser interpretada no sentido de dar a qualquer órgão administrativo ou a qualquer tribunal a competência para declarar ´erga omnes` a nulidade de um acto administrativo, mas sim no sentido de que o legislador administrativo pretendeu estender a competência do tribunal comum quando o acto administrativo se apresente como questão incidental, ou seja, quando caia no âmbito da previsão dos art.ºs 91º e 92º do CPC
Estando a decisão a que alude o n.º 1 do art.º 92º, do CPC, sujeita ao prudente arbítrio do juiz, integrando, como vimos, um seu poder discricionário, e sendo que a problemática da nulidade de actos administrativos consubstancia apenas parte da causa petendi do pedido da A., e, de resto, apenas do pedido principal deduzido, e dado que, reafirma-se, a competência dos tribunais judiciais determina-se por um critério residual ou por exclusão de partes (não existindo disposição de lei que submeta a acção à competência intentada pelos AA. a algum tribunal especial, cai ela inevitavelmente sob a alçada de um tribunal judicial), e, por último, porque a questão prejudicial, ainda que da competência do tribunal administrativo, pode ser conhecida/decidida pelo juiz titular da acção (art.º 92º, do CPC), inevitável é concluir-se que o litígio que opõe apelante e apeladas há-de forçosamente ser dirimido (apreciado e julgado) em tribunal judicial ou tribunal comum. Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 09.01.2003, 09.3.2004-processo 04A117 [tendo-se sumariado, nomeadamente: «III – (…) sendo o tribunal da comarca competente, em razão da matéria, para conhecimento da questão principal, será também ele competente para conhecimento das questões conexas, incidentais ou prejudiciais, ainda que para estas, quando isoladamente consideradas, fosse competente o foro administrativo. IV - A decisão dessas questões prejudiciais ou incidentais constitui apenas caso julgado formal.»], 09.7.2014-processo 934/05.6TBMFR.L1.S1 e 06.12.2016-processso 886/15.4T8SXL.L1.S1 [constando da respectiva fundamentação, nomeadamente: «Não é defeso ao demandante, que pretende ver apreciada determinada questão da competência dos tribunais comuns, invocar fundamentos que se relacionam com a competência de outros tribunais. (…) Diferente é saber se, quando essoutros fundamentos são invocados nos tribunais comuns, como no caso, como se atribui essa competência. A resposta deve ser encontrada no art.º 92º do Código de Processo Civil que regula as ´questões prejudiciais` e no art.º 91º que versa sobre a competência do tribunal em relação a ´questões incidentais`.» ], da RL de 07.6.2011-processo 5338/09.9TBCSC-A.L1-1, 21.5.2013-processo 117/12.9TVLSB-A.L1-2 e 06.9.2018-processo 4730/16.7T8LSB.L1-2 e da RG de 17.12.2015-processo 1078/14.5T8VCT.G1, publicados, o primeiro, na CJ-STJ, XI, 1, 14 e, os restantes, no “site” da dgsi [sendo que o segundo foi também publicado na CJ-STJ, XII, 1, 110].
12. Assim, porque a A. cingiu a eficácia da decisão sobre os pedidos de declaração de invalidade do(s) acto(s) administrativo(s) à acção que intentou e as questões de índole administrativa apresentam uma incindível ligação de prejudicialidade com o pedido impugnativo que formula, é de considerar que estamos perante questões incidentais de natureza administrativa para cuja apreciação é competente o tribunal comum (n.o 1 do art.º 91º do CPC), cabendo, pois, ao julgador trilhar um dos caminhos apontados pelo art.º 92º do CPC para as solucionar (conhecer da questão prejudicial com efeitos circunscritos ao processo ou sobrestar na decisão, até que o tribunal competente - tribunal administrativo - se pronuncie, no prazo e termos do art.º 92, n.ºs 1 e 2 do CPC). Cf., ainda, designadamente, Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, Vol. I, cit., págs. 282 e 287 a 289 e J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 1º, cit., págs. 170 e seguintes e 174 e seguintes e o cit. acórdão do STJ de 06.12.2016-processso 886/15.4T8SXL.L1.S1.
13. Sem quebra do devido respeito por diferente entendimento, existe, pois, uma questão prejudicial de natureza administrativa que tem de ser enfrentada nos termos do art.º 92º do CPC.
14. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, impondo-se a revogação da decisão recorrida.
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III. Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos - se a tanto outra causa não obstar -, pois o tribunal recorrido é o competente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção, como se refere em II. 9. e 11. a 13., supra.
Custas pelas Rés e interveniente/apelados.
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23.10.2018
Fonte Ramos ( Relator )
Maria João Areias
Alberto Ruço