Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
982/11.7TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: DOAÇÃO
DOAÇÃO DE DINHEIRO
FORMA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 03/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – CASTELO BRANCO – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 940º E 947º, Nº 2, DO C. CIVIL.
Sumário: 1.- Na doação de dinheiro (bem móvel) a dispensa de formalidade (documento escrito) só opera quando se verifica a tradição da coisa, que pode não coincidir temporalmente com a declaração liberatória.

2.- Verificando-se que a declaração do donatário foi posterior à entrega do dinheiro (previamente a título de empréstimo), a doação carecia de documento escrito.

3.- Tendo o Autor presidido a uma assembleia geral do clube Réu e assinado uma acta, na qual se menciona a doação, a acta assim assinada assume a exigência legal de escrito, para efeitos da validade formal da doação.

4.- O abuso de direito pode implicar excepcionalmente a proibição do lesante de invocar a nulidade resultante da inobservância da forma legal do negócio celebrado.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO


            1.1.- O Autor – A… – instaurou na Comarca da Covilhã acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra o Réu – S…, com sede na Covilhã.

            Alegou, em resumo:

            Entre 19/6/2003 e 2/1/2008 emprestou ao Réu diversas quantias em dinheiro, no valor global de € 129.390,46, através da entrega de vários cheques, obrigando-se este a restitui-las no prazo de um ano.

            Como os contratos de mútuo são formalmente nulos, impõe-se a restituição.

            Pediu a declaração de nulidade dos mútuos alegados no art.1º da petição e a condenação do Réu a restituir ao Autor todas as quantias aí discriminadas, no montante global de € 129.390,46.

            Contestou o Réu, defendendo-se, em síntese:

            As quantias emprestadas foram posteriormente oferecidas ao Réu, conforme reiterada declaração pública do Autor, sendo que ele aceitou a doação.

A doação tinha uma condição que verbalizou e que a Direcção do Réu, bem como a assembleia-geral deste, aceitaram.

Por causa da doação o Réu deliberou em assembleia geral extraordinária de conceder ao Autor a categoria de sócio benemérito.

Concluiu pela improcedência da acção e requereu a condenação do Autor como litigante de má fé.

            1.2.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção improcedente e a absolver o Réu do pedido, tendo condenado o Autor como litigante de má fé, na multa de 5 UCs e indemnização à parte contrária consistente no reembolso das despesas a que a má fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários do mandatário, a ser fixada após ouvidas as partes.

            1.3.- Inconformado, o Autor recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

            Contra-alegou o Réu no sentido da improcedência do recurso

            1.4.- Por despacho de 9/12/2014 o Recorrente foi convidado a apresentar novas conclusões, no prazo de cinco dias, devendo individualizar de forma inequivocamente perceptível os pontos de facto e os concretos meios probatórios, sob pena de não se conhecer do recurso.

            O Apelante não correspondeu ao convite.


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. – O objecto do recurso

            Considerando que o Apelante, apesar de convidado, não apresentou novas conclusões, com a especificação dos pontos de facto impugnados e meios probatórios, impera a cominação legal (art.636 nº3, parte final, do CPC), pelo que não se conhece do recurso de facto.

            Por isso, o objecto do recurso está limitado à (i) nulidade da doação e à (ii) condenação por litigância de má fé.

            2.2. – Os factos provados:

2.4.- A nulidade da doação

A pretensão do Autor tinha por base a nulidade dos mútuos e a consequente restituição das quantias mutuadas.

Contudo, a sentença, perante a factualidade apurada, considerou estar comprovada a posterior doação do montante previamente emprestado, afirmando a sua validade por ter havido a entrega do dinheiro (art.947 nº2 CC).

Objecta o Apelante com a nulidade formal da doação, visto não ter havido a tradição da coisa, uma vez que as entregas em dinheiro foram efectuadas antes da proposta de doação, logo carecia de documento escrito.

Está assente que o Autor ofereceu ao Réu o montante de € 129.490,46, que lhe havia anteriormente emprestado, que o aceitou, sem qualquer contrapartida.

Verificam-se, assim, os requisitos legalmente exigidos (art.940 CC) para a doação: a atribuição patrimonial sem correspectivo; a diminuição ou empobrecimento do património do doador; espírito de liberalidade (generosidade do doador em beneficiar o donatário, o propósito de fazer bem, enriquecendo o seu património).

Tratando-se de doação de dinheiro (bem móvel) há que ter presente a norma do art. 947 nº2 do CC, em que a dispensa de formalidade (documento escrito) só opera quando se verifica a tradição da coisa (neste caso, a entrega do dinheiro) que pode não coincidir temporalmente com a declaração liberatória.

Daqui resulta que na doação de coisas móveis não é suficiente a declaração das partes exigindo-se a tradição da coisa ou um escrito. E “essa exigência funda-se na circunstância de a doação poder ser perigosa se não houver um facto que chame especialmente a atenção das partes para a gravidade do acto” ( Vaz Serra, RLJ ano 110, pág. 212). Ou seja, a ratio legis é a necessidade de proteger o doador contra a irreflexão, leviandade ou precipitação do doador (Antunes Varela, RLJ ano 106, pág.89 e segs.).

Em regra a entrega da coisa é simultânea da declaração, mas nada obsta a que não haja coincidência temporal, ou seja, que a entrega se efective posteriormente.

Na situação dos autos verifica-se que a declaração donatária foi posterior à entrega do dinheiro, já que este deu-se a título de empréstimo, pelo que carecia de documento escrito.

E ele existiu, pois no contexto apurado a acta da assembleia geral do dia 23 de Setembro de 2009, assinada pelo Autor, na qualidade de presidente da Assembleia Geral do Réu vale como documento, para o efeito.

Comprovou-se que durante a assembleia foi lido o relatório da direcção, no qual se refere: “Naturalmente que o esforço e trabalho da direcção não teria chegado a resultados tão evidentes se os contributos fossem esquecidos. Destes, queremos aqui deixar publico testemunho de agradecimento ao Sr. A…, Ilustre Presidente da nossa Assembleia Geral, pela doação feita, para além de outros apoios, do saldo da sua conta empréstimos com o qual nos é possível apresentar, de novo, elevado saldo positivo no exercício, doação esta feita em conformidade com a decisão anunciada oportunamente”.

Conforme consta da acta, o relatório de contas, o relatório da Direcção e o Parecer do Conselho Fiscal foram aprovados por unanimidade, estando a acta assinada pelo Autor.

Neste contexto, a acta assinada pelo Autor, que também aprovou o relatório da Direcção, assume aqui a exigência legal de escrito, para efeitos da validade formal da doação. Na verdade, tendo o Autor presidido à assembleia geral, aprovado o relatório da direcção, que menciona a doação feita por ele ao Clube, e assinado a acta, revela inequivocamente que não houve qualquer precipitação ou leviandade na declaração de beneficiar o Clube.

Noutra perspectiva, a não se entender assim, haveria manifesto abuso de direito (art.334 CC) na arguição da nulidade formal.

            Como se sabe, tem-se entendido que o abuso de direito pode implicar excepcionalmente a proibição do lesante de invocar a nulidade resultante da inobservância da forma legal do negócio celebrado (cf., por ex., Vaz Serra, RLJ ano 109, pág. 30, Baptista Machado, Obra Dispersa, vol.1º, pág.394 , Mota Pinto, Teoria Geral, 2ª ed., pág.435, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé, vol.II, pág.774 e segs.; no plano jurisprudencial, cf. Ac STJ de 2/7/96, BMJ 459, pág.519, de 12/11/98, C.J. ano VI, tomo III, pág.110, de 11/3/99, C.J. ano VII, tomo I, pág.152).

            Sendo esta posição dogmática a mais defensável para a solução dos concretos problemas da vida, a verdade é que no caso sub judice houve uma situação objectiva de confiança que se prolongou mais de dois anos, em que ambas as partes agiram no pressuposto da vinculação formal do contrato de doação, que nem sequer questionaram. E o investimento na confiança, originada pela posição vinculante, foi tal que nunca o Autor na assembleia geral pôs em causa a nulidade formal da doação.

            2.5. – A litigância de má fé

            A sentença condenou o Autor como litigante de má fé, em multa e indemnização. Para tanto, aduziu a seguinte fundamentação:

“ O A. dolosamente alterou a verdade dos factos, pois não podia ignorar que depois de ter entregue as quantias ao R., as doou, e publicamente, e até foi , e por isso mesmo, agraciado com o título de sócio benemérito. Deduziu pretensão que sabia não ter direito. Actuou processualmente com manifesta má fé”.

            Objecta o Apelante dizendo que não se verificam os requisitos da má fé, porque tendo deposto como parte manteve a mesma versão.

Nos termos do art.542 nº2 nCPC (art. 456 nº2 do CPC/61)  diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, (a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; (b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; (c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; (d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Enquanto as alíneas a) e b) se reportam à chamada má fé substancial (directa e indirecta), as restantes alíneas contendem com a má fé instrumental.

O juízo de censura que enforma o instituto radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes estão adstritas, para que o processo seja “justo e equitativo“, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil.

O âmbito da má fé abrange hoje a “negligência grave“, não bastando uma lide temerária ou meramente culposa.

Muito embora a jurisprudência tenha vindo a decidir que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do Estado de Direito, são incompatíveis com “interpretações apertadas” do art.456 do CPC (actual art. 542 ), nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a) e b), do nº2 (cf., por ex., Ac STJ de 9/1/2003, proc. nº 02B3882; Ac RC de 15/2/2005, proc. nº 4018/04, disponíveis em www dgsi.pt), a verdade é que, na situação dos autos, o Autor deduziu pretensão cuja falta de fundamento não ignorava, tratando-se de factos pessoais.

Negou a doação, quando se comprovou que ofereceu o montante de 129.490,46 €, por declaração pública, declaração esta que repetiu diversas vezes, quer em reunião de Direcção do Réu, quer em assembleia geral deste, perante diversos sócios e diversos membros dos órgãos sociais do Réu.

2.6.- Síntese Conclusiva

1.- Na doação de dinheiro (bem móvel) a dispensa de formalidade (documento escrito) só opera quando se verifica a tradição da coisa, que pode não coincidir temporalmente com a declaração liberatória.

2.- Verificando-se que declaração donatária foi posterior à entrega do dinheiro (previamente a título de empréstimo), a doação carecia de documento escrito.

3.- Tendo o Autor presidido a uma assembleia geral do clube Réu e assinado uma acta, na qual se menciona a doação, a acta assim assinada assume a exigência legal de escrito, para efeitos da validade formal da doação.

4.- O abuso de direito pode implicar excepcionalmente a proibição do lesante de invocar a nulidade resultante da inobservância da forma legal do negócio celebrado.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

2)

            Condenar o Autor nas custas.

            Coimbra, 3 de Março de 2015.


 Jorge Arcanjo (Relator)

 Teles Pereira

 Manuel Capelo