Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2379/16.3T8FAR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ALIMENTOS
MENORES
CUMPRIMENTO EM ESPÉCIE
Data do Acordão: 04/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 762, 1905, 2003, 2005 CC
Sumário: Considerando que a prestação de alimentos pode ser cumprida em espécie – artigos 2005.º, n.º 2, do Código Civil; que os pais suspenderam, pelo menos nos meses de maio e junho de 2016, o exercício das responsabilidades parentais fixado pelo tribunal, no que respeita à residência da menor, não se sabendo se existiu acordo quanto aos meses anteriores, desde meados de dezembro de 2015; que não existiu alteração em relação à pessoa do devedor dos alimentos; que tal suspensão não afetou os interesses do alimentando, nem justificaria a intervenção do tribunal, por os pais não terem sido capazes de prover às necessidades do alimentando, e que neste período houve cumprimento em espécie pelo devedor quanto à prestação de alimentos devidos à menor, então é de considerar a prestação de alimentos adequadamente cumprida.
Decisão Texto Integral:





I. Relatório ([1])

a) O recorrente deduziu os presentes embargos alegando que não pagou as prestações de alimentos reclamadas na execução movida pela exequente, porque a isso não estava obrigado, em virtude de, a pedido da exequente, a filha menor de ambos ter passado a residir consigo desde finais de Dezembro de 2015, situação que se mantém inalterada até hoje, sendo abusiva a pretensão executiva, dado que é o recorrente, quem, desde então, tem provido sempre ao sustento da filha.

Pediu a condenação da exequente/embargada no pagamento de multa e indemnização como litigante de má-fé.

A exequente/embargada contestou alegando que a filha foi viver com o pai contra a sua vontade (da exequente), argumentando que o embargante estava obrigado a cumprir a obrigação de alimentos a que foi condenado por sentença, até que outra decisão a alterasse, sendo, por isso, responsável pelo pagamento das prestações pedidas, resultando do exposto a falta de fundamento da pretensão do embargante, no sentido de ver a exequente condenada como litigante de má fé.

No final foi proferida a seguinte decisão:

«Face ao exposto, julgam-se os presentes embargos parcialmente procedentes, considerando-se não serem devidas pelo progenitor as prestações de alimentos dos meses de Maio, Junho, Setembro, Outubro e Novembro de 2016.

Mais se consigna que o valor de cada prestação devida deverá ser calculado por referência ao câmbio na respectiva data de vencimento.

Absolve-se a exequente/embargada do pedido de condenação como litigante de má-fé em multa e indemnização.

Custas a cargo do embargante e da embargada na proporção do decaimento (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), que se fixa, respectivamente, em 75% e 25%, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.

Registe, notifique e dê conhecimento à Sr.ª Agente de Execução, a qual deverá recalcular a quantia exequenda em conformidade com o ora decidido».

b) É desta decisão que vem interposto o recurso, cujas conclusões são as seguintes:

(…)

c) A recorrida não contra-alegou.

II. Objeto do recurso

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 – A primeira questão colocada pelo recurso respeita à contradição que existirá «entre o que a Sr.ª Juiz escreveu na sentença e no despacho proferido no apenso B sobre as circunstâncias em que a M (…) passou a residir com o pai», pois no mencionado despacho «disse que a menor passou a residir com o pai a partir de Dezembro de 2015 a pedido da mãe e na sentença sob recurso declarou que não se provou que ela tivesse passado a residir com o pai com o acordo da mãe.

O recorrente argumenta que a «A Sra. Juiz deveria ter fundamentado a mudança na sua convicção».

2 – Em segundo lugar, o recorrente pretende que seja alterada a matéria de facto provada, de modo a constar dos factos provados «…que a menor passou a residir com o pai em Dezembro de 2015, a pedido da mãe e que aí permaneceu com o acordo desta, até à decisão provisória proferida no apenso B».

3 – Em terceiro lugar, cumpre verificar se estando a menor à guarda e cuidado do pai de forma interrupta desde Dezembro de 2015, ainda que contra a vontade da mãe, segundo esta, e não tendo a mãe contribuído neste período para os alimentos da filha, continua a ser devida a entrega à mãe a prestação de alimentos que foi fixada a cargo do pai, o que passa por verificar designadamente, salvo em relação aos meses de Maio, Junho, Setembro, Outubro e Novembro de 2016, se não terá existido uma situação de enriquecimento sem causa por parte da mãe.

III. Fundamentação

a) Contradição na matéria de facto

A primeira questão colocada pelo recurso respeita à contradição que existirá «entre o que a Sr.ª Juiz escreveu na sentença e no despacho proferido no apenso B sobre as circunstâncias em que a M (…) passou a residir com o pai», pois no mencionado despacho «disse que a menor passou a residir com o pai a partir de Dezembro de 2015 a pedido da mãe e na sentença sob recurso declarou que não se provou que ela tivesse passado a residir com o pai com o acordo da mãe.

O recorrente argumenta que a «A Sra. Juiz deveria ter fundamentado a mudança na sua convicção».

Não assiste razão ao recorrente.

A lei prevê que o Tribunal da Relação ordene a remessa dos autos ao tribunal recorrido para que proceda a uma melhor fundamentação.

É o que resulta do disposto na al. d), do n.º 2, do artigo 662.º do Código de Processo Civil, onde se dispõe que «… não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados».

E na al. d), do n.º 3, deste mesmo artigo, o legislador declara que «Se não for possível obter a fundamentação pelo mesmo juiz ou repetir a produção de prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade».

Neste caso, verifica-se que ambas as fundamentações foram tomadas em decisões diversas e em momentos processuais também diversos e certamente com base em elementos probatórios diferentes.

Por isso, como a contradição, a existir, não respeita à mesma decisão, então não desencadeia qualquer tipo de reação processual.

Acresce que o recorrente impugnou o facto em questão, afigurando-se ser esta efetivamente a via adequada para obter tutela para a sua pretensão.

Improcede, pelo exposto, esta pretensão recursiva.

b) Impugnação da matéria de facto

O recorrente pretende que seja alterada a matéria de facto provada de modo a constar dos factos provados «…que a menor passou a residir com o pai em Dezembro de 2015, a pedido da mãe e que aí permaneceu com o acordo desta, até à decisão provisória proferida no apenso B».

Não assiste razão ao recorrente nesta sua pretensão, pelas seguintes razões:

(I) Em primeiro lugar, a explanação da convicção quanto a esta factualidade exarada na decisão mostra-se convincente.

Foi a seguinte:

«Assinala-se, desde logo, que apenas as testemunhas (…) revelaram ter algum conhecimento concreto sobre esta factualidade. Com efeito, a testemunha (…) evidenciou possuir conhecimento meramente indirecto sobre o assunto e as testemunhas (…) disseram desconhecer por que motivo e em que circunstâncias a criança passou a viver com o pai.

V (…) afirmou que a criança passou a residir com o pai a pedido da mãe por motivos de saúde. Já M (…) declarou que a progenitora permitiu que a criança passasse alguns dias com o pai a pedido deste e que, após, deixou de ter acesso à filha. Ambos relataram a versão dos factos mais favorável à parte com quem mantêm uma relação próxima (sem prejuízo do que a final se dirá quanto ao depoimento de M (…)), pelo que nenhum se mostrou imparcial. V (…) não assistiu a qualquer conversa entre os progenitores a combinarem que a filha passaria a viver com o pai a título definitivo, nem conseguiu garantir que a progenitora nunca se opôs a que tal sucedesse (aliás, a depoente relatou que em 2017 recebeu uma mensagem da progenitora reclamando o regresso da filha).

Com efeito, não só disse que a progenitora ainda ficou com a filha alguns dias em Janeiro de 2016 (ou seja, depois de final de Dezembro de 2015), como afirmou que não conseguia saber ao certo qual a posição da mãe quanto à residência da filha, dada a sua inconstância. É certo que referiu que, em Fevereiro de 2016, o pai decidiu inscrever a filha numa escola da área da sua residência, por não poder permitir que a filha continuasse sem frequentar estabelecimento de ensino, e que a progenitora lhe entregou voluntariamente a documentação da criança para o efeito (designadamente, o boletim escolar). Contudo, não presenciou tal entrega, pelo que não soube concretizar o contexto em que a mesma ocorreu e sob que condições. Acresce que, nos termos da certidão de matrícula junta a fls. 69 do apenso B, cujo teor é idêntico à informação escolar, solicitada pelo tribunal, prestada a fls. 229 do apenso C, a criança, em 30.08.2015, foi matriculada no Agrupamento de Escolas Cidade do K(...) , o qual frequentou no 1.º período do ano lectivo de 2015/2016, sendo que, em 17.11.2015, a progenitora pediu transferência para uma escola em W(...), em T (...) , mas não obteve vaga, pelo que a aluna continuou matriculada naquele Agrupamento até Fevereiro de 2016, altura em que transitou para uma escola sita na Y (...) , Z (...) . Ora, o facto de a progenitora ter diligenciado pela inscrição da filha para o ano lectivo de 2015/2016 pode, também, ser tido como incompatível com uma sua intenção de confiar a criança ao pai, a título definitivo, a partir de final de Dezembro de 2015.

Depois, de acordo com o auto de ocorrência a que supra se aludiu, o progenitor declarou que a progenitora lhe pediu para ficar com a filha por alguns dias – e não, note-se, a título mais definitivo – e que, depois de sinalizar a situação da criança junto da CPCJ, a sua advogada o aconselhou a não a entregar à mãe. Tais são, a nosso ver, indicadores de que não haveria, desde cedo, consenso entre os pais quanto à residência da criança.

Por tudo quanto foi exposto, o tribunal não logrou apurar, com a necessária segurança e certeza, as circunstâncias em que a criança passou a residir com o pai, mais concretamente, se tal resultou, ou não, de um acordo entre os progenitores (o que, considerando as regras de distribuição do ónus da prova, competia ao executado/embargante demonstrar).

Perante isso, o tribunal atendeu ao depoimento prestado pelo próprio companheiro da mãe, na parte em que reconheceu que esta, a dada altura, na sequência de um telefonema da filha, concordou que a mesma ficasse a residir com o pai até final de Junho de 2016. No mais, o depoente relatou que, depois disso, a progenitora tudo fez para recuperar a filha (aludindo a um episódio que culminou com a apresentação da queixa que deu origem ao Inquérito identificado em 8, referindo que a progenitora, em Agosto de 2016, matriculou a filha numa escola em B (...) , entre outras diligências). De resto, as diligências encetadas pela progenitora com vista à entrega da filha estão reflectidas nos factos provados em 9 a 11».

(II) Em segundo lugar, a impugnação formulada pelo recorrente não invalida a argumentação acabada de expor, nomeadamente a que se baseia nestes dois factos indiciários: (a) o facto da mãe ter diligenciado pela inscrição da filha para o ano letivo de 2015/2016 e (b) o facto de constar do «Auto de Ocorrência» junto a fls. 242-243 do apenso C, que o ora recorrente declarou que a mãe da menor lhe pediu para ficar com a filha por alguns dias e que, depois de sinalizar a situação da criança junto da CPCJ, a sua advogada o aconselhou a não a entregar à mãe.

O primeiro facto mostra-se incompatível com a alegada intenção da mãe confiar a menor ao recorrente a título definitivo a partir de final de Dezembro de 2015.

O segundo facto mostra que a entrega da menor ao pai, como ele declarou então, foi por «alguns dias» e não a título prolongado ou definitivo.

Ora, estes dois factos, na medida em que são ações concretas dos pais, não podem ser desligados das intenções que estiveram subjacentes aos mesmos.

Surgem até como mais reveladores ou fiáveis que os depoimentos das partes ou das testemunhas, que, neste caso, são interpretativos de uma dada realidade (saber se a menor foi para casa do pai durante alguns dias ou se foi para permanecer de modo duradouro), pois são as ações concretas das pessoas que ao agir explicitam as intenções que tornaram possíveis as suas ações.

E as ações materializadas nos dois factos indiciam que a ida da menor para casa do pai foi por pouco tempo, por alguns dias.

Daí a dúvida manifestada pelo tribunal recorrido que originou a resposta «não provado» ao facto em causa.

(III) Em terceiro lugar, a argumentação do recorrente, embora não destituída de verosimilhança, não se mostra com capacidade para inverter o sentido da formação da convicção que fica indicado.

 Com efeito, como diz o recorrente, a mãe matriculou a menor em agosto de 2015 na escola do K(...) e frequentou essa escola no primeiro período.

Em 17 de novembro de 2015 a mãe pediu a transferência da filha para a escola de W(...) , em T (...) , «mas não obteve vaga».

Com base nestes factos, o recorrente argumenta que este pedido de transferência só se justifica porque a mãe foi residir para T (...) , mas é sabido que a menor ficou com o pai desde Dezembro de 2015 e não se sabe onde a mãe esteve a viver depois desta data, tudo isto mostrando que a entrega da menor ao pai não foi por alguns dias, mas por tempo indeterminado.

Apesar da verosimilhança desta interpretação, permanece a dúvida sobre se a menor permaneceu com o pai contra a vontade da mãe ou com o seu acordo.

Pelas razões que ficaram indicadas, a entrega da menor ao pai foi um ato voluntário da mãe, mas não se pode concluir se o foi «por uns dias» ou por tempo indeterminado, mas se tivesse ocorrido esta última hipótese não se compreendiam as ações da mãe para obter a custódia da menor.

Por conseguinte, não é possível formar uma convicção positiva no sentido pretendido pelo recorrente, cumprindo manter a matéria factual tal como se encontra, improcedendo, por isso, a impugnação.

b) 1. Matéria de facto – Factos provados

1. M (…) Dias nasceu em 26 de abril de 2006 e é filha do executado/embargante e da exequente/embargada.

2. A execução a que estes autos se encontram apensos funda-se na sentença proferida pelo Tribunal Civil de Lausanne em 04 de abril de 2012, transitada em julgado, que decretou o divórcio entre a exequente/embargada e o executado/embargante e regulou o exercício das responsabilidades parentais relativamente a M (…), a qual foi confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido em 09 de novembro de 2017, transitado em julgado.

3. Nos termos da sentença referida em 2, a «autoridade e custódia parental» sobre M (…) foram atribuídas à exequente e o executado ficou sujeito à obrigação de pagar, a partir de 1 de maio de 2012, até no 1.º dia de cada mês, uma prestação para o sustento da filha, no valor de trezentos e quatrocentos francos suíços até esta completar 10 e 14 anos de idade, respetivamente, e quinhentos francos suíços até a mesma atingir a maioridade ou concluir a sua formação num prazo razoável, quantias essas a transferir para a conta da progenitora.

4. A partir de final de Dezembro de 2015, M (…) passou a viver com o pai, situação que se mantém até hoje.

5. A progenitora concordou que a filha residisse com o pai até final de Junho de 2016.

6. A CPCJ de Z (...) , no âmbito de processo de promoção e proteção instaurado a favor da criança, deliberou aplicar-lhe, em 31 de agosto de 2016, a medida cautelar de apoio junto dos pais, concretizada na pessoa do pai, pelo período de 3 meses.

7. O processo referido em 6, por deliberação de 10 de novembro de 2016, foi remetido ao Juízo de Família e Menores de Pombal por falta de consentimento da mãe para a intervenção, após o que foi arquivado.

8. Em 29 de agosto de 2016, a progenitora compareceu na GNR - Posto Territorial de Monte Redondo dizendo que o progenitor lhe havia retirado a filha, o que deu origem ao Inquérito n.º 1850/16.1T9LRA, por crime de subtração de menor, que correu termos na 2.ª Secção do DIAP de Z (...) , o qual foi arquivado por despacho proferido em 30 de junho de 2017.

9. Em 15 de setembro de 2016, a progenitora instaurou ação de entrega judicial de criança, alegando que a filha estava retida pelo pai em casa deste (a que correspondem os autos principais).

10. Em 27 de julho de 2017, a progenitora instaurou um procedimento cautelar não especificado, pedindo a atribuição, a título provisório, da guarda da filha e o exercício exclusivo das responsabilidades parentais a ela relativas, com a fixação de um regime de visitas por parte do progenitor (a que corresponde o apenso A).

11. Na sequência do arquivamento do processo referido em 9 com base em indeferimento liminar, a progenitora, em 11 de dezembro de 2017, instaurou nova ação de entrega judicial de criança (a que corresponde o apenso C), ainda não decidida.

12. Por decisão provisória proferida em 10 de abril de 2018, no apenso B, a residência de M (…) foi fixada junto do progenitor, prevendo-se um regime de convívios com a mãe e estipulando-se uma prestação de alimentos a cargo desta.

2. Matéria de facto – Factos não provados

Não se provou que M(…) passou a residir com o pai (de finais de Dezembro de 2015 até hoje) a pedido da mãe ou com o acordo desta (ressalvado o período referido em 5).

c) Apreciação da restante questão objeto do recurso

Vejamos agora se a menor, tendo estado à guarda do pai de modo ininterrupto desde Dezembro de 2015, contra a vontade da mãe, no dizer desta, e não tendo a mãe contribuído neste período para os alimentos da filha, continuará a ser devida a prestação de alimentos que foi fixada a cargo do pai, a entregar à mãe da menor.

Não estão em causa as prestações relativas aos meses de Maio, Junho, Setembro, Outubro e Novembro de 2016, que a sentença entendeu não serem devidas, mas sim as restantes, pelo que o período em falta é o que vai de dezembro de 2015 a abril de 2016, inclusive, mais julho e agosto de 2016.

Na sentença considerou-se que «…o executado/embargante não logrou demonstrar, como lhe competia, a sua versão integral dos factos, isto é, que a filha passou a residir consigo a pedido da mãe. Porém – e independentemente das concretas circunstâncias em que a criança foi viver com o pai –, o tribunal deu como provado que a progenitora concordou que a criança residisse com ele até final de Junho de 2016, de certa forma “ratificando” uma situação de facto que se instalara desde final de Dezembro de 2015, o que permite concluir que desde final de Dezembro de 2015 até final de Junho de 2016 existiu um acordo (verbal) entre os progenitores no sentido de a filha residir com o pai».

Existe aqui a afirmação de uma realidade que é contrariada pela explanação

da convicção relativa a essa mesma realidade, pois agora afirma-se a existência de um acordo dos progenitores entre 15 de dezembro de 2015 e junho de 2016, acordo que qual não foi afirmado na explanação da convicção, que concluiu nesta parte por um non liquet probatório. 

Porém, argumentou-se na sentença, «…o acordo (verbal ou, mesmo, escrito) dos progenitores que altere um acordo anteriormente homologado é nulo por violação do procedimento formal necessário (artigos 1905.º, 219.º e 220.º, todos do Código Civil). De facto, este artigo 1905.º dispõe, no seu n.º 1, que “(…) os alimentos devidos ao filho e a forma de os prestar serão regulados por acordo dos pais, sujeito a homologação do tribunal; a homologação será recusada se o acordo não corresponder ao interesse do menor (…)”. Daqui resulta que a utilização do processo e a homologação são condições essenciais para validade do acordo sobre alimentos. A falta de observância da forma legal implica a invalidade do acordo, sob a forma de nulidade (artigos 219.º e 220.º citados)».

Argumentou-se na sentença no sentido da alteração factual verificada não ter relevância jurídica e, por isso, as quantias eram devidas, mas concluiu que existia abuso de direito em tal pretensão relativamente às quantias atinentes aos meses em que houve comprovadamente acordo entre os progenitores.

Daí que o tribunal tenha excluído da execução os meses de maio e junho de 2016, além dos meses de setembro, outubro e novembro do mesmo ano, mas estes três últimos por estarem já cobertos por decisão judicial.

Manteve, por isso, a execução quanto às quantias devidas desde dezembro de 2015 a abril, inclusive, de 2016 e julho e agosto do mesmo ano.

Afigura-se que há razões para alterar esta decisão.

■ Não se provou se neste período que vai de dezembro de 2015 a abril, inclusive, de 2016, tenha existido acordo entre os pais no sentido da menor residir com o pai.

Tal acordo poderá ter existido ou não.

Vejamos então.

Em 1.º lugar, a obrigação de alimentos pode ser cumprida em espécie.

Com efeito, nos termos do artigo 2003.º do Código Civil, «1. Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário.

2. Os alimentos compreendem também a instrução e educação do alimentando no caso de este ser menor».

A prestação de alimentos tem por finalidade, como se vê, prover ao sustento do alimentando.

A prestação é cumprida, como se indica no n.º 1 do artigo 762.º do Código Civil, quando o devedor cumpre a obrigação a que está vinculado.

No caso dos alimentos, a prestação pode ser cumprida em dinheiro ou em espécie.

Neste último caso, a obrigação é cumprida pelo progenitor obrigado a prestar alimentos quando o filho reside consigo e este lhe assegura os alimentos fornecendo-lhe a residência, alimentação, vestuário, condições de saúde, segurança, etc., cumprindo assim a finalidade prevista no mencionado artigo 2003.º do Código Civil.

Neste caso, como no caso dos autos, a prestação de alimentos é/foi cumprida em espécie.

Em 2.º lugar, nos termos dos factos provados n.ºs 4 e 5, que não foram impugnados, «A partir de final de Dezembro de 2015, M(…) passou a viver com o pai, situação que se mantém até hoje» e «A progenitora concordou que a filha residisse com o pai até final de Junho de 2016».

Face a estes factos parece ter existido acordo entre os pais, mas do contexto dos autos resulta, como acabou de dizer-se, que se ignora se no período de dezembro a maio de 2016 existiu acordo da mãe no sentido da menor residir com o pai.

Esta alteração factual, contrária ao acordo homologado pelo tribunal, que previa a residência da menor com a mãe, não teve carácter definitivo e é imputável quer ao pai quer à mãe da menor, em relação a esta pelo menos quanto aos meses de maio e junho de 2016.

Ora, tem de se reconhecer, face à complexidade e aos imprevistos da vida quotidiana, que os pais possam, por acordo, cancelar durante algum tempo o regime estabelecido pelo tribunal, para ser retomado mais tarde, substituindo-o temporariamente por outro, sem necessidade de recorrer a tribunal, desde que, claro está, os interesses dos filhos não sejam ofendidos, não devendo essa alteração trazer quaisquer consequências negativas para algum dos progenitores.

Efetivamente, a intervenção do Estado no seio da família fica a dever-se, em regra, a estas ordens de razões: (I) separação dos progenitores; (II) desacordo dos pais quanto ao exercício das responsabilidades parentais ou (III) incumprimento por parte destes das obrigações parentais, seja a título de culpa, por impossibilidade factual ou por qualquer outra razão.

Ora, no presente caso, além da separação dos progenitores, não ocorreu qualquer uma das outras causas que implicaria a intervenção inicial do tribunal.

Por conseguinte, sai reforçada a ideia de que não existiu neste caso uma real alteração do acordo homologado, que teria de ter caráter definitivo ou pelo menos prolongado, nem existiu uma situação típica que tivesse demandado a intervenção inicial do Estado devido ao facto dos pais revelarem incapacidade para zelar pelos interesses da filha.

Isto revela que a obrigação de alimentos tendo sido prestada em espécie pelo devedor (pai), parece ter sido adequadamente cumprida.

Em 3.º lugar, verifica-se que a questão relevante consiste em saber se, tendo existido esta «infração» ao estipulado pelo tribunal, tal violação impede(iu) que se considere validamente cumprida a prestação de alimentos devida pelo executado à filha.

Cumpre começar por dizer que não é credível que os pais da menor tenham estado de acordo no sentido da menor ficar com o pai «até final de junho de 2016» (facto provado n.º 5) e que o pai tivesse aceitado continuar devedor da prestação de alimentos em dinheiro, apesar de assegurar a alimentação da menor em espécie no mesmo período.

Tal situação seria compreensível se ocorresse durante, por exemplo, um mês ou dois, mas não durante meio ano.

É que, neste período mais curto de um mês ou dois, continuariam a existir despesas fixas anuais que sempre seriam feitas, quer o alimentando habitasse ou não habitasse com o devedor dos alimentos.

Por conseguinte, se se concluir que a obrigação de alimentos foi cumprida e cumprida de modo válido, os embargos procedem, caso contrário, não.

A resposta consiste, neste caso, como já se deduz do que vem sendo dito, em considerar cumprida a prestação de alimentos por parte do pai.

Vejamos.

Face ao que fica dito, verifica-se:

Que a prestação de alimentos pode ser cumprida em espécie;

Que, neste caso, os pais, por acordo, suspenderam pelo menos nos meses de maio e junho de 2016 (não se sabendo se existiu acordo quanto aos meses anteriores, desde meados de dezembro de 2015) o regime do exercício das responsabilidades parentais fixado pelo tribunal, no que respeita à residência da menor;

Que não existiu alteração em relação à pessoa do devedor dos alimentos;

Que tal suspensão não afetou os interesses do alimentado, nem justificaria a intervenção do tribunal devido aos pais não terem sido capazes de prover às necessidades do alimentando.

E que neste período, houve cumprimento, pelo pai, em espécie, da prestação de alimentos devidos à menor.

Então, face a esta situação, é de considerar que a prestação de alimentos foi adequadamente cumprida e, tendo sido cumprida, extinguiu-se.

Continuando.

Ponderou-se na sentença recorrida que «um acordo vinculante teria de se traduzir num acordo sujeito à apreciação do tribunal, a fim de verificar se os interesses da criança estavam ou não acautelados e, no caso positivo, homologá-lo, o que manifestamente não sucedeu in casu».

Por isso, a questão a resolver, como se disse, consiste em saber se, mesmo assim, cumprida a obrigação em espécie, o progenitor/devedor não terá ainda de pagar ao outro progenitor a prestação de alimentos fixada em dinheiro no acordo judicial, no fundo, se o progenitor/devedor não deverá pagar duas vezes com fundamento em que pagou a quem não era credor.

Como sustenta Remédio Marques, citado na sentença, «Não pode, neste caso, olvidar-se que, a despeito de a sentença que decretara (ou homologara) os alimentos estar sujeita à cláusula rebus sic stantibus, a alteração ou cessação da obrigação, atenta a indisponibilidade dos direitos em causa, só parece poder verificar-se mediante intervenção posterior do tribunal. A alteração dos alimentos devidos ao menor depende, pois, da prolação de ulterior sentença que modifique o conteúdo do regime judicial fixado anteriormente» ([2]).

Embora se reconheça, como se afirma no acórdão proferido no processo n.º 2670/07.0TMLSB, mencionado na sentença recorrida, que face à lei «…os progenitores não têm o poder de, mediante acordo, por si sós, fazerem cessar as obrigações alimentares», também é certo que no presente caso não houve alteração ou cessação das obrigações alimentares.

O que ocorreu foi uma alteração na modalidade do cumprimento, que de pecuniária passou a ser em espécie.

Ora, seria desproporcionado, como se disse, exigir que os pais recorressem ao tribunal, sempre que eles tivessem necessidade de alterar o regime fixado durante algum tempo, para ser retomado mais tarde, fosse durante um fim de semana, uma semana ou um mês ou mais tempo, pois, por exemplo, neste último caso, pode ocorrer que no final de um mês, tempo inicialmente previsto, se mantenha a situação inicial e seja necessário prolongar o estado de coisas durante mais tempo.

Aquilo que não pode ocorrer é uma revogação definitiva ou prolongada do regime legalmente fixado ou ofensa aos interesses do alimentando.

Resumindo.

No caso dos autos, como resulta dos factos provados n.ºs 4 e 5, «A progenitora concordou que a filha residisse com o pai entre até final de Junho de 2016».

Esta situação não configurou uma alteração ao regime de alimentos em vigor, porquanto a alteração para o ser teria de ser definitiva e não foi, sendo certo que o devedor de alimentos continuou sendo o mesmo.

Tratou-se antes de uma suspensão do regime legal em vigor, entre dezembro de 2015 e junho de 2016.

Não se verificou neste período qualquer prejuízo para os interesses da menor alimentanda.

A prestação alimentícia a cargo do pai durante este período foi cumprida em espécie, pelo que não é devida à menor em dinheiro, neste caso a entregar à mãe da menor.

■ Vejamos agora situação relativamente aos meses de julho e agosto de 2016.

Neste caso já estamos perante um cumprimento da prestação alimentícia que não teve o acordo da progenitora, à qual devia ser entregue a prestação de alimentos.

Apesar disso, deve manter-se a mesma solução, por esta razão:

Em 31 de agosto de 2016 a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Z (...) , no âmbito de processo de promoção e proteção instaurado a favor da criança, deliberou aplicar à menor alimentanda a medida cautelar de apoio junto dos pais, concretizada na pessoa do pai, pelo período de 3 meses.

Verifica-se, por conseguinte, que existiu uma situação contínua a partir de Dezembro de 2015 durante a qual a menor esteve sempre a residir com o pai, tendo este cumprindo com a obrigação de alimentos, que prestou em espécie.

Tendo existido cumprimento da obrigação de alimentos e sendo a menor a credora da prestação, não se encontra justificação bastante para considerar que esta prestação em espécie não extinguiu a obrigação de alimentos e que o pai da menor ainda tem de cumprir a mesma prestação agora junto da mãe da menor.

A solução poderia ser outra se este período de dois meses (julho e agosto) não se inserisse e não fosse a continuação de numa série de seis meses anteriores em que existiu cumprimento em espécie por acordo de ambos os progenitores.

Com efeito, um ou dois meses de cumprimento da obrigação de alimentos em espécie pode não ser relevante nos casos em que não existiu acordo nesse sentido entre os progenitores.

Isto acontecerá sempre que não se verifique um decréscimo relevante nas despesas anuais que tem o progenitor com o qual o alimentando reside, como seja o caso das despesas fixas com rendas, gastos de energia e serviços domésticos, despesas de educação, vestuário ou saúde.

Mas se num caso concreto se verifica que estes dois meses se seguem a um período prévio de meio ano, durante o qual o progenitor obrigado a prestar alimentos em dinheiro os prestou em espécie, com o acordo provado do outro progenitor durante parte deste tempo, tais despesas fixas anuais já não se afiguram relevantes, porque também não o foram nos seis meses anteriores, certamente por não existirem, caso contrário, não teria existido acordo, pois o progenitor que estava obrigado a prestar alimentos em dinheiro não estaria disposto a efetuar a mesma prestação duas vezes, uma em espécie e outra em dinheiro.

Por conseguinte, neste caso entende-se também que a prestação em espécie extinguiu a obrigação alimentar devida em relação a este período de tempo.

■ Pelas razões indicadas, conclui-se que o executado cumpriu a obrigação de alimentos devidos à sua filha menor através do pagamento em espécie, e que este cumprimento extinguiu a obrigação alimentos devida durante o mesmo período, através da entrega da prestação pecuniária fixada pelo tribunal, a qual devia ser entregue à progenitora da menor, ficando prejudicada, por desnecessidade, qualquer outra análise jurídica

Cumpre, pelo exposto, julgar o recurso procedente e com ele os embargos, determinando-se a extinção a execução.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e em consequência declaram-se que a quantia exequenda não é devida, pelo que se declara extinta a execução.

Custas pela Exequente.


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Coimbra, 30 de abril de 2019


Alberto Ruço ( Relator )

Vítor Amaral

Luís Cravo


[1] Segue-se o relatório constante da sentença recorrida

[2] Algumas Notas sobre Alimentos (Devidos a Menores). Coimbra Editora, 2.ª edição revista, pág. 110.