Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||||||||||||||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||||||||||||||
Relator: | JORGE JACOB | ||||||||||||||
Descritores: | ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS | ||||||||||||||
Data do Acordão: | 05/23/2012 | ||||||||||||||
Votação: | UNANIMIDADE | ||||||||||||||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE VISEU - 1º JUÍZO CRIMINAL | ||||||||||||||
Texto Integral: | S | ||||||||||||||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||||||||||||||
Decisão: | REVOGADA PARCIALMENTE | ||||||||||||||
Legislação Nacional: | ART.ºS 358º E 359º, DO C. PROC. PENAL | ||||||||||||||
Sumário: | A correspondência entre os factos constantes da acusação e os factos constantes da decisão final não implica necessariamente a correspondência entre os respectivos textos. Se o tribunal da condenação dá como assentes factos que já constavam da acusação ainda que conferindo-lhes um encadeamento diverso, desde que este lhes não retire a identidade naturalística, não ocorre qualquer alteração relevante da matéria de facto, pelo que nem sequer se torna necessário proceder à comunicação pressuposta pela alteração não substancial. Do mesmo modo, se o tribunal descreve os mesmos factos por outras palavras, ou confere maior pormenor ao relato apenas para precisar os termos da acção, mas sem acrescentar nada de novo à descrição da acção típica relevante, não ocorre alteração substancial ou não substancial da matéria de facto. | ||||||||||||||
Decisão Texto Integral: | I – RELATÓRIO:
Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 1º Juízo Criminal de Z..., após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferido acórdão decidindo nos seguintes termos: “(…) Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem o Tribunal Colectivo da comarca de Z..., em julgar a acusação pública parcialmente procedente e, consequentemente: A)Absolver o arguido A... dos crimes de corrupção passiva e de tráfico de influência que lhe vinham imputados na acusação pública. B) Condenar os arguidos A..., B... e C..., como co-autores de um crime de corrupção (desportiva) activa agravado, previsto e punido pelos arts. 9º e 12º, nº 2 da Lei nº 50/2007, de 31 de Agosto e 26º do C.Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa para cada um deles, às respectivas taxas diárias de 10,00€, 8,00€ e 9,00 €, o que perfaz o montantes globais de 2000,00€ (dois mil euros), 1.600,00€ (mil e seiscentos euros) e 1800,00€ (mil e oitocentos euros) respectivamente. C) Condenar o Clube Desportivo XX..., como autor de um crime de corrupção activa, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 11º, nºs 2, al. a), 4, 7 e 9, al.a), 26º, ambos do Cód. Penal, 9º e 12º, nº 2 da Lei nº 50/2007, de 31 de Agosto, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 110,00€, o que perfaz o montante global de 22.000€. D) Declarar perdida a favor do Estado a quantia de 500,00€ (quinhentos euros), apreendida ao arguido A.... E) Ordenar o levantamento da apreensão da quantia de 510,00€ (quinhentos e dez euros), aprendida ao arguido C... e, bem assim, dos cinco telemóveis apreendidos, quantia e objectos estes que deverão ser entregues a quem provar ser titular dos mesmos, devendo os arguidos na posse de quem foram encontrados ser notificados para os efeitos previstos no art.186º do C.Penal, sem prejuízo de, decorrido um ano, serem declarados perdidos a favor do Estado (nº4 do preceito legal citado (art.186 do C.P.P.). (…)”.
Inconformados, os arguidos A... e Clube Desportivo XX... interpuseram recurso retirando das correspondentes motivações as conclusões seguintes: A – Recurso do arguido A...: 1. O douto Acórdão proferido nos autos padece da nulidade prevista na al. b), do n.º 1, do artigo 3790 do Código de Processo Penal. 2. Na verdade, condena o arguido/recorrente por factos e qualificação jurídica não constantes da acusação, sem que tenha cumprido a tramitação definida no artigo 3590 do C.P. Penal. 3. Com efeito, como consta da acta da audiência de 1 de Junho de 2011, a Mma. Juiz Presidente comunicou aos arguidos a possibilidade do Acórdão final considerar nova factualidade inconstante da acusação, bem como a possibilidade do arguido (aqui recorrente) vir a ser condenado por crime distinto daqueles porque estava acusado. 4. Todavia, entende que tal alteração dos factos e subsequente imputação de crime diverso constitui meras alterações não substancial dos factos e da qualificação jurídica. 5. No entanto, ao que se crê, erradamente. 6. Efectivamente, é a factualidade acrescentada à acusação - aquela constante do primeiro e terceiro facto da comunicação e recolhida nos pontos III e XlII do Douto Acórdão em recurso - que permitiu que o recorrente fosse condenado pelo crime de corrupção activa agravado! 7. Ou seja, a sobredita factualidade nova teve por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso. Sem prescindir, 8. Pelo que consubstancia nos termos do artigo 1°, al. f) do CP, uma alteração substancial: “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”. 9. Assim, impunha-se ao Tribunal - como se mencionou - o estrito cumprimento do disposto no predito artigo 359°, 10. Sendo certo que o arguido só poderia ser condenado por tais factos e crime, desde que tivesse dado a respectiva anuência. 11. Ora, ao considerar tal factualidade sem cumprir o identificado mecanismo legal, é apodíctico que a decisão é nula, nos termos constantes da 1ª Conclusão tecida. 12. A pena aplicada emerge desfasada dos preceitos normativos atinentes, designadamente os do artigo 71° e 40° do Código Penal. 13. Efectivamente, a materialidade fluente de tais incisos legais levará a que a pena de multa se quede por um patamar inferior aos dos 200 dias fixados, dado que a culpa é diminuta e não se colocam razões preventivas - gerais ou especiais - com nenhuma particular densidade. 15. Finalmente, também se afigura que o quantitativo diário, fixado em dez euros, também emerge desfasado da normatividade aplicável. 16. Na verdade, o artigo 47/2 do Código Penal manda atender à condição económica e financeira do condenado. 17. Assim, o vencimento por ele auferido - € 977,00 - aliado ao facto da sua esposa ser doméstica - e, como tal, não auferir qualquer rendimento - bem como o ter três filhos a seu cargo, impunham que o montante diário da multa aplicada não ultrapassasse os € 8,00. Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente (…)
B – Recurso do arguido Clube Desportivo XX... 1 - O recorrente não concorda com os factos indicados em II-A da fundamentação do acórdão, nomeadamente, I (2a parte"), II (2a parte), III, IV, V, VIII, IX, X, XI, XII e XIII. 2 - Com o devido respeito, dos depoimentos das testemunhas não se pode concluir, de todo, que os arguidos B.... e C.... tivessem praticado os factos de que são acusados e, se em tese essa conclusão seja extraída, que os tivessem praticado como dirigentes/representantes do recorrente e no interesse deste. 3 - Se bem que no entender do recorrente, a prova testemunhal seja juridicamente irrelevante para se aquilatar da validade e legitimidade da actuação aqueles arguidos enquanto directores do recorrente e, com isso, ser aplicada uma condenação, como melhor se exporá. 4 - Nenhuma testemunha conhecia o arguido C..... 5 - Somente 3 testemunhas disseram conhecer o arguido B.... e dessas, nenhumas delas afirmou (como se verifica pelas declarações sumariamente reproduzidas) que esse conhecimento adviesse do exercício de funções directivas e de representação do clube, ora recorrente. 6 - Não existem depoimentos testemunhais alusivos a conversas pessoais ou telefónicas (directas ou indirectas) com qualquer desses arguidos. 7 - O único depoimento que o douto acórdão invocou para fundamentar a sua decisão, a da testemunha E..., não resultou de conversa directa ou pessoal com os arguidos B.... e C...., mas do que essa testemunha alegadamente ouviu dizer ao arguido A..., pelo que, ao valorar esse depoimento nos termos expostos violou o disposto no art° 129º do CPP. 8 - Do depoimento desta testemunha, o tribunal retirou as expressões "verdes", "primeiro" e "..." (cfr. acórdão - C -provas que serviram para formar a convicção do tribunal- pág. 938), as únicas que essa testemunha, a única, teria ouvido do A... e com aquelas expressões o tribunal "a quo" deu como provado que o recorrente praticou o ilícito de que vem acusado. 9 - O julgador invocou o interesse do recorrente na viciação do resultado do jogo e com isso atingir um resultado positivo por estar a um ponto de distância na classificação, mas não atribuiu relevância ao facto do T... estar a um ponto do recorrente e, por isso, (conclusão do recorrente) também poderia ter tido algum interesse menos ético e nem a um outro facto, muito bem alegado pela testemunha, … , o "campeonato estar no inicio... e a classificação não ter importância naquele momento". 10 - A conversa que a testemunha D... reproduziu em audiência a tê-la tido teve como interlocutor o árbitro A.... A testemunha nunca falou com os arguidos C...e B…. Este depoimento resultou do que essa testemunha disse ter ouvido a um terceiro, o arguido A..., e não aos outros arguidos, pelo que, na opinião do recorrente é um depoimento indirecto, prova indirecta e, como tal, não pode ser valorada para efeitos probatórios como fez o Julgador, sob pena de violação do disposto no nº 1 do art° 129° do C.P.P. 11 - A matéria provada é manifestamente inexistente, ou no mínimo insuficiente, para ser sustentada a condenação do recorrente que é baseada em prova indirecta e a que resultou do depoimento indirecto de uma única testemunha, D.... No mínimo, o julgador deveria ter admitido a dúvida sobre o rigor e a verdade daquela conversa telefónica que, reafirma-se, não foi corroborada por outra prova, testemunhal ou de outra natureza, e em consequência, aplicar o principio in dubio pro reo, sob pena do ónus da prova da inocência caber ao recorrente e aos demais arguidos o que é uma perversão absoluta do princípio da presunção da inocência. 12 - A única matéria atinente aos arguidos C...e B...é a sua presença nos factos ocorridos em 2007/11/15, embora nada tenha sido provado sobre as circunstâncias e os motivos daquela presença naquele local. 13 - O recorrente discorda da conclusão de VIII - II-A. O douto acórdão fundamentou essa decisão em depoimentos que são contraditórios que é a única ilação a retirar do ali escrito ... , ''testemunha ... foi adiantando que tal foi levado a efeito pelo arguido de "cabelo branco" (quando referir-se ao B....) já a testemunha ... optou por não se comprometer com qualquer identificação. A testemunha … sobre o teor do documento junto aos autos a fls. 2 1 11, afirmou - .,. " assentou no que lhe foi sendo comunicado .,. sendo que a respeito de quem procedeu à entrega do maço, foi-lhe transmitido ter sido o "mais baixo" (o arguido C...)". As testemunhas … , ambas fizeram a abordagem dos arguidos ... e como refere o acórdão – “ao chegarem junto deles o maço de notas já se encontrasse no chão”. 14 - Esta é a única matéria alusiva aos factos de 2007/11/15 e, por isso, o recorrente não percebe como é que o Julgador deu como assente que foram os arguidos C...e/ou o B...que tinham o dinheiro ou que o tenham entregado ao A... e ou que esse dinheiro pertencesse ao clube XX.... 15 - Com o devido respeito, a opinião do recorrente é que os documentos invocados no acórdão não certificam a idoneidade e a legalidade da representatividade do recorrente pelos arguidos C...e B.... Ora, 16 - O recorrente é uma pessoa colectiva de natureza associativa sem fins lucrativos, à qual são aplicados os princípios gerais previstos nos art°s 157° e ss do c.c., pelo que, por imposição das normas legais aplicáveis, se algo diferente não tivesse estabelecido nos estatutos do recorrente, matéria não provada, a lei impõe que a comissão administrativa tivesse sido eleita em assembleia geral – nº 1 do art° 172° do c.c. 17 - A recorrente não designou ou nomeou, por intermédio do órgão legal, assembleia geral ou, no minimo, desconhece-se se o fez e em que termos e, por isso, os arguidos C...e B...não são representantes do recorrente por inexistência de eleição e ou nomeação dessas pessoas ou de outras para funções representativas e ou dirigentes da associação clube desportivo XX.... 18 - A acusação não provou os factos acusatórios no que diz respeito aos arguidos C...e B...e muito menos logrou provar que esses arguidos actuassem enquanto representantes e no interesse da recorrente. 19 - Com a condenação do recorrente foi violado o principio penal de "in dubio pro reo" já que o "non liquet" na prova relativa a esta questão tem de ser valorada a favor do arguido e não contra, que foi a conclusão do tribunal, por violação do principio constitucional previsto no nº 2 do art° 32° da C.R.P. 20 - Salvo melhor opinião, a matéria de facto provada é insuficiente para a condenação do recorrente, senão mesmo contraditória a fundamentação e a decisão condenatória e, por isso, foi violado o princípio constitucional da presunção de inocência - alíneas a-) b-) e c-) do art° 410° do C.P.P. e n° 1 do art° 32° da C.R.P. Sem prescindir, 2] - O recorrente é uma associação sem fins lucrativos, vivendo de subsídios e apoios públicos, já que as receitas que gere são manifestamente insuficientes para fazer às despesas que estas instituições apesar de tudo ainda suportam. 22 - A decisão de aplicar uma pena de multa de 200 dias ao valor diário de 110,00€ perfazendo 22.000,00€ a manter-se pode, pura e simplesmente, provocar o fim da associação. 23 - Entende a recorrente que a caução de boa conduta pelo valor mínimo fixado na lei seria suficiente, sem que essa decisão ofenda os princípios gerais subjacentes à aplicação de uma pena. Mas, mesmo que assim não venha a ser doutamente decidido, 24 - Que então a multa a aplicar seja reduzida e fixada pelo período e montante diário mínimos. NESTA CONFORMIDADE, Deve ser revogado o acórdão recorrido no que concerne à condenação do recorrente, ou, se assim não se entender, a alteração da pena aplicada nos termos ora expostos.
O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência dos recursos, formulando na resposta as seguintes conclusões: 1- O douto Acórdão recorrido não enferma de nulidade ou de outro vício que obste à eficácia do aí decidido. 2- O Tribunal apreciou livre e responsavelmente apenas e todos os meios de prova legalmente admissíveis, aferindo a prova produzida segundo as regras da experiência e as necessidades práticas da vida, sem ofensa aos princípios constitucionais ou processuais e às garantias de defesa dos arguidos, havendo fundamentado devidamente a sua convicção. 3- A factualidade fixada como provada preenche todos os elementos (objectivos e subjectivo) constitutivos dos crimes de corrupção (desportiva) activa agravado, previsto e punido pelos artigos 9° e 12°, nº 2 da Lei nº 50/2007, de 31 de Agosto e 26° do Código Penal e de corrupção activa, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 11°, nºs 2, al. a), 4,7 e 9, alínea a), 26°, ambos do Código, 9° e 12°, nº 2 da Lei nº 50/2007, e respectivamente censurados aos recorrentes. 4- A decisão evidencia, também, o modo criterioso como o Tribunal escolheu a pena e, partindo da moldura penal, determinou a pena concreta para cada crime, aferida pelo grau de culpa dos arguidos e pelas exigências de prevenção, sem deixar de ter presente tudo quanto, para o efeito, resultou provado em benefício ou em desfavor dos agentes, fixando, por último e entrando em linha de conta com a situação económica e os encargos pessoais dos condenados, a taxa diária da pena de multa. 5- O Acórdão recorrido não interpretou deficientemente qualquer preceito legal e, designadamente, os artigos 32°, da Constituição da República, 379°, n.º1, b), 1º, alínea f), 127°, 129.°,410°, n.º2 do Código de Processo Penal, e ou 40°, 71°, do Código Penal, questionados na motivação dos recorrentes.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se pela improcedência dos recursos, excepto no que tange à taxa aplicada ao Clube Desportivo, que entende dever situar-se num valor situado entre os € 60,00 e os € 80,00. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência. Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso. No caso vertente e vistas as conclusões dos recursos, as questões a decidir são as seguintes: A – Questões decorrentes do recurso interposto pelo arguido A...: - Nulidade do acórdão recorrido, decorrente do previsto no art. 379º, nº 1, al. b), do CPP, por ter condenado o arguido A... por factos e segundo qualificação jurídica não constantes da acusação, sem observância do disposto no art. 359º do mesmo diploma; - Excesso da medida concreta da pena de multa e do respectivo quantitativo diário.
B – Questões decorrentes do recurso interposto pelo Clube Desportivo XX...: - Impugnação da matéria de facto (aí incluída a questão da legalidade da representação); - Violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo; - Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; - Contradição entre a fundamentação e a decisão; - Excesso da medida concreta da pena de multa e do respectivo quantitativo diário.
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II - FUNDAMENTAÇÃO:
Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:
A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos: Como referem Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, II volume, pág.359, em anotação ao art.343º, não se deve confundir “desfavorecer” com o “não favorecer”. A confissão, se espontânea, beneficia a posição do arguido. E se do silêncio do arguido resultar o desconhecimento de circunstâncias que o poderiam favorecer – e de que porventura, só ele tem conhecimento – então poderá esse silêncio nitidamente desfavorecê-lo. Como se extrai do Ac.nº524/97, do Tribunal Constitucional, relatado pela Ex.ma Conselheira Assunção Esteves, disponível em www.dgsi.pt, o que tais autores salientam é, afinal, a evidência de que, muito embora o arguido esteja isento do ónus de provar a sua inocência, não podendo ver juridicamente desfavorecida a sua posição pelo facto de exercer o seu direito ao silêncio – de que não é legítimo extrair qualquer consequência, seja para determinar a culpa, seja para determinar a medida concreta da pena – não é menos verdade que quando é do interesse do arguido invocar um facto que o favorece – e que ele poderá ser o único a conhecer – a manutenção do silêncio poderá desfavorecê-lo. Na verdade, contraria as mencionadas regras que alguém a quem vêm imputados actos da natureza dos ora em apreço, quando confrontado judicialmente com essa imputação, caso não seja o autor dos mesmos, não queira dar qualquer explicação para aqueles. Com efeito, em face de todo o circunstancialismo que rodeou a actuação dos arguidos, desde o 1º contacto telefónico estabelecido com o árbitro D... por parte do arguido A..., ao aumento da quantia oferecida de trezentos para quinhentos euros, até ao encontro marcado entre todos, o qual teve como objectivo proceder à entrega da quantia oferecida à testemunha D..., mandam as regras da experiência e da lógica que se conclua que os mesmos tiveram intervenção nos factos em apreço nos termos descritos, factos que, em face das considerações já tecidas, não podem deixar de ser tidos, à luz das regras da experiência comum, como resultantes de uma decisão e execução conjunta, com vista a desse modo interferirem no resultado do jogo em apreço, em benefício do XX.... Ainda a respeito da factualidade em análise, foram valorados os autos de exame pericial de fls. 147 e 148 e de leitura dos telemóveis apreendidos (Apenso II), os quais, para além de terem permitido ao tribunal, em conjugação com o mencionado exame pericial, dar como provados os números de telemóveis que constam da factualidade provada, são evidenciadores do relacionamento próximo já existente entre os três arguidos. No que concerne à actuação por banda dos arguidos B... . e C...., em nome e no interesse do XX..., a mesma extrai-se da conjugação da sua qualidade de dirigentes do clube com o propósito visado pela sua actuação concertada com o arguido A..., ou seja, obter para esse clube a melhor classificação possível através da oferta e entrega em dinheiro como contrapartida da viciação da verdade desportiva, único sentido possível, por lógico e razoável, à luz das regras da experiência do senso comum.
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Sustenta o recorrente A... que o acórdão do tribunal colectivo enferma da nulidade prevista no art. 379º, nº 1, al. b), do CPP, por o ter condenado por factos e segundo qualificação jurídica que não constavam da acusação, sem que concomitantemente tenha sido observado o disposto no art. 359º do mesmo diploma (todas as disposições legais doravante citadas sem menção do diploma de origem reportam-se ao Código de Processo Penal). Alega para o efeito terem sido introduzidos factos novos – os elencados em primeiro e terceiro lugar na comunicação exarada em acta – para subsequentemente se efectuar uma nova incriminação ao arguido. Como é sabido, o processo penal português tem estrutura acusatória, sendo o seu objecto delimitado pela acusação ou pela pronúncia, quando a houver. São os factos descritos nessa peça processual que delimitam o thema decidendum, daí resultando para o arguido a garantia de que, ressalvadas as excepções previstas na lei e dentro dos condicionalismos por esta fixados, não poderá ser julgado e condenado por outros factos que não aqueles de que tomou prévio conhecimento. Vejamos então os regimes legais da alteração substancial e da alteração não substancial de factos: Sobre a alteração substancial de factos rege o art. 1º, al. f), do CPP, que define como “«alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”. Factos que impliquem a imputação de um crime diverso ou que agravem os limites máximos das sanções aplicáveis (portanto, a implicar a condenação pelo mesmo tipo legal de base, mas agravado ou qualificado), são, necessariamente, factos com repercussão na configuração do ilícito e/ou na moldura penal. Fora desse âmbito, qualquer alteração será não substancial. Por outro lado, como aquela definição legal logo indicia através de simples interpretação literal, a aferição da «alteração substancial dos factos» situa-se no domínio da imputação, por referência ao tipo de ilícito (em abstracto) e não no domínio da efectiva verificação do crime (em concreto), equacionando a eventual procedência ou improcedência da acusação. Dizer-se que a verificação da alteração substancial se faz em abstracto, por referência ao tipo de ilícito imputado ao arguido, significa que se na acusação é imputado ao arguido, por exemplo, um crime de furto, estando descritos os factos pertinentes e, por força do aditamento de novos factos passa a ser-lhe imputável um crime de furto qualificado, os novos factos têm como efeito a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis; logo, a alteração é substancial. Se na acusação é imputado ao arguido um crime de furto e por força do aditamento de novos factos passa a ser-lhe imputável um crime de roubo, os novos factos têm como efeito a imputação de um crime diverso, pelo que estaremos ainda no domínio da alteração substancial de factos. A alteração substancial, como é sabido, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para efeito de condenação no processo em curso, salvo se, havendo acordo do M.P., do arguido e do assistente, dela não resulte a incompetência do tribunal (cfr. art. 359º, nºs 1 e 3, do CPP). Diversamente, “se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa” (art. 358º, nº 1, do mesmo diploma). Esta última norma é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (cfr. o nº 3 do mesmo artigo). Na verdade, qualquer que seja a qualificação jurídica que se faça dos factos trazidos a julgamento, ela jamais implicará uma alteração substancial, na medida em que o objecto do processo se mantém. A propósito do tema, escreve Frederico Isasca [1], citando Carnelutti: “se o juiz entende que a qualificação dos factos feita pela acusação é errada, ao corrigi-la não modifica os factos mas apenas a sua valoração”, acrescentando logo de seguida que “entender o contrário seria confundir vinculação temática com qualificação jurídica”. Segundo o recorrente A... estaríamos perante uma alteração substancial de factos por duas vias: - Porque a condenação assentaria em factos novos; - Porque foi condenado por crime diverso, condenação essa apenas possível por força da consideração desses novos factos. Os factos a que o recorrente se reporta foram objecto de comunicação em audiência, tendo sido vertidos em acta nos seguintes termos: - que o contacto telefónico efectuado pelo arguido A... no dia 10 de Novembro de 2007 para o árbitro D... foi estabelecido na sequência de contacto e acordo prévio com os arguidos B... . e C... .; - que os arguidos A..., B.... e C...., ao actuarem nos termos descritos na acusação, fizeram-no em conjugação de esforços e intentos entre todos, com vista a interferirem no resultado do jogo .../T... de modo a que resultasse em empate ou, caso não fosse possível, ganhasse o T..., em benefício do XX.... Ademais, fez-se constar da acta o seguinte: “Ora, podendo os factos acabados de referir, a serem dados como provados, constituir uma alteração não substancial dos descritos na acusação e entendendo também o tribunal que em face dos já vertidos na acusação e dos acabados de comunicar, a conduta do arguido A... é susceptível de configurar a prática em co-autoria com os demais arguidos de um crime de corrupção activa, nos termos das disposições legais já constantes da acusação, ao abrigo do disposto no art. 358º, nº 1, do CPP, comunicam-se tais alterações aos arguidos, concedendo-lhes, caso eles o requeiram, o tempo estritamente necessário para a preparação da sua defesa”. Contudo, é manifesto que não estamos perante factos novos. Os factos em que assentou a condenação do arguido são, naquilo que constitui a sua essência, exactamente os mesmos, o que pode, aliás, ser verificado através duma simples análise comparativa dos textos da acusação e do acórdão do tribunal colectivo:
Resulta patente da mera comparação destes textos que os factos que o tribunal colectivo considerou provados têm integral correspondência no que constava da acusação. O tribunal limitou-se a clarificar dois aspectos que já resultavam inequívocos do texto da acusação, qual seja, a existência de prévio acordo entre os arguidos, só possível através de contacto, directo ou indirecto, entre eles, e a comunhão de intenções com que actuaram. Aliás, o acórdão do tribunal colectivo, na sua fundamentação jurídica, explicitou de forma precisa e cuidada este particular aspecto, referindo a fls. 39 (correspondente a fls. 965 dos autos) que “… o que o tribunal referiu no ponto III do acórdão (“na sequência de contacto e acordo prévio”), é mera repetição, com outra formulação, do que já constava do último parágrafo do ponto I da acusação e também resultava da descrição fáctica constante dos parágrafos 3º, 6º, 7º, 8º e 9º, do ponto II da acusação, pois, como é óbvio, se não tivesse havido prévio contacto e acordo entre os três arguidos eles não apareceriam juntos no momento em que foram surpreendidos pela autoridade policial. Por outro lado, no que concerne ao que o tribunal referiu no ponto XIII do acórdão (“conjugação de esforços e intentos entre todos”), tal é claramente o que se infere dos demais factos provados e já vertidos na acusação, pois a actuação conjunta e concertada entre os três arguidos está evidenciada pelo conjunto de telefonemas e pela presença dos três quando surpreendidos pela autoridade policial. Aliás, para a co-autoria até basta a mera consciência e vontade de colaboração entre os agentes do crime e a demais matéria fáctica provada evidencia claramente essa co-autoria. Daí o acrescento efectuado e relativo à co-autoria não constituir mais do que uma expressão quiçá conclusiva que é praxe verter na matéria de facto provada das decisões condenatórias mas que até se admite que pudesse apenas ter sido chamada à colação em sede de fundamentação jurídica.” Registe-se que a correspondência entre os factos constantes da acusação e os factos constantes da decisão final não implica necessariamente a correspondência entre os respectivos textos. Se o tribunal da condenação dá como assentes factos que já constavam da acusação ainda que conferindo-lhes um encadeamento diverso, desde que este lhes não retire a identidade naturalística, não ocorre qualquer alteração relevante da matéria de facto, pelo que nem sequer se torna necessário proceder à comunicação pressuposta pela alteração não substancial. Do mesmo modo, se o tribunal descreve os mesmos factos por outras palavras, ou confere maior pormenor ao relato apenas para precisar os termos da acção mas sem acrescentar nada de novo à descrição da acção típica relevante, não ocorre alteração substancial ou não substancial da matéria de facto. A bitola para se aferir da relevância da alteração fáctica será sempre a identidade do objecto do processo e o fair trial pressuposto por um processo penal justo, que não são afectados quando nada de novo se acrescenta à descrição da acção típica. Assente que os factos são os mesmos, vejamos então o que sucede relativamente ao modo da sua imputação jurídica ao arguido A...: A acusação deduzida contra este arguido imputava-lhe a autoria de um crime de corrupção desportiva passiva agravado, p. p. pelos arts. 8º e 12º, nº 1, da Lei nº 50/2007, de 31 de Agosto. O arguido A... veio, no entanto, a ser condenado pela co-autoria de um crime de corrupção desportiva activa agravado, p. p. pelos arts. 9º e 12º, nº 2, da citada Lei. Pretende o recorrente que a alteração da matéria de facto a que se procedeu visou permitir a alteração da qualificação legal do crime que lhe era imputado. Sem razão, uma vez mais, pois como se demonstrou não houve qualquer alteração relevante da matéria de facto, já que nada de novo foi acrescentado ao que resultava da acusação. O que na verdade ocorre é uma alteração da qualificação jurídica. O tribunal a quo entendeu que os factos constantes da acusação e que teve como provados conduziam a uma diversa imputação criminosa. Vejamos o facto que essencialmente releva para a imputação criminal, na redacção da acusação e na redacção do acórdão recorrido:
Repte-se, os factos descritos são os mesmos. Simplesmente, com base nesses mesmos factos, a acusação imputou ao arguido o crime p. p. nos arts. 8º e 12º, nº 1, da Lei nº 50/2007, de 31 de Agosto, enquanto que o tribunal recorrido considerou verificado o crime p. p. pelos arts. 9º e 12º, nº 2, da mesma Lei. O teor dos normativos em questão é o seguinte: Art. 8º (corrupção passiva): O agente desportivo que por si ou mediante o seu consentimento ou ratificação, por interposta pessoa, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer acto ou omissão destinados a alterar ou falsear o resultado de uma competição desportiva é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos. Art. 9º (corrupção activa): 1 – Quem por si ou mediante o seu consentimento ou ratificação, por interposta pessoa, der ou prometer a agente desportivo, ou a terceiro com conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que lhe não seja devida, com o fim indicado no artigo anterior, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2 – A tentativa é punível. Art. 12º (agravação): 1 – As penas previstas no artigo 8.º e no n.º 1 do artigo 10.º são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo se o agente for dirigente desportivo, árbitro desportivo, empresário desportivo ou pessoa colectiva desportiva. 2 – Se os crimes previstos no artigo 9.º e no n.º 2 do artigo 10.º forem praticados relativamente a pessoa referida no número anterior, o agente é punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo. Ora, qual foi, afinal, a actuação do arguido A...? O que se provou é que este arguido, na sequência de acordo estabelecido com os arguidos B.... e C...., serviu-lhes de intermediário na oferta da quantia de trezentos euros, ulteriormente aumentada para quinhentos euros, ao árbitro D..., para que este interferisse nos resultados do jogo .../T... de modo a que o resultado desse jogo fosse um empate ou, se tal não fosse possível, que ganhasse o T..., resultados esses que serviam os intentos do XX.... Tal actuação, livremente assumida, traduzindo uma concertação de ideias e de intenções entre todos, visava a finalidade previamente determinada de interferir nos resultados de um jogo de futebol de modo a beneficiar o XX..., pondo assim em causa a confiança nas instituições desportivas, nos seus representantes e nos valores da verdade, da lealdade e da correcção dos resultados das competições desportivas. Tal actuação preenche, na verdade, a previsão dos arts. 9º e 12º, nº 2, da Lei nº 50/2007, de 31 de Agosto e nessa medida o Tribunal a quo deu cumprimento, como lhe competia, ao disposto no disposto no art. 358º, nºs 1 e 3. Nem sequer ocorre, pois, verdadeira alteração não substancial da matéria de facto. O tribunal colectivo procedeu a uma mera alteração da qualificação jurídica, que nada tem a ver com a alteração dos factos. Sobre o tema, pode ler-se, em Acórdão desta mesma Relação de Coimbra que, citando jurisprudência do Tribunal Constitucional (Ac. TC nº 544/2006, de 27 de Setembro de 2006), decidiu questão similar (Ac. RC de 13/10/2010, proferido no proc. nº 156/99.3TATND-A.C1, relatado pelo Exmº Desembargador Esteves Marques e disponível em www.dgsi.pt/jtrc), o seguinte: “(…) a dimensão do objecto do processo cuja alteração se repercute irreparavelmente na estratégia da defesa, e por isso só pode ser alterada em casos específicos, é a dimensão da alteração dos factos suporte de uma qualificação jurídica (…). Já a alteração da mera qualificação jurídica dos factos importa uma discussão sobre o Direito aplicável, mas não tem a mesma repercussão na defesa que tem a alteração substancial dos factos. Daí que a lei preveja para os casos de alteração da qualificação jurídica (em qualquer fase) apenas a oportunidade de a defesa se pronunciar, nos termos do contraditório (artigo 358º, nºs 1 e 3). Regime que foi introduzido no Código de Processo Penal pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, na sequência da jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdão nº 22/96, D.R., II Série, de 17 de Maio de 1996). O regime do objecto do processo deve ser interpretado de modo substancial em articulação com as garantias da defesa, é certo, mas também em equilíbrio com os demais princípios do Processo Penal, tais como os do jura novit cura, da verdade material e o imperativo da correcta aplicação do Direito. A alteração da qualificação jurídica dos factos durante o processo, ainda que mais do que uma vez, não colide com a estrutura acusatória do Processo Penal nem com as garantias da defesa. Na verdade, a investigação tem por objecto os factos. A qualificação jurídica depende da interpretação da lei em face do apuramento dos factos investigados. O juiz de julgamento tem, naturalmente, o poder de proceder à alteração da interpretação do Direito, salvaguardada que seja a oportunidade do arguido poder considerar na sua defesa a qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados. O entendimento do recorrente retira os poderes de investigação que, reconhecidamente, o sistema português confere ao juiz de julgamento, dentro, naturalmente, do objecto definido pela acusação. Nem a fase em que é feita a alteração da qualificação jurídica nem o facto de ser repetida põem em causa a estrutura acusatória do Processo Penal. Não ocorre, pois, a nulidade invocada pelo recorrente A..., na medida em que os factos que vieram a ser atendidos pelo tribunal colectivo são os mesmos que constavam já da acusação, apenas qualificados do ponto de vista jurídico de uma forma diversa da que antes havia sido considerada pelo M.P., sem que essa diferente qualificação jurídica dos factos traduza violação do princípio do acusatório.
Prossegue o recorrente A... alegando excesso da medida concreta da pena de multa e do respectivo quantitativo diário. Foi o recorrente condenado na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de 10,00€, o que perfaz o montante global de 2000,00€ (dois mil euros). A pena cominada para o crime em causa, na vertente da aplicação da pena não detentiva, é a de 13 a 480 dias de multa, podendo a taxa variar entre €5,00 e € 500,00. Como é sabido, o Código Penal utiliza o modelo escandinavo dos dias de multa, segundo o qual a fixação desta pena pecuniária se faz através de duas operações sucessivas, uma primeira, em que se determina o número de dias de multa através dos critérios gerais de fixação das penas e uma segunda operação em que se fixa o quantitativo de cada dia de multa em função da capacidade económica do agente [2]. Por expressa remissão do nº 1 do art. 47º do Código Penal [3], o critério de fixação da pena de multa é o previsto no nº 1 do art. 71º, donde resulta a necessidade de recurso aos dois vectores fundamentais aí apontados - a culpa do agente e as exigências de prevenção - com ponderação ainda de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia deponham a seu favor ou contra ele, tendo-se ainda presente que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. art. 40º, nºs 1 e 2). À culpa é cometida a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena. A prevenção geral (dita de integração) fornece uma moldura de prevenção cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e no mínimo, fornecida pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Por seu turno, à prevenção especial cabe a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida função, isto é, dentro da moldura de prevenção que melhor sirva as exigências de socialização [4]. Revertendo ao caso concreto, diremos, desde logo, que reputamos de acertadas as considerações do tribunal recorrido em sede de determinação da medida concreta da pena. A decisão recorrida ponderou todas as circunstâncias que depõem contra ou a favor do arguido, com particular relevo para o dolo directo e intenso e para o elevado grau de ilicitude dos factos. As exigências de prevenção geral assumem alguma relevância, como se verifica pela frequência com que situações deste género vêm chegando à barra dos tribunais, não sendo particularmente elevadas as exigências de prevenção especial, visto o arguido não ter antecedentes criminais. Retomando o que escrevemos supra, a propósito da concretização da pena de multa, a postular o recurso ao critério do art. 71º, não se vislumbram razões que justifiquem a diminuição da pena imposta ao recorrente em 1ª instância. A pena ajustada ao caso, delimitada pela culpa e pelas exigências de prevenção, nos termos expostos, não sendo de determinação matemática e precisa, situa-se num patamar totalmente compatível com o determinado na decisão recorrida, que haverá que manter. Vejamos agora a taxa fixada. Segundo o disposto no nº 2 do art. 47º do Código Penal, a quantia correspondente a cada dia de multa é fixada pelo tribunal, dentro dos limites legais, ou seja, entre € 5,00 e € 500,00, em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais. A amplitude estabelecida neste preceito quanto ao quantitativo diário da multa teve em vista eliminar ou, pelo menos, esbater, as diferenças de sacrifício que o seu pagamento implica entre os arguidos possuidores de diferentes meios de a solver, realizando assim o princípio da igualdade de ónus e de sacrifícios [5]. De todo o modo, o montante encontrado não deverá esvaziar a noção de pena, que enquanto censura social de um comportamento desconforme com o pressuposto pela ordem jurídica, há-de implicar necessariamente um sacrifício para o condenado, de forma a fazê-lo sentir esse juízo de censura, cumprindo assim a função preventiva que qualquer pena envolve, sob pena de se desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça [6]. Vista a decisão recorrida à luz da matéria de facto provada e tendo presentes as considerações que antecedem, não se poderá de modo algum considerar excessiva a taxa fixada na decisão recorrida, muito próxima do limite mínimo legalmente previsto. Na verdade, se a pena de multa concretamente fixada não implicar um sacrifício para o condenado, deixará de cumprir a função de censura que lhe é assinalada, não salvaguardando as exigências de prevenção que a determinaram.
Vejamos de seguida as questões suscitadas no recurso do Clube Desportivo XX...: Começa o recorrente por impugnar a matéria de facto, aí incluída a questão da legalidade da representação do Clube. Diz o recorrente que não concorda com os factos indicados em II-A da fundamentação do acórdão, nomeadamente, I (2a parte), II (2a parte), III, IV, V, VIII, IX, X, XI, XII e XIII, sustentando que dos depoimentos das testemunhas não se pode concluir que os arguidos B.... e C.... tivessem praticado os factos de que são acusados ou, pelo menos, que os tivessem praticado como dirigentes ou representantes do recorrente e no interesse deste. No entanto, essa sua discordância não assenta na indicação concreta e precisa dos segmentos que impõem conclusão diversa. O recorrente limita-se a transcrever excertos de diversos depoimentos, para depois deles extrair à laia de conclusão que os excertos reproduzidos no que concerne ao conhecimento publico ou da opinião pública dos arguidos C...e B...não são de molde a inferir que estes eram directores ou dirigentes do clube ou que tivessem tido qualquer actuação como representantes do recorrente nos factos constantes da acusação. O recorrente limita-se, no entanto, a análise genérica, visando essencialmente questionar o modo de formação da convicção do tribunal a quo, sustentando que a prova produzida não consente as ilações que o tribunal dela retirou. Contudo, como vem sendo sucessivamente referido pela jurisprudência desta Relação, na reapreciação da matéria de facto à luz da arguição pelo recorrente de erro de julgamento não está em causa a realização de um novo julgamento, a formação de uma nova convicção sobre a matéria de facto, mas apenas e tão só verificar se a matéria de facto, tal como se teve como provada ou não provada, encontra suporte nos meios de prova e na sua conjugação com as regras da experiência comum, o que pressupõe essencialmente o cotejo da motivação e dos meios de prova indicados na motivação da decisão de facto com aqueles que o recorrente afirma imporem decisão diversa. Com efeito, como o recurso sobre a matéria de facto visa apenas corrigir erros de julgamento relativamente aos factos indicados pelo recorrente como erradamente julgados, o que verdadeiramente importa em sede de recurso de matéria de facto é que o recorrente demonstre o mal fundado da opção do tribunal recorrido, explicando porque é que as conclusões desse tribunal quanto a matéria de facto não são compagináveis com a prova produzida. O alegado pelo recorrente não tem, no entanto, a virtualidade de questionar as conclusões que o tribunal recorrido retirou da prova, como se verá: Assim, desde logo, sustenta o recorrente que o depoimento da testemunha D... assenta no que alegadamente terá ouvido dizer ao arguido A.... O único elemento objectivo que poderia apontar para o envolvimento dos arguidos C...e B...seria a sua presença aquando dos factos ocorridos em 15/11/2007, mas não havendo qualquer prova sobre as circunstâncias e motivos que levaram a que aqueles arguidos tivessem acompanhado o A..., a presença destes não estaria justificada. Simplesmente, é precisamente aqui que intervêm as regras da experiência comum e que há que fazer apelo à análise crítica da prova, valorando todos os elementos disponíveis não apenas de per se, mas em correlação com a totalidade da prova produzida. Seria lógico que o arguido A..., querendo praticar um acto criminoso, um crime de corrupção desportiva, o fosse fazer em frente de testemunhas que o poderiam comprometer? Tratando-se de um crime de corrupção desportiva, seria lógico que o A... fizesse a entrega de dinheiro a um árbitro em frente de dois dirigentes de um clube desportivo que nada tivessem a ver com a sua actuação? E logo por coincidência, dois dirigentes desportivos do “Clube Desportivo XX...”, que poderia beneficiar com a manipulação dos resultados do jogo que iria opor o ... ao T...? Por outro lado, afirmar que o único elemento objectivo do comprometimento dos arguidos C...e B...seria a sua presença no local não constitui senão uma tentativa de ocultar a riqueza da prova produzida e a sua concludência. Basta atentar na motivação consignada pelo tribunal, que acima transcrevemos e para cuja leitura remetemos, explicitando com clareza os termos em que a actuação dos arguidos foi surpreendida pela PSP, para se verificar a falta de fundamento do alegado. Prossegue o recorrente alegando que “O julgador invocou o interesse do recorrente na viciação do resultado do jogo e com isso atingir um resultado positivo por estar a um ponto de distância na classificação, mas não atribuiu relevância ao facto do T... estar a um ponto do recorrente e, por isso, (conclusão do recorrente) também poderia ter tido algum interesse menos ético (…)”. Compreende-se perfeitamente onde é que o recorrente pretende chegar! Há apenas um óbice ao seu raciocínio. É que os arguidos C...e B...eram dirigentes do XX... e não do T..., donde se segue que seria no mínimo estranho que estivessem ali, na companhia do arguido A..., entregando dinheiro a um árbitro para, nas palavras do recorrente, assegurar algum interesse menos ético do T...! Donde se segue que contrariamente ao pretendido, não há razões para equacionar qualquer dúvida sobre o interesse do recorrente na viciação do resultado do jogo acima referido. Também relativamente à comparticipação criminosa entre os arguidos se não suscitam quaisquer dúvidas. A prova produzida, lida no seu conjunto, aponta sem margem para dúvidas para o que o tribunal recorrido teve como assente, considerando provada uma actuação concertada dos arguidos com vista uma mesma finalidade, não indicando o recorrente quaisquer aspectos que permitam questionar as conclusões a que chegou a 1ª instância em matéria de facto.
Numa outra vertente da sua defesa, o recorrente alega não estar demonstrada a qualidade de dirigentes desportivos dos arguidos C...e B..., sustentando que tal qualidade só poderia ser comprovada por documento autêntico, pelo que na ausência dessa prova, os arguidos C...e B...não poderiam ter sido validamente considerados representantes e administradores do recorrente. Nesta medida, considera que com a sua condenação foi violado o princípio in dubio pro reo, já que o non liquet relativo a esta questão teria que ser valorado a seu favor. Contudo, não tem razão. Em processo penal a prova documental nunca é obrigatória. É apenas admissível, tem carácter facultativo. É o que resulta da 1ª parte do art. 164º, dispondo que “é admissível prova por documento …”. Quaisquer factos que não pressuponham especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos – caso em que seria necessária a prova pericial (art. 151º) – admitem prova testemunhal, em homenagem aos princípios da livre indagação e da verdade material [7]. Ora, o tribunal colectivo fundamentou devidamente as conclusões a que chegou relativamente à qualidade de dirigentes desportivos dos referidos arguidos sem que se evidencie que tenha tido dúvidas quanto à decisão que tomou e que na dúvida tenha optado por decidir contra os arguidos ou contra qualquer deles. Os arguidos C...e B...agiram efectivamente na qualidade de dirigentes desportivos do recorrente, qualidade que detinham independentemente da eventual sindicabilidade ou irregularidade do seu desempenho, pelo que não colhe a alegação de violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo.
Prossegue o recorrente invocando a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e a contradição entre a fundamentação e a decisão. O primeiro daqueles vícios, tal como está previsto na al. a) do nº 1 do art. 410º do CPP, traduz-se numa insuficiência dos factos provados para a conclusão que deles se extraiu e verifica-se quando a solução de direito, seja ela condenatória ou absolutória, não tem suporte seguro nos elementos de facto provados, devendo concluir-se que tais factos não consentem a decisão encontrada [8]. Já a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão se revela através de uma incoerência, evidenciada por uma relação de incompatibilidade ou conflitualidade entre dois ou mais factos ou premissas inconciliáveis, em termos tais que a afirmação de um ou uns implique necessariamente a negação do outro ou outros, e reciprocamente. É o que sucede, por exemplo, quando o mesmo facto é dado como provado e como não provado, quando se consideram assentes factos contraditórios ou quando se verifica uma insanável contradição entre a motivação e a decisão. Revertendo para a decisão recorrida e apreciada esta à luz das considerações que antecedem, não se detecta a verificação de qualquer daqueles vícios. Na verdade, os factos dados como provados constituem suporte bastante para a decisão adoptada, não se vislumbra incompatibilidade entre o provado e o não provado ou entre a fundamentação e a decisão e não é perceptível qualquer erro grosseiro e ostensivo na apreciação da prova.
Por fim, alega o recorrente que é uma associação sem fins lucrativos, vivendo de subsídios e apoios públicos, já que as receitas que gere são manifestamente insuficientes para fazer às despesas que estas instituições apesar de tudo ainda suportam e que nessa medida a condenação numa pena de multa de 200 dias ao valor diário de 110,00€ perfazendo 22.000,00€ a manter-se pode, pura e simplesmente, provocar o fim da associação. Pede, em alternativa, a fixação de uma caução de boa conduta ou a redução da pena e da correspondente taxa diária da multa. O Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no seu parecer sobre a taxa a aplicar ao recorrente, pronunciando-se pelo excesso de uma taxa que poderá eventualmente comprometer a sobrevivência do recorrente provocando a sua rotura financeira, entendendo que seria ajustada a sua fixação num valor situado entre os €60,00 e os € 80,00 diários. Retomando as considerações que se fizeram a propósito da determinação da pena de multa imposta ao arguido Fernando Santos, diremos que a medida da pena, fixada ao ora recorrente, aliás, em sintonia com as penas que foram impostas aos arguidos B.... e C..., é perfeitamente equilibrada, não merecendo qualquer censura. Já no que concerne à taxa fixada, pese embora tratando-se de uma pessoa colectiva, na ausência de elementos concludentes sobre a situação económica e financeira do clube e conhecidas as dificuldades com que se debatem os pequenos clubes desportivos, seguramente agravadas pela actual situação de crise com que o país se debate, deverá ser equacionada a fixação de uma taxa substancialmente inferior à que foi adoptada em primeira instância, o que não poderá, no entanto, traduzir-se na substituição da advertência incorporada na pena por uma multa meramente simbólica, o que significaria um abandono das finalidades prosseguidas pela aplicação das penas criminais e deixaria desprotegidos os bens jurídico-criminalmente tutelados pelas normas violadas. Nesta linha de entendimento, ponderada a necessidade de garantir a eficácia da pena a par do desconhecimento das reais condições económicas e financeiras do recorrente, opta-se pela fixação da taxa diária no montante de € 40,00 (quarenta euros) equivalendo assim os 200 dias de multa fixados a um montante total de €8.000,00 (oito mil euros).
* * *
III – DISPOSITIVO:
Nos termos apontados, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso do arguido Fernando Santos e em conceder parcial provimento ao recurso do arguido Clube Desportivo XX..., condenado este último como autor de um crime de corrupção activa, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 11º, nºs 2, al. a), 4, 7 e 9, al. a), 26º, ambos do Cód. Penal, 9º e 12º, nº 2 da Lei nº 50/2007, de 31 de Agosto, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de [i]€40,00 (quarenta euros), num total de €8.000 (oito mil euros). Fixa-se a taxa de justiça devida por cada um dos recorrentes em 4UC.
* * Jorge Miranda Jacob (Relator) Maria Pilar de Oliveira
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