Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
446/19.0T9CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: ERRO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA ORALIDADE
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA SERTÃ
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 127º E 412º, Nº 3, AL. B), DO C.P.P.
Sumário: I - O único limite que o princípio da livre apreciação da prova impõe à discricionariedade de apreciação da prova oral por parte do julgador resulta das regras da experiência comum e da lógica supostas pela ordem jurídica.

II - A livre apreciação da prova oral é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância, porque é a 1ª instância que vê e ouve o arguido e testemunhas, que aprecia os seus gestos, hesitações, espontaneidade ou a falta dela, em suma, os seus comportamentos não verbais, é a 1ª instância que formula as perguntas que entende pertinentes, que encaminha o interrogatório e/ou a inquirição da forma que considera ser a mais conveniente, tudo faculdades de que o tribunal da relação não pode lançar mão e que impõem severas limitações à reapreciação da prova.

III - É ao tribunal “ad quem” que cabe percepcionar se as provas indicadas pelo recorrente impõem decisão diversa ou se conduzem a uma dúvida insanável a ser resolvida com a convocação do princípio “in dubio pro reo”.

Decisão Texto Integral:
Relator: Luís Ramos
1.º Adjunta: Olga Maurício
2.º Adjunto: Luís Teixeira



Relatório

Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

Realizado o julgamento nos autos acima identificados, o tribunal proferiu sentença com o seguinte dispositivo:

a) Condenar a arguida AA, pela prática de um crime de maus-tratos, previsto e punido pelo artigo 152.º-A, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

b) Substituir a pena de prisão aplicada por 480 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade, sujeitando também a arguida à proibição de exercer funções, remuneradas ou não, que impliquem o cuidado a idosos e outras pessoas especialmente vulneráveis em função de menoridade, gravidez ou deficiência, quer em instituição adequada, quer em ambiente doméstico, durante o período de prisão aplicado (1 ano e 6 meses).

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Inconformada com o decidido, a arguida recorreu, tendo apresentado as seguintes conclusões …

“1. Salvo erro e o devido respeito, a sentença recorrida enferma de erro de julgamento, porquanto fez errada apreciação da prova efectivamente produzida e errada interpretação e aplicação das normas de direito substantivo.

5. De acordo com a prova efectivamente produzida, os factos dados como provados em 8), 9), 10), 11), 12), 14), 15), 16), 17), 18), 19), 20) devem ser dados como não provados.

6. Pois, por um lado, a arguida negou a prática de tais factos.

9. A única testemunha que diz que viu a arguida AA dar beliscões e apertar as orelhas e o nariz de ... foi a testemunha BB.

10. … os factos imputados à arguida e pelos quais foi condenada, não correspondem à verdade.

11. Nenhuma outra testemunha ouvida em tribunal declarou que tenha visto a arguida a dar beliscões ou apertar as orelhas, nariz, braços ou pernas …

78. … os factos dados como provados em 13), 14), 15), 16), 17), 18), 19; 20) dos factos provados, deveriam ter sido dados como não provados, atendendo quer à prova efectivamente produzida, quer atendendo ao princípio in dúbio pro reo.

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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo … que a arguida cometeu os factos em referência, sendo justíssima a sua condenação pela prática do crime de que vinha acusada.

Na vista a que se refere o artigo 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu o douto parecer …

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De acordo com as conclusões, são questões a decidir:

– Erro na apreciação da prova

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Uma vez que os recursos visam a correcção de erros cometidos nas decisões judiciais, a alínea b), do nº 3, do artigo 412º, determina que a impugnação da matéria de facto se faça através da especificação das provas concretas que imponham decisão diversa da recorrida, ou seja, determina que o recorrente indique as provas que não foram apreciadas ou foram mal apreciadas pelo tribunal a quo e que no seu entendimento imponham uma decisão distinta da proferida.

Note-se que a lei refere provas que imponham e não provas que permitam decisão diferente da recorrida, o que quer dizer que nos «casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Fevereiro de 2005, in www.dgsi.pt).

Ou como se diz no acórdão da Relação de Évora de 5 de Junho de 2018, «para que possa operar-se a modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso não basta que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõem uma outra convicção».

Por outro lado, determina o artigo 127º do Código de Processo Penal, que «salvo quando a lei dispuser de forma diferente, a prova é apreciada segunda as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

No caso dos autos estamos plenamente no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, o qual, relativamente à prova referenciada pelo recorrente, vale sem quaisquer limitações.

Este princípio impõe como único limite à discricionariedade do julgador, as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

A livre apreciação da prova é ainda indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância.

Como ensinava o Prof. Alberto do Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, págs. 566, «a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal».

Temos assim que o que o recorrente pode pedir ao tribunal superior, não é um segundo julgamento, mas sim o exame da legalidade da decisão sobre a matéria de facto.

Por isso, e como acima já se deixou dito, o recorrente tem de apontar o defeito da mesma e apresentar a prova que demonstra o erro que invoca.

No entanto, o reexame pelo tribunal “ad quem” tem que ter em consideração que foi a 1ª instância viu e ouviu o arguido e as testemunhas, que apreciou os seus gestos, as suas hesitações, a sua espontaneidade ou a falta dela, em suma, os seus comportamentos não verbais.

Mais: foi a 1ª instância (juiz, procurador e advogados) que formulou as perguntas que entendeu pertinentes e que encaminhou o interrogatório e/ou a inquirição da forma que considerou ser a mais conveniente, tudo faculdades a que o tribunal da relação não pode lançar mão, o que impõe severas limitações à reapreciação da prova.

Parafraseando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 2003, diremos que sem outros instrumentos que não sejam as gravações da prova produzida em audiência, não se configura fácil formar uma convicção diferente e mais alicerçada do que aquela que é fornecida pela imediação de um julgamento oral, onde, para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam.

Sobrepor um juízo distanciado desta proximidade a um juízo colhido directamente e ao vivo apenas poderá ocorrer quando for inequívoco o erro do tribunal “a quo”, pois caso contrário, poder-se-ia estar a comprometer a pureza do princípio e abalar as regras de um julgamento sereno e fundamentado, ou como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Julho de 2020, relatado pelo Sr. Conselheiro Jorge Dias, “o tribunal da Relação pode alterar a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, mas só quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente se os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, impuserem uma conclusão diferente.”

Por isso, tem este tribunal “ad quem” de se ater aos elementos que lhe são trazidos pelo recorrente para concluir pelo cometimento de qualquer ilegalidade na decisão recorrida, porque só poderá ser alterado o ali decidido se, como se explicou, a prova indicada impuser decisão diversa da proferida, sendo certo que … é ao tribunal “ad quem” que cabe percepcionar se, na sua íntima sensibilidade, as provas impunham tal decisão diversa ou se conduziriam uma dúvida insanável a ser resolvida com a convocação do princípio “in dubio pro reo”.

No caso em apreço não é detectável qualquer erro do tribunal “a quo” na apreciação da prova e estamos claramente perante uma convicção própria do arguido, carregada de subjectividade.

… ao longo da fundamentação da matéria de facto, o tribunal “a quo” vai demonstrando a existência inúmeras incongruências, quer dentro de cada depoimento, quer entre depoimentos, explica a sua detecção com grande pormenor socorrendo-se das mais elementares regras da experiência comum e aponta a insustentabilidade de algumas das afirmações da arguida e das testemunhas que indica, bem como a memória selectiva de algumas destas, para concluir que após a produção e apreciação exaustiva de todos os meios de prova que teve à disposição, os factos ocorreram como ficaram descritos na matéria de facto dada como provada.

Em suma, a recorrente não apontou e muito menos demonstrou o erro do tribunal a quo, ou seja, incumpriu em absoluto o segmento da alínea b), do nº 3, do artº 412º que determina que as provas só podem ser consideradas se alicerçarem e impuserem decisão diversa da recorrida.

Nesta conformidade, há que concluir que não merece qualquer censura a factualidade dada por não provada na sentença, pelo que se considera a mesma definitivamente a fixada.

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Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso

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Fixa-se em 5 UC a taxa de justiça a pagar pelo recorrente.

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Coimbra, 22/02/2023