Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1359/08.7TBMGR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE
DOCUMENTO PARTICULAR
Data do Acordão: 03/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE – 1ºJUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 458º, Nº 1, DO C. CIV. E 46º, Nº 1, AL. C), DO CPC
Sumário: I – O cheque que:
(1) por falta dos requisitos legais exigidos pela respectiva Lei Uniforme, não reúna as características dos títulos cambiários;

(2) de cujo texto não resulte a constituição ou o reconhecimento de obrigação pecuniária;

(3) nem contenha ou implique o reconhecimento da obrigação causal subjacente, de forma a justificar a aplicação da disciplina jurídica do artº 458º, nº 1, do Cód. Civil,

só constituirá título executivo, nos termos do artº 46º, nº 1, al. c), do Cód. Proc. Civil, se o exequente alegar no requerimento executivo – e posteriormente, sendo necessário, provar – os factos constitutivos da relação que esteve na base da respectiva emissão.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         Por apenso à acção executiva que, sob o nº 1359/08.7TBMGR, corre termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande, em que figuram como exequente E… e como executado J…, foi por este deduzida oposição sustentando, no essencial, que o documento apresentado como título executivo – cheque de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), datado de 20/12/2008, sobre o Banco..., sacado pelo executado a favor do exequente e não apresentado por este a pagamento – carece de exequibilidade.

         O exequente/oposto contestou defendendo que o cheque dado à execução integra documento particular que reúne todos os requisitos do artº 46º, al. c) do Cód. Proc. Civil, sendo, por isso, exequível.

         Feito o saneamento, omitida, por abstenção do tribunal (artºs 787º, nº 2 e 817º, nº 2 do Cód. Proc. Civil), a condensação e instruída a causa, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferida a competente decisão sobre a matéria de facto (fls. 81 a 83).

         Foi depois emitida a sentença de fls. 85 a 90, cuja parte dispositiva se transcreve:

         “Decisão:

a) Pelo exposto, e existindo uma questão prévia a analisar, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigo 46º, 812º e 820º todos do CPC e por inexistir título executivo julgo extinta a presente execução.

b) Consequentemente e por inutilidade da lide no que à oposição propriamente dita se refere (ainda que nenhuma prova se tivesse feito sobre a mesma) declaro-a extinta ao abrigo do artigo 287º alínea e) do CPC.

         c) (…).

         d) (…)”.

         Inconformado, o exequente recorreu, encerrando a alegação de recurso que apresentou com as seguintes conclusões:


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Nada obstando a tal, cumpre apreciar e decidir.

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         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil[1], é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se um cheque que, por não ter sido apresentado a pagamento nos termos e prazos previstos na respectiva Lei Uniforme (artºs 28º e seguintes), não valha como título cambiário, pode, nos termos do artº 46º, nº 1, al. c), como simples documento particular, constituir título executivo.


***

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         Não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto nem havendo fundamento para oficiosamente a alterar, considera-se definitivamente assente a factualidade dada como provada pela 1ª instância e que é a seguinte:

         1. Com data de 16 de Julho de 2008 o E… intentou a acção executiva apensa aos presentes autos, requerendo a condenação do executado e ora oposto a entregar-lhe na quantia de € 8.270,96.

2. O exequente apresentou como título dado à execução, um cheque do Banco... com o nº …, titulado em nome de J…, com data de emissão de 20 de Dezembro de 2008, no local do montante aí se inscrevendo € 7.500,00, no local da emissão ..., no local à ordem o nome E…, no local destinado à quantia o montante por extenso de sete mil e quinhentos euros, e no local destinado à assinatura o nome J...

3- No verso de tal título não existe qualquer menção, encontrando-se o mesmo em branco.


***

2.2. De direito

Mantendo-se o cheque dado à execução na titularidade do respectivo tomador e encontrando-se provado que no verso do mesmo não existe qualquer menção, antes se encontrando em branco, é de presumir que tal cheque não foi apresentado a pagamento (artºs 28º e seguintes da LUC) e que, por isso, carece dos requisitos legais necessários para funcionar como título cambiário (artºs 40º e seguintes), nomeadamente, para ter a força executiva que dessa potencial natureza cambiária lhe adviria.

No entanto, nos termos do artº 46º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Civil, constituem títulos executivos “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.

A questão que se coloca, como dos autos abundantemente resulta, é a de saber se os títulos de crédito – nomeadamente, no que ao caso interessa, o cheque – que não reúnam todos os requisitos legais exigidos pelas respectivas Leis Uniformes, podem, com base na disposição legal transcrita, ser considerados títulos executivos.

Não há fundamento para supor que a uma eventual resposta positiva se oponham, dado o valor do cheque (€ 7.500,00)[2], razões de ordem formal.

O cheque é integrado ou constituído por um escrito que, nos termos do artº 1º da LUC deve conter: (1) a palavra «cheque» inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada por a redacção desse título; (2) o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada; (3) o nome de quem deve pagar (sacado); (4) a indicação do lugar em que o pagamento se deve efectuar; (5) a indicação da data em que e do lugar onde o cheque é passado; (6) a assinatura de quem passa o cheque (sacador).

No essencial, a emissão do cheque traduz-se, portanto, numa ordem de pagamento duma certa quantia a uma determinada pessoa, dada por alguém (sacador) a um banqueiro que tenha fundos à sua disposição (sacado) e em harmonia com uma convenção expressa ou tácita segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque (artº 3º da LUC).

Desprovido, por falta das exigências legais para tanto, da sua natureza cambiária, preencherá tal documento os requisitos previstos na al. c) do nº 1 do artº 46º do Cód. Proc. Civil?

O cheque é, inquestionavelmente, um documento particular, de montante determinado, assinado pelo devedor. Mas, pergunta-se, importa ele a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias?

Postergadas, dada a falta dos pertinentes requisitos legais, as características específicas dos títulos cambiários e, consequentemente, a própria incorporação da obrigação fundamental no título[3], procuremos resposta para a pergunta formulada.

Há que constatar, em primeiro lugar, que, face à matéria de facto provada, do texto do cheque dado à execução não consta a causa da obrigação, a razão da sua emissão.

Contudo, o artº 458º, nº 1 do Cód. Civil dispõe que “se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”. Mas traduzindo-se a emissão do cheque, como atrás se disse, numa ordem de pagamento dada a um banqueiro, muito dificilmente se poderá ver nela, sem outros elementos que complementem a compreensão desse acto e aclarem a razão de ser da sua prática, uma declaração unilateral de promessa duma prestação ou de reconhecimento duma dívida.

Há, porém, uma outra perspectiva de abordagem da questão, da qual ressalta com maior evidência a diferenciação e autonomia, nem sempre eficazmente percepcionadas, entre os conceitos de título executivo e de causa de pedir da acção executiva.

Seguindo de perto o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/10/2010[4], não valendo o cheque, por falta de requisitos legais, como título cambiário com a força executiva a ele inerente, nem como mero quirógrafo ou documento particular, assinado pelo devedor, que contenha ou implique o reconhecimento da obrigação causal subjacente – desde logo, como declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida, sem indicação da respectiva causa, submetida à disciplina jurídica contida no artº 458º do Cód. Civil, ou seja implicando a dispensa de o credor provar a relação fundamental, desde que não sujeita a específicas formalidades legais, cuja existência se presume até prova em contrário – poderá, ainda assim, valer como quirógrafo da relação causal subjacente à respectiva emissão, desde que os factos constitutivos desta, não resultando do próprio título, sejam articulados pelo exequente no respectivo requerimento executivo[5], revelando plenamente a verdadeira «causa petendi» da execução e propiciando ao executado efectiva e plena possibilidade de sobre tal matéria exercer o contraditório.

Continuando a percorrer o caminho aberto pelo douto aresto atrás citado, “neste caso, o documento assinado pelo devedor constitui quirógrafo de uma obrigação causal cujos elementos constitutivos essenciais têm de ser processualmente adquiridos, em complemento do título executivo, por iniciativa tempestiva e processualmente adequada do próprio exequente, sendo articulados no requerimento executivo sempre que não resultem do próprio título; é, aliás, neste tipo de situações que ressalta, com maior evidência, a diferenciação e autonomia entre os conceitos de título executivo e de causa de pedir da acção executiva, sendo o primeiro integrado por um documento particular, assinada pelo devedor, que – embora não contenha um expresso e directo reconhecimento da dívida exequenda – indicia a existência de uma relação obrigacional que o vincula no confronto do exequente; e a segunda consubstanciada pela própria relação obrigacional que, não resultando, em termos auto-suficientes, daquele título, é introduzida no processo através de um verdadeiro articulado, complementar do documento em que execução se funda”.

Este entendimento encontra apoio no artº 810º, nº 3, al. b) do Cód. Proc. Civil[6], de acordo com o qual o requerimento executivo deve conter, entre outros elementos que especifica, «exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo»[7] e [8].

         Revertendo agora ao caso concreto que nos compete solucionar, constata-se que: (1) por não ter sido apresentado a pagamento, nos termos exigidos pela respectiva Lei Uniforme, o cheque dado à execução não goza das características dos títulos cambiários, nomeadamente da força executiva que daí lhe adviria; (2) não está provado que do texto do escrito que constitui o cheque resulte a constituição ou o reconhecimento de obrigação pecuniária; (3) igualmente não está provado que tal texto contenha ou implique o reconhecimento da obrigação causal subjacente, desde logo, como declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida, sem indicação da respectiva causa, submetida à disciplina jurídica contida no artº 458º, nº 1 do Cód. Civil; e, finalmente, (4) como, sem qualquer contradição na alegação do apelante, se afirma na decisão sob recurso[9], analisando o requerimento executivo, nada é dito sobre qual a relação causal por detrás do documento (cheque) dado à execução.

         O cheque em causa não preenche, portanto, a previsão do artº 46º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Civil, carecendo de exequibilidade, o que, nos termos dos artºs 814º, al. a) e 816º do mesmo diploma legal, é fundamento de válida e eficaz oposição à execução.

         Concorda-se, pois, no essencial, com a decisão sob recurso, com a ligeira ressalva de que, dado o estado do processo, em termos dispositivos, se teria optado apenas por julgar procedente a oposição à execução e, consequentemente, por determinar a extinção desta.

         Soçobram, portanto, as conclusões da douta alegação do recorrente, o que conduz à improcedência da apelação e à manutenção, nos termos preditos, da sentença sob recurso.

        

         Nos termos do artº 713º, nº 7 do Cód. Proc. Civil, elabora-se o seguinte sumário:

         O cheque que:

(1) por falta dos requisitos legais exigidos pela respectiva Lei Uniforme, não reúna as características dos títulos cambiários;

(2) de cujo texto não resulte a constituição ou o reconhecimento de obrigação pecuniária;

(3) nem contenha ou implique o reconhecimento da obrigação causal subjacente, de forma a justificar a aplicação da disciplina jurídica do artº 458º, nº 1 do Cód. Civil,

         só constituirá título executivo, nos termos do artº 46º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Civil, se o exequente alegar no requerimento executivo – e posteriormente, sendo necessário, provar – os factos constitutivos da relação que esteve na base da respectiva emissão.


***

         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a sentença recorrida.

         As custas são a cargo do apelante.


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Artur Dias (Relator)
Jaime Ferreira
Jorge Arcanjo


[1] Diploma a que pertencem as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.
[2] Cfr., nomeadamente, o artº 1143º do Cód. Civil..
[3] Prof. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. III, Letra de Câmbio, edição da Universidade de Coimbra, 1975, págs. 39/41.
[4] Proferido no Proc. nº 172/08.6TBGRD-A.S1, relatado pelo Cons. Lopes do Rêgo, consultável em www.dgsi.pt/jstj.
[5] Atentas as regras sobre ónus de alegação e prova, é ao exequente que compete alegar e provar, no requerimento executivo, os factos constitutivos da relação causal subjacente à emissão do cheque.
[6] Na redacção aplicável, introduzida pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 08/03, que, no fundamental, coincide com a actual redacção do artº 810º, nº 1, al. e) do mesmo diploma legal, conferida pelo Decreto-Lei nº 226/2008, de 20/11.
[7] Assim se acentuou, no dizer do douto acórdão que vimos tomando como orientação, “a inevitável quebra do princípio da auto-suficiência do título executivo: os elementos essenciais da obrigação exequenda podem, deste modo, resultar, quer do próprio documento que serve de título executivo, quer de uma actividade complementar de alegação e prova pelo exequente – que extravasa manifestamente a simples possibilidade – sempre contemplada na lei do processo – de, na fase liminar da execução, se tornar a obrigação certa, líquida e exigível, quando o não fosse já em face do título”.
[8] Sobre este tema veja-se também o excelente Estudo da autoria do Ex.mo Sr. Desembargador Fernando Nunes Ribeiro, intitulado “Da exequibilidade do Título de Crédito no caso de Prescrição da obrigação cartular ou quando não reúna todos os requisitos essenciais exigidos pelas Leis Uniformes”, publicado no Boletim da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, V.ª Série, nº 6, de Abril 2008, págs. 207 a 218.
[9] Cfr. pág. 89, parágrafo 4º.