Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
798/16.4T8PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
SINAIS VISIVEIS E PERMANENTES
NULIDADE DA SENTENÇA
CONTRADIÇÃO
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
ÓNUS DE ESPECIFICAÇÃO
PASSAGEM DA GRAVAÇÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 09/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.S 1251, 1543, 1548 CC, 615 Nº1 C), 640, 662 CPC
Sumário: 1. A sentença só é nula por contradição entre os seus fundamentos e a decisão se a contradição for lógica, isto é se na fundamentação da sentença o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente.

2. Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, designadamente quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda tal impugnação.

3. A omissão desse ónus, imposto pelo nº 2, a), do referido artigo, implica a rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, pois tal ónus não se satisfaz com a menção de que os depoimentos estão gravados no sistema digital com início às …e termo às … (ou que os depoimentos gravados duraram um determinado tempo), nem com a referência sumária do que as testemunhas terão afirmado na audiência;

4. Tendo o juiz fundamentado a sua convicção da resposta a certos pontos da matéria de facto conjugadamente em múltiplos depoimentos testemunhais, diversa prova documental e prova por inspecção judicial, não pode a mesma ser alterada, ao abrigo do art. 662º, nº 1, do NCPC, se os documentos particulares existentes nos autos e o teor da aludida inspecção, em que o recorrente baseia a sua impugnação factual, não conseguirem impor decisão diversa, por destituídos de força probatória plena.

5. A razão de ser da impossibilidade em usucapir uma servidão não aparente, que não se revela materialmente em termos inequívocos, reside na preocupação legal de se evitar tal constituição em situações em que a actuação/posse é exercida por mera tolerância do dono do dito prédio serviente ou, até, sem que este dela tenha conhecimento.

6. Não se provando existir qualquer sinal visível e permanente (trilho em terra batida ou calcada), com a localização e configuração indicada pelos requerentes no requerimento inicial, a partir do prédio dos requeridos e até aos seus prédios não é possível constituir-se, por usucapião, a respectiva servidão de passagem.

Decisão Texto Integral:


I – Relatório

 

1. E (…) e marido M (…), residentes em Pombal, M (…), residente nos EUA, e ML (…), residente em Pombal, por apenso a acção declarativa de processo comum já instaurada, deduziram procedimento cautelar comum contra A (…) e mulher E (…), G (…) e S (…), todos residentes em Pombal, pedindo que se ordene aos requeridos que:

a) retirem todos os objectos e materiais colocados na faixa de terreno identificada a vermelho nas plantas (docs. 8 e 9 juntos à PI da acção principal), com as características indicadas em 15.º, que se encontra onerada com uma servidão de passagem a favor dos prédios assinalados a azul nas ditas plantas, correspondentes aos descritos em 1.º desta petição e que constitui o único meio de acesso dos requerentes aos seus prédios;

b) reponham o leito da serventia no estado anterior às condutas ilícitas, de forma a torná-la transitável em toda a sua extensão;

c) abstenham-se de, no futuro, a lavrar ou por qualquer meio destruir o caminho de servidão para acesso à propriedade dos requerentes ou praticar quaisquer actos que perturbem ou impeçam o livre acesso, por parte dos requerentes aos seus terrenos descritos em 1.º da petição.

Alegaram, em síntese, serem donos e legítimos possuidores, em regime de compropriedade, na proporção de uma terça parte indivisa para cada, dos prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos 10.061 e 10.065 da freguesia de Pombal, prédios esse que passaram a amanhar desde 1981. Que tais prédios estão encravados, razão pela qual o acesso aos mesmos sempre se efectuou, há mais de 50 anos, através de uma faixa de terreno dos prédios sitos a poente destes, pertencentes aos primeiros requeridos, (…), e aos réus (…) e Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de (…), da qual a terceira requerida é contitular, faixa de terreno com cerca de 2,60 m de largura, com início a poente na Estrada de Soure e que se estende para nascente desembocando nos prédios dos requerentes, e que vem sendo utilizada, por tempos imemoriais, pelos sucessivos proprietários dos terrenos, constituindo o único local de passagem a pé, de carro de bois, carroça, e mais recentemente com tractores e demais máquinas agrícolas, para os respectivos prédios, a fim de lavrar, semear, ceifar, regar, plantar e cuidar das árvores e colher os seus frutos e efectuar todas as demais tarefas da actividade agrícola nos prédios descritos. O que sempre fizeram à vista de todos e com conhecimento da generalidade das pessoas, sem oposição ou violência de quem quer que fosse, continuadamente, pelo mesmo sítio, sem quaisquer interrupções, actuando com a convicção que exerciam direito próprio e não se encontravam a ofender ou prejudicar quaisquer direitos de outrem. Pelo que, adquiriram, por usucapião, o direito de passagem, servidão essa a onerar os descritos prédios dos réus em benefício dos seus referidos prédios. Que os requeridos começaram a deduzir oposição à passagem dos requerentes por aquela faixa de terreno, vindo progressivamente a obstar ao exercício de tal direito, colocando até obstáculos no leito da serventia por forma a impedir absoluta e totalmente o acesso dos requerentes aos seus terrenos. Em consequência de tais actos encontram-se impedidos de explorar os seus prédios, de os cultivar, de proceder à limpeza dos mesmos, de plantar árvores, enfim de os aceder livremente e em segurança, a pé ou com qualquer veículo. Tendo necessidade urgente de aceder aos seus prédios para tanto, para proceder à preparação do terreno e à sementeira das espécies, precisando as oliveiras implantadas de cuidados inadiáveis, sob pena de não sobreviverem, nomeadamente de serem podadas, e nos meses de Verão precisam de ser regadas.

Os requeridos deduziram oposição, negando que os prédios dos autores estejam encravados, uma vez que os mesmos têm acesso à via publica através de uma serventia a nascente dos prédios e de um caminho público a norte o qual dá acesso à estrada de Soure, que sempre utilizaram para terem acesso aos seus prédios. No entanto, há cerca de 2 anos, o proprietário dos prédios situados a norte do referido caminho publico utilizado pelos requerentes como acesso à estrada de Soure fechou o tal caminho impedindo os autores de por ali passar. E foi a partir do encerramento de tal caminho, em 2014, que os requerentes, esporadicamente, começaram a utilizar uma faixa de terreno situada a sul dos prédios dos requeridos sem nunca serem autorizados a tal. Sendo que, desde finais de 2014, se opõem à utilização de tal faixa de terreno pelos requerentes, e sendo verdade que colocaram obstáculos nos seus prédios a fim de impedir que aqueles persistissem na utilização abusiva dos mesmos na violação do seu direito de propriedade.

Os requerentes litigam de má fé, pelo que a final deverão ser condenados como tal em multa no valor de 2.500 € e em indemnização de igual montante.

*

A final foi proferida sentença que julgou improcedente o procedimento cautelar e em consequência indeferiu as providências requeridas. Mais se decidiu não condenar os requerentes como litigantes de má fé.  

*

2. Os requerentes interpuseram recurso, tendo concluído que:

(…)

 

II – Factos Provados

 

1) E (…) e M (…), têm registada a seu favor, desde 09/01/1990, por doação de M (…) e M (…), a aquisição de um terço do prédio rústico composto de terra de cultura e eucaliptal, sito em (...) , limite de (...) , inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 10.061 da freguesia de Pombal e descrito na Conservatória de Registo Predial de Pombal sob o nº 3868 da mesma freguesia.

2) ML (…) tem registada a seu favor, desde 09/01/1990, por doação de M (…) e M (…) a aquisição de um terço do prédio rústico composto de terra de cultura e eucaliptal, sito em (...) , limite de (...) , inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 10.061 da freguesia de Pombal e descrito na Conservatória de Registo Predial de Pombal sob o nº 3868 da mesma freguesia.

3) M (…), casado com I (…), no regime da comunhão de adquiridos, tem registada a seu favor, desde 09/01/1990, por doação de M (…) e M (…), a aquisição de um terço do prédio rústico composto de terra de cultura e eucaliptal, sito em (...) , limite de (...) , inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 10.061 da freguesia de Pombal e descrito na Conservatória de Registo Predial de Pombal sob o nº 3868 da mesma freguesia.

4) E (…) e M (…), têm registada a seu favor, desde 09/01/1990, por doação de M (…) e M (…), a aquisição de um terço do prédio rústico composto de terra de cultura e eucaliptal, sito em (...) , limite de (...) , inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 10.065 da freguesia de Pombal e descrito na Conservatória de Registo Predial de Pombal sob o nº 3872 da mesma freguesia.

5) ML (…)tem registada a seu favor, desde 09/01/1990, por doação de M (…) e M (…)a aquisição de um terço do prédio rústico composto de terra de cultura e eucaliptal, sito em (...) , limite de (...) , inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 10.065 da freguesia de Pombal e descrito na Conservatória de Registo Predial de Pombal sob o nº 3872 da mesma freguesia.

6) M (…), casado com I (…), no regime da comunhão de adquiridos, tem registada a seu favor, desde 09/01/1990, por doação de M (…) e M (…), a aquisição de um terço do prédio rústico composto de terra de cultura e eucaliptal, sito em (...) , limite de (...) , inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 10.065 da freguesia de Pombal e descrito na Conservatória de Registo Predial de Pombal sob o nº 3872 da mesma freguesia.

7) Em escritura notarial, outorgada em 10/07/1981, M (…) e M (…) declararam doar, com reserva de usufruto, os prédios supra descritos, aos seus filhos (…), na proporção de um terço para cada.

8) M (…) faleceu no dia 13/11/2011 e M (…) faleceu no dia 24/01/1986.

9) Os prédios identificados em 1) e 4) não confrontam com a via pública.

10) A (…) e E (…) têm registada a seu favor, desde 15/10/2010, por compra a (…), a aquisição do prédio rústico composto de terra de cultura com tanchas, sito em (...) , limite de (...) , inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 10.072 da freguesia de Pombal e descrito na Conservatória de Registo Predial de Pombal sob o nº 24106 da mesma freguesia.

11) Encontra-se inscrito, desde 1957, na matriz predial rústica sob o artigo 10.067 da freguesia de Pombal, o prédio rústico localizado em sito em (...) , limite de (...) , tendo como titular M (…).

12) Encontra-se inscrito, desde 1957, na matriz predial rústica sob o artigo 10.064 da freguesia de Pombal, o prédio rústico localizado em sito em (...) , limite de (...) , tendo como titular D (…).

13) Encontra-se inscrito, desde 1957, na matriz predial rústica sob o artigo 10.066 da freguesia de Pombal, o prédio rústico localizado em sito em (...) , limite de (...) , tendo como titular D (…).

14) Encontra-se inscrito, desde 1957, na matriz predial rústica sob o artigo 10.068 da freguesia de Pombal, o prédio rústico localizado em sito em (...) , limite de (...) , tendo como titular D (…).

15) Encontra-se inscrito, desde 1957, na matriz predial rústica sob o artigo 10.069 da freguesia de Pombal, o prédio rústico localizado em sito em (...) , limite de (...) , tendo como titular D (…).

16) Encontra-se inscrito, desde 1957, na matriz predial rústica sob o artigo 10.071 da freguesia de Pombal, o prédio rústico localizado em sito em (...) , limite de (...) , tendo como titular D (…).

17) O prédio referido em 10) confronta a Poente com a Estrada de Soure, tendo sido colocada nesse mesmo prédio uma vedação com pilares e arames, tapando o acesso directo desde a Estrada de Soure para nascente.

18) O prédio identificado em 10) não está actualmente cultivado, estando nele implantada uma casa.

19) Junto ao limite nascente do prédio identificado em 10), existe um carreiro visível e calcado, com marcas de rodados, localizado entre uma latada existente a sul e culturas existentes a norte, com uma largura de cerca de 2,40 metros, prolongando-se em direcção a nascente, cerca de 22 metros, até atingir o prédio identificado em 11), tendo aí uma largura de cerca de 2 metros.

20) No referido percurso existem vestígios de uma ou duas árvores de grande porte, implantadas em tempos no leito desse mesmo caminho, sem que, todavia, tal impeça a passagem.

21) A partir do limite nascente do prédio identificado em 11) deixam de ser visíveis marcas de rodados ou calcamento, sendo que o prédio localizado a nascente do mesmo encontra-se por cultivar, tendo algumas árvores implantadas, vestígios de várias outras árvores entretanto arrancadas e alguns cepos cortados.

22) A partir de data concretamente não determinada, mas desde há mais de 20 anos, para acederem aos prédios identificados em 1) e 4), a pé ou com animais soltos ou carros de tracção animal e tractor, os requerentes (…)e antes deles M (…) passaram a utilizar uma faixa de terreno existente nos prédios identificados em 10) a 16), no sentido Poente/Nascente, com início na Estrada de Soure, incluindo a parte onde se encontra implantado o carreiro referido em 19).

23) O que fizeram à vista de todos, na convicção de que podiam passar e de não se encontrarem a ofender ou prejudicar direitos de outrem.

24) Sem oposição de ninguém, até Março de 2014.

25) O requerido A (…), no dia 24 de Março de 2014, dirigiu-se ao requerente, M (…), que se deslocava para os terrenos descritos em 1) e 4), proferindo a seguinte expressão: “Você não passa aqui mais, nem você, nem o G (…)”.

26) No dia 29 de Março de 2014, o requerido A (…) lavrou o prédio identificado em 10).

27) Os requerentes, através de advogada, remeteram então ao requerido A (…) a carta, datada de 04/04/2014, com o teor constante de fls. 87/88 dos autos principais.

28) Tendo o requerido A (…), também através de advogada, remetido em resposta a carta, datada de 05/01/2015, com o teor constante de fls. 121 dos autos.

29) Em Junho de 2015, quando a requerente E (…) se dirigia para os terrenos descritos em 1) e 4), a fim de ir regar as oliveiras que tinha plantado ultimamente, deparou-se do lado sul dos prédios referidos em 12) a 16), com ferros, fitas, paus, arame colocadas pelo requerido G (…), bem como com uma placa onde este fez escrever “propriedade privada”, de modo a impedir a passagem dos requerentes.

30) Os requerentes, através de advogada, remeteram então ao requerido G (…) as cartas, datadas de 26/06/2015 e 10/07/2015, com o teor constante de fls. 93 a 95 e fls. 97 dos autos principais.

31) Até à instauração da presente acção, o requerido G (…)não removeu os referidos obstáculos.

32) No dia 27 de Janeiro de 2016, a requerida S (…) colocou e ordenou a colocação de diversos troncos de árvores, de maior dimensão, para impedir a passagem dos requerentes.

33) Após tal data, o prédio identificado em 10) foi lavrado, incluindo na parte calcada e com marcas de rodados que ligava o carreiro referido em 19) à Estrada de Soure.

34) Tendo aí sido colocada a vedação referida em 17).

35) Encontrando-se desde então os requerentes impedidos de acederem aos prédios referidos em 1) e 4) através do referido caminho ou através de qualquer outro acesso.

36) Os prédios referidos em 1) e 4) têm aptidão agrícola para o cultivo de milho, feijão, favas, batatas, couves e encontram-se ali implantadas oliveiras.

37) Os requerentes necessitam de aceder aos referidos prédios para arrancar as oliveiras que sucumbiram por falta de tratamento e replantar, regá-las, cortar a erva, fresar a terra, fertilizar o terreno, semear, cuidar das plantações e das árvores, para colher os frutos, para lavrar a terra e proceder à sua limpeza.

38) A Norte do prédio referido em 10), com início na Estrada de Soure, existe uma entrada que dá acesso a um caminho com a largura de 3,80 metros, caminho esse que se encontra pavimentado.

39) No início do caminho referido em 38) existe uma placa com a inscrição “propriedade privada” e ainda uma placa toponímica com a referência “Travessa das Mimosas”.

40) Tal caminho projecta-se a nascente, passando a ser de terra batida quando termina o empedrado, inflectindo então para Norte até chegar a uns anexos e sem qualquer continuação.

41) No limite do caminho referido em 38), a nascente, não existe qualquer ligação visível a qualquer outro caminho, existindo várias árvores e sem que o mesmo confronte com os prédios referidos em 1) e 4).

42) Com início na Rua dos Melros, existe ainda um carreiro calcado que se projecta em direcção a noroeste curvando para norte, sendo que, no seu início, tal carreiro tem cerca de 1,9 metros, terminando antes de atingir o limite dos prédios referidos em 1) e 4), a poente, curvando para norte em direcção a um outro prédio.

43) Sem prejuízo de existir uma zona mais calcada na vegetação alta aí existente que aparentemente se dirige em direcção aos referidos prédios, com uma largura de cerca de 50 cm.

44) No local referido em 42), os prédios referidos em 1) e 4) localizam-se num plano superior, existindo uma barreira com pelo menos 3 metros de altura.

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Não se provou:

a) De que forma, a partir do prédio referido em 11), os requerentes e antes deles M (…) e M (…) acediam aos prédios descritos em 1) e 4), designadamente que o fizessem, a partir de tal ponto, pela faixa indicada a vermelho nas plantas juntas à petição inicial da acção principal como docs. 8 e 9.

b) Que o carreiro calcado referido em 19) desembocasse nos prédios referidos em 1) e 4).

c) Que a faixa referida em a), desde tempos imemoriais, fosse o único acesso aos prédios referidos em 1) e 4), para passagem a pé, de carro de bois, carroça, sem prejuízo do que se provou em 35).

d) Que em toda a sua extensão a passagem de pessoas, animais e veículos pela faixa de terreno referida em a) revela-se por sinais de terra calcada, sem cultivo e sem vegetação, com trilhos de circulação de tractores, máquinas agrícolas, animais e pessoas, devido à frequente utilização da referida passagem pelos requerentes e pelos seus antepossuidores, bem como familiares destes, para os seus prédios, sem prejuízo do que se provou em 19).

e) Que a faixa referida em a) sempre esteve livre e sem qualquer vedação que impedisse a circulação de veículos, máquinas, animais e pessoas, a qualquer dia e hora e os requerentes, à semelhança dos seus antepossuidores, sempre acederam aos prédios identificados em 1) e 4), sempre e somente através da referida faixa de terreno.

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II – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Nulidade da sentença.

- Alteração da matéria de facto.

- Se os prédios dos requeridos estão onerados com uma servidão de passagem, constituída por usucapião, a favor dos prédios dos requerentes.

- Em caso afirmativo, se existe um fundado receio de ocorrência de lesão grave e dificilmente reparável a tal direito, e suas consequências.

2. Nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, c) do NCPC, é nula a sentença cujos fundamentos estejam em oposição com a decisão.

Como ensina Lebre de Freitas (CPC Anotado, Vol. 2º, 2008, nota 3. ao artigo 668º = ao actual artigo 615º, pág. 704), “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.”.

Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Nos termos do artigo 362º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado, podendo o interesse do requerente fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor.

Por outro lado, dispõe o artigo 368º nº 1 do Código de Processo Civil que, a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.

O decretamento da providência cautelar inominada está assim dependente do preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos:

- Probabilidade séria da existência do direito invocado (fumus boni juris);

- Fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum in mora);

- Adequação da providência à situação de lesão iminente;

- Não existência de providência específica que acautele o direito.

Neste conspecto, face ao requerido e ponderando a posição assumida pelas partes cumpre decidir, desde logo, da probabilidade séria da existência do direito invocado (fumus boni juris).

Concordando-se com A. ABRANTES GERALDES (Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, 2ª edição, Coimbra, 2000, p. 75), quando refere que, para tal, “não se exige um juízo de certeza, bastando-se a lei com um juízo de verosimilhança (“probabilidade séria”, segundo o art. 387º, nº 1) formulado pelo juiz, com base nos meios de prova apresentados ou naqueles que o tribunal oficiosamente aprecie, embora tal juízo não deva ser colocado num patamar tão baixo na escala gradativa da convicção do juiz que se tutelem situações destituídas de fundamento razoável”.

O que passará por decidir se e em que termos assiste aos requerentes o direito de passarem pelos prédios dos requeridos, a coberto de um alegado direito de servidão de passagem, adquirido por usucapião, para acederem ao seu prédio.

Nos termos do disposto no artigo 1543º do Código Civil, servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, dizendo-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.

Quanto ao modo da sua constituição, há que atender ao disposto no artigo 1547º do Código Civil, donde resulta que as servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família.

No caso os requerentes pretendem o reconhecimento da existência de uma servidão de passagem, com os limites por eles alegados, servidão essa que se terá constituído, por usucapião, em benefício do seu prédio.

Assumindo-se, fazendo uso das palavras de PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA (Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, Coimbra, 1987, p. 614/615), que a servidão “(…) trata-se de um encargo que recai sobre o prédio, de um encargo imposto num prédio, de uma restrição ao gozo efectivo do dono do prédio, inibindo-o de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão. Deste modo assinala a lei expressamente o carácter real da servidão.

A indicação de que a servidão é um encargo sobre o prédio afasta ainda toda a ideia de servidão imposta a uma pessoa em proveito de um prédio, como sucedia nas clássicas servidões da gleba, há muito abolidas do nosso direito”.

Desde logo, atendendo a que a servidão em causa terá por referência os prédios alegadamente propriedade de requerentes e requeridos (daí decorrendo a respectiva legitimidade substantiva dos mesmos), cumpre relevar que tais direitos não foram colocados em causa pelas partes, devendo assumir-se, como pacífico, que os prédios identificados em 1) e 4) são dos autores.

Sem prejuízo da presunção decorrente das respectivas inscrições registrais e do disposto no artigo 7º do Código de Registo Predial.

Assumindo assim que o litígio exclusivamente recai sobre a existência ou não da servidão e não sobre a propriedade dos prédios envolvidos, cumpre atender ao seguinte.

O conceito de usucapião mostra-se definido no artigo 1287º do Código Civil, donde decorre que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação.

Por outro lado, nos termos do artigo 1251º do Código Civil, posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.

O legislador optou por uma concepção subjectiva de posse (na esteira dos ensinamentos de Savigny), qualificando como mera detenção, todas as situações de exercício de poderes de facto, em que não se verifique uma específica intenção de domínio, um verdadeiro animus – elemento psicológico-juridico – tradutor de uma intenção de agir como titular de determinado direito real.

No entanto, a prova do animus, está amplamente facilitada, dado que o legislador, apercebendo-se da dificuldade da sua prova, consagrou no nº 2 do artigo 1252º do Código Civil, uma presunção de posse em nome próprio, naquele que exerce os poderes de facto sobre a coisa, cabendo pois, ao que se arroga possuidor, provar que o detentor verdadeiramente não possui.

Conforme se decidiu no Assento de 14 de Maio de 1996, “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” (Boletim do Ministério da Justiça”, nº 457, pág. 55).

Para existir posse, é necessário assim que haja uma actuação de facto sobre determinada coisa, traduzida na prática de actos materiais que consubstanciem uma relação de domínio ou o exercício de um qualquer outro direito menor.

(…)

Por outro lado, é preciso ter presente que a posse adquire-se, entre outras formas, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, nos termos do artigo 1263º alínea a) do Código Civil.

Para o acto de investidura na posse não é suficiente a prática de um único acto, mas de vários, embora possam ter conteúdos distintos e, por outro lado, sem que esta reiteração implique a necessidade de uma actuação ininterrupta e/ou contínua.

O que é certo é que, para o apossamento, é já necessária uma actuação com uma intensidade superior, traduzida em actos materiais de uso, fruição ou transformação, reveladores, de forma indubitável, de que entre a coisa e o adquirente se estabeleceu, “ex novo”, uma clara relação domínio.

Nas palavras de HENRIQUE MESQUITA, com o que se concorda, “o essencial, em suma, é que os actos aquisitivos, variáveis de caso para caso, se dirijam ao estabelecimento de uma relação duradoura com a coisa não bastando um contacto fugaz, passageiro.” (Direitos Reais”, Coimbra, 1967, pág. 97).

Por outro lado, para a aquisição da posse, nos termos da alínea a) do artigo 1263º do Código Civil, é ainda necessário que os actos materiais sejam realizados com publicidade, entendendo grande parte da doutrina que este requisito da publicidade é referido ao conceito de posse pública, consagrado no artigo 1262º do Código Civil, donde se infere a necessidade de os actos serem praticados de modo a puderem ser conhecidos pelos interessados (entre outros, Pires de Lima/Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. III, Coimbra, 1987, pág. 26; Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, Coimbra, 1967, pág. 85; Manuel Rodrigues, “A Posse, Estudo de Direito Civil Português”, Coimbra, 1996, pág. 187. Contra, cfr. Orlando de Carvalho, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, Ano 124, Coimbra, pag. 260 e Durval Ferreira, “Posse e Usucapião”, Coimbra, 2002, pág. 159)

Quando os actos materiais não apresentem a exterioridade suficiente para serem conhecidos dos interessados, quer porque, de per si, não a possuam, quer porque, por acto voluntário do seu autor, sejam ocultados, então, serão meros actos clandestinos, insusceptíveis de conformar qualquer apossamento.

Aqui chegados, cumpre atender que tais preocupações, no caso das servidões constituídas por usucapião, foram levadas pelo legislador ao extremo de não permitir tal constituição nos casos de servidões não aparentes.

Com efeito, por força do disposto no artigo 1548º do Código Civil, as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião, considerando-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes.

Como se deixou expresso no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/10/2013 (base de dados da DGSI, processo nº 78/11.1TBSCD.C1), “(…) a irrelevância do magno instituto da usucapião para a constituição de invocadas servidões que não se revelem materialmente em termos inequívocos, reside na preocupação legal de se evitar tal constituição em situações em que a atuação/posse é exercida por mera tolerância do dono do dito prédio serviente ou, até, sem que este dela tenha conhecimento”.

Tendo presente que – a não exigir-se um rigor acrescido nos referidos termos – muitas servidões poderiam constituir-se assim de forma clandestina (por serem de todo desconhecidas) ou legitimar-se-iam até pela mera prática de actos compatíveis com a mera tolerância do proprietário onerado.

Com efeito, conforme se deixou sumariado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/07/2013 (base de dados da DGSI, processo nº 2482/08.3TBAGD.C1:

1. No domínio do Código Civil de Seabra, até à alteração introduzida neste código pelo Decreto n.º 19 126, de 16 de Dezembro de 1930, as servidões descontínuas, como é exemplo típico a servidão de passagem, não podiam ser adquiridas por usucapião.

2. A razão da proibição residia na circunstância do legislador recear que actos de tolerância, de solidariedade ou boa vontade dos proprietários, para com os seus vizinhos, tolerando a passagem destes pelos seus terrenos, se tornassem em motivo de aquisição de direitos, contrariando as expectativas de quem havia manifestado apenas tolerância e boa vontade.

3. A partir do momento em que o legislador permitiu a aquisição de servidões de passagem por usucapião, a lei exigiu, para isso ser possível, factos inequivocamente demonstrativos da existência de situações duradouras e vinculativas, isto é, a existência de sinais visíveis e permanentes – n.º 2 do artigo 1548.º do Código Civil –, demonstrativos da inexistência de uma situação precária originada por actos de mera tolerância.

4. A visibilidade dos sinais respeita à sua materialidade, no sentido de serem percepcionáveis e interpretáveis como tais pela generalidade das pessoas que se confrontem com eles. A permanência consiste na manutenção dos sinais, com a aludida visibilidade, ao longo do tempo, sem interrupções (pelo menos nos casos em que a ausência temporária dos sinais torne equívoco o seu significado), por forma a gerar e manter a ideia de que se trata de uma situação estável e duradoura e, ao mesmo tempo, afastar a hipótese de se tratar de uma situação precária, podendo tais sinais, no entanto, ser alterados ao longo do tempo ou substituídos por outros.”.

Sendo que, como bem salientam ANTUNES VARELA / PIRES DE LIMA (Código Civil Anotado, vol. III, 1987, p. 629) “ (…) continua a entender-se que se torna as mais das vezes difícil distinguir entre as servidões não aparentes e os actos de mera tolerância, consentidos jure familiaritatis, que não reflectem uma relação possessória capaz de conduzir à usucapião (cfr. D., 41, 2, 41). Admitir a usucapião como título aquisitivo deste tipo de servidões, não obstante a equivocidade congénita dos actos reveladores do seu exercício, teria o grave inconveniente de dificultar, em vez de estimular, as boas relações de vizinhança, pelo fundado receio que assaltaria as pessoas de verem convertidas em situações jurídicas de carácter irremovível situações de facto, assentes sobre actos de mera condescendência ou obsequiosidade. Preferível julgou a lei cortar o mal pela raiz, presumindo-se juris et de jure o título precário e mantendo a eliminação indiscriminada da usucapião como aquisitivo das servidões não aparentes a fim de facilitar as relações de boa vizinhança entre os donos de prédios contíguos ou próximos.

No mesmo sentido milita ainda a circunstância de, não havendo sinais visíveis e permanentes reveladores da servidão, sendo esta porventura exercida só clandestinadamente, a atitude passiva do proprietário poder ser apenas devida à ignorância da prática dos actos constitutivos da servidão.”.

Daqui decorre que, como se disse, sendo a posse mais do que um mero poder de facto exercido sobre determinada coisa – corpus – implicando, de igual forma, uma intencionalidade específica de actuação como beneficiário do direito – animus, no caso particular da constituição de uma servidão, por usucapião, tal direito pressuporá sempre, além do mais, que tal posse seja revelada por sinais visíveis e permanentes, que o revelem de forma indiscutível.

Na qualificação do que se deverá entender por sinais visíveis e permanentes, cumpre ainda aderir ao entendimento expresso no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/10/2012 (base de dados da DGSI, processo nº 2763/08.6TBPBL.C1), na parte em que se referiu que:

(…) Por sinais entende-se tudo aquilo que possa conduzir à revelação de qualquer coisa ou facto, principalmente indícios que revelem a existência de obras destinadas a facilitar e a tornar possível a servidão.

Na servidão de passagem poderão ser, por exemplo, a existência de um trilho de terra batida ou empedrada, de sulcos de rodados de tracção animal deixados pelo decorrer dos tempos, em pedras existentes no caminho, tranqueiros, cancelas, pontes, etc.. A servidão de passagem tornar-se-á aparente desde que se faça um caminho, uma ponte ou se abra uma porta.

Esses sinais hão-de ser visíveis, permanentes e inequívocos, pois só deste modo poderão indicar a existência de servidão aparente. (…)

Além de visíveis ou aparentes, os sinais devem ser permanentes, revelando uma situação estável, que foram postos com intenção de assegurar a serventia de um prédio para o outro, com carácter de permanência. …”.

E importa ainda ter presente que, será sempre pelo valor e conteúdo dos actos materiais praticados que se há-de qualificar o direito possuído, designadamente atendendo à extensão dos poderes materiais exercidos.

Como bem se deixou expresso no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/10/2014 (base de dados da DGSI, processo nº 607/06.2TBPMS.C1), com o que se concorda, “(…) quanto à regulação da extensão e exercício da servidão, a lei remete para o título constitutivo e na sua insuficiência para a norma supletiva do art.1565 CC.

Constituída uma servidão por usucapião, o seu conteúdo ou extensão e o seu exercício determina-se pela posse do respectivo titular, segundo o princípio “tantum prescriptum quantum possessum “.

A extensão visa o elemento quantitativo (por exemplo, o comprimento e largura do caminho), o exercício reporta-se ao elemento qualitativo (por exemplo, na servidão de passagem o exercício a pé ou de carro) (cf. Tavarela Lobo, Mudança e Alteração de Servidão, pág.13 e 41).

Sendo o título da constituição da servidão a usucapião, o exercício e extensão da servidão afere-se pela posse do titular, a chamada “ posse da servidão”.

Por conseguinte, tanto o modo de exercício da servidão, concebido como exercício efectivo, a maneira como a servidão é exercida, tudo o que serve para precisar o seu conteúdo, a maior ou menor extensão, como o “tempo de exercício”, ou seja, o período no qual a servidão deve ser exercida, a época do aproveitamento das utilidades que a servidão oferece, são determinados pelo título.”.

Sem se esquecer, por último, que para a aquisição do direito de servidão, por usucapião, a lei impõe o decurso de determinado tempo e o exercício da posse em determinadas condições, necessariamente, em termos públicos e pacíficos (artigo 1297º do Código Civil).

Devendo entender-se que a posse é pacífica quando não foi adquirida com violência, considerando-se violenta a posse, quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física ou de coacção moral nos termos do artigo 255º.

E que posse pública, por força do artigo 1262º do Código Civil, é aquela que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados.

Nas palavras de L. CARVALHO FERNANDES (Lições de Direitos Reais, 4ª edição, Lisboa, 2005, p. 286), para preencher o conceito de publicidade não é necessário “o conhecimento efectivo do exercício da posse por aqueles a quem possa interessar, bastando a possibilidade de dela se aperceberem aqueles a quem a posse afectar. Trata-se, portanto, de critério a ser valorado em termos objectivos e não subjectivos. Se o exercício for tal, que uma pessoa de normal diligência, colocada na situação do titular do direito, daquele se teria apercebido, a posse é pública”.

Posse pública esta, como se disse, a implicar um grau acrescido de exigência, nos casos de servidões constituídas por usucapião, a exigir, além do mais, a sua revelação através de actos visíveis e permanentes (a significar que, nos casos de servidão de passagem, por exemplo, não chegue demonstrar-se que sempre ali se passou, sem oposição e de forma publica, mas igualmente a demonstração de sinais que demonstrem, inequivocamente, a sua aparência, nos termos sobreditos).

Subsumindo o exposto ao caso em apreço, no confronto com o que se provou, constata-se que os requerentes lograram demonstrar que a partir de determinada altura começaram a aceder aos seus prédios através de uma faixa de terreno existente nos prédios dos requeridos, sem qualquer oposição, o que fizeram por mais de 20 anos.

Todavia não lograram demonstrar, como lhes incumbia (artigo 342º nº 1 do Código Civil), que existam ou tivessem existido sinais visíveis e permanentes, que fossem susceptíveis de revelar tal passagem (não clandestina) para os seus prédios e com os efeitos pretendidos.

Isto porque não se provou existir ou ter existido qualquer trilho em terra batida ou calcada, com a localização e configuração indicada pelos requerentes, a partir do prédio referido em 11), sem prejuízo de resultar da prova produzida que tais vestígios se estenderam, outrora, desde a Estrada de Soure e consequentemente também ao prédio do requerido Adelino.

E posto isto, afigura-se-nos que, não tendo os requerentes demonstrado a existência de sinais visíveis e permanentes que revelem a alegada passagem até ao limite dos seus prédios, também não lograram demonstrar, ainda que de forma sumária, o direito de ver reconhecida a invocada servidão de passagem constituída por usucapião e cujo efeito útil se pretendia acautelar com as providências requeridas.

Sendo certo que não caberá relevar, em concreto, a constatada situação de encrave dos prédios e impedimento daí decorrente para os requerentes de a eles acederem, na medida em que os mesmos não fundaram a sua causa de pedir (nesta e na acção principal) em qualquer eventual direito legal de passagem, a tutelar nos termos previstos nos artigo 1550º e 1553º do Código Civil, mas sim num direito de servidão voluntária, constituída por usucapião.

(…)

Tudo para concluir pela improcedência do presente procedimento cautelar e pelo consequente indeferimento das providências requeridas. “.

Quer isto dizer que na dita sentença pese embora os requerentes tivessem logrado demonstrar que a partir de determinada altura começaram a aceder aos seus prédios através de uma faixa de terreno existente nos prédios dos requeridos, sem qualquer oposição, por mais de 20 anos, não lograram já demonstrar, como lhes incumbia (art. 342º, nº 1, do CC), que existam ou tivessem existido sinais visíveis e permanentes, que fossem susceptíveis de revelar tal passagem para os seus prédios e com os efeitos pretendidos.

Isto porque não se provou existir ou ter existido qualquer trilho em terra batida ou calcada, com a localização e configuração indicada pelos requerentes, a partir do prédio dos requeridos e até aos prédios dos autores.

O que mostra que a conclusão a que se chegou é compatível com a previsão ínsita no art. 1548º do CC e com o facto do reconhecimento da servidão de passagem estar sempre dependente da existência de sinais visíveis e permanentes, o que não se provou, pois, como se deixou expresso na fundamentação, nos casos de servidão de passagem, não chegará demonstrar-se que sempre ali se passou, sem oposição e de forma pública, mas igualmente acarretará a demonstração de sinais que revelem, inequivocamente, a sua aparência.

Não existe, assim, qualquer contradição, mostrando-se a fundamentação de direito coerente com os factos apurados e coerente com a decisão a que se chegou. Poderá haver erro de julgamento, por errada subsunção dos factos apurados ao direito, o que iremos verificar no infra ponto 4., mas contradição é que não existe.

Não se detecta, por isso, a nulidade apontada.

3. Os recorrentes impugnam os factos não provados a) a e), pretendendo a resposta de provado (vide as suas conclusões de recurso 12.), pelos motivos que afirma. Estribam-se no depoimento das testemunhas, arroladas por ambas as partes, (…)nos documentos que indicaram, plantas (docs. 8 e 9) e fotografias (docs. 18 a 38), e inspecção ao local (vide as suas conclusões de recurso 11., 13. a 21.).

Foi em tal tipo de prova - prova testemunhal, exactamente as testemunhas indicadas, prova documental, designadamente outras fotografias que não as indicadas pelos apelantes e prova por inspecção - na qual, conjugadamente, se fundou o julgador de facto para responder, nos termos expostos, à referida factualidade, como consta expressamente da sua motivação à decisão da matéria de facto (vide fls. 152/157).

Nas alegações (corpo) os recorrentes referem sumariamente aquilo que as referidas testemunhas terão dito/afirmado na audiência de julgamento, e extraem conclusões. Mais referem (no corpo das alegações e refeeridas conclusões) que tais depoimentos testemunhais estão gravados no sistema digital, com início às …e termo às … .

Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, sob pena de rejeição.

Ou seja, de tal dispositivo verifica-se que a lei exige 5 requisitos:

i) Que o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

ii) Qual o sentido correcto da resposta, que na óptica do recorrente, se impunha fosse dado a tais pontos;

iii) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa;

iv) E por que razão assim seria, com análise critica criteriosa;

v) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de facultativa transcrição dos excertos relevantes.

Ora, das suas alegações de recurso – corpo e conclusões - verifica-se que a recorrente não cumpriu o 5º dos indicados requisitos legais, pois não indicou, em lado algum, com exactidão as passagens da gravação em que funda a sua impugnação, baseada nos indicados depoimentos testemunhais que referem, apesar de, face à gravação efectuada (vide a respectiva acta a fls. 124/129), haver identificação precisa e separada de tais depoimentos.  

Na realidade, o ónus imposto a qualquer recorrente no aludido nº 2, a) do art. 640º, do NCPC não se satisfaz com a menção de que os depoimentos estão gravados com início às …e termo às … (ou que os depoimentos gravados duraram um determinado tempo), nem sequer com a transcrição, total ou parcial, dos depoimentos prestados, já que esta é meramente facultativa. Não deixando a lei neste ponto qualquer dúvida, face aos termos claros e terminantes com que está redigida (vide igualmente no mesmo sentido L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 3º, T. I, 2ª Ed., nota 4. ao artigo 685º-B, págs. 62/64, e A. Geraldes, Recursos em P. Civil, 2ª Ed., 2008, notas 3. e 4. ao referido artigo, págs. 138/142, normativo do CPC semelhante ao actual 640º do NCPC, e a título de exemplo os recentes Ac. desta Rel. de 10.2.2015, Proc.2466/11.4TBFIG e de 17.12.2014, Proc.6213/08.0TBLRA, e Ac. do STJ, de 19.2.2015, Proc.405/09.1TMCBR, disponíveis em www.dgsi.pt). No caso, os recorrentes limitam-se a referir que os apontados depoimentos se encontram gravados no sistema digital com início às …e termo às …, e sumariam o que as testemunhas terão afirmado, em vez de indicar com exactidão as passagens da gravação em que tais pessoas depuseram, no sentido supostamente afirmado/defendido pelos apelantes, a fim de permitir, como pretendiam, a eventual resposta de provado, aos apontados factos, depois de prévia audição por esta Relação e subsequente análise e ponderação de tais depoimentos.

Assim, face ao não cumprimento do referido ónus legal, a impugnação da matéria de facto não pode proceder com base em tais depoimentos.

Vejamos agora a prova documental indicada pela recorrente.

Trata-se de 2 plantas e várias fotografias. São documentos particulares de apreciação livre para efeito de impugnação dos factos deduzida pelos recorrentes. 

Ora, não é possível impugnar determinados factos com base apenas em documentos de apreciação livre, quando o julgador de facto se baseou adicional e conjugadamente em vários tipos de prova, como a prova testemunhal e a prova documental (art. 662º, nº 1, do NCPC).

Na verdade, nos termos deste normativo, deve alterar-se a matéria de facto quando a prova produzida impuser decisão diversa, seja quando constarem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto, seja por os elementos fornecidos pelo processo serem insusceptíveis de ser destruída por quaisquer outras provas.  

Abarcam-se neste segmento as situações em que a decisão de facto, na parte impugnada, tenha sido exclusivamente sustentada na apreciação, isolada ou conjuntamente, de documentos, de declarações confessórias, de relatórios periciais, de depoimentos escritos ou gravados, sem exclusão do uso simples ou conjugado de regras da experiência congregadas em presunções judiciais.

Por exemplo, constam do processo elementos que, só por si, determinem uma decisão diversa e cujo valor probatório seja insusceptível de ser afectado ou perturbado pela análise de outros meios de prova, como ocorre quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força probatória plena de certo meio de prova. É o caso de ter sido junto ao processo um documento com valor probatório pleno relativamente a determinado facto (arts. 371º, nº 1, e 376º, nº 1, do CC), mas apesar disso, o julgador considerou-o não provado, ou foi desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (arts. 358º, do CC, 567º, nº 1, e 463º, do NCPC), ou um acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º, nº 2, do NCPC), atribuindo-se prevalência à livre convicção formada a partir de outros elementos probatórios. Ou, ainda, foi dado como provado certo facto com base em meio legalmente insuficiente (por ex. depoimento testemunhal, nos termos do art. 393º do CC).

Ora, os aludidos documentos referidos pelos apelantes, não tem a virtualidade de, por si, implicar, sem mais, resposta diferente aos indicados factos impugnados. Primeiro, por não terem força probatória plena. Segundo, porque a possibilidade legal de alteração encontra no citado dispositivo o seu limite, ou seja, que não tenham sido produzidas outras provas capazes de destruir ou abalar o efeito probatório livre decorrente de tal documento.

Constatando-se, assim, que o julgador de facto não estava vinculado probatória e plenamente, pelos mencionados documentos, a responder como os apelantes pretendem aos apontados factos impugnados, antes podendo fazê-lo com recurso a outros elementos probatórios, como o fez.

Quando assim acontece, como no caso em apreço, quando o julgador de facto motiva a sua decisão da matéria de facto, conjugadamente, em múltipla prova testemunhal, diversa prova documental, e prova por inspecção, então a impugnação da matéria de facto com base apenas em documentos de apreciação livre não tem a aptidão de conseguir desmontar ou fazer desabar a matéria dada por provada ou não provada, invertendo o teor da resposta dada como agora pretendem os apelantes.

Mutatis mutandis se aplicam estas considerações à prova por inspecção judicial que é de apreciação livre (art. 391º do CC). Mais uma vez, aqui, o teor da inspecção judicial (cfr. fls. 137/139) não permite, por si, seguir no caminho pretendido pelos recorrentes, não joga em seu abono. Aliás o registo da inspecção está feito com precisão e de modo extenso pelo juiz, inspecção que serviu de modo forte à convicção do julgador, como este deixa perceber na sua fundamentação de facto e os recorrentes, inclusive, nem analisam pormenorizadamente a mesma na sua impugnação de modo a desacreditar a convicção do julgador.

Desta sorte, por todo o exposto, improcede a impugnação da matéria de facto apresentada pelos apelantes.   

4. Atenta a bem elaborada e correcta fundamentação de direito da sentença recorrida dela não dissentimos, merecendo, assim, a mesma a nossa adesão.

Na verdade, da previsão ínsita no art. 1548º do CC resulta que o reconhecimento de uma servidão de passagem está sempre dependente da existência de sinais visíveis e permanentes, o que não se provou, pois, como se deixou expresso na fundamentação da dita sentença, nos casos de servidão de passagem, não basta demonstrar-se que sempre ali se passou, sem oposição e de forma pública, mas igualmente acarretará a demonstração de sinais que revelem, inequivocamente, a sua aparência.

Ora, como acima já referido, embora os requerentes tivessem logrado demonstrar que a partir de determinada altura começaram a aceder aos seus prédios através de uma faixa de terreno existente nos prédios dos requeridos, sem qualquer oposição, por mais de 20 anos, não lograram já demonstrar, como lhes incumbia (art. 342º, nº 1, do CC), que existam ou tivessem existido sinais visíveis e permanentes, que fossem susceptíveis de revelar tal passagem para os seus prédios e com os efeitos pretendidos.

Isto porque não se provou existir ou ter existido qualquer trilho em terra batida ou calcada, com a localização e configuração indicada pelos requerentes, a partir do prédio dos requeridos e até aos seus prédios (basta compulsar, esclarecedoramente, a relevante matéria constante das a) a e) do elenco dos factos não provados).

Por conseguinte a pretensão dos recorrentes não podia proceder como não procedeu. 

5. Tendo em conta que os requerentes não lograram demonstrar a probabilidade séria da existência do direito invocado, 1º requisito legal do deduzido procedimento cautelar comum, assim naufragando logo a sua pretensão, prejudicada fica a apreciação das demais questões (art. 608º, nº 2, do NCPC).

6. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) A sentença só é nula por contradição entre os seus fundamentos e a decisão se a contradição for lógica, isto é se na fundamentação da sentença o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente;

ii) Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, designadamente quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda tal impugnação;

iii) A omissão desse ónus, imposto pelo nº 2, a), do referido artigo, implica a rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, pois tal ónus não se satisfaz com a menção de que os depoimentos estão gravados no sistema digital com início às …e termo às … (ou que os depoimentos gravados duraram um determinado tempo), nem com a referência sumária do que as testemunhas terão afirmado na audiência;

iv) Tendo o juiz fundamentado a sua convicção da resposta a certos pontos da matéria de facto conjugadamente em múltiplos depoimentos testemunhais, diversa prova documental e prova por inspecção judicial, não pode a mesma ser alterada, ao abrigo do art. 662º, nº 1, do NCPC, se os documentos particulares existentes nos autos e o teor da aludida inspecção, em que o recorrente baseia a sua impugnação factual, não conseguirem impor decisão diversa, por destituídos de força probatória plena;

v) A razão de ser da impossibilidade em usucapir uma servidão não aparente, que não se revela materialmente em termos inequívocos, reside na preocupação legal de se evitar tal constituição em situações em que a actuação/posse é exercida por mera tolerância do dono do dito prédio serviente ou, até, sem que este dela tenha conhecimento;

vi) Não se provando existir qualquer sinal visível e permanente (trilho em terra batida ou calcada), com a localização e configuração indicada pelos requerentes no requerimento inicial, a partir do prédio dos requeridos e até aos seus prédios não é possível constituir-se, por usucapião, a respectiva servidão de passagem.

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas a cargo dos recorrentes. 

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  Coimbra, 27.9.2016

  Moreira do Carmo ( Relator )

  Fonte Ramos

  Maria João Areias