Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8657/16.4T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO DOMINGOS PIRES ROBALO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
FUNDAMENTOS
CASO JULGADO
REPETIÇÃO
PEDIDO
Data do Acordão: 07/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – JUÍZO COMÉRCIO – J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 235º, 241º E 245º DO CIRE; 580º E 581º DO NCPC.
Sumário: I – Vigora no nosso sistema jurídico (o CIRE, aprovado pelo D. Lei n.º 53/2004, de 18-03) o instituto da exoneração do devedor do passivo restante, procurando-se, por essa via, conciliar o princípio clássico e fundamental do ressarcimento dos credores, inerente a qualquer processo de insolvência, com a atribuição aos devedores da possibilidade de se libertarem de dívidas suas, de molde a ser-lhes permitida a sua reabilitação económica ao fim de algum tempo.

II - A exoneração do passivo restante destina-se, assim, às pessoas singulares que, de boa fé e por contingências específicas, caíram em situação de insolvência, concedendo-lhes a possibilidade de exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste – cfr. art.º 235.º do CIRE.

III - Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, determinando que durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvên­cia e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, conforme dispõe o art.º 241º do CIRE.

IV - No final do período da cessão será proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração e sendo esta concedida ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados – art.º 241º, n.º 1 e 245º, ambos do C.I.R.E.

V - Nos termos do disposto nos artigos 580º e 581 º do CPC, aplicável ex vi do art. 17º do CIRE, constitui excepção de caso julgado a repetição de uma causa, visando evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior.

VI - Se a lei permite que quem tenha sido declarada insolvente o possa voltar a ser, posto que ocorram os factos conducentes a tal situação, também a insolvente, que assim voltou a ser declarada, há-de poder dispor de todos os mecanismos processuais atinentes ao seu estado, como sejam o de requerer a exoneração do passivo restante outra vez, atenta a sua nova situação.

VII - Embora não diga directamente respeito à questão do caso julgado, afigura-se-nos incongruente face à lei vedar ao insolvente o pedido de exoneração do passivo restante, quando, caso tivesse beneficiado da exoneração, poderia voltar a formular esse pedido ao fim de 10 anos, como decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Decisão Texto Integral:








1. Relatório

1.1.- L... veio apresentar-se à insolvência e simultaneamente requerer que lhe fosse concedida a exoneração do passivo restante. Invocou para tanto que estão preenchidos os requisitos de que depende a exoneração e declarou que se obriga a cumprir todas as condições de que a exoneração depende.

1.2. - A administradora da insolvência deu parecer favorável.

1.3. - O credor Banco C..., S.A. emitiu parecer desfavorável, por a devedora se encontrar em situação de incumprimento reiterado com os seus credores desde 2010, tendo agravado, em seu entender, a situação de insolvência por se ter abstido de se apresentar à insolvência.

1.4. - Também o credor P..., S.A. se pronunciou desfavoravelmente, referindo que a devedora foi já declarada insolvente em anterior processo de insolvência e que neste foi liminarmente indeferido o seu pedido de exoneração, devendo tal pedido ser agora indeferido pelos mesmos fundamentos que determinaram tal decisão.

            1.5. A fls. 109 a 113 foi proferida decisão a rejeitar liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, por entender verificada a exceção de caso julgado entre os presentes autos e o decidido no processo n.º ..., do 1.º Juízo Cível do extinto Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra.

            1.6. Inconformada com tal decisão dela recorreu a requerente, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

...

1.7. Cumprido o art.º 221 do C.P.C. não houve resposta.

            2. Fundamentação de facto

Factos provados em 1.ª instância, que se transcrevem:

“Dos elementos contantes dos autos resultam assentes os seguintes factos:

...

6. A devedora havia-se apresentado anteriormente à insolvência no âmbito do processo n.º ... do 1.o Juízo Cível do extinto Tribunal Judicial da comarca de Coimbra, tendo a respetiva insolvência sido declarada no âmbito do presente processo por decisão proferida no dia 11 de maio de 2010.

7. A devedora requereu igualmente a exoneração do passivo restante no âmbito do referido processo, tendo tal pedido sido liminarmente indeferido por despacho de 18 de outubro de 2010.

8. Considerou-se na referida decisão que a devedora contraíra dívidas desnecessárias e agira com culpa, quer no endividamento, quer no seu progressivo agravamento.

                                   2. Factos aditados por este tribunal                                              

Facto 9 – (art.º 4 do requerimento inicial) com a seguinte redacção: «A requerente, desde o ingresso no mercado de trabalho, como professora primária, sempre padeceu de saúde frágil, mormente a nível psiquiátrico, vendo o seu estado agudizar-se, com a descoberta de nódulos na mama esquerda e um glaucoma, que lhe afectou a visão”

Facto 10 – (art.º 6 do requerimento inicial) com a seguinte redacção: «Após a aposentação, a requerente sucumbiu num estado depressivo agudo, potenciado pela galopante degradação da saúde de sua mãe, que inspira cuidados intensivos e constantes, inclusive a nível material».

Facto 11 – (art.º 7 do requerimento inicial) com a seguinte redacção: «A mãe da requerente padece de artroses, varizes, colite, eritemas nodosos crónicos, cardiopatias, que exigem acompanhamento farmacológico e médico constante, onerando a requerente com uma despesa mensal média de 250,00 €.

            Facto 12 – (art.º 8 do requerimento inicial) com a seguinte redacção: « É a Requerente quem presta auxílio a uma tia, com a idade actual de 86 anos, que vive sozinha em Lisboa, visitando-a regularmente, e fornecendo-lhe medicamentos e bens alimentares, onerando aquela com uma despesa mensal média de 100,00 € (Cem Euros).

            Facto 13 (art.º 12 do requerimento inicial) com a seguinte redacção: « Encetou negociações com a Banca, como seu principal credor, no sentido da integral regularização dos débitos, esbarrando, porém, na fria rejeição do credor».

Facto 14 ( art.º 14 do requerimento inicial) com a seguinte redacção: « A Requerente encetou plúrimos esforços junto dos seus credores no escopo de negociar planos de pagamentos sustentados e adequados à sua situação financeira actual, propondo períodos de carência de pagamento de capital, juros, dações em cumprimento, entre outras, o que sempre se revelou debalde».

Facto 15 (art.º art.º 24 do requerimento inicial) com a seguinte redacção: « A requerente suporta despesas médias mensais com alimentação, água, luz, gás, limpeza da habitação e das partes gerais do condomínio, saúde, consumíveis, vestuário e alimentos para mãe e tia, a quantia de 1.534,07 €, sobrando-lhe o magro remanescente de 89,93 €, conforme quadro sumário e sinóptico infra elencado:

... 

                                                           3. Apreciação

3.1. É, em principio, pelo teor das conclusões do/a recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (cfr. art.s 608, n.º 2, 635, n.º 4 e 639, todos do C.P.C.).

As questões a decidir são:

a)- Saber se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação, no que tange à decisão sobre a matéria de facto, violando o preceituado no art.º 607, n.ºs 3, 4 e 5, do C.P.C.

b) – Saber se devem ser levados aos factos provados os artigos 2 a 15, 22 a 26 e 34 a 40 todos do requerimento inicial de insolvência.

c) – Saber se o facto provado em 8 da decisão recorrida deve ser expurgado.

d) – Saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que admita o requerimento de exoneração do passivo restante.

 Tendo presente que são várias as questões a decidir, por uma questão de método vejamos cada uma de per si.

I)- Saber se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação, no que tange à decisão sobre a matéria de facto, violando o preceituado no art.º 607, n.ºs 3, 4 e 5 do C.P.C.

Segundo a recorrente a decisão recorrida viola o preceituado no art.º 607, n.º 3, 4 e 5 do C.P.C., na medida em que a mesma não fundamenta a razão de não ter levado aos factos provados os artigos 2 a 15, 22 a 26 e 34 a 40, não impugnados, ou seja, a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação.

Dispõe o n.º3 do citado preceito “ Seguem -se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”, referindo o n.º 4 “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”  e reza o n.º 5 ” O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.

Esta nulidade, consistente na falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, está prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615 do Código de Processo Civil.

Resulta do preceituado no artigo 607.º, n.ºs 2 a 4 do Código de Processo Civil que a sentença se compõe de três partes: relatório, fundamentação e decisão.

Quanto à fundamentação, ela desdobra-se em fundamentação de facto, na qual se descriminam os factos provados e se faz a respectiva análise crítica da prova, seguindo-se a esta a respectiva subsunção jurídica do direito aos factos, que deverá ser o suporte da parte decisória. A dupla fundamentação da sentença em processo civil, nos termos do artigo 607.º, n.ºs 2 a 4 do CPC cumpre o imperativo constitucional do artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Como refere Teixeira de Sousa in «Estudos sobre o Processo Civil», pág. 221, «esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artigo 208.º, n.º 1 CRP e artigo 158.º, n.º 1 CPC, revogado, sublinhado é nosso) …o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (…) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a

fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível».

Também Lebre de Freitas in «Código de Processo Civil Anotado», vol 2.º, pág. 669, refere que «há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação».

De igual modo Antunes Varela in «Manual de Processo Civil», 2.ª edição, pág. 687, entende que a nulidade existe quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão e não a mera deficiência de fundamentação.

            Cabe ainda referir que nos termos do n.º1 do art.º 154º do mesmo diploma as decisões sobre qualquer pedido controvertido são sempre fundamentadas, salvo, como refere o n.º 2, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.

            No caso em apreço a questão é controversa, pelo que o tribunal “ a quo” deveria fundamentar a mesma, face ao supra referido.

Porém, a mesma não contém, em nosso entender, um mínimo de fundamentação exigível a uma decisão judicial que se pronuncia sobre uma questão controvertida entre as partes e que, na formulação positiva, se destinaria a pôr termo ao processo. Não só não há qualquer fundamentação de facto, explicando a razão de ter dado como provados tais factos, bem como não faz qualquer referência aos factos que a requerente trouxe ao processo, mormente aos aludidos no recurso, não referindo a razão de os mesmos não constarem da decisão, como provados ou não provados.

Assim, face ao exposto, temos para nós que a decisão recorrida está ferida de nulidade, por falta de fundamentação nos termos expostos (cfr. Ac. Rel. de Guimarães de 11 de Novembro de 2010. Proc n.º 93/09.5TBCEPS-A.G1, relatado por Ana Cristina Duarte, a propósito da nulidade por falta de fundamentação).

A nulidade referida ficará suprida através da decisão sobre a questão da existência ou não da exceção de caso julgado, que a recorrente ataca, desde que o tribunal, como resulta do preceituado do n.º 2 do art.º 665 do C.P.C., tenha elementos para tal.

II) – Saber se devem ser levados aos factos provados os artigos 2 a 15, 22 a 26 e 34 a 40 todos do requerimento inicial de insolvência.

...

III) – Saber se o facto provado em 8 da decisão recorrida deve ser expurgado.

Segundo a recorrente o facto 8 dado como provado, deve ser expurgado, por o tribunal “ a quo” ter passado ao lado do contraditório.

Vejamos.

Reza o referido facto « Considerou-se na referida decisão que a devedora contraíra dívidas desnecessárias e agira com culpa, quer no endividamento, quer no seu progressivo agravamento».

Da consulta dos autos verificamos que a fls. 100 a 105 se encontra decisão proferida no processo n.º ..., aludido no ponto 6 dos factos dados como provados, pelo tribunal ”a quo”, onde a fls. 104 se refere “… É manifesto que a insolvente agiu com culpa, seja no endividamento, seja no seu progressivo agravamento …”.

Também resulta dos que é a própria recorrente que alude ao processo em causa  (cfr. fls. 90 a 91).

Pelo que não pode vir invocar qualquer surpresa na sua alusão nos factos provados, como no referido no mesmo, sendo que no facto 8 o tribunal “ a quo” apenas refere o que consta do referido processo, mormente no despacho proferido sobre a exoneração do passivo restante.

Assim, esta pretensão da recorrente não pode proceder. 

IV) – Saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que admita o requerimento de exoneração do passivo restante.

A recorrente apresentou o pedido de exoneração do passivo restante, alegando reunir as condições exigidas pela lei.

O processo de insolvência é, nos termos da formulação legal, “um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente” (art.º 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - CIRE -, aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março).

Vigora no nosso sistema jurídico (o CIRE, aprovado pelo D. Lei n.º 53/2004, de 18-03) o instituto da exoneração do devedor do passivo restante, procurando-se, por essa via, conciliar o princípio clássico e fundamental do ressarcimento dos credores, inerente a qualquer processo de insolvência, com a atribuição aos devedores da possibilidade de se libertarem de dívidas suas, de molde a ser-lhes permitida a sua reabilitação económica ao fim de algum tempo.

A exoneração do passivo restante destina-se, assim, às pessoas singulares que, de boa fé e por contingências específicas, caíram em situação de insolvência, concedendo-lhes a possibilidade de exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste – cfr. art.º 235.º do CIRE, onde se estabelece “que, sendo o devedor pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.

Trata-se, pois, de regime específico da insolvência das pessoas singulares, conferindo a esses devedores a possibilidade, em situação de insolvência, de liberação definitiva quanto ao respectivo passivo (exoneração dos débitos correspondentes a esses créditos), que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento.

Este incidente é uma solução que não tem correspondência na legislação falimentar anterior e que se inspirou no chamado modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente. (cfr. preâmbulo do DL 53/2004, de 18 de Março).

É indiscutível que se não ocorresse a declaração de insolvência o devedor teria de pagar a totalidade das suas dívidas sem prejuízo da eventual prescrição, a qual pode atingir o prazo de 20 anos segundo a lei civil portuguesa. (cfr. Assunção Cristas, in Exoneração do devedor pelo passivo restante, Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edi­ção especial, pág. 166-167).

Dispõe o diploma na al. d) do n.º 1 do art. 238.º que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, determinando que durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvên­cia e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, conforme dispõe o art.º 241º do CIRE.

No final do período da cessão será proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração e sendo esta concedida ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados. – art.º 241º, n.º 1 e 245º, ambos do C.I.R.E.

No caso em apreço o pedido de exoneração foi rejeitado (liminarmente), não por ocorrência de algumas das causas previstas no artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas justificativas do indeferimento liminar, mas por conclui existir caso julgado quanto a tal matéria.

Para tanto refere a decisão recorrida « (…) Mal se compreenderia que ao devedor que visse o pedido de exoneração do passivo restante rejeitada fosse facultada a possibilidade de se apresentar sucessivamente à insolvência e renovar tal pedido, até obter uma decisão favorável. Tal representaria uma intolerável lesão dos valores da boa administração da justiça e da funcionalidade dos tribunais que o caso julgado visa (…). Destarde, e sob pena de contradição de anterior decisão devidamente transitada em julgado, haverá que indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela devedora».

Por sua vez a recorrente refere não se verificar a exceção de caso julgado, desde logo por a sentença de insolvência prolatada há mais de cinco anos não faz qualquer caso julgado material ou formal nos presentes autos, nem consubstancia qualquer facto essencial, ou mesmo instrumental, para a decisão do pleito.

Nos termos do disposto nos artigos 580º e 581 º do CPC, aplicável ex vi do art. 17º do CIRE, constitui excepção de caso julgado a repetição de uma causa, visando evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior.

Nos termos do disposto no art. 581º do CPC constituem requisitos da litispendência e do caso julgado:

“1 -Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2 - Há identidade de sujeitos quando numa das partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3 - Há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4- Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. (...).

No caso em apreço resulta que a recorrente havia já sido declarada insolvente, no processo n.º ..., do 1.º Juízo Cível do extinto Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, tendo nos mesmos autos sido indeferido o benefício de exoneração do passivo restante, por se entender que a ora recorrente teve culpa grave na insolvência (cfr. factos 6 e 8).

Sobre esta matéria escreve-se no acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 21/03/2013 (proferido no proc. n.º 3210/07.6TCLRS.L1.S1), relatado por Álvaro Rodrigues, disponível, em www.dgsi.pt, são essencialmente duas as realidades que se nos deparam no tratamento jurídico das consequências ou efeitos do caso julgado: a) A excepção dilatória do caso julgado; e b) a autoridade do caso julgado.

A este respeito escreveu-se o seguinte:

«Importa … averiguar se se verificou ofensa à autoridade de caso julgado, que não se confunde com a excepção dilatória de caso julgado.

Para cabal resposta, importa traçar o esboço conceptual de tal conceito, em latim denominado auctoritas rei judicatae, seguindo a lição magistral do Prof. Manuel Andrade.

Como aquele emérito civilista de Coimbra ensinou [Manuel D. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 306], com o brilho e o apurado sentido das realidades que todos lhe reconhecemos, mesmo em gerações posteriores às que tiveram o privilégio de escutar as suas palavras, o fundamento do caso julgado reside no prestígio dos tribunais (considerando que «tal prestígio seria comprometido em alto grau se mesma situação concreta uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente») e numa razão de certeza ou segurança jurídica («sem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa»).

Assim, ainda que se não verifique o concurso dos requisitos ou pressupostos para que exista a excepção de caso julgado (exceptio rei judicatae), pode estar em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta.

A feliz síntese do acórdão da Relação de Coimbra de 28/09/2010, de que foi Relator o Exmo. Desembargador Jorge Arcanjo (Proc. n.º 392/09.6TBCVL.S1, in www.dgsi.pt), afigura-se-nos cabalmente adequada ao traçado da fronteira entre estas duas figuras jurídico-processuais, pelo que importa aqui registar a parte do seu sumário que importa à presente decisão: I - A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido. II - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no art.º 498° do CPC» (actual artigo 581º). 

Em sentido idêntico cfr. Ac. S.T.J de 19/05/2010 (Processo nº 3749/05.8TTLSB.L1.S1),  relatado por Sousa Grandão, e o Acórdão da Relação de Coimbra de 06/9/2011 (proc. n.º 816/09.2TBAGD.C1), relatado por Judite Pires, onde se concluiu que: “6 - Da excepção de caso julgado se distingue a autoridade de caso julgado, pressupondo esta a aceitação da decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obstando-se, deste modo, que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo neste caso a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 498º do Código de

Processo Civil. 7 - O efeito preclusivo do caso julgado determina a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.”

No caso em apreço resulta o que foi apreciado para efeitos de admissibilidade do pedido de exoneração do passivo restante foram as circunstâncias impeditivas à admissibilidade liminar do pedido em função da conduta da insolvente, tendo em conta as causas que conduziram à sua declaração da insolvência, a que aludem os art.º 238, n.º 1 e) e 186 do CIRE.

No processo actual a conduta da insolvente tem que ser valorada em função das circunstâncias que nortearam a nova declaração de insolvência, pelo que o objecto do processo é diferente (cfr. neste sentido Ac. da Rel. de Évora de 6 de Abril de 2017, proc.º n.º 5416/16.8T8STB-B.E1, relatado por Francisco Xavier).

É certo que os créditos e os credores em ambos os processos são essencialmente os mesmos, mas também é certo que a devedora foi declarada novamente insolvente e o pedido de exoneração reporta-se à nova declaração de insolvência.

Ora, como se escreve no citado Ac. da Rel. de Évora, que seguimos de perto “se a lei permite que quem tenha sido declarada insolvente o possa voltar a ser, posto que ocorram os factos conducentes a tal situação, como agora sucedeu, também a insolvente, que assim, voltou a ser declarada há-de poder dispor de todos os mecanismos processuais atinentes ao seu estado, como sejam o de requerer a exoneração do passivo restante outra vez, atenta a sua nova situação.

Embora não diga directamente respeito à questão do caso julgado, afigura-se-nos incongruente face à lei vedar ao insolvente o pedido de exoneração do passivo restante, quando, caso tivesse beneficiado da exoneração, poderia voltar a formular esse pedido ao fim de 10 anos, como decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas

Face ao exposto, temos para nós que não ocorre a invocada excepção do caso julgado, procedendo o recurso, pelo que, em consequência, deve revogar-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante com a apreciação dos pressupostos a que se reporta o artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que, no caso, não ocorreu.                            

4. Decisão

Nos termos expostos decide-se:

Julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar o despacho recorrido, determinando-se o prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante, em conformidade com o decidido, ou seja, prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante com a apreciação dos pressupostos a que se reporta o artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que, no caso, não ocorreu, seguindo-se os demais termos.

Sem custas.

Coimbra 12/7/2017.

 (Pires Robalo – Relator)

 (Sílvia Pires – adjunta)

(Maria Domingas Simões – adjunta)