Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6/06.6TBAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARTINS DE SOUSA
Descritores: TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS
INCOTERMS
INTERPRETAÇÃO
CONTRATO
Data do Acordão: 09/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: CONVENÇÃO CMR (CONVENÇÃO RELATIVA AO CONTRATO INTERNACIONAL DE MERCADORIAS), ASSINADA EM GENEBRA EM 19/05/56 E APROVADA PELO DL Nº 46235, DE 18/03/65. ARTº 406º, Nº 2, CC
Sumário: I – Os “incoterms (abreviatura de International Commercial Terms/Termos Internacionais de Comércio) são regras internacionais de interpretação uniforme da terminologia contratual comercial e foram apurados pela Câmara Internacional de Comércio que, em 1936, fixou uma série de regras destinadas a dividir custos e a interpretar e definir, de imediato e com precisão, a responsabilidade, no transporte, de vendedores e compradores no mercado internacional.

II – O incoterm CIP (carriage and insurance paid to) tem o significado jurídico de cláusula que sujeita o exportador à obrigação de seguro e transporte que termina no momento em que a mercadoria é entregue ao transportador ou seja, define como momento crítico da transferência do risco para o comprador pela perda ou perecimento da mercadoria, a sua entrega ao transportador.

III – O que tem por consequência que, se tal perda ou deterioração não desoneram o comprador da obrigação de pagamento do respectivo preço, como lesado, nesse caso, será o credor da indemnização emergente de seguro que venha a ter lugar.

IV – Quando o contrato de transporte se segue a um contrato de compra e venda, os incoterms dispõem sobre quem deverá realizar e pagar o transporte, mas tratando-se de cláusulas de um contrato celebrado entre o vendedor (carregador) e o comprador (destinatário), não poderão, sem mais, vincular o transportador.

V – Respondendo a seguradora apenas pelo risco de furto de parte das mercadorias transportadas, no âmbito do contrato de seguro que celebrou com a Ré Transportadora, não lhe cabe discutir ou fazer apelo à cláusula CIP aposta em contrato de compra e venda que lhe é estranho e apenas vincula os respectivos contraentes – as sociedades expedidora e destinatária das mercadorias transportadas – artº 406º, nº 2, CC.

VI – Da outorga de um contrato de transporte internacional de mercadorias decorre para o transportador a obrigação de entregar a mercadoria no local de destino, na mesma quantidade e estado em que a recebeu.

VII – É ele responsável pela perda total ou parcial dessa mercadoria, bem como pela avaria que venha a ocorrer entre o momento da entrega e carregamento da mercadoria e o da sua entrega, designadamente por actos ou omissões de agentes que utilize na sua execução – artºs 3º e 17º, nº 1, da CMR.

VIII – Sobre o credor da indemnização resultante de tal perda e/ou avaria recai o ónus de as provar, uma vez que elas são elementos constitutivos do seu direito – artºs 342º, nº 1, do CC, e 18º, nº 1, da CMR.

IX – O transportador fica desobrigado daquela responsabilidade, além do mais, quando a perda da mercadoria tenha ocorrido em circunstâncias que não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar, sobre ele recaindo o ónus da respectiva alegação e prova – artºs 17º, nº 2, e 18º, nº1, da CMR.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

I.

A...”, intentou no Tribunal de Arganil, contra “B...”, acção declarativa de condenação, com forma sumária do processo comum, pedindo que a Ré seja condenada a indemnizar a Autora de todos os prejuízos causados pelo furto ocorrido durante o transporte internacional de mercadoria, titulado pelo CMR 07877 A no valor de € 24.568,65 euros, a que acrescem os juros de mora à taxa de 5% ao ano desde a data da citação.

Alega, sustentando o seu pedido, que a sociedade portuguesa “C..., S.A.” vendeu a outra sociedade do grupo C..., com instalações em Breda, na Holanda, o equipamento de vídeovigilância da marca ..., que se encontra discriminado nas facturas nºs. 30500005, 30500007 e 305 00011, pelo valor global de € 302.205,69 euros; com a a primeira daquelas sociedades acordou o transporte dessa mercadoria, em 36 embalagens, sendo 35 - trinta e cinco - paletes e uma caixa (box), emitindo-se a esse propósito o CMR nº. 07977, datado de 7 de Janeiro de 2005; porém, essa mercadoria não chegou toda ao seu destinatário na Holanda, tendo sido feita a anotação no CMR, no destino de que faltavam quatro paletes e uma caixa, devido a um furto durante o transporte da mercadoria, ocorrido entre as 23:30 horas do dia 9 de Janeiro de 2005 e as 6:30 horas do dia 10 de Janeiro do mesmo ano, numa estação de serviço em Espanha, enquanto o motorista dormia na cabine do camião.

A Autora é seguradora de todas as companhias e filiais do grupo C..., por apólice de seguro de transporte nº. 411 – 400000-RG e tendo indemnizado a sociedade expedidora, ficou subrogada nesse seu direito de reclamar indemnização pelos prejuízos sofridos.

Requereu, ainda, a intervenção principal provocada, do lado passivo, da Seguradora “D..., S.A.”, uma vez que a Ré se responsabilizou pela indemnização dos prejuízos ocorridos em virtude do furto, tendo participado o sinistro à Companhia de Seguros “ D..., S.A.”, ao abrigo do seguro CMR.

Contestou a Ré excepcionando a sua própria ilegitimidade, pois, através da apólice nº. ..., transferiu a sua responsabilidade civil relativa ao transporte de mercadorias para a “Companhia de Seguros D..., S.A.”, cujo montante é de € 100.000,00 euros, inferior, portanto ao valor peticionado; por outro lado, da análise do CMR em causa, verifica-se que a carga não ultrapassa 1.095,92 Kg, pelo que a indemnização não pode ser superior a € 10.553,71 euros, concluindo a final, pela procedência da excepção invocada e, caso assim não se entenda, pela improcedência da acção.

Na resposta, pugnou a A legitimidade da ora Ré, bem como pela responsabilidade da demandada, já que a mercadoria desaparecida ocorreu por culpa dela a qual não teve o cuidado de vigiar a carga durante o transporte.

Por força do pagamento que a seguradora da Ré lhe efectuou, no valor de € 10.553,71 euros, a A. reduziu o seu pedido para o montante de 14.014,94 euros.

A Ré apresentou a sua tréplica, invocando ter a A. entrado em acordo com a “ E...Seguros, S.A.”, respeitante ao assunto dos autos, através do qual reconheceu receber o valor de € 10.553,71 euros. Por isso, a Ré requer a condenação da Autora como litigante de má fé.

Admitida a intervenção principal provocada da “Companhia de Seguros D..., S.A.”, veio esta apresentar a sua defesa, aduzindo que o pagamento que efectuou da quantia de € 10.605,95 euros foi para integral liquidação dos prejuízos decorrentes do furto da mercadoria, a qual foi calculada com base no disposto no nº. 3, do artº. 23, da Convenção CMR; e como o pagamento extingue a obrigação, sendo certo que, com a presente acção, a A. pretende receber quantia superior à acordada, esta deve ser condenada como litigante de má fé.

Na resposta à contestação apresentada pela chamada, a A. invocou ser a Companhia Seguradora parte legítima, pois estão reunidos os pressupostos da intervenção provocada e ademais, a chamada não pode invocar a limitação prevista no artº. 23, nº. 3, da CMR, já que o desaparecimento da mercadoria durante o transporte ocorreu por culpa exclusiva do Segurado da Interveniente; quanto ao pagamento invocado, o mesmo só ocorreu depois da entrada em juízo da presente acção, sendo certo que o mesmo não cobre a totalidade dos prejuízos reclamados; e  uma vez que o furto em causa nos autos está coberto por apólice e a A., na qualidade de seguradora, assumiu a responsabilidade pelo pagamento dos prejuízos resultantes do sinistro perante a expedidora da mercadoria, ficou voluntariamente subrogada pelo lesado em todos os direitos que a “ C... – ..., S.A.” tem sobre a transportadora. Quanto à litigância de má fé, a mesma não existe, pois a A. reduziu o pedido ao montante de € 14.014,94 euros.

Foi elaborado o despacho saneador, conhecendo-se da excepção de ilegitimidade passiva suscitada e aceitando-se a redução do pedido, o que conduziu à alteração da forma de processo que vinha sendo seguida, passando a seguir a forma do processo sumário.

Decorridos os restantes termos processuais, veio a ter lugar a audiência de julgamento e no seu termo foi decidida a matéria de facto a que foi aditada três novas alíneas, após o que foi proferida sentença que condenou solidariamente a Ré e a chamada “Companhia de Seguros D..., S.A.” a pagar à A a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, limitada ao valor consignado no artº. 23, nº. 3, da Convenção CMR, e ao montante máximo peticionado de € 14.014,94 (catorze mil, catorze euros e noventa e quatro cêntimos), com juros de mora, à taxa legal de 5%, contados desde a citação até integral pagamento.

Inconformadas, dela recorreram A e Ré D....

Esta conclui a sua alegação do modo seguinte:

[…]

Por sua vez, a A alinha as seguintes conclusões:

[…]

Contra-alegou a INTERVENIENTE, alegando em conclusão

[…]

II.

Seguir-se-á na apreciação a ordem de interposição dos recursos, mas, antes de mais nada, vai transcrever-se a matéria de facto apurada que é seguinte:

[…]

A. O Recurso da R D...:

São as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto e desta forma, com excepção de eventuais questões de conhecimento oficioso, importa apreciar:

1- se por efeito da transferência do risco para a compradora/importadora das mercadorias  operada pela cláusula CIP aposta à venda, a expedidora/vendedora das mercadorias e segurada da A, por falta de direito à indemnização pelo furto ocorrido, inviabiliza a subrogação da Recorrida Seguradora;

2 – se a quantia que a Recorrente já entregou à Recorrida por conta da indemnização deve ser abatida no total que a esta for fixado e que não pode ultrapassar o valor do pedido, após a redução de que este foi objecto.

Analisando:

1 - Demandou a Autora as RR – a primeira na qualidade de transportadora e a segunda enquanto Seguradora daquela – alegando ter celebrado com a primeira contrato de transporte internacional de mercadorias cujo risco de perda fora objecto do contrato de seguro firmado entre ambas; ocorrido um furto durante o transporte, parte delas não foram entregues à sua importadora na Holanda que as havia comprado, em Portugal, à Segurada da Autora, sua expedidora.

Na apelação a Recorrente Tranquilidade pugna pela sua irresponsabilidade, alegando que a aludida venda segue o regime decorrente do incoterm CIP, referenciado nas diversas facturas juntas aos autos e daí que o risco de perecimento ou perda da mercadoria corra por conta do comprador, a partir do momento em que é entregue ao transportador.

Os incoterrms (abreviaturas de International Commercial Terms/Termos Internacionais de Comércio) são “regras internacionais de interpretação uniforme da terminologia contratual comercial (cfr Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, 64) e foram apurados pela Câmara Internacional de Comércio que, em 1936, fixou uma série de regras destinadas a dividir custos e a interpretar e definir, de imediato e com precisão, a responsabilidade no transporte de vendedores e compradores no mercado internacional.

O incoterm CIP (carriage and insurance paid to) tem o significado jurídico de cláusula que sujeita o exportador à obrigação de seguro e transporte que termina no momento em que a mercadoria é entregue ao transportador ou seja, define como momento crítico da transferência do risco para o comprador pela perda ou perecimento da mercadoria, a sua entrega ao transportador.

O que tem por consequência que, se tal perda ou deterioração não desoneram o comprador da obrigação de pagamento do respectivo preço (cfr Maria Ângela Bento Soares e Rui Moura Ramos, Contratos Internacionais, 168), como lesado, nesse caso, será o credor da indemnização emergente de seguro que venha a ter lugar.

Comprovam os autos que a sociedade portuguesa E..., SA, actualmente, “ C... ..., SA”, pelas facturas 30500005, 30500007 e 30500011, vendeu a outra sociedade do grupo C..., denominada C... Security Sistems BV, em Breda, na Holanda, o equipamento de vídeo vigilância (câmaras, monitores, gravadores e cabos de ligação), da marca ..., que está descriminado nas respectivas facturas, pelo preço global de  € 302.205,69 euros.

Não é este o contrato porém que foi chamado à acção e materializa a causa de pedir que lhe subjaz: a esta preside a responsabilidade decorrente do contrato de transporte terrestre de mercadorias, celebrado entre a referenciada vendedora/expedidora, segurada da Autora e a R  B..., segurada da Recorrente a que se aplica a Convenção CMR, assinada em Genebra em 19.05.56 e aprovada pelo DL 46235 de 18.03.65 e alterada pelo Protocolo de Emenda que foi aprovado pelo Decreto nº28/88 de 6.09.

Refere Francisco Costeira da Costa na sua obra O Contrato de Transporte de Mercadorias (pág 160/181) que existe unanimidade em afirmar a independência do contrato de transporte face às “relações subjacentes entre o carregador e o destinatário” (das mercadorias) e reconhecendo embora a complementaridade funcional destas relações com o transporte, acrescenta que se não podem permitir “uma recíproca projecção desregrada de efeitos, ao arrepio da relatividade dos contratos (artº406º,2 do CC)”.

Assim, “não pode o transportador, enquanto tal, fazer apelo à relação subjacente entre carregador e destinatário, nem estes, inversamente, têm essa possibilidade”. E, mais concretamente, quando o contrato de transporte se segue a um contrato de compra e venda: “…os incoterms dispõem sobre quem deverá realizar e pagar o transporte, mas, tratando-se, como se trata, de cláusulas de um contrato celebrado entre o vendedor (carregador) e o comprador (destinatário), não poderão sem mais vincular o transportador”.

É o caso. A cláusula CIP consta das facturas juntas aos autos que se reportam à venda das mercadorias nelas referenciadas mas não se lhe faz qualquer alusão no CMR que titula o contrato de transporte acordado entre a R Transportadora e a Sociedade expedidora. Respondendo a Recorrente apenas pelo risco de furto de parte daquelas mercadorias transportadas, no âmbito do contrato de seguro que celebrou com a R Transportadora, não lhe cabe discutir ou fazer apelo à cláusula CIP aposta em contrato de compra e venda que lhe é estranho e apenas vincula os respectivos contraentes – as sociedades expedidora e destinatária das mercadorias acima identificadas (artº406º,2 citado).

2 – Seguidamente, a Recorrente vem pretender que se clarifique se a quantia que já pagou à Recorrida por conta da indemnização deve ser abatida ao total que para esta for encontrado na liquidação em execução da sentença que há-de a ter lugar.

A resposta só pode ser positiva, como é evidente. Mas, tal como na instância recorrida, não vemos em que é que a sentença impugnada a contrarie.

Na verdade, ponderou-se aí: “…a indemnização a que a Autora tem direito está subordinada ou limitada maximamente, por força do artº. 23, nº. 3, da CMR, e, desse modo, não pode ultrapassar 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta, o qual, por sua vez, possui o limite máximo de 959,90 Kg.

         Por outro lado, dado o pedido efectuado, o qual, na pendência da acção foi reduzido, a indemnização fica ainda balizada ao montante máximo peticionado de € 14.014,94.”

E justificando-se a liquidação posterior: “deste modo, por não se ter logrado aquilatar qual o valor exacto do peso bruto da mercadoria furtada que não foi paga (sublinhado nosso) pela Seguradora Chamada (esta já liquidou o montante de € 10.553,71 euros), sendo certo que a mesma possui os dois limites antes mencionados, há que remeter para liquidação em execução de sentença esta parcela indemnizatória (art. 661, nº 2, do CPC), fixando-se o seu montante máximo na quantia de € 14.014,94 euros”.

Ora, se a liquidação posterior se tornou necessária – no que as partes estão de acordo - por se não ter logrado aquilatar o valor exacto do peso bruto da mercadoria furtada que não foi paga, esse terá de ser o valor objecto de tal liquidação que, além do mais – referimo-nos ao cálculo do citado artº23º, 3 da Convenção – supõe, como é evidente, na sua contabilização, o desconto do valor já pago pela Recorrente.

Com este enquadramento porque outro se não vislumbra na sua fundamentação, deve ser lida a parte decisória da sentença e assim a quantia a liquidar, de harmonia com o critério desta última disposição citada, não pode ser outra senão a que não foi paga pela Recorrente  a qual, se ultrapassar €14.014,94, se limitará a esta importância por ser o tecto do pedido formulado pela Autora (após a redução).

Em consequência, (não tinha) e não tem justificação o esclarecimento pretendido pela Recorrente.

 

B. O Recurso da Autora

São duas as questões nele suscitadas:

- Alteração por rectificação do valor do peso bruto da mercadoria referenciada na alínea ll) da matéria de facto acima elencada; e, subsidiariamente, a eliminação das als.mm) e nn), se aquela alteração tiver lugar

- A injustificada limitação da indemnização pelo furto das mercadorias decorrente da aplicação do citado artº23º, 3 da CMR.

1 – O tribunal “a quo”, em resposta ao quesito 17º deu como provado o seguinte:

[…]

2- Não concorda a Recorrente com a limitação decorrente do nº3 do artº23º da CMR que fixa o valor máximo da indemnização em 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto das mercadorias furtadas. E para afastar essa limitação e repor como critério da indemnização, o valor comercial de tais mercadorias, com fundamento em alguma da matéria de facto apurada relativa às circunstâncias em que ocorreu o furto, imputa ao motorista da R Transportadora actuação dolosa (dolo eventual) por tal ocorrência.

Na contra-alegação a R Seguradora impugna essa alegação, mormente porque, recaindo tal ónus sobre a A, nunca esta alegou e provou o dolo eventual.

As partes no recurso não rejeitam, antes aceitam que o feixe de relações jurídicas entre elas travadas se integra no cumprimento de um contrato de transporte internacional de mercadorias que foi objecto de regulamentação exclusiva pela CMR (Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias), acima mencionada.

De tal contrato decorre para o transportador a obrigação de entregar a mercadoria no local de destino, na mesma quantidade e estado em que a recebeu. É ele responsável por isso pela perda total ou parcial bem como pela avaria que venha a ocorrer entre o momento da entrega e carregamento da mercadoria e o da sua entrega, designadamente por actos ou omissões de agentes que utilize na sua execução (artº3º e 17º,1 da CMR).

Sobre o credor da indemnização resultante de tal perda e/ou avaria recai o ónus de as provar, uma vez que elas são elementos constitutivos de seu direito (artº342º,1 do CC e 18º,1 da CMR).

O transportador fica desobrigado daquela responsabilidade, além do mais quando a perda da mercadoria tenha ocorrido em circunstâncias que não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar, sobre ele recaindo o ónus da respectiva alegação e prova (artº17º,2 , 18º,1 da CMR).

No caso vertente, apurou-se que parte das mercadorias transportadas foram objecto de furto e está assente a responsabilidade da R Transportadora daí decorrente: ambas as RR aceitam que o furto de parte da mercadoria transportada, afinal, não integra circunstancialismo que poderia excluir a responsabilidade da primeira, ou seja, reconhecendo que não foi cumprida a primeira obrigação (de resultado) do transportador de assegurar a deslocação incólume das mercadorias desde a sua recepção até à entrega ao destinatário, em virtude de, no tocante ao furto, o transportador não ter agido com a diligência exigível que as circunstâncias supunham.

Os factos apurados que nesta matéria importa ressaltar são os seguintes:

Nessa participação ficou a constar que o furto no interior do camião da ora Ré ocorreu entre as 23:30 horas do dia 9 e as 06:30 horas do dia 10 de Janeiro de 2005, enquanto o reboque e o respectivo veículo tractor, com a matrícula ..., se encontravam estacionados na Estação de Serviço “Ola Ona”, sita ao Km 365 da N-I, no sentido Madrid-Irun (cfr. Documento n.º 5, acompanhado da respectiva tradução para português e cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido).

De acordo com a informação prestada à polícia espanhola pelo motorista do camião, Sr. G..., o mesmo estacionou esse veículo na estação de serviço “OLA ONA”, sita na N-I, ao Km 365, na direcção Madrid/Irún, para pernoitar.

Local onde ocorreu o assalto, entre as 23:30 horas do dia 9 e as 06:30 horas do 10 de Janeiro de 2005, tendo a participação sido efectuada pelas 08:06 horas, desse mesmo dia.

O motorista declarou à polícia espanhola que o roubo ocorreu enquanto dormia na cabine do camião e que o ladrão ou ladrões abriram a porta traseira desse veículo e forçaram o cadeado, tendo sido retiradas quatro (4) paletes completas, duas (2) meias paletes e uma caixa.

O furto…ocorreu numa estação de serviço de Espanha, enquanto o motorista dormia.

 No local do furto encontravam-se estacionados outros veículos pesados de transportes de mercadorias, cujos condutores não se aperceberam do ocorrido.

 Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar acima referidas, o veículo em causa possuía fecho e aloquete.

 E o referido equipamento estava devidamente colocado e fechado.

O local onde o veículo pernoitou era uma estação de serviço bem iluminada, sendo fiscalizada, mediante passagem ocasional durante o dia ou/e a noite, pela polícia local.

 Essa estação é ainda bastante frequentada por camiões e veículos ligeiros.

Na sentença sob recurso entendeu-se que, não tendo a R elidido a presunção que para o transportador deriva do já citado artº17º da CMR, ela agiu com mera culpa.

Já a Recorrente defende que nessa mesma actuação ela terá agido com dolo eventual, estribando-se no dispositivo do nº1 do artº 29º da CMR que prescreve: o transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.

A repercussão desta qualificação na CMR, como já se insinuou acima, goza de relevância porquanto, no caso de mera culpa, a indemnização tem por limite, aquele que já se apontou acima, previsto no seu artº23º,3 e em caso de dolo, há lugar à reparação integral dos danos.

Na nossa lei, como se sabe, a culpa é pressuposto da responsabilidade civil – artº483º do CC. Modalidades da culpa são duas: a mera culpa e o dolo.

Segundo Almeida Costa (Obrigações, 582/3, 11º ed ), no dolo directo, “o autor do facto ilícito age com o intuito de atingir o resultado ilícito de sua conduta que de antemão representou e quis”.

O dolo indirecto ou necessário ocorre “quando o agente não tem intenção de causar o resultado ilícito, mas bem sabe que este constituirá uma consequência necessária do efeito imediato que a sua conduta visa”

No dolo eventual “o agente representa o resultado ilícito, mas o dano surge apenas como consequência meramente possível – e não necessária – da sua conduta, actuando ele sem confiar que o mesmo não se produza”

Revertendo ao caso, importa desde já dizer que a prova do dolo pertence a quem o alega e em bom rigor, não se pode dizer que a Recorrente tenha alegado nos articulados de forma precisa e suficiente materialidade integradora dos elementos que o constituem.

De todo o modo, os parcos factos apurados revelam que o motorista do camião, estacionou esse veículo na estação de serviço “OLA ONA”, sita na N-I, ao Km 365, na direcção Madrid/Irún, para pernoitar; nesse local, encontravam-se estacionados outros veículos pesados de transportes de mercadorias, cujos condutores não se aperceberam do ocorrido; tratava-se de uma estação de serviço bem iluminada, sendo fiscalizada, mediante passagem ocasional durante o dia ou/e a noite, pela polícia local, bastante frequentada por camiões e veículos ligeiros; o veículo em causa possuía fecho e aloquete e o referido equipamento estava devidamente colocado e fechado”.

É manifesto que nenhuma destas circunstâncias ou qualquer sua composição comprova ou integra o alegado dolo eventual que a Recorrente fundamentou com o acórdão da Relação de Lisboa de 15.05.2001 (cfr www.dgsi, pº 0014867, relator Ponce Leão) cujo teor, no entanto, afasta aquela modalidade dolosa, remetendo, ao invés, para a negligência, tal como se fez na sentença recorrida.

O que aquele circunstancialismo de que o motorista do camião se procurou rodear para pernoitar, parece sugerir é que não foi deixada ao acaso a segurança do veículo e da respectiva carga, antes se traduzindo em medidas e cuidados que, objectivamente, diminuem a probabilidade de ocorrências do tipo daquela que teve lugar.

Portanto, em sentido contrário às presunções de dolo eventual que a Recorrente daí retirou. Na verdade, o que tais medidas e cuidados parecem recusar é que possam ser lidas como manifestação de que o agente procedesse com a aceitação antecipada da violação dos deveres a que estava obrigado (na conhecida fórmula positiva de Frank) ou sem confiar que o resultado ilícito que teve lugar se não produzisse. O que bastará para desacreditar a tese da Recorrente.

Donde se conclui que se não vê razão para alterar o juízo sobre a culpa que a sentença retirou da análise e integração dos factos que foram apurados.

III.

Em face do todo exposto, decidem:

a. Rectificar as als.ll), mm) e nn) dos factos dado como provados na sentença impugnada, no tocante ao peso bruto das mercadorias que se altera, respectivamente, para 876,825 kg, 213,2 Kg e 108,28 kg.;

b. No mais, julgar improcedentes as apelações, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelas Recorrentes, sendo as da Autora reduzidas a metade.


MARTINS DE SOUSA (Relator)
REGINA ROSA
ARTUR DIAS