Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
971/08.9TBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: CASO JULGADO
ACÇÃO EXECUTIVA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
ACÇÃO DECLARATIVA
DESCONTO BANCÁRIO
LETRA
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 02/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTS.840, 1142, 1, 47, 53 LULL, 46, 96, 493, 494, 497, 498, 671, 673, 712 Nº4 CPC
Sumário: 1 - O alcance do caso julgado formado pela sentença que julgou procedente a oposição à execução deduzida pelo sacador duma letra, com fundamento na respectiva falta de protesto, não impede a apreciação em acção declarativa da relação jurídica decorrente do contrato de desconto bancário daquela mesma letra.

2. Todavia, mostrando-se provado que o Banco ora recorrente instaurou primeiramente acção executiva contra ambos os obrigados cambiários - sacador e aceitante -, na acção declarativa de condenação subsequente instaurada contra o sacador com fundamento no contrato de desconto bancário, incumbe-lhe alegar e provar que não obteve naquela, de qualquer um dos obrigados cambiários, o pagamento do quantitativo que ali havia pretendido cobrar e que agora peticiona nos presentes autos.

3 - Tal alegação e prova constitui condição sine qua non de exigibilidade, para que seja possível através da presente acção a condenação do recorrido no cumprimento do invocado contrato de desconto bancário.

4 - Tendo o Banco Autor alegado tais factos essenciais para a decisão da causa, cujo ónus da prova sobre si impende, e que não foram levados à base instrutória, impõe-se oficiosamente determinar nessa medida a ampliação da matéria de facto com vista a determinar se e em que medida in casu se verifica tal condição.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. Banco A..., SA, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário contra J (…), pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 20.023,89 €, respeitante ao capital em dívida, aos juros de mora vencidos até à data da entrada da petição inicial e, bem assim, os juros moratórios vincendos, calculados à taxa legal de 4 %, até ao dia do efectivo e integral reembolso do capital.

Para o efeito alegou, em síntese, que:

No âmbito das relações comerciais existentes entre as partes, o réu solicitou ao banco autor o desconto bancário de uma letra de câmbio por ele sacada e com aceite de Casa (…), Ld.ª, com vencimento em 10.04.2005; o Banco autor colocou à disposição do réu a importância correspondente ao valor inscrito no título levado a desconto - 17.500,00 € -, creditando-lhe em 18.01.2005, a conta aberta em seu nome e da sua mulher com tal quantia que foi utilizada pelo réu; chegada a data do vencimento, e apesar das várias diligências efectuadas pelo autor, nem o réu, nem a aceitante da letra procederam ao pagamento do capital.

2. O réu contestou, invocando a excepção de caso julgado e litispendência relativamente à execução instaurada pelo banco com base na mesma letra, à qual o réu deduziu oposição que já foi julgada procedente; reconhecendo a invocada operação de desconto da letra, mas referindo que não pagou nem tinha que pagar a quantia aposta na letra, uma vez que a quantia não se destinou a enriquecer o seu património; que não solicitou qualquer financiamento ao banco, nem procedeu ao levantamento e à utilização da aludida quantia de 17.500,00 €; que naquela época executava a pedido da sociedade aceitante da letra diversos trabalhos de decoração; que a letra a que se reporta a petição inicial deriva da reforma de uma outra emitida em 30.09.2004 com o valor de 15.300,00 €, sacada pelo réu a solicitação da sócia gerente daquela sociedade que lhe pediu que sacasse a esta letras de favor para regularizar as dívidas com o banco; foi o banco que no mesmo dia debitou da conta do réu, através da operação designada por “devolução de efeito” aquela quantia de 15.300,00 €; a referida reforma serviu também para a Casa (...) proceder ao pagamento ao réu de 1.268,89 € em relação a trabalhos prestados aos clientes daquela sociedade que ainda não se encontravam pagos; toda a operação fora negociada entre a aceitante e o banco autor, em proveito destes e sem benefício para o réu, pois sempre se trataram de saques de favor; não existe qualquer relação subjacente provocada pelo demandado que justifique a emissão da letra que possa oferecer respaldo à pretensão da demandante em relação ao réu contestante.

3. O Banco autor respondeu à contestação, pugnando pela improcedência das excepções invocadas.

4. Foi elaborado despacho saneador (fls. 105 e ss.), onde foi fixada a matéria assente e a base instrutória, o qual foi objecto de reclamação e pedido de nulidade ou reforma, tendo esta sido desatendida e aquela julgada parcialmente procedente, com aditamento de novas alíneas à matéria de facto assente, tudo nos termos do despacho de fls. 131 a 135.

5. Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, tendo o tribunal respondido aos artigos da base instrutória conforme despacho constante de fls. 198 e ss dos autos, o qual não mereceu qualquer reclamação.

            6. Seguidamente foi proferida sentença onde se decidiu julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condenar o réu J (…) a pagar à autora Banco A (...) , SA, a quantia de 2.200,00 (dois mil e duzentos euros), acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa de 4 % desde 10.04.2005, até integral pagamento.

           

            7. Inconformado com esta decisão o Autor interpôs o presente recurso de apelação que finalizou com as seguintes conclusões:

«(…)

9. Dispensados os vistos, cumpre decidir.


*****

II. O objecto do recurso[1].

O presente recurso de apelação e ampliação do respectivo objecto, suscitam, pela ordem lógica de apreciação, as questões essenciais de saber se:

- o Banco Autor podia intentar esta acção com fundamento no contrato de desconto da mesma letra de câmbio que constitui o título executivo da execução que havia instaurado contra o ora Recorrido e a Aceitante;

- o caso julgado formado pela decisão da oposição à execução deduzida pelo ora réu na execução contra si instaurada pelo autor com base na letra de câmbio, determina a sua absolvição do pedido na presente acção;

- em caso negativo, se o réu deve ser condenado no valor global do desconto bancário, ou no valor declarado na sentença recorrida.


*****

III – Fundamentos

III.1. – De facto:

Na decisão recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:

1) O autor é um Banco comercial que se dedica às operações comerciais de crédito e o réu, em 2005, executava as funções de decoração de casas particulares de forma remunerada, por conta própria. (C)

2) O ora Réu celebrou com o Banco Autor um contrato de abertura de conta. (E)

3) No âmbito desse Contrato, entre o Banco Autor e o ora Réu foram efectuadas, ao longo do tempo, diversas operações de comércio bancário, as quais se reflectiram na referida Conta de depósitos à ordem aberta para o efeito, operações essas traduzidas em operações de crédito e débito. (F)

4) As operações comerciais efectuadas eram fruto de uma relação de confiança existente entre as partes, sendo certo que a conta poderia, a todo o momento, evidenciar um saldo positivo ou negativo. (G)

5) O réu fora naquela época convidado a estabelecer relações jurídicas provenientes da sua actividade na efectivação de decoração para clientes da sociedade comercial Casa (…) Lda., ao que acedeu (resposta quesito 2)

6) Os trabalhos que o réu executava a pedido desta sociedade directamente aos respectivos clientes foram normalmente pagos em dinheiro ou através de cheques (resposta ao quesito 3).

7) Através da sua sócia gerente (…), aquela sociedade mantinha relações comerciais regulares com o autor (resposta quesito 4).

8) No âmbito de relações comerciais existentes, o R. solicitou ao Banco Autor o desconto bancário de uma letra de câmbio por ele sacada e aceite de Casa (…), Lda., com vencimento em 10.04.2005. (A)

9) A operação de financiamento solicitada mereceu a aprovação do Banco que, em consequência da aprovação da citada operação de desconto, colocou à disposição daquele a importância correspondente ao valor inscrito no título levado a desconto, creditando-lhe, em 18.01.05, a conta de Depósitos à Ordem Aberta sob o n.º 50462020, aberta em seu nome e esposa na Sucursal do Autor sita na (...) em Coimbra. (B)

10) O A. debitou na conta do réu, através de operação designada por “Devolução de Efeito”, a quantia de € 15 300,00. (D)

11) A A. instaurou acção executiva para pagamento de quantia certa contra o ora réu e a sociedade comercial “Casa (…) Lda”, que correu termos na 2ª Secção da Vara Mista de Coimbra sob o nº 39/06.2TBCBR, tendo apresentado como título executivo a letra junta aos autos como documento nº 2 (H).

12) O ora réu deduziu oposição à execução, no âmbito da qual, foi proferida sentença, datada de 04/04/2006, transitada em julgado, pela qual se decidiu: “Perante o exposto, julga-se a oposição procedente e absolve-se do pedido exequendo J (…), com a consequente extinção da execução quanto a ele”. (I).

Dos documentos juntos aos autos resulta ainda que[2]:

13) A referida oposição à execução teve por fundamento a invocação pelo ora réu da falta de protesto da letra que, atenta a sua qualidade de sacador na cadeia de obrigados cambiários, determinaria a extinção da possibilidade de o accionar; e o facto de a letra dada à execução ser uma letra de favor, o que era do conhecimento do banco exequente e conduziria à procedência da oposição.

14) Na sentença proferida na oposição à execução, a mesma foi julgada procedente com fundamento na verificação da excepção peremptória decorrente da falta de protesto da letra, tendo-se julgado prejudicada a apreciação com base na invocação de se tratar de uma letra de favor.

15) O preenchimento da letra dada à execução referida em 11) foi efectuado nos seguintes termos:

No local destinado ao sacador consta a identificação e morada do ora réu e, no local destinado ao nome e morada do sacado consta “Casa (…), Lda. (...) Coimbra, sendo que no lado esquerdo da letra, transversalmente na mesma consta abaixo de “aceite” o carimbo da empresa, com a indicação de “Gerência” e assinatura manuscrita.


*****

III.2. – O mérito do recurso

Atento o teor das contra-alegações do Réu/Recorrido, através das quais o mesmo procedeu à ampliação do âmbito do recurso nos termos consentidos pelo artigo 684.º-A do Código de Processo Civil[3], e considerando a natural ordem lógica da respectiva apreciação, a primeira questão que importa dilucidar é a de saber se o Banco Autor podia intentar esta acção com fundamento no contrato de desconto da mesma letra de câmbio que constitui o título executivo da execução que havia instaurado contra o ora Recorrido e a sociedade comercial Casa (…), Ld.ª, a qual se entrecruza com a de saber se o caso julgado formado pela sentença proferida no processo de oposição à execução abrange ou não os fundamentos da presente acção.

Alegou para o efeito o Recorrido que «veio na rubrica “Por Excepção”, nos artigos 2º a 9º da sua contestação arguir factos que demonstrados que fossem obstavam à apreciação do mérito da acção, ou pelo menos impediam o direito invocado pelo Autor Banco, o que julga ter demonstrado.

E de facto, como os autos demonstram o Banco portador do título executivo, optou, como lhe permitia a lei, em instaurar a acção executiva contra o sacador e a aceitante ou principal pagadora, nos autos a que corresponde o Processo nº 39/06.2TBCBR, da 2ª Secção da Vara Mista de Coimbra, onde o sacador veio, defender-se por petição de oposição e o processo correu os seus termos no Processo nº 39/06.2TBCBR-A.

E, nestes autos, como se pode ver pela sentença de 04/04/2006, na parte final, ficou plasmado o que pedimos licença para transcrever:

«4. Decisão

Não se verificam sinais de litigância de má fé.

Perante o exposto, julga-se a oposição procedente e absolve-se do pedido o exequente J (…) com a consequente extinção da execução quanto a ele.» Em virtude desta decisão, que transitou em julgado, a execução extinguiu-se quanto ao ora recorrido, mas não deixou de poder continuar a correr os seus termos em relação à também executada (Casa (…), Lda.), para a obrigar a pagar, pois era a principal obrigada, desconhecendo-se se terá terminado e se assim aconteceu com o pagamento da quantia pedida, que era de € 17.500,00.

Não obstante esta realidade o certo é que o recorrente Banco, Autor naquela execução, veio posteriormente instaurar esta acção com base na relação subjacente, tendo por finalidade cobrar a mesma dívida, que se encontrava plasmada numa letra de câmbio, que aliás juntou em cópia, que não deixa de ser a mesma e, por tal tem a mesma causa de pedir da anterior.

E compulsando a petição do recorrente Banco, que deu início aos presentes autos, verifica-se que a presente acção foi instaurada depois daquela execução, sem qualquer referência à Acção Executiva (Processo nº 39/06.2TBCBR), e sem sequer alegar as razões pelas quais veio instaurar uma nova acção, apenas diferente formalmente.

E na ordem jurídica que nos rege de facto o portador de um título cambiário pode optar por demandar o responsável pelo pagamento, através de relação subjacente, mas se tiver já optado por cobrar a dívida através de uma acção executiva, só o pode fazer, alegando razões que pudessem justificar a nova opção, como impõe, além do mais, a parte final do nº 1 do artigo 519º do Cód. Civil, quando proclama ”fica inibido de proceder judicialmente contra os outros pelo que ao primeiro tenha exigido salvo se houver razão atendível como a insolvência ou risco de insolvência do demandado, ou dificuldade por outra causa, em obter dele a pretensão”.

Aliás, esta é a “tese” do STJ, como se pode ver pelo Acórdão de 06/07/2002[4], onde se julgou uma questão semelhante, o qual já se encontra junto aos autos pelo recorrido e aqui se dá por reproduzido”

Por outro lado estava o recorrente Banco obrigado a conservar e devolver o título ao recorrido em termos válidos, uma vez que este tinha direito de regresso contra a Casa (…) Lda, por sub-rogação, em tudo aquilo que viesse a pagar por via daquele título e podia usar o mesmo para efectuar este seu direito, o qual encontra a sua consagração no artigo 653º do Cód. Civil

E mesmo que assim não se entendesse, não podia deixar de considerar que face àquele julgamento do recorrido na oposição que efectuou na execução, da qual foi arredado, não podia deixar de perante os presentes autos existir caso julgado, ou pelo menos litispendência.

A execução foi instaurada com base na mesma letra que serviu de base a esta acção sumária, e embora o ora recorrido tenha sido absolvido da execução, e esta se tenha dado por extinta em relação a este, o facto é que, a execução não se extinguiu na totalidade e como tal ficou a correr os seus termos, até ao efectivo pagamento por parte da aceitante e principal devedora.

E o facto de aquela acção ser executiva e esta ser uma acção declarativa sumária não deixa de existir caso julgado ou litispendência, como aliás o entendeu STJ, por Acórdão de 06/06/2002, quando em súmula proclamou o que pedimos licença para transcrever:

«I – A excepção de litispendência pressupõe a repetição da causa, a qual se verifica quando são idênticos, nas suas acções, os sujeitos, o pedido, e a causa de pedir, coados estes elementos pelo objectivo de se evitar que o tribunal ser colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior:

II – Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

III – Para haver identidade de pedidos, tem que ser o mesmo o direito subjectivo, cujo reconhecimento e ou protecção se pede, independentemente da sua expressão quantitativa.

IV – A excepção de litispendência visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie a decisão posterior o sentido da decisão anterior.

V – Pode haver litispendência mesmo que as acções tenham processo diferente ou ainda que uma seja declarativa e a outra seja executiva.

VI – A natureza dos procedimentos cautelares não é avessa às figuras das excepções de litispendência ou do caso julgado, nada obstando a que qualquer dessas excepções se coloque entre dois processos de natureza cautelar.» (http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/)

Assim por todas estas razões, a Mm. Juiz não podia chegar à análise de fundo da questão, por não lhe terem oferecido as razões que o pudessem permitir e por isso, ao recorrente sibi imputet”».

Vejamos, pois, se lhe assiste razão.

Conforme decorre da matéria de facto assente, o autor é um Banco comercial que se dedica às operações comerciais de crédito e o ora Réu celebrou com o Banco Autor um contrato de abertura de conta, no âmbito do qual entre ambas as partes foram efectuadas, ao longo do tempo, diversas operações de comércio bancário, as quais se reflectiram na referida conta de depósitos à ordem aberta para o efeito, operações essas traduzidas em operações de crédito e débito, sendo que as operações comerciais efectuadas eram fruto de uma relação de confiança existente entre as partes, sendo certo que a conta poderia, a todo o momento, evidenciar um saldo positivo ou negativo.

Ora, no âmbito das relações comerciais existentes entre as partes, o R. solicitou ao Banco Autor o desconto bancário de uma letra de câmbio por ele sacada e com aceite de Casa (…), Lda., com vencimento em 10.04.2005, sendo que a operação de financiamento solicitada mereceu a aprovação do Banco que, em consequência da aprovação da citada operação de desconto, colocou à disposição daquele a importância correspondente ao valor inscrito no título levado a desconto, creditando-lhe, em 18.01.05, a conta de Depósitos à Ordem Aberta sob o n.º 50462020, aberta em seu nome e esposa na Sucursal do Autor sita na (...) em Coimbra.

Mais se provou que o A. instaurou acção executiva para pagamento de quantia certa contra o ora réu e a sociedade comercial “Casa (…) Lda”, que correu termos na 2ª Secção da Vara Mista de Coimbra sob o nº 39/06.2TBCBR, tendo apresentado como título executivo a letra cuja cópia se mostra junta aos autos como documento n.º 2; e que o ora réu deduziu oposição à execução, no âmbito da qual, foi proferida sentença, datada de 04/04/2006, transitada em julgado, pela qual se decidiu julgar a oposição procedente e absolver do pedido exequendo J (…), com a consequente extinção da execução quanto a ele.

Portanto, da materialidade assente não subsistem quaisquer dúvidas que o Banco Autor demandou o ora Réu, em ambos os casos, com vista ao pagamento da quantia titulada pela letra. Na execução, por via da sua qualidade de obrigado cambiário e, nesta acção, com fundamento no respectivo desconto bancário, ou seja, na existência duma operação de financiamento solicitada pelo réu ao pedir o desconto da letra, e prestada pelo autor quando lhe adiantou a quantia titulada pela mesma.

A causa de pedir na presente acção é, consequentemente, o contrato de desconto bancário celebrado entre os ora Recorrente e Recorrido.

Ora, o contrato de desconto bancário é uma modalidade de financiamento em que o Banco adianta o valor de uma letra sacada pelo seu cliente sobre alguém a quem aceitou uma letra a prazo certo, permitindo por esta via que o cliente não tenha que esperar por tal prazo para obter o montante titulado pela letra, recebendo antecipadamente o valor do seu crédito, “descontado” do valor da comissão cobrada pelo Banco e do juro correspondente ao tempo que medeia entre a colocação à disposição do cliente da quantia adiantada pelo Banco e a data do vencimento da letra[5].

Assim, para que o desconto possa ser executado, a letra é endossada pelo cliente ao Banco “descontador” que por esta operação assume a qualidade de portador endossatário, e, chegada a data do vencimento da letra, o Banco apresenta-a a pagamento ao aceitante. Porém, caso este não efectue o pagamento devido, então o Banco debita o seu valor na conta do seu cliente “descontário”, atenta a sua qualidade de endossante, ou procede à sua cobrança judicial contra ambos ou contra qualquer um deles[6].

De facto, do ponto de vista jurídico, o desconto é um contrato misto de mútuo mercantil (artigos 1142.º do Código Civil, 2.º e 13.º do Código Comercial) e de dação pro solvendo (artigo 840.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil), tendo em conta que, de acordo com o perfil económico do negócio, o Banco descontador, ao adiantar (emprestar) a quantia descontada, fica investido, por causa do endosso, na posse legítima de um título de crédito sobre terceiro, sem perder, porém, o direito de acção sobre o próprio descontário[7].

Por isso, no caso dos autos, não tendo sido paga a letra na data do respectivo vencimento, o Banco ora Autor decidiu instaurar execução contra o ora réu, na qualidade de sacador, e Casa (...) – (...) , Ld.ª, sua aceitante, tendo como título executivo a referida letra de câmbio que cumpre os requisitos de conteúdo assinalados no artigo 1.º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças[8]. O mesmo é dizer que o Banco Autor pretendeu cobrar o valor do financiamento de qualquer um dos obrigados cambiários, usando para o efeito a acção cambiária, a relação cartular.

De facto, a letra integra-se na categoria dos títulos de crédito, sendo um documento com uma função constitutiva, necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado. Tem, portanto, uma posição característica e única em face do direito a que se refere: dir-se-á que é a titularidade do documento que decide da titularidade do direito nele mencionado; o documento é o principal, sendo o direito seu acessório. Por isso se fala da incorporação da obrigação no título e se designa o direito referido no título como “direito cartular”[9].

O direito cartular pressupõe uma relação jurídica prévia – a relação subjacente ou fundamental - e tem normalmente o mesmo conteúdo económico de um dos direitos que decorrem dessa relação jurídica.

Porém, “o título de crédito em confronto com a relação fundamental apresenta-se com uma feição unilateral: refere-se exclusivamente aos direitos de uma só das partes. A razão de ser desta feição unilateral alcança-se facilmente se tivermos presente que o título de crédito é um instrumento para a circulação de direitos; para a circulação do direito de uma das partes num contrato bilateral, é esse direito considerado isoladamente dos direitos da parte contrária”[10].

Por isso se afirma que, para além da referida característica da incorporação, os títulos de crédito se revestem das características da literalidade, autonomia e abstracção.

De facto, o direito incorporado no título é um direito literal, porquanto a letra do documento traduz o direito que o mesmo incorpora, pela mesma se determinando o conteúdo e extensão do direito que contém. “Pelo conceito de literalidade põe-se em relevo que a existência, validade e persistência da obrigação cambiária não podem ser contestadas com o auxílio de elementos estranhos ao título; e que o conteúdo, extensão e modalidades da obrigação cartular são os que a declaração objectivamente defina e revele”[11].

É ainda um direito autónomo e abstracto, significando isso que o possuidor do título adquire o direito que este anuncia de um modo originário, não lhe sendo oponíveis os vícios que porventura existissem numa titularidade anterior; a relação subjacente, a causa ou relação fundamental que em regra é concomitante da convenção executiva, é separada do negócio cambiário porquanto decorre não dele próprio mas da convenção extra-cartular. Daí que, estando a causa fora da obrigação cambiária (abstracção), esta seja vinculante para os obrigados cambiários independentemente dos possíveis vícios da sua causa e por isso se tornem inoponíveis ao portador mediato e de boa fé as excepções causais: falta, nulidade ou ilicitude da relação fundamental, exceptio inadimpleti contractus, etc., porque decorrem de uma convenção extra-cartular, exterior ao negócio cambiário[12]. Só assim não acontece quando estamos, como é o caso, no domínio das relações imediatas, situação que melhor apreciaremos infra.

Serve o precedente enquadramento para definir o terreno em que nos movemos e afirmar que a extensão e a qualidade da especial tutela de que gozam os títulos de crédito no confronto com a função normal de outro documento, assenta no propósito legal de os tornar instrumentos adequados a facilitar e incentivar a circulação dos próprios créditos, tutelando desta forma os interesses de terceiros de boa fé que, por via da natural circulação dos mesmos, os venham a adquirir.

Ora, a letra é um título de crédito formal com as características previstas no referido artigo 1.º, da LULL. Trata-se de um título à ordem, sujeito às formalidades ínsitas no referido preceito legal, que enuncia uma ordem de pagamento de determinada importância em certa data[13]. “A obrigação inicial é a do emitente do título – o sacador, e surge com a sua declaração cambiária na forma de uma ordem de pagamento. O sacador dá uma ordem de pagamento, e por este simples facto promete ao tomador (e aos sucessivos possuidores da letra) que fará com que o sacado assuma a responsabilidade cambiária do pagamento (aceite) e pague a letra, e por isso obriga-se a pagá-la ele, sacador, se o sacado a não aceitar, ou se, aceitando-a, não a saldar. A obrigação do sacador, embora seja a inicial, é, pois, uma simples obrigação de garantia”[14].

Volvendo ao caso dos autos, e conforme decorre da factualidade assente, no local destinado ao sacador consta a identificação e morada do ora réu e, no local destinado ao nome e morada do sacado consta “Casa (…) Lda. (...) Coimbra, sendo que no lado esquerdo da letra, transversalmente na mesma consta abaixo de “aceite” o carimbo da empresa, com a indicação de “Gerência” e assinatura manuscrita.

Portanto, da letra decorre que a referida sociedade comercial assumiu a responsabilidade cambiária do pagamento da quantia pela mesma titulada, e o ora réu assumiu a obrigação de garantir tal pagamento, caso aquela o não efectuasse pontualmente.

Não tendo o pagamento sido efectuado na data do respectivo vencimento, quer pela aceitante quer pelo sacador, que meios poderia então o Banco autor usar para obter o cumprimento da obrigação?

A resposta é simples: o legítimo portador da letra podia optar pela acção cambiária ou pela acção de condenação, porquanto o contrato de desconto de uma letra de câmbio é um contrato autónomo e independente da relação cambiária que o título encerra. Assim, o titular do direito, podia usar uma ou outra via para obter o pagamento da quantia que não lhe foi paga.

Ora, como vimos, o Banco autor intentou a acção cambiária contra o sacador e a aceitante, opção que lhe está legalmente conferida porquanto, sendo a letra título executivo (artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC) não precisava de recorrer à acção de condenação podendo desde logo valer-se da acção executiva, podendo nesta sede escolher de entre os intervenientes na cadeia cambiária qual lhe convinha accionar, fazendo-o neste caso contra ambos os obrigados cambiários cuja responsabilidade é solidária (artigo 47.º, § 1.º e 2.º, da LULL).

Porém, estando o sacador no âmbito das relações imediatas – isto é, no âmbito das relações nas quais os sujeitos cambiários são concomitantemente sujeitos da convenção extracartular - podia, como fez, invocar em sede de oposição todos os meios de defesa, inclusivamente os relevantes quanto à obrigação causal, porquanto, conforme é pacífico, as excepções pessoais são invocáveis neste domínio.

Tendo o ora Réu ali invocado, excepções com relevo na relação cambiária e na relação fundamental, a julgadora, considerando desde logo procedente a excepção peremptória referente à falta de protesto da letra dentro do prazo legal para o efeito, julgou extinta a obrigação cambiária do sacador. Efectivamente, não constando da letra a cláusula “sem despesas” ou “sem protesto”, ou qualquer outra expressão equivalente, o protesto não foi dispensado, o que significa que, decorrido o prazo para o efectuar, o portador deixa de poder exercer em acção cambiária os direitos contra o sacador e os demais obrigados, podendo apenas fazê-lo contra o aceitante e o avalista, em face do estabelecido no artigo 53.º da LULL.

No entanto, significa tal declaração de extinção da obrigação cambiária que a obrigação decorrente do contrato de desconto também se mostra automaticamente extinta contra o sacador?

É evidente que não. Desde logo pelo que supra afirmámos quanto à natureza jurídica do contrato de desconto, misto de mútuo e de dação em função do cumprimento, que configura a assumpção duma obrigação comercial, diferente da obrigação cambiária.

Na verdade, a datio pro solvendo tem como característica a circunstância de não se pretender extinguir imediatamente a obrigação. Esta subsiste e só vem a extinguir-se com a satisfação do direito ao credor e na medida em que o mesmo for satisfeito[15], daí que se afirme que a dação em função do cumprimento configura, no fundo, um mandato conferido pelo devedor ao credor para liquidar a coisa ou o crédito dado pro solvendo[16].

Por isso, no caso em apreço, a extinção da obrigação decorrente do contrato de desconto bancário só aconteceria com o pagamento ou com a prova de que o demandado não estava obrigado a efectuá-lo. No caso dos autos o ora Réu havia invocado no âmbito da acção cambiária estarmos perante uma letra de favor, significando tal que o mesmo assinou a letra sem ter para com a aceitante ou o tomador qualquer responsabilidade anterior. Com tal alegação, por estarmos no domínio das relações imediatas, pretendia o sacador demonstrar que subjacente à obrigação cambiária assumida pelo favorecente não se encontrava qualquer relação jurídica fundamental, situação que não chegou a ser conhecida.

 Somos, assim, chegados à questão de saber se, o caso julgado formado pela sentença que julgou procedente a oposição à execução decidiu sobre o mérito da causa, abrangendo a causa de pedir ora em apreço – a relação jurídica decorrente do contrato de desconto bancário - e, por tal, ficasse a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos termos definidos na lei.

De facto, a propósito do alcance do caso julgado, diz-nos o artigo 673.º do CPC que a sentença constitui caso julgado nos limites e termos em que julga, e que, uma vez transitada em julgado, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro e fora do processo - artigo 671.º do CPC – se alguma das partes o requerer – artigo 96.º, n.º 2, a contrario, do CPC.

Ora, os requisitos desta invocada excepção mostram-se taxativamente estabelecidos no artigo 498.º do CPC, de acordo com o qual:

1- Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2- Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3- Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4- Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.

A invocada excepção de caso julgado é uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso [artigos 493.º n.ºs 1 e 2, 494.º al. i), e 495.º do CPC], que pressupõe, por via do disposto no artigo 497.º nºs 1 e 2 do CPC, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado, e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, ou seja, assenta “na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário”[17].

De facto, o instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. Exerce a função positiva quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões; e exerce a função negativa quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal, em decorrência da necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas[18].

Não existindo dúvidas nos autos sobre a existência de identidade entre as partes na acção executiva e na acção declarativa, importa determo-nos um pouco mais sobre a distinção entre a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado, porquanto é esta que constitui a pedra de toque na situação em apreço, onde releva essencialmente a questão relativa à determinação da causa de pedir.

Na verdade, “[a] excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido. A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade, prevista no artigo 498.º do Código de Processo Civil”[19].

Ora, no que concerne à identidade de causa de pedir, a mesma verifica-se quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico concreto, simples ou complexo, de que emerge o direito do Autor, e onde este fundamenta legalmente a sua pretensão, constituindo um elemento definidor do objecto da acção.

Por isso, “há que repelir antes do mais a ideia de que a causa petendi seja a norma de lei invocada pela parte. A acção identifica-se e individualiza-se, não pela norma abstracta da lei, mas pelos elementos de facto que converteram em concreto a vontade legal. Daí vem que a simples alteração do ponto de vista jurídico não implica alteração da causa de pedir”, porquanto “o Tribunal não conhece de puras abstracções, de meras categorias legais; conhece de factos reais, particulares e concretos e tais factos quando sejam susceptíveis de produzir efeitos jurídicos, é que constituem a causa de pedir.[20]

Donde se possa afirmar que “o caso julgado abrange todas as qualificações jurídicas do objecto apreciado, porque o que releva é a identidade da causa de pedir (isto é, dos factos com relevância jurídica) e não das qualificações que podem ser atribuídas a esse fundamento”[21].

Com efeito, “nem sempre é fácil resolver concretamente o problema da identidade das acções; quando surgirem dúvidas sobre se determinada acção é idêntica a outra anterior, o tribunal deve socorrer-se deste princípio de orientação: as acções considerar-se-ão idênticas se a decisão da segunda fizer correr ao tribunal o risco de contradizer ou reproduzir a decisão proferida na primeira”[22]. “Quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente (…) Quando vigora a autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando da acção ou proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva e à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão antecedente”[23].

Daí que, interpretar o conteúdo de uma sentença de mérito é pressuposto indispensável da determinação do âmbito do caso julgado material. Para o efeito, não basta considerar a parte decisória, cabendo tomar na devida conta a fundamentação, sendo ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado, importando apreciar o contexto, os antecedentes da sentença e outros elementos que se revelem pertinentes, e, bem assim, porque se trata de um acto formal, cumpre garantir que o sentido da decisão tem a devida tradução no texto.[24]

Analisando o caso dos autos à luz destas considerações, torna-se evidente que o alcance do caso julgado decorrente da decisão da oposição à execução não abrange a causa de pedir da presente acção.

De facto, a referida oposição à execução teve por fundamento a invocação pelo ora réu da falta de protesto da letra que, atenta a sua qualidade de sacador na cadeia de obrigados cambiários, determinaria a extinção da possibilidade de o accionar; e ainda o facto de a letra dada à execução ser uma letra de favor, o que era do conhecimento do banco exequente e conduziria à procedência da oposição. Porém, na sentença proferida na oposição à execução, a mesma foi julgada procedente com fundamento na verificação da excepção peremptória decorrente da falta de protesto da letra, tendo-se julgado, consequentemente, prejudicada a apreciação do mérito com base na invocação de se tratar de uma letra de favor.

Pelo exposto, o alcance do caso julgado emergente dos referidos autos, contém-se no domínio da apreciação da obrigação cambiária na sua vertente formal relativa às condições de exequibilidade do título quanto ao sacador, não abrangendo a discussão das questões de mérito ali suscitadas pelo ora réu quanto à relação fundamental.

Acontece que, no caso dos autos, o ora réu não foi demandado por via da obrigação cambiária mas sim por via do contrato de desconto bancário que celebrou com o Banco autor, sendo, consequentemente diferente a causa de pedir nesta e naquela acção, porquanto, como vimos, a relação cartular e a relação fundamental assentam em situações diferentes. A primeira, decorre da obrigação de garantia de pagamento da quantia aposta no título de crédito, na qualidade de obrigado cambiário, e a segunda, do adiantamento a seu favor da quantia titulada pela letra até à data em que o pagamento era devido e não foi efectuado. 

Como assim, não se verifica a invocada excepção e, por tal motivo, podiam estas - e outras eventuais questões de fundo - ser discutidas na acção declarativa de condenação instaurada pelo Banco Autor contra o ora Réu.

Na verdade, com a operação de desconto não se extingue a relação cambiária decorrente da letra, nem com esta se extingue a proveniente daquele porquanto o Banco, enquanto descontador das letras, além de credor cambiário, é também credor comum do descontário, podendo consequentemente invocar como causa de pedir na acção declarativa o empréstimo decorrente da operação de desconto, que não possa invocar por via da obrigação cambiária[25].

Efectivamente, “a coexistência das duas obrigações nem envolve absurdo nem importa prejuízo para o devedor, pois essas obrigações não lhe podem ser simultaneamente exigidas, visto que o credor, ao aceitar a dação, ficou por isso mesmo vinculado a procurar primeiro satisfazer-se mediante a cobrança do crédito que lhe foi entregue, só podendo reverter à acção ex causa depois de ter tentado, em vão, obter o cumprimento da prestação cartular”[26].

E esta é a questão essencial. Tendo o Banco Autor instaurado contra o ora Réu e a aceitante a competente acção cambiária com vista a obter o cumprimento da obrigação cartular, apenas podia instaurar a acção declarativa fundada no contrato de desconto da mesma letra, alegando e provando que não havia obtido na acção executiva instaurada contra ambos os intervenientes cambiários, o pagamento do crédito objecto do ora invocado contrato de desconto bancário.

Na verdade, “[t]al facto, constitui condição sine qua non para a exigibilidade, através da presente acção, da condenação do recorrido, no cumprimento do invocado contrato de desconto bancário”[27], situação que bem se compreende se atentarmos no carácter literal e abstracto dos títulos de crédito, não fazendo sentido que o credor possa receber do aceitante a quantia titulada pela letra, e, mercê da independência das obrigações assumidas, possa também obter o pagamento da mesma quantia, por via da obrigação emergente do desconto do mesmo título solicitado pelo ali sacador.

Portanto, não estamos perante uma questão de litispendência entre o processo executivo - que está findo no que ao então executado e ora réu respeita, e, como tal, não podia agora configurar tal excepção - e o declarativo, nos termos em que a colocou o Recorrido, mas sim perante uma condição de procedibilidade indispensável ao sucesso da presente acção, razão pela qual, o ónus da sua alegação e prova impende sobre o autor.

Acontece que, no caso em apreço, o Banco Autor no artigo 4.º do petitório inicial invocou que “uma vez chegada a data de vencimento e apesar das várias diligências efectuadas pelo A. no sentido de haver o seu crédito, quer o Réu quer a aceitante, não procederam, como lhes competia, ao reembolso do capital mutuado, nem então, nem posteriormente”, concluindo no artigo 5.º da referida peça processual que “encontra-se, pois, o Banco A. desembolsado da sobredita quantia de 17.500,00€, correspondente ao valor do título de crédito descontado”.

Na sua contestação, o réu expressamente impugnou o conteúdo do plasmado no artigo 4.º da petição inicial, conforme do respectivo artigo 12.º se alcança, invocando que a acção executiva prosseguiu os seus trâmites normais contra a ali co-executada, pelo que não sabe nem tem a obrigação de saber se a autora já recebeu, no todo ou em parte a quantia ora peticionada. E o que, por ora, se apresenta como certo nestes autos, é que da matéria de facto dada como provada apenas consta que a execução foi extinta contra o ora réu e não contra a aceitante, relativamente à qual aparentemente prosseguiu, tanto assim que o documento junto nestes autos é uma mera cópia da letra que é o título executivo da acção cambiária intentada pelo ora autor. Por isso, tal alegação do autor quanto à falta de pagamento pela aceitante configura condição para a possibilidade de ver satisfeito o crédito que alega ter sobre o réu na presente acção. O mesmo é dizer que só poderá obter o pagamento dele se não o logrou obter da aceitante contra quem também havia previamente instaurado a acção cambiária, uma vez que o ora réu aceita que efectivamente ele não efectuou o pagamento.

Porém, apesar da essencialidade de tal matéria para a própria admissibilidade da presente demanda, a mesma não foi levada à base instrutória, como se impunha em face do que dispõe o artigo 511.º, n.º 1, do CPC.

Ora, nos termos do artigo 712.º, n .º 4, 1.ª parte, do CPC, pode a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida em 1.ª instância quando considere indispensável a ampliação desta, como acontece no caso em apreço, e que impõe que tal se determine por ser indispensável a uma correcta apreciação e decisão do caso sub judice.

A repetição do julgamento, porém, apenas se destina à apreciação dos factos atrás referidos com interesse para a decisão, invocados pela autora quanto à aceitante no artigo 4.º da petição inicial, mantendo-se quanto ao demais a resposta à matéria de facto nos termos já decididos e que não foram alvo de qualquer impugnação das partes, não se antolhando também que da ampliação ora determinada possa resultar qualquer contradição com as respostas já proferidas nos termos e a que vier a ser dada à matéria resultante da ordenada ampliação, nos moldes em que vem prevenida no citado preceito legal.

Em face do exposto, fica prejudicado, por ora, o conhecimento das questões suscitadas pelo Banco Recorrente no presente recurso de apelação.


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III.3. Síntese conclusiva:

I - O alcance do caso julgado formado pela sentença que julgou procedente a oposição à execução deduzida pelo sacador duma letra, com fundamento na respectiva falta de protesto, não impede a apreciação em acção declarativa da relação jurídica decorrente do contrato de desconto bancário daquela mesma letra.

II - Todavia, mostrando-se provado que o Banco ora recorrente instaurou primeiramente acção executiva contra ambos os obrigados cambiários - sacador e aceitante -, na acção declarativa de condenação subsequente instaurada contra o sacador com fundamento no contrato de desconto bancário, incumbe-lhe alegar e provar que não obteve naquela, de qualquer um dos obrigados cambiários, o pagamento do quantitativo que ali havia pretendido cobrar e que agora peticiona nos presentes autos.

III - Tal alegação e prova constitui condição sine qua non de exigibilidade, para que seja possível através da presente acção a condenação do recorrido no cumprimento do invocado contrato de desconto bancário.

IV - Tendo o Banco Autor alegado tais factos essenciais para a decisão da causa, cujo ónus da prova sobre si impende, e que não foram levados à base instrutória, impõe-se oficiosamente determinar nessa medida a ampliação da matéria de facto com vista a determinar se e em que medida in casu se verifica tal condição.


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V - Decisão

Pelos fundamentos expostos, acorda-se em anular a decisão recorrida, ordenando-se a ampliação da base instrutória com os factos controvertidos referidos no artigo 4.º da petição inicial quanto à aceitante, e a subsequente tramitação processual dali decorrente.

      Custas pela parte vencida a final.


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Albertina Pedroso ( Relatora )

Virgílio Mateus

Carvalho Martins


[1] Com base nas disposições conjugadas dos artigos 660.º, 661.º, 664.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, e 713.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
[2] Factos assentes por virtude dos documentos juntos de fls. 34 a 43, e 201 a 214 verso dos autos e que, sendo relevantes para as questões objecto do presente recurso, devem ser aditados nos termos do disposto no artigo 659.º, n .º 3, do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 713.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] A data indicada enferma de manifesto lapso porquanto o Recorrido refere-se ao acórdão que juntou aos autos e faz fls. 116 a 124 dos mesmos, do qual decorre que se mostra datado em 6 de Julho de 2004.
[5] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 16-06-2009, Revista n.º 5108/06.6TBMTS-A.S1 - 6.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[6] Cfr. neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, in Direito Comercial, Vol. I, Almedina 2011, págs. 224 e 225 e Ac. STJ de 23-09-1999, Revista n.º 535/99 - 7.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[7] Cfr. Ac. STJ de 06-05-1999, Revista n.º 354/99 - 2.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[8] Doravante abreviadamente designada LULL, resultante das Convenções de Genebra de 7 de Junho de 1930, aprovadas pelo Decreto n.º 23721, de 29 de Março de 1934 e publicadas em 21 de Junho, as quais estão em vigor como direito interno português desde 8 de Setembro do mesmo ano, conforme declarado no Decreto 26556, de 30 de Abril de 1936, publicado na sequência de dúvidas que então se suscitaram sobre a respectiva vigência.
[9] Cfr. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, vol. III, Universidade de Coimbra, 1966, págs. 3 a 5, 38 e 39.
[10] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 8.
[11] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 40.
[12] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, págs. 47, 48 e 65.
[13] Cfr. Abel Delgado, in Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, Anotada, 6.ª Edição, Livraria Petrony, Lisboa 1990, pág. 17.
[14] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 20.
[15] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra 1986, pág. 127.
[16] Cfr. Vaz Serra, in Dação em função do cumprimento e dação em cumprimento, n.º 1, Bol. n.º 39.
[17] Cfr. Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 307.
[18] Cfr. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol III, págs. 93 e 94.
[19] Cfr. Ac. deste TRC, de 28-09-2010, disponível em www.dgsi.pt, e Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, páginas 60 e 61.
[20] Cfr, Alberto dos Reis, ob. cit., págs. 121 e 124.
[21] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, pág. 576.
[22] Cfr. Alberto dos Reis, ob. cit. pág, 95.
[23] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ n.º 325, págs. 49 e ss.
[24] Cfr. Ac. STJ, de 26-04-2012, disponível em www.dgsi.pt.
[25] Cfr. Ac. STJ de 24-01-1984, in BMJ 333, pág. 485.
[26] Cfr. Ac. STJ de 06-07-2004, junto aos autos e com sumário disponível em www.stj.pt, citando Fernando Olavo, in Desconto Bancário, págs. 242 e 254, e o Pinto Furtado, in Obrigação Cartular e Desconto Bancário, pág. 173.
[27] Cfr. citado Acórdão do STJ, e sumário disponível no indicado sítio.