Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
995/12.1TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: CRIME PARTICULAR
CRIME SEMI-PÚBLICO
QUEIXA
INQUÉRITO
ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 04/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA LOCAL CRIMINAL - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 113.º DO CP; ARTS. 48.º, 49.º, 50.º E 283.º, DO CPP
Sumário: I - Os factos, objecto de queixa, delimitam, no domínio de crimes particulares e semi-públicos, a amplitude da investigação em sede de inquérito e, a final, os termos da própria acusação.
II - Não se exige, contudo, que a descrição da factualidade vertida nas duas peças processuais referidas seja absolutamente coincidente.
Decisão Texto Integral:

Acordam, os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1. A... , com sinais nos autos, foi julgado e condenado em primeira instância por sentença proferida em 01 de Abril de 2014, como autor material dois crimes de difamação simples, previstos e puníveis pelo art. 180º, nº 1, do Código Penal, nas penas de 120 e 100 dias de multa, à taxa diária de €10,00.

Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 170 dias de multa, à taxa diária de €10,00.

Mais foi condenado a pagar à assistente a quantia de 2 000,00€, a título de danos não patrimoniais.

2 - Inconformado com esta condenação, dela recorre o Arguido, sintetizando as suas alegações, nas seguintes conclusões:

1ª – As expressões, constantes dos Factos Provados, em 2. e 3. alegadamente proferidas perante a testemunha, F..., “a assistente era uma incompetente”; “só se interessava por dinheiro e por tirá-lo aos clientes”; “andava com outros homens enquanto andava com ele, como lhe tirava dinheiro a ele e a outros homens”, não foram denunciados e, muito menos, como expressões proferidas perante a referida testemunha.

2ª – Tratando-se de crimes particulares a queixa é um pressuposto do procedimento criminal;

3ª - Não podendo, assim, o recorrente por eles ser julgado e condenado;

4ª – Estão incorrectamente julgados os pontos 1. a  7. dos Factos Provados da sentença recorrida;

5ª – Tal como o ponto 8., porquanto o arguido é mestre em saneamento básico, com declarou;

6ª – Os factos 1. a 7 referidos na conclusão 4ª deveriam ter sido julgados como Não provados;

7ª – Não provados, porque o recorrente nega peremptoriamente tê-los praticado;

8ª – E porque as testemunhas não mereceram credibilidade, por não serem isentas em virtude das relações de dependência económica em relação à assistente, das relações de amizade e das relações de Advogada (a assistente e a cliente).

9ª – Nenhuma testemunha fora do plano daquela espécie de relações com a assistente corroborou os factos;

10ª – Todas elas (com excepção de J..., que o recorrente não conhece) andam de relações cortadas com o arguido;

11ª – Por tais razões, são patentes e notórias as fortes dúvidas de que o arguido tenha proferido as expressões que lhe são imputadas e dadas como provados;

12ª – A que acrescem as contradições ou divergências entre as declarações e depoimentos;

13ª – Evidências e constatações que justificam a formação de dúvida relevante na convicção do tribunal, potenciadora da resposta de não provados aos factos já assinalados e dados como provados;

14ª – Impondo-se indicar, da prova produzida, os pontos que estão na génese da aludida dúvida e evidente dúvida;

15ª – F... está zangada com o arguido, está de relações cortadas com o arguido;

16ª – Esta testemunha é cliente da assistente.

17ª – Tal testemunha, que depôs na 2ª sessão de julgamento, foi informada do teor das declarações do arguido (1ª sessão) referente à obra, fiscalização, conta final, licença de utilização, etc. da obra que a mesma fiscalizava. Isto porque tendo o arguido prestado as suas declarações no dia 3/3/2014 se referiu às razões da reunião que teve com a mesma sobre a obra ( x... ).

18ª – A testemunha apresentou na sessão seguinte (26/03/2014), com recibos de honorários passados ao arguido e fotocópia do livro de obra;

19ª – Revela bem o que fica exposto que a testemunha foi informada do que se passou na 1ª sessão de julgamento e, certamente, “avisada” para se preparar para tentar contrariar as declarações do arguido – o que retira credibilidade e autenticidade ao seu depoimento;

20ª – A assistente, nas suas declarações, diz que só passados uns dias é que falou com a testemunha F..., não sabendo em que dia da semana (mais uma vez  incerteza do tempo), mas afirmando categoricamente que foi em casa dela (da testemunha F...).

21ª – Em absoluta contradição, a testemunha F..., no seu depoimento já indicado, afirma que tiveram a conversa “num cafezito perto de onde a doutra      (assistente) mora, altura em que lhe relatou o que se tinha passado;

22ª – Mais afirmou, ao contrário do que declarou a assistente, que a conversa foi a seguir ou um dia depois;

23ª – Não são aceitáveis estas divergências quanto a factos que, a serem verdadeiros, ficariam na memória das intervenientes;
24ª – A testemunha I... é funcionária da assistente, com a natural dependência daí decorrente;
25ª – A testemunha J..., que depôs na mesma data, é cliente da assistente.
26ª – Não se percebe que estando a testemunha separada (divorciada) do marido há 4 anos e, como vem dito na acusação e na sentença, o arguido procurava o marido da testemunha, que o recorrente não conhece de lado nenhum, tivesse ido a casa da ex-mulher.
27ª – Para mais, segundo a testemunha, presumindo num primeiro momento e tendo a certeza num segundo momento que o arguido tenha pedido informações a um tal Sr.M.. em y... -Gare.
28ª – Se pediu essas informações e se o arguido perguntava pelo marido (ex) também quem a conhecia saberia dizer-lhe que estavam divorciados.
29ª – Aliás e curiosamente a assistente, contraditoriamente, nas suas declarações diz que foi um tal O..., seu ex-marido que deu a informação ao arguido.
30ª – É manifesto que estamos perante testemunhas e sujeitos processuais que se contradizem, de forma determinante e atabalhoadamente que destrói a seriedade, isenção e veracidade do testemunho.
31ª – Dos factos não há uma data concreta e deveria haver e dispunham os protagonistas meios para isso.   
32ª – Em vez de datas concretas temos «no período entre a Páscoa e o verão de 2012» e «por altura da Páscoa de 2012 e repara-se que a queixa foi apresentada em 6 de Junho de 2012.
33ª – Porquanto, todos os imputados factos ao arguido chegaram ao conhecimento da assistente através de telefonemas e bastaria recorrer á memória dos telefones ou facturas detalhadas.
34ª – A testemunha F... diz que telefonou em 1º lugar à testemunha I..., empregada da assistente, de quem é amiga, em vez de telefonar logo à assistente (não é um comportamento normal).
35ª – A testemunha J...deu conhecimento por telefonema ao assistente.
36ª – Sem se perceber o porquê (ou talvez se perceba) a assistente afirma que é natural de y... e na participação, quando, na verdade, é natural da freguesia de z... , concelho da Guarda;
37ª – Não foi feita qualquer prova que o arguido, por despeito ou vingança, tivesse encetado uma campanha de rebaixamento da dignidade pessoa e profissional da assistente.
38ª – É fora de toda a lógica dizer-se, como se diz na sentença, que «a ademais tais depoimentos foram integralmente corroborados pela assistente», quando se sabe que quem transmitiu a esta os factos (embora falsos) foram as testemunhas, factos não praticados na presença da assistente e, por isso, absolutamente impossibilitada ou inabilitada para corroborar qualquer depoimento de testemunha;
39ª – Não existe uma única testemunha que, de alguma forma, se situe num plano de insuspeita isenção. Nem uma única.
40ª – No início do seu depoimento a testemunha F... começou a anunciar, a instância do ilustre mandatário da assistente que, “como deve imaginar não sei precisar as palavras e era ridículo lembrar-me aqui das palavras dele”. Perante isto, aquele ilustre mandatário manifestou a sua predisposição para ajudar “eu já vou tentar que a senhora engenheira memorize ou relembre».
41ª - E a certa altura do seu depoimento, o ilustre mandatário da assistente, que fazia a instância, afirmou: “eu vou, porque disse efectivamente não se lembrava ao certo mas a senhora quando prestou declarações no âmbito do inquérito … ainda foi dizendo alguma coisa, porque o tempo também era mais recente, mais próximo da ocorrência.        
42ª – Mas foi interrompido pela testemunha em causa que milagrosamente começou a desfiar, durante dois minutos um extenso rol de afirmações que o arguido teria proferido.
43ª – Não deixa de ser espantosa a forma (em catadupa) como a testemunha recuperou subitamente a memória de que antes tinha anunciado estar desprovida e ter afirmado que seria ridículo lembrar-se de tudo.
44ª – Estranha-se e é ilegal dar relevância, como se faz na sentença, á afirmação da testemunha J..., para credibilizar o seu depoimento, que a mesma identificou, em plena sessão de julgamento, o arguido ali sentado a ser julgado, como sendo a pessoa que foi a sua casa. Seria de admirar se o não dissesses.
Sem conceder;
45ª – A pena concreta aplicada ao arguido é exagerada;
46ª – A indemnização estipulada peca por excesso;
47ª – Foram violadas e incorrectamente aplicadas, entre outras, as normas dos art. 180º, 40º e 71º do Código Penal, 127º do Código de Processo Penal e 483º, nº1, do Código Civil.   

3 - O Digno Magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal Judicial de Viseu, na Resposta de fls. 245 a 271, defende a manutenção da sentença.
4 - O Digno Procurador-Geral Adjunto, no parecer de fls. 300, acolhendo os argumentos aduzidos em 3, conclui, também, pelo não provimento do Recurso.
5 - Admitido o recurso na forma e com o efeito devidos, subiram os autos a esta Relação onde, depois de colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – MATÉRIA A DECIDIR

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões do Recorrente, as questões a decidir consistem em saber se:

1. Foi apresentada queixa-crime por determinados factos constantes dos pontos 2. e 3.

Na negativa, quais os efeitos jurídicos.

2. Deve proceder-se à alteração da matéria de facto

 3. A Medida concreta da pena se mostra exagerada.

4. A decisão sobre o pedido cível admite recurso e, na afirmativa, se o montante indemnizatório se mostra excessivo.

III – A SENTENÇA SINDICADA

O tribunal a quo decidiu a matéria de facto com a Fundamentação que, de seguida se transcreve:

«Factos Provados

Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. No período temporal compreendido entre a Páscoa e o Verão de 2012 o arguido, por despeito e vingança, encetou uma campanha de rebaixamento da dignidade pessoal e profissional da assistente L....

2. Assim, no período compreendido entre a Páscoa e o Verão de 2012, o arguido deslocou-se a casa da testemunha F... onde, na presença do namorado desta, sugeriu que arranjasse outra advogada porque a assistente era “uma incompetente”, que “só se interessava por dinheiro e por tirá-lo aos clientes” e que “não era de confiança”.

3. Mais disse que a assistente “andava com outros homens enquanto andava com ele, como lhe tirava dinheiro a ele e a outros homens”.

4. Por altura da Páscoa de 2012 o arguido deslocou-se a Açores, em y... , procurando a testemunha J... em sua casa, tendo aí chegado e após se identificar disse-lhe que “estava ali por causa de um jipe que o seu ex-marido tinha na sua posse, jipe que lhe pertencia”, que o dito “jipe tinha sido roubado pela Sra. L..., que lhe tinha falsificado uma declaração de venda”, ameaçando que “sabia muito da vida da depoente; que a podia lixar”.

5. Tais palavras e imputações têm, per se, uma elevada carga pejorativa, tendo o arguido agido com vontade livre e consciente da sua idoneidade lesiva.

6. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que tais palavras e expressões eram ofensivas da honra e consideração pessoal e profissional da assistente, mais sabendo que tal actuação era proibida e punida pela lei penal.

Do PIC:

7. Os factos referidos em 2. a 4. causaram à assistente sofrimento psicológico, por força do constrangimento, vergonha, vexame e angústia que lhe provocaram, tendo a mesma sentido a sua honra pessoal e profissional pisoteada pela conduta do arguido.

Mais se provou que:

8.  O arguido é licenciado em engenharia civil e arquitectura e é mestre em ensino básico.

9. O arguido trabalha na Câmara Municipal (...) , onde desenvolve as funções de chefe da Divisão do Urbanismo e Planeamento, auferindo, por tais funções, o salário mensal de € 1.650,00.

10. Em simultâneo com tais funções o arguido desenvolve também as funções de projectista, o que faz normalmente à noite, e efectua, quando solicitado a tanto, peritagens para os Tribunais.

11.  É, também, sócio gerente de uma empresa, donde recebe apenas os respectivos lucros e quando os há.

12. O arguido é divorciado e tem um filho com 22 anos de idade, que é estudante.

13. O arguido vive em casa própria.

14. O arguido é bem reputado e considerado, tanto pessoal como profissionalmente, no meio social e profissional onde se insere.

15. O arguido não tem antecedentes criminais.


*

Inexistem factos não provados.

*

(…) Convicção do tribunal

Nos termos do disposto no art. 374º n.º 2 do Código de Processo Penal o Tribunal deve indicar as provas que serviram para formar a sua convicção e bem ainda proceder ao exame crítico das mesmas.

No caso sub judice a convicção do Tribunal sobre a factualidade considerada provada radicou na análise crítica e ponderada da totalidade da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, globalmente considerada, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica e com o princípio da livre apreciação da prova, previsto pelo art. 127º do Código de Processo Penal.

Pese embora o arguido tenha negado os factos de que se encontra pronunciado a verdade é que essa versão foi infirmada pela demais prova produzida, maxime pelos depoimentos das testemunhas F... , este valorado de forma conjugada com o documento de fls. 176, e J..., que depuseram de forma firme, isenta e esclarecedora e sem que se demonstrasse que algo as (às identificadas testemunhas) movesse contra o arguido, pois que, como disse F... a mesma trabalhou com o arguido nada a movendo contra ele e a testemunha J... disse que antes dos factos não conhecia o arguido, apenas o tendo conhecido no episódio dos autos. Ademais tais depoimentos foram integralmente corroborados pela assistente.

Aponta-se, ainda, que a versão relatada pela assistente e pela testemunha F...também acabou por ser confirmada pela testemunha I..., que embora depondo acerca da matéria descrita no PIC também aflorou os factos descritos na pronúncia, confirmando-os.

E o mesmo se diga, mutatis mutandis, quanto ao declarado pela testemunha arrolada pela defesa N... , cujo depoimento também serviu para credibilizar o declarado pela assistente, tudo como infra melhor exporemos.

De reter, por fim, que nenhuma prova foi produzida no sentido de confirmar o relatado pelo arguido, sublinhando-se que as demais testemunhas de defesa inquiridas, concretamente B..., C..., D...e E... no essencial nada disseram acerca dos factos, tendo-se os seus depoimentos reportado maioritariamente à situação pessoal do arguido, que reputaram de boa pessoa – o que este Tribunal considerou provado – tendo também formulado meros juízos e convicções pessoais quanto à possibilidade do arguido praticar os factos destes autos, juízos e convicções estas que, como é bem de ver, este Tribunal desconsiderou em absoluto.

Vejamos então:

O arguido, negando embora ter efectuado todas as afirmações descritas nos autos e em concreto as que na pronúncia constam como tendo dirigido a F..., já afirmou ter-se deslocado, em finais de Março/Abril de 2012, à residência desta testemunha o que fez, como disse, em virtude da testemunha em causa, engenheira, ter sido sua colaboradora, tendo-se aí dirigido no final da obra do x... a fim de falar sobre a conta final e relatório de fiscalização desta obra. Admitiu então, como se disse, ter-se deslocado nos finais de Março/Abril de 2012 à residência da engenheira F... onde falaram exclusivamente acerca do processo acima indicado e já não da assistente, acrescentando posteriormente que era o gerente da empresa G... Lda, para a qual a engenheira prestava serviços. Mais disse que o namorado da testemunha F..., no dia a que se reportou, se encontrava retirado, a fazer o jantar.

Por seu turno a testemunha F..., que nada tem contra o arguido, como disse a própria e como o arguido também afirmou nas suas respostas, disse, além do mais, ter trabalhado com o arguido e que fizeram uma obra do x... , obra essa que findou, como disse, em Dezembro de 2012, sustentando ser impossível falar da conta final dessa obra em Março/Abril de 2012. Tendo confirmado que o arguido se deslocou a sua casa, em data que não precisou mas que situou entre a Páscoa e o verão de 2012, referiu que aquele não foi a sua casa por causa da dita conta final não tendo sequer, como disse, falado sobre tal assunto. Contra-instada afirmou ter tido apenas uma reunião inicial com o arguido acerca do x... e que depois enviava-lhe os relatórios por e-mail, acrescentando que o último que lhe enviou foi em Outubro de 2012. Mais disse que o último pagamento que o arguido, sua empresa, lhe fez ocorreu em Setembro/Outubro de 2012 e que a reunião final do referido x... não poderia ter ocorrido em Março/Abril de 2012.

Instada a assistente afirmou, além do mais, que em Dezembro de 2012 a Eng. F... ainda trabalhava com o arguido, efectuando a fiscalização de uma obra.

O recibo de fls. 176, onde figura como prestadora de serviços a aqui testemunha F...e como adquirente do serviço a empresa G... Lda – de que o arguido disse ser sócio gerente – confirma que a primeira ainda trabalhava para o arguido em Setembro de 2012, facto este que credibiliza a versão por esta apresentada acerca do terminus da obra do x... , bem como o neste ponto afirmado pela assistente, descredibilizando o afirmado pelo arguido. 

Ficou, em face deste recibo e dos depoimentos prestados pela testemunha F...e assistente, absolutamente contrariada a tese apresentada nesta parte pelo arguido, concretamente que falou com a testemunha acerca da obra.

As concretas expressões e palavras que o arguido dirigiu a F...e a propósito da assistente tiveram respaldo no declarado pela testemunha indicada, cujo depoimento nos mereceu total credibilidade e que depôs no sentido dos factos dados como provados nesta parte. E não se objecte dizendo-se que num primeiro momento a testemunha disse não se recordar das palavras vindo posteriormente a afirmar as palavras que o arguido lhe disse, pois que, como é sabido, a memória de qualquer pessoa é elástica e os pensamentos vão-se adensando à medida que se vai falando.

Para o mesmo desiderato relevámos também o declarado nesta parte pela assistente, de forma conjugada com as declarações da indicada testemunha.

Retém-se também que a testemunha F...afirmou, de forma peremptória, que o seu namorado assistiu à conversa que manteve com o arguido. Veja-se ainda que a testemunha F...disse que após os factos telefonou à aqui testemunha I... – o que esta confirmou no seu depoimento – e que posteriormente ligou à assistente a dar conta do sucedido, o que a assistente também relatou, de forma verdadeiramente emocionada e que nos mereceu credibilidade.

E ainda que N... tenha afirmado que entre a Páscoa e o verão de 2012 a assistente não lhe disse que a Eng. F... a informou que o arguido havia falado mal de si a verdade é que também referiu que mesmo que o arguido o tivesse feito pensa que a assistente não teria de lhe dizer.

No que concerne o episódio que envolve a testemunha J... o arguido também negou os factos, acrescentando que não conhece esta pessoa e que nunca se deslocou a Açores.

Sucede, porém, que o afirmado neste ponto pelo arguido foi infirmado pelo depoimento sério, firme, isento e desinteressado da testemunha J..., que não teve quaisquer dúvidas em identificar o arguido em julgamento como sendo a pessoa que se deslocou à sua residência por altura da Páscoa de 2012 para falar da aqui assistente, o que fez.  Com efeito J... referiu, além do mais, que chegou um senhor acompanhado de uma senhora loura num roadster preto, o que aconteceu num sábado à tarde (o que sabe por estar a passar a ferro), tendo saído e dito chamo-me A... e venho cá por causa de um jipe que a Dra. L...me roubou e que o Sr. H... tem, dizendo logo de seguida que este é o seu ex-marido. Relatou ainda que o arguido lhe disse que a declaração de venda do jipe era falsa porque não a assinou, tendo-lhe a depoente respondido, como disse, que o ex-marido não tinha o jipe. Referiu ainda que naquela data já era cliente da assistente e que logo que ele foi embora ligou àquela de imediato, que respondeu para não se preocupar. Posteriormente afirmou que o arguido lhe disse que tinha sido o Sr. M..., da pastelaria de y... , a dar-lhe a sua morada.

Note-se que N... , testemunha arrolada pela defesa, após ter dito que teve uma relação de namoro com a assistente que iniciou em finais de 2011 que se manteve em 2012 mais disse, entre outros pontos, que a assistente lhe afirmou que o aqui arguido tinha ido a y... à procura de um carro que tinha desaparecido, o que aconteceu por princípios de 2012. Instado referiu que foi y... , desconhecendo se Açores e que acrescentou que a assistente lhe referiu que o arguido foi ter com uma senhora que tinha um stand de carros.

Este segmento do depoimento de N... também serve para demonstrar que, ao invés do sustentado pelo arguido, este último se deslocou a Açores, afirmando as expressões dadas como provadas e a propósito da assistente. Isto porque, a não ser verdade o aqui relatado pela testemunha J... mal se compreenderia que a mesma tivesse entrado imediatamente em contacto com a assistente – o que esta também confirmou – e que a assistente tivesse transmitido essa ida do arguido a y... ao seu então namorado, a testemunha N... .

Importa também ter presente que a assistente e o arguido mantiveram um relacionamento amoroso, como admitiu o arguido, e que a primeira é natural de y... , como afirmado pela assistente. Ademais, como afirmado pela assistente, a sua mãe foi professora primária em Açores, y... .

Ora, atendendo ao relacionamento amoroso que o arguido manteve com a assistente aliado ao facto desta ser natural de y... e da sua mãe ter sido professora primária em Açores não se nos afigura crível, em face das regras da lógica e experiência comum, e também do declarado pela testemunha J..., que o arguido não conheça Açores.

Aponta-se ainda que a aqui assistente, cujas declarações nos mereceram total credibilidade, atenta a emoção com que depôs e a forma firme e séria como o fez, corroborou as versões relatadas pelas testemunhas F... e J..., confirmando os factos dados como provados.

Os sentimentos experienciados pela assistente, na sequência dos factos praticados pelo arguido, tiveram respaldo nas suas declarações, na parte em que disse ter ficado muito ofendida, sublinhando que é de y... . Para o mesmo desiderato atentámos também no declarado pela testemunha F..., na parte em que referiu que a ofendida ficou muito ofendida, e no depoimento da testemunha I..., que se mostrou isento e sério, na parte em que relatou que depois dos factos a assistente ficou perturbada, andava nervosa e que ficou com problemas de saúde, andando sempre alterada, tendo deixado de sair com amigos com receio que fossem considerados seus amantes.

Ainda que tendo sido arrolado pela defesa N... referiu, o que considerámos para efeitos de demonstrar o estado anímico da assistente no período destes autos, que no período compreendido entre a Páscoa e verão de 2012 a Dra. andava abatida, fora de si, por causa do andar, escritório, etc. Via-se que as coisas não estavam bem. Ela andava tensa.

Naturalmente que este Tribunal ficou ciente, por ter sido o resultado da prova testemunhal produzida, que o estado anímico que a assistente apresentava no período temporal destes autos não tiveram origem exclusiva nos factos destes autos, contribuindo para tal os problemas financeiros que nessa data já tinha com o arguido, além de outros. O que não significa que as condutas do arguido, espelhadas nestes autos, não tenham causado os danos que considerámos provados, por tal também ter resultado da prova testemunhal produzida e bem assim das declarações da assistente.

A situação pessoal do arguido assentou nas suas respostas, que nesta parte nos mereceram credibilidade.

A consideração pessoal e social de que o arguido beneficia teve respaldo nos depoimentos de N... , B..., C..., D...e E... e que depuseram, todos, no sentido dos factos dados como provados nesta parte, nada tendo os mesmos afirmado a propósito dos factos, como já assinalámos supra.

A ausência de antecedentes criminais assentou no CRC de fls. 157 e o que da sua literalidade resulta. 

Em conformidade os factos provados».

IV – O OBJECTO DO RECURSO

1- Ausência de queixa em relação aos factos constantes dos pontos  de facto provados n.ºs 2 e 3.

Questiona o recorrente a falta de legitimidade da assistente para o acusar dos pontos de factos provados sob os n.ºs 2 e 3 provados, na medida em que não constavam na queixa que oportunamente aquela apresentou.

Antes de entrarmos na discussão da questão, há que conhecer os actos processuais relevantes para a decisão.

São eles:

a) Em 6 de Junho de 2012, L... apresentou contra o arguido a queixa-crime de fls. 3 a 6, onde consta que o denunciado afirmou perante terceiros e referindo-se à denunciante:

«É uma puta (nº 2);

Tem e teve uma série de amantes, tendo mencionado alguns dos clientes com quem trabalha e trabalhou a denunciante (nº 3);

Não presta para nada, nem na cama (nº 4);

É uma ladra (nº 6);

Era uma mentirosa (nº 10);

Não ganhava para comer, porque era má advogada, não percebia nada de direito, perdia os processos todos e por isso não deveria trabalhar com ela (nº 11);

Iria perder muitos clientes que a denunciante tinha, porque ele tinha influência sobre eles (nº 13);

O denunciado dirigiu-se a vários clientes da denunciante repetindo os factos anteriormente referidos, com o objectivo de criar uma má imagem da denunciante, para que os mesmos não tivessem  qualquer relação pessoal e ou profissional com a denunciante (nº 19).

Durante a primeira quinzena do mês de Maio de 2012, o denunciado dirigiu-se a casa de uma cliente da denunciante, F..., tendo-lhe relatado os mesmos factos e convidando-a a trocar de advogada porque a denunciante não era de confiança nem boa advogada.

b) A assistente deduziu acusação particular de fls. 89 a 92, onde imputou ao recorrente, entre outros, os seguintes factos:

«Entre a Páscoa e o verão de 2012, o arguido, por despeito, vingança e prazer pessoal, encetou uma campanha de rebaixamento da dignidade pessoal e profissional da assistente – vendendo a difamação porta a porta.

  (…)

No seguimento do seu plano, no período compreendido entre a Páscoa e o Verão de 2012, o arguido deslocou-se a casa da testemunha F..., onde, na presença do namorado desta, desfilou uma série de aleivosias sobre a assistente, que outra coisa não foram que o pisotear da sua dignidade.

Assim, sabendo que a assistente era advogada da F..., sugeriu-lhe que arranjasse outra advogada porque a assistente era “uma incompetente”, que “só se interessava por dinheiro e por tirá-lo aos clientes”. E que não “era de confiança”.

Mais disse que a L...“andava com outros homens, enquanto andava com ele; como lhe tirava o dinheiro a ela e aos outros homens”».

c) O arguido requereu a abertura da instrução e foi pronunciado, além do mais, pelos factos referidos em b) (fls. 187)

d) Os factos referidos em b) correspondem, na sentença, aos pontos de facto dados provados sob os nºs 2 e 3.

Conhecidos, no que aqui interessa, os teores da queixa, acusação particular, despacho de pronúncia e sentença, há que apreciar, se a factualidade inserta nos pontos nº 2 e 3, da sentença, foram ou não objecto de queixa por parte da assistente.

Em causa estão os seguintes factos:

«No período compreendido entre a Páscoa e o Verão de 2012, o arguido deslocou-se a casa da testemunha F..., onde na presença do namorado desta, sugeriu que arranjasse outra advogada porque a assistente era “uma incompetente” que “só se interessava por dinheiro e por tirá-lo aos clientes” e que “não era de confiança”.

Mais disse que a assistente “andava com outros homens enquanto andava com ele, como lhe tirava dinheiro a ele e a outros homens».

  Inexistem dúvidas que o crime imputado ao arguido – difamação (art. 180º, nº 1 do Código Penal) – tem natureza particular, cujo procedimento criminal depende de queixa e de acusação particular (artigos 188º, nº 1, do Código Penal, 50º, nº 1, do Código de Processo Penal) a exercer – salvo disposição em contrário – pelo ofendido (artigos 113º, nº 1 e 117º, do Código de Processo Penal).

Se em relação aos factos em análise não existir queixa por parte da assistente, estaremos perante a omissão de uma das condições de procedibilidade quanto a este crime de difamação.

Importa, pois, averiguar, de que forma devem ser descritos os factos participados na queixa-crime cujo regime essencial se encontra regulado no Código Penal, «aí se contendo as normas que dispõem sobre: os titulares do direito de queixa (artigo 113.º), a extensão dos efeitos da queixa (artigo 114.º), a extinção do direito de queixa (artigo 115.º), a renúncia e desistência da queixa (artigo 116.º)[1]».

A queixa é «o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento criminal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (art. 11º e CPP, art. 49º). (…).

No que toca à forma da queixa, tanto o CP como o CPP são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto, o que é reforçado pelo disposto no artigo 49.º, nº 3, do CPP já referido. Não se torna necessário que a queixa seja como tal designada (…). Tão pouco é relevante que os factos nela referidos sejam correctamente qualificados do ponto jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve e menciona[2]».

Inexistindo qualquer norma a regular expressamente o conteúdo da queixa, não custa aceitar, que deverá conter um relato sintético dos factos que poderão integrar a prática de um crime, tendo como «“alvos” os autores ali indicados, a menos que o ofendido não saiba de quem se trata e não indique, por esse motivo, suspeitos.

O processo-crime tem uma história, na qual são indicados os factos relevantes e os agentes do mesmo[3]». 

A queixa não se confunde com a acusação particular.

«A acusação particular é, nos casos em que desta depende o prosseguimento do processo, a acusação deduzida pelo queixoso, findo o inquérito e disso notificado aquele (o qual, entretanto, deverá ter-se constituído como assistente) independentemente do Ministério Público e da posição que este venha a tomar na matéria (CPP, art. 285º)[4]».

A estrutura acusatória do processo, o princípio do contraditório, bem como o direito de defesa leva a que, de acordo com o denominado princípio da vinculação temática, os poderes de cognição do tribunal estejam delimitados pelo conteúdo da acusação.

Daí que, ao contrário do que sucede com a queixa, a acusação particular esteja sujeita, sob pena de nulidade, à observância de forma legalmente estipulada no art. 283º, 3 e 7, ex vi art. 285º, nº 3, ambos do Código de Processo Penal, devendo conter, além do mais e para no que ao caso interessa, «narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» [al. b)] .

Queixa e acusação exigem, assim, a descrição de factos. Mas o que deve entender-se por factos, para efeitos de delimitação do objecto da queixa? De que forma é que os factos constantes da queixa mantêm a sua essência na acusação e em que medida podem ser alterados no despacho de acusação?

Reportando-se aos factos que devem constar na acusação, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015[5] recorda as principais concepções que estão na base da noção jurídica de facto:

«Para CAVALEIRO DE FERRREIRA era o facto naturalístico que interessava para a definição do objecto do processo: a identidade do facto tem de apreciar-se naturalisticamente, como facto concreto, real (Curso de Processo Penal, Lisboa, 1958,Vol.III, p. 53.

Para EDUARDO CORREIA, movendo-se dentro de uma esfera neo-kantiana de separação entre o mundo dos factos “naturalísticos” e o mundo dos valores, o facto processual não podia ser concebido de forma diferente da concepção de facto em direito criminal e, portanto, o que para ele valia era a referência do acontecimento naturalístico a um padrão de valores específico, no caso, valores, fins ou interesses jurídico-criminais. O facto processual era, pois, definido como violação dos valores jurídico-criminais expressos num determinado tipo legal de crime, pois é neste que se contém o sentido desvalioso de uma determinada conduta que o realize. A unidade e identidade do objecto do processo seriam sempre obtidos por referência a um tipo legal de crime. Daí uma relação teleológica que intercederia entre eles. Deste modo, “«Facto» para o direito adjectivo, é, pois, equivalente à conduta típica e, por consequência, a identidade dele corresponde à identidade (coincidência) deste.” (ob. cit. p. 333). E desenvolvendo o seu conceito, explicita mais adiante: «(…) fulcro da unidade do objecto processual há-de ser sempre a concreta e hipotética violação jurídico-criminal acusada. Só ela – em princípio – limita, por força do princípio do acusatório, a actividade cognitiva do tribunal, que deve, como se disse, exercer-se esgotantemente e, portanto, alargar-se não só ao facto que no despacho de pronúncia ou equivalente se descreve, mas a tudo que com ele constitua uma unidade jurídica, a mesma infracção.» (idem, p. 336).

Concreta e hipotética violação jurídico-criminal, «Hipotética, porque pode chegar-se à conclusão, no decorrer do processo, de que a violação que se pensava ter ocorrido, afinal é outra. Essa violação mentalmente representada de início funcionará como indicação doutras violações eventualmente ocorridas, e que o juiz tem que investigar. Acresce que a hipotética violação jurídica é concreta, porque se tem em conta que a violação ocorreu a partir de um certo acontecimento histórico, e não se está aqui a considerar em abstracto um tipo legal de crime, ou um qualquer exemplo académico.» (JOSÉ SOUTO DE MOURA, “Notas sobre o objecto do processo”, Revista Do Ministério Público, Ano 12.º, n.º 48, pp. 52/53);

Para CASTANHEIRA NEVES a base de toda a construção do objecto do processo é o caso jurídico concreto, “o caso concreto que suscita o problema jurídico” a resolver pelo julgamento e decisão em termos impositivos e definitivos e que a acusação apresenta como solução antecipada e provisória, «um projecto sumário de sentença (condenatória, certamente), quer para justificar juridicamente a acusação deduzida, quer para referir ao arguido as imputações jurídico-criminais que em princípio lhe são feitas” (Sumários, pp. 249/250). Portanto, dados da vida real, não em estado puro, mas já valorados, pois não há actos ou factos desligados de um sentido (“O que temos em vista são dados reais, embora de uma realidade de que não pode abstrair-se um sentido, pois só com esse sentido eles são reais”, idem, p. 251). Nesta perspectiva, há, portanto, dois vectores ou duas faces a considerar, não independentes uma da outra, mas complementares, co-participativas ou mutuamente implicantes no todo que é o objecto a considerar.

Por um lado, as diversas facetas da realidade natural, orgânica, psíquica, etc., em que se desenrola o agir humano constituem “momentos integrativos relevantes numa concreta realização de sentido”; por outro, estas diversas facetas ou “elementos condicionantes”, como as designa o Autor, são modeladas concretamente por uma “intenção de sentido”, que dá expressão a uma determinada conduta. Esta é sempre referível a pessoas concretas, actuando no âmbito de situações concretas, histórica, social e culturalmente determinadas, e pelas quais e em ligação com as quais se realiza um determinado sentido, que é o sentido que orienta uma dada acção. O caso jurídico, que se constitui como realidade problemática a resolver é essa situação histórica, o acontecimento dado, já de si portador de uma valoração (ética, social, cultural, etc.), enquanto ligado à acção de um sujeito, mas agora impregnado de um sentido de juridicidade – o sentido de uma axiologia normativa específica, que é o da valoração jurídico-criminal.

Trata-se, segundo o Autor, de um caso jurídico concreto. “É um “caso”, porque nele se põe um problema; é “concreto”, porque esse problema se põe numa certa situação e para ela; é “jurídico”, porque desta emerge um sentido jurídico, o problemático sentido jurídico que o problema lhe refere e que nela ou através dela se assume e para o qual ela se individualiza como situação (como o “dado” correlativo que oferece o âmbito e o conteúdo relevante).»

Para uma outra concepção, que, segundo MÁRIO TENREIRO, é atribuível a FIGUEIREDO DIAS, facto é «um recorte, um pedaço de vida, um conjunto de factos em conexão natural (e não naturalística, por tal conexão não ser estabelecia com base em meros juízos procedentes de uma racionalidade própria das ciências da natureza) analisados em toda a sua possível relevância jurídica, ou seja, à luz de todos os juízos jurídicos pertinentes. O objecto do processo será assim uma questão de facto integrada por todas as possíveis questões de direito que possa suscitar.» (MÁRIO TENREIRO, “Considerações sobre o objecto do processo penal”, Revista da Ordem d os Advogados, Ano 47.º - III – Dez. 1987, p. 997).

Para FREDERICO ISASCA, haverá que garantir uma estrita vinculação ao princípio do acusatório, do mesmo passo que assegurar todas as garantias de defesa, pelo que o centro polarizador do objecto do processo só pode ser a base factual trazida pela acusação. Escreve o Autor (Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português, Livraria Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 1995, pp. 240-242): «O pedaço de vida que se submete à apreciação judicial, referenciado, não única e exclusivamente do ponto de vista normativo, mas antes e fundamentalmente, da perspectiva da própria valoração e imagem social daquele comportamento, isto é, a forma como ele é percebido e entendido, do ponto de vista da sua valoração social. A forma como o homem médio – porque é este o destinatário tipo do comando – vê e sente o acontecimento submetido a juízo e consequentemente a forma como sente e representa a violação da norma, provocada pela conduta do agente.

«Objecto do processo penal será, assim, o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço de vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstituir o mais fielmente possível».

FREDERICO ISASCA, aproximando-se da construção de CASTANHEIRA NEVES, embora dela divergindo, continua a sua tarefa de definir o objecto do processo nestes termos: «A delimitá-lo teremos necessariamente uma dimensão subjectiva e uma dimensão real. A primeira exige que durante todo o iter processual e se mantenha(m) sempre o(s) mesmo(s) arguido(s) não podendo o tribunal, em consequência, emitir    qualquer decisão final que não seja sobre aquela(s) pessoa(s). A segunda impõe a identidade do facto no decurso de todo o processo»

(…)

«O facto é, assim, o ponto de partida do juízo de subsunção e o postulado primeiro da subsunção jurídica. Mas, porque o facto, ou acontecimento, é sempre o fruto de uma acção humana e esta sempre consequência de uma decisão de agir ou omitir, isto significa que o agente ao actuar, racionalmente, empresta ao facto, enquanto acontecimento meramente objectivo, uma dimensão subjectiva, na qual se espelha a própria personalidade do sujeito. (…) Por isso o facto, enquanto base essencial da decisão, tem de ser apreciado na sua relação com o sujeito actuante. Só esta dupla dimensão em que o facto deve ser encarado respeita e é compatível com a ideia de um Direito Penal que puna pela culpa do agente».

Os factos, objecto de queixa, relevantes nos crimes particulares e semi-públicos, hão-de corresponder aos que vão ser investigados no inquérito e, posteriormente vertidos em acusação, delimitando, assim, a própria investigação. É a factualidade descrita na queixa que, nos crimes semi-públicos e particulares, é investigada e apreciada a final, seja com despacho de arquivamento ou acusatório.

O que a acusação deve conter é a narração do pedaço ou história de vida mencionado na queixa que originou o processo. Através da queixa, o titular do respectivo direito imputa ao denunciado uma determinada conduta, um concreto comportamento.   Não se exige, contudo, que a descrição dos factos da acusação seja ipsis verbis a que consta na queixa, nem que todos os factos da primeira tenham correspondência total na última.

O que se impõe ao titular do direito, é que este manifeste inequivocamente a sua vontade de prosseguimento de processo contra o denunciado pela prática de um determinado crime.

No caso dos autos, a assistente manifestou incontestavelmente essa vontade em dois momentos no processo:

- quando apresentou a queixa-crime, imputando ao recorrente um crime de difamação, por factos ocorridos perante a testemunha F...;

- quando deduziu acusação particular contra o mesmo denunciado e lhe imputou o mesmo crime de injúrias, mas apenas com os factos que delimitou na acusação.

Na queixa, a ofendida afirmou desejar procedimento criminal contra o arguido porquanto afirmou perante a testemunha F... e o namorado desta, as expressões que já havia proferido perante outras pessoas, a saber:

«É uma puta (…) Tem e teve uma série de amantes (…)   uma ladra (…) que tinha um plano para lhe extorquir dinheiro (…), para não confiar na denunciante porque não sabia guardar segredos (…) que a denunciante ganhava para comer porque era má advogada, não percebia nada de direito, perdia os processos todos e por isso, não deveria trabalhar com ela».

     Na acusação particular, a assistente em vez de imputar todas estas expressões ao recorrente, optou por reduzi-las, com recurso a outras com significado equivalente. Assim, escreveu que o arguido a apelidou de «uma incompetente», «que só se interessava por dinheiro e por tirá-lo aos clientes», «que não era de confiança», «que a assistente andava com outros homens enquanto andava com ele, como lhe tirava dinheiro a ele a e outros homens».

Comparando uns e outros factos, não se poderá, com seriedade, afirmar, que a assistente não apresentou queixa-crime contra o arguido, imputando-lhe aquelas expressões.

É que, na queixa apresentada pela Assistente, no ponto nº 19, descreve a conduta do recorrente: dirigiu-se a vários clientes da denunciante repetindo os factos anteriormente referidos, com o objectivo de criar uma má imagem da denunciante para que os mesmos não tivessem qualquer relação pessoal ou profissional com a denunciante.  

E, mais adiante, no facto nº 20: No mês de Maio de 2012, o denunciado dirigiu-se a casa de uma cliente da denunciante, F..., tendo-lhe relatado os mesmos factos e convidando-a a trocar de advogada porque a denunciante não era de confiança nem boa advogada.

Ou seja, a assistente, de forma clara e sem deixar qualquer dúvida, afirma que o recorrente se deslocou a casa da sua cliente F..., para lhe imputar os factos anteriormente descritos na queixa.

Confrontando uns e outros, constatamos que as expressões utilizadas na queixa e na acusação têm um sentido equivalente e muito próximo. A acusação narra a conduta do arguido quando se deslocou a casa daquela testemunha para lhe falar da assistente, reduzindo e não aumentando ou alterando as expressões verbais que tinha mencionado na queixa.

De todo o modo, o que é «verdadeiramente decisivo nos crimes particulares, diversamente do que ocorre nos crimes semi-públicos, é que o assistente deduza acusação particular. É a dedução da acusação particular que determina o prosseguimento do processo e é pela acusação particular que se define o seu objecto[6]».

Não assiste, assim, razão ao recorrente quando defende a inexistência de queixa quanto aos factos sob os pontos 2 e 3.

Mas, ainda que assim, não se entenda, sempre se dirá:

Chamando aqui à colação o princípio segundo o qual, está vedado ao tribunal o conhecimento de factos que implique uma alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (art. 359º, do Código de Processo Penal) e, considerando que a alteração substancial dos factos é, nos termos do art. 1º, al. f), do mesmo compêndio normativo, «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis», teríamos por certo, que, se no decurso do inquérito se vier a verificar uma alteração não substancial dos factos relatados na queixa, sempre aqueles poderiam ser introduzidos no despacho de acusação.

Contudo, não podemos esquecer, o que já se deixou dito: o ordenamento jurídico processual penal não exige para a queixa, qualquer requisito formal, designadamente, a indicação das normas jurídico-criminais violadas nem a narração dos factos pelo modo indicado no art. 283º, nº3, supra referido[7], havendo, pois, que flexibilizar o que deve ser entendido por alteração não substancial dos factos, quando se trata de apreciar se a factualidade constante na acusação equivale à que consta na queixa.

Note-se, que, findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza acusação particular, indicando se foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os seus agentes, podendo, nos cinco dias posteriores à apresentação da acusação particular acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles (art. 285º, nº 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal). 

Vale isto para dizer que, quando o procedimento criminal depende de acusação particular, o Ministério Público pode acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou outros que não importem uma alteração substancial daqueles que constam na acusação, por maioria de razão, pode a acusação do Ministério Público conter factos que não importem a alteração substancial em relação aos constantes da queixa.

No caso dos autos, inexistem dúvidas, que os factos imputados pelo arguido na acusação particular, secundada pelo Ministério Público (fls. 94) e pelo juiz de instrução importariam, quando muito, uma alteração não substancial dos factos denunciados.

Nesta medida, sempre poderiam ser submetidos e julgamento e constarem, como constam, da sentença.

Improcedem, pois, as Conclusões  1ª a 3ª do Recurso.

    

 2 – A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

2.1. Pontos de facto nºs 1 a 7

Insurge-se o Recorrente contra o modo como o tribunal recorrido apreciou a prova produzida em audiência, designadamente no que toca à credibilidade que atribuiu à assistente e às testemunhas, F..., I... e J..., para dar como certo que os pontos de facto nºs 1 a 7.

Para tanto invoca, três ordens de argumentos:

1- As testemunhas não são isentas: a) em virtude das relações de dependência económica em relação à assistente e das relações de Advogada; b) pelo facto de andarem de relações cortadas com o arguido e, c) porque a credibilidade que lhes foi atribuída não tem qualquer lógica (Conclusões 8ª a 11ª, 15ª, 16ª, 24ª, 25ª, 31ª, 32ª, 33ª, 38ª, 39ª e 40ª, a 43ª);

2- Existem contradições ou divergências entre declarações que lhes retiram credibilidade (Conclusões 12ª a 14ª, 20ª, 21ª a 23ª, 26ª a 30ª, e 34ª a 36ª);    

3 – A testemunha F... foi informada do depoimento do arguido, tendo-se munido de documentos para infirmar as declarações deste (Conclusões 17ª a 19ª);

Apreciando:

É sabido que o sistema processual penal vigente consagra, como se sabe, um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando aos sujeitos processuais a possibilidade de reagir contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto (cf. art. 410º, 412º, nº 3 e 431º, do Código de Processo Penal).

Porém, a garantia do duplo grau de jurisdição, lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça[8]:

«não significa que tenha de se proceder a um novo julgamento, em toda a sua extensão, tal como ocorrera em primeira instância», onde a oralidade e a imediação da produção da prova se fazem sentir (cf. art. 355º, do Código de Processo Penal). 

A este propósito, pronuncia-se Germano Marques da Silva - Do Processo Penal Preliminar, Lisboa, 1990, pág. 68 – da seguinte forma:

«(…) A oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais directas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objectiva, atípica, e de valoração pela íntima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens».

Também, Figueiredo Dias[9], ensinava que:

«Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tomar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (…). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais».

Ou seja, o recurso da matéria de facto, não tem como objectivo afastar o principio da livre apreciação da prova, exarado no art.º 127.º do Código Processo Penal, segundo o qual «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova  é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

“A «livre» ou «íntima» convicção do juiz, não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável (…). A convicção  do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal — até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais —, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros[10]”.

A livre convicção que, no dizer de Cavaleiro de Ferreira[11] «é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade».

A liberdade que aqui importa, afirma Germano Marques da Silva[12] «é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva».

Volvendo à decisão sindicada, constata-se que assenta, no seu todo, na livre convicção do decisor, que explica de forma clara, compreensível e sem deixar qualquer dúvida, quais os passos que deu para, em função da prova testemunhal produzida, conjugada com os documentos e as regras da experiência comum, indicar os motivos pelos quais atribuiu credibilidade à assistente e às testemunhas.

Tal credibilidade não é posta em causa por nenhum dos argumentos invocados pelo recorrente.

Com efeito, se analisarmos a prova global e criticamente produzida e não apenas as passagens indicadas pelo recorrente, constatamos que não nos ficaram quaisquer dúvidas sobre a conduta do recorrente, subscrevendo, na íntegra a motivação da primeira instância.

Assim, no que toca aos factos ocorridos perante a testemunha F...:

«As concretas expressões e palavras que o arguido dirigiu a F... e a propósito da assistente tiveram respaldo no declarado pela testemunha indicada, cujo depoimento nos mereceu total credibilidade e que depôs no sentido dos factos dados como provados nesta parte. E não se objecte dizendo-se que num primeiro momento a testemunha disse não se recordar das palavras vindo posteriormente a afirmar as palavras que o arguido disse, pois que, como é sabido, a memória de qualquer pessoa é elástica e os pensamentos vão-se adensando à medida que se vai falando.

Para o mesmo desiderato relevámos também o declarado nesta parte pela assistente, de forma conjugada com as declarações da indicada testemunha.

Retém-se, também, que a testemunha F... afirmou, de forma peremptória, que o seu namorado assistiu à conversa que manteve com o arguido. Veja-se, ainda, que a testemunha F... disse que após os factos telefonou à aqui testemunha I... – o que esta confirmou no seu depoimento – e que posteriormente ligou à assistente a dar conta do sucedido, o que a assistente também relatou, de forma verdadeiramente emocionada e que nos mereceu credibilidade.

E ainda que N... tenha afirmado que entre a páscoa e o verão de 2012 a assistente não lhe disse que a Eng. F... a informou falado mal de si, a verdade é que também referiu que mesmo que o arguido o tivesse feito pensa que a assistente não teria de lhe dizer».

Confirmada esta descrição através da audição da gravação dos depoimentos orais produzidos em audiência, não vislumbramos como é que a circunstância da testemunha ser cliente da assistente e manifestar desagrado contra a conduta do recorrente, lhe retira, por si só a credibilidade que lhe foi conferida.

Em face de conduta do arguido – ir a casa da testemunha para lhe falar da assistente – é natural, como afirmou, que telefone, num primeiro momento à sua amiga I... e lhe peça uma opinião se deve ou não contar aquela conversa à sua advogada.

Do mesmo modo, se compreende a não coincidência do local onde a assistente se terá encontrada com F... para conversarem sobre este assunto. O tempo passado pode trair a reprodução de um facto irrelevante, como é, no contexto dos acontecimentos, o local onde a testemunha e a assistente se encontraram: se em casa da testemunha ou num café perto da assistente.

Por último, diga-se, que, mesmo aceitando que F... foi informada das declarações do arguido, por via do que, se muniu de documentos para depor na sessão audiência de discussão e julgamento diminui a credibilidade do seu depoimento.

Na verdade, o princípio do contraditório traduz-se nisso mesmo. Se o arguido traz uma versão dos factos que não corresponde à verdade, incumbia à assistente diligenciar por contrariar a sua versão, recorrendo aos meios probatórios permitidos em direito.

Se, efectivamente, os documentos exibidos contrariam, como se refere na sentença,  a versão que o arguido trouxe aos autos, não vislumbramos como é que esta circunstância retira credibilidade à testemunha. Pelo contrário, reforça-a. A versão da testemunha encontra-se corroborada por documentos.

No que toca às declarações de I..., depois de as ouvirmos, não antevemos em que medida é que o facto de ser funcionária da assistente a impediu de falar com verdade e merecer a credibilidade do tribunal, se o seu depoimento se mostrou coerente e de acordo com as regras das experiência comum, não tendo sido contraditado por nenhuma outra testemunha.

Já quanto à testemunha J..., também, ela, sendo cliente da assistente, esclareceu as circunstâncias em que foi abordada pelo recorrente.

Antes de mais, diga-se que a testemunha não afirmou no seu depoimento que, à data da prática dos factos estava separada do marido há 4 anos. O que esclareceu foi que estava divorciada «ia fazer 4 anos», podendo estar a contar o tempo a partir da data em que estava a prestar depoimento.

Depois, a testemunha não afirmou que o recorrente tinha pedido informação sobre a sua morada a um tal M..., em y... Gare.

O que a testemunha afirmou foi que perante aquilo que o recorrente lhe disse, deduziu que tivesse vindo do «tal Sr. M...».

Estas declarações não foram contrariadas pela assistente.

Enquanto que a primeira deduziu das declarações do arguido que ele teria falado com o Sr. M..., a assistente afirmou que foi um ex-cunhado que deu a informação ao arguido.

Por outro lado, a falta de concretização da data em que os factos ocorreram, também é compreensível, se considerarmos, que a conduta do arguido não se restringiu a falar com estas duas clientes mas se estendeu a mais.

Se a sentença afirma que tais depoimentos foram integralmente corroborados pela assistente, facilmente se compreende que esta afirmação respeita às circunstâncias em que adveio ao conhecimento da assistente o propalado pelo recorrente.

Perante todos estes testemunhos, dúvidas não existem que o recorrente, por despeito ou vingança, encetou uma campanha de rebaixamento da dignidade pessoal e profissional da assistente.

Por último diga-se que não se alcança o objectivo que o recorrente pretende chegar, quando afirma que a assistente não é natural de y... mas da Guarda.

Em suma, o Tribunal a quo - tal como consta no texto da sentença -  apreciou validamente o conjunto de todas as provas  produzidas em audiência, sem violação de nenhuma das regras de direito probatório, não merecendo, por isso, qualquer censura a decisão sobre a matéria de facto constante nos pontos 1 a 7.

2.2Ponto de facto nº 8

O tribunal recorrido deu como assente que o arguido é licenciado em engenharia e arquitectura e mestre em ensino básico.

Das declarações que prestou em audiência resulta que afirmou ser mestre em saneamento básico e não ensino básico, assistindo-lhe razão, neste aspecto.

Daí que se julgue provado que o arguido é licenciado em engenharia e arquitectura e mestre em saneamento básico.

Em suma:

Com excepção da alteração introduzida ao ponto de facto provado nº 8, improcede, assim, a impugnação da matéria de facto, mantendo-se a decisão recorrida na íntegra.

2 – A medida concreta da pena

Sem tecer qualquer argumento factual, defende o recorrente que a pena deveria ser substancialmente reduzida.

A este propósito decidiu o tribunal recorrido:

«Feita a escolha da pena de multa enquanto pena a aplicar ao arguido pela prática dos crimes e encontradas da forma consignada as suas molduras abstractas – de 10 a 240 dias – cumpre ponderar as suas medidas concretas.

Urge fixar, dentro dos limites legais, o número de dias de multa, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do art. 71º do Código Penal, concretizado pelo n.º 2 do mesmo preceito, aplicável ex vi art. 47.º n.º 1 do mesmo diploma legal.

Prescrevem os artigos 40º e 71º n.º 1 do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, se faz em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes.

Nestes termos, a operação a efectuar na determinação da pena consiste na construção de uma moldura penal de prevenção geral de integração (em obediência à ideia de que o fim da punição reside na defesa dos bens jurídicos e das legitimas expectativas da comunidade, com vista ao restabelecimento da paz jurídica) e cujo limite mínimo é dado pela defesa do ordenamento jurídico, o ponto abaixo do qual não é socialmente admissível a fixação da pena, sem colocar em causa a sua função de tutelar bens jurídicos.

(…)

A ilicitude revelada pelo arguido na prática dos factos que integram os dois crimes de difamação, atento o carácter ofensivo das expressões proferidas em ambas as situações descritas nos factos provados, afigura-se mediana.

O arguido actuou com dolo directo, de intensidade elevada, pois sabia que ao proferir as referidas expressões estava a ofender a assistente na sua honra e consideração pessoal, e, ainda assim, não se inibiu de as proferir, o que efectivamente fez.

Também se consideraram os sentimentos que a assistente experienciou na sequência das expressões e palavras que o arguido dirigiu a terceiros a seu propósito.

Relevámos ainda o facto do arguido, em momento posterior ao descrito em 4., ter voltado a dirigir expressões ofensivas da honra da assistente a terceiros, persistindo no seu comportamento, o que agrava a sua culpa nos factos descritos em 2. e 3. e tendo por referência os descritos em 4.

Ao nível da prevenção geral as exigências são medianas atenta a frequência do cometimento destes crimes. Importa, portanto, acautelar situações futuras de ofensas à honra e dignidade da pessoa humana.

A favor do arguido atende-se, naturalmente, a circunstância de não apresentar anteriores condenações, a denotar que estamos perante uma situação isolada e pontual na sua vida.

Também depõe em favor do arguido a circunstância de se encontrar inserido social e profissionalmente.

(…)

No que concerne à tarefa metodológica da determinação do quantitativo diário da multa, importa salientar que aqui relevam, exclusivamente, a situação económico-financeira e os encargos pessoais do agente – cf. art. 47º, n.º 2 do Código Penal.

Assim, ponderando os factos provados em 9. a 11. e 13., decide-se fixar o quantitativo correspondente a cada dia de multa em € 10,00, por tal se afigurar adequado.

É que, como é sabido, para as situações que correspondem a verdadeira indigência social o Tribunal encontra-se balizado pelo limite mínimo (€ 5,00), afastando-se, em muito, a situação pessoal e financeira do arguido daquele estado, que detém, ao invés, uma situação financeira acima da média nacional. Neste contexto entendemos adequado fixar o quantitativo diário em € 10,00, um pouco afastado do limite mínimo imposto pela lei e imensamente afastado do seu limiar máximo.

Retém-se que o arguido, além de ser funcionário público, recebendo pelo exercício das suas funções na Câmara Municipal (...) o salário mensal de € 1.650,00, exerce ainda, de forma concomitante com tais funções e à noite, as de projectista, residindo ainda em casa própria.

(…)

Verificando-se que os crimes cometidos pelo arguido se encontram em concurso, cumpre efectuar o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas e desta forma aplicar uma pena única – cf.. art. 77º n.º 1 do Código Penal.

Dispõe o art. 77º n.º 2 do Código Penal que “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”

Já o n.º 3 do citado inciso legal prescreve que “se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”.

Do exposto resulta, então, terem sido aplicadas uma pena de 120 dias de multa e outra de 100 dias de multa.

Assim, surge-nos como limite máximo 220 dias de multa e como limite mínimo 120 dias de multa.

Importa, ainda, lembrar que, nos termos do art. 77º n.º 1 do Código Penal, na medida da pena única – cuja moldura abstracta se localiza nos indicados limites – são considerados, conjuntamente, os factos e a personalidade do arguido.

A pena única do concurso, formada no sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes (princípio da acumulação), deve ser, pois, fixada, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente.

Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.

Na consideração da personalidade (na personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente, sendo que só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante da moldura penal conjunta.

Considerar-se-ão, também, as exigências de prevenção geral e, especialmente na pena do concurso, os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento futuro do agente.

Atendendo a que os factos descritos em 2. e 4. não ocorreram no mesmo espaço e tempo, entendemos que os mesmos não se englobam num mesmo “ambiente”, ainda que todos partilhem da mesma motivação remota.

Não podemos deixar de atentar nos sentimentos que a assistente experienciou, mercê das condutas do arguido.

De reter ainda e uma vez mais que o arguido não tem antecedentes criminais e que se mostra inserido, tanto profissional como socialmente.

Assim, tendo presentes os princípios referidos, fixa-se, em cúmulo, a pena única de 170 dias de multa, à taxa diária de € 10,00.».

Resulta claramente do texto acabado de transcrever, que o tribunal recorrido ponderou correctamente todas as circunstâncias legais na determinação da medida concreta da pena, pelo que nenhum reparo nos merece.

3. Pedido Cível

Resulta do teor de fls. 89 a 93, que a assistente deduziu pedido cível contra o arguido, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 5 000€ (cinco mil euros), a título de indemnização pelos danos morais causados pela conduta do recorrente.

Nos termos do art. 400º nº 2 do CPP, só é admissível recurso relativo à indemnização civil, quando enxertada em processo penal:

«desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada».

São, pois, dois os pressupostos cumulativos para que um recurso seja admissível:

- valor do pedido superior à alçada do tribunal recorrido;

- a sucumbência do pedido há-de ser superior a metade do valor daquela alçada.  

Estatui o art. 44º, nº 1, 3 da Lei 62/2013,  de 26 de Agosto:

«Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5000, sendo a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção».

O Tribunal de Comarca de Viseu - tribunal recorrido - é um tribunal de primeira instância, cujo valor da alçada é de 5 000,00€.

Como o valor do pedido cível da Assistente é de montante igual a 5 000,00€ e não superior, a decisão que condenou o recorrente em indemnização cível, na quantia de 2 000,00€, não admite recurso, em função do valor.

A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula, o tribunal superior, nada obstando, assim, a esta instância, conhecer e apreciar os pressupostos de admissibilidade da Impugnação, conforme dispõe o art. 414º, nº 3, do Código de Processo Penal.

Nestes termos rejeita-se o recurso do pedido cível, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, al. b), segunda parte e art. 414º, nº 2, do Código de Processo Penal.

V – DECISÃO

Posto o que precede, acordam nesta Relação de Coimbra em:

- Julgar não provido o recurso, na vertente estritamente penal;

- Rejeitar o recurso, na parte atinente ao pedido cível.

Custas pelo Recorrente, na parte cível e criminal, fixando-se, quanto a esta, a taxa de justiça em 4 UCS.

Coimbra, 15 de Abril de 2015

(Alcina Costa Ribeiro - relatora)

(Elisa Sales - adjunta)


[1] Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 18-04-2012,Diário da República, I Série, Nº 98,  de 21 de Maio de 2012, pág. 2624, acessível em www.dgsi.pt , local onde poderão ser visualizados os Arestos de ora em diante citados sem menção do contrário.
[2]  Figueiredo Dias, Direito Penal Português-As consequências jurídicas do Crime, 1993, pág. 665 e 675.
[3] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Outubro de 2009 (Rel: Des. Olga Maurício).
[4] Figueiredo Dias, ob. citada, pág. 666.
[5] Publicado no Diário da República, I Série, Nº  18,  de 27 de Janeiro de 2015, pág. 586 e 587.
[6] Acórdão da Relação do Porto de 13 de Outubro de 2004, Colectânea de Jurisprudência, 2004, Tomo IV, pág. 217.
[7] A este propósito, cf. a jurisprudência citada por Pinto de Albuquerque, Código de Processo Penal Anotado à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição, pág.s 144 e 145.
[8] De 17.04.2013 (Relator: Pires da Graça).
[9] Direito Processual Penal”, Vol. I,  1974 páginas 233 a 234
[10] Figueiredo Dias,ob. citada, páginas 203 a 205..
[11] Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 30
[12] Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 131