Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3200/09.4TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PATRIMÓNIO
CÔNJUGE
PARTILHA
Data do Acordão: 05/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA 2º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 610º E 612º DO CC
Sumário: I – A impugnação pauliana abrange todos os bens alienados ainda que anteriormente fizessem parte de comunhão conjugal, podendo o credor impugnante penhorá-los na sua totalidade, ainda que um dos cônjuges não seja devedor face ao título executivo;

II – Com a transmissão válida para o património de terceiro, deixa de poder considerar-se a qualidade que o bem tinha antes da transmissão e de poder ser partilhado para se saber a qual dos cônjuges poderia vir a caber.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

A... propos, no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, acção com forma de processo ordinário contra B.... e mulher C.... , D... e E... , pedindo seja decretada a ineficácia em relação ao A. dos actos de doação que identificou, ordenando-se aos RR. a sua restituição de forma a que o A. se possa través deles pagar, mais se ordenando o cancelamento dos registos efectuados em nome dos RR.

Alegou, para tanto, em resumo, que, dispondo de um crédito sobre o 1.º R. de € 201.118,80, titulado por documento de confissão de dívida datado de 13.5.08 e por ele subscrito em seu nome pessoal e em representação da sociedade “F... , Lda.”, os 1.ºs RR., por escritura pública de 23.12.08, doaram prédios rústicos e um urbano aos 2.ºs RR., seus filhos, o que o impossibilita de obter a sua cobrança através da correspondente penhora, não dispondo, para tanto, os RR. de quaisquer outros bens para satisfação do crédito, tendo actuado com consciência de prejuízo causado ao credor.

Citados, contestaram os RR., excepcionando a pendência de oposição à execução intentada pelo A. contra o 1.º R. e a aludida sociedade comercial, onde arguiu a inexequibilidade ou inexistência do título executivo traduzido na mencionada declaração de dívida, sustentando, por isso, a suspensão da instância até prolação de sentença na oposição, mais alegando os 1.ºs RR. serem casados um com o outros no regime da comunhão geral de bens e a falta de comunicabilidade da dívida do 1.º, pelo que o A. só pela meação que este tem nos bens comuns do casal pode fazer-se pagar e dispõem de outros bens, já penhorados à ordem do A., onde a meação do 1.º R. é mais que suficiente para pagamento da dívida.

Concluíram pela absolvição da instância ou do pedido.

O A. apresentou resposta para concluir como na petição inicial.

Na sequência de audiência preliminar foi elaborado o despacho saneador, que indeferiu a suspensão da instância e seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, não foram objecto de reclamação.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida decisão sobre a matéria de facto, igualmente sem reclamação.

Proferida sentença, foi a acção julgada parcialmente procedente e declarada ineficaz a doação, podendo o A. executar os respectivos bens no património dos donatários, absolvendo-os do pedido de restituição desses bens e do cancelamento dos registos efectuados.

Inconformados com o assim decidido, recorreram os RR., apresentando alegações que finalizaram com as seguintes úteis conclusões:

a) – Não há qualquer comunicabilidade da dívida para a mulher do 1.º R.;

b) – O devedor originário é a sociedade “ F..., Lda.” e não B... de acordo com o disposto no art.º 1692.º, alín. a), do CC, uma vez que o proveito comum do casal não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar;

c) – O A. apenas dispõe de um título contra um dos cônjuges;

d) – A dívida que constitui o 1.º pressuposto da acção de impugnação pauliana é pessoal, só do 1.º R., que é casado no regime de comunhão geral de bens;

e) – Esse R., ao assinar a declaração de dívida que constitui o título executivo não agiu no exercício do comércio, não havendo, assim, que considerar a presunção prevista no n.º 1 do art.º 1691.º, alín. d) do CC, não sendo a Ré mulher responsável por essa dívida;

f) – A questão da alienação de bens em contitularidade no âmbito da impugnação pauliana impõe, à partida, que o co-alienante, se não é condevedor ou responsável pela dívida, não poderá ser responsabilizado pelos actos do devedor;

g) – Admitir o contrário seria contraria o disposto no art.º 483.º, n.º 2, do CC, admitindo a hipótese de responsabilidade objectiva;

h) – Os requisitos da acção pauliana devem verificar-se em relação a todos os intervenientes e sendo a dívida do A. uma dívida exclusiva da responsabilidade do 1.º R. e os imóveis doados bens comuns do casal, a acção pauliana só pode proceder em relação à quota parte/meação do R. marido;

i) – A garantia patrimonial do A. não poderia passar além da metade do valor dos bens doados, já que, por força do regime de bens, a outra metade pertencia à R. mulher, que não foi vista nem achada na assinatura do documento que deu azo à execução;

j) – A decisão recorrida deve ser parcialmente, pelo menos, revogada, considerando-se a acção procedente somente em relação à quota/meação do 1.º R., pelo que violou o disposto nos art.ºs 1691.º, n.ºs 1, alín. d) e 3, 1692.º, alín. a) e 610.º, do CC.

Houve lugar a resposta do A. onde pugnou pela bondade da decisão.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir, sendo a questão decidenda colocada nestes termos:

- Se devia proceder somente quanto à “quota-parte/meação” do 1.º R., a impugnação pauliana da doação efectuada por ambos os cônjuges de bens comuns do casal, por a dívida ser da responsabilidade apenas daquele.


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2. Fundamentação

a) – De facto

A sentença recorrida considerou provada a seguinte matéria de facto, que não foi impugnada, nem motivos há para que esta Relação a modifique oficiosamente:

1. Entre “ F..., Lda.”, A...e B..., com a epígrafe Confissão e reconhecimento de Dívida com Acordo de Pagamento, datado de 13 de Maio de 2008, foi outorgado um documento em que aquela sociedade reconhece ser devedora de A...da quantia de € 202.498,00 referente a empréstimos, comprometendo-se a pagar a mesma do seguinte modo:
Nos meses de Janeiro a Novembro, inclusive, entregará a A..., no dia 15, a quantia de € 2.500,00 e no mês de Dezembro a quantia de € 5.000,00.

B... reconhece a dívida na sua totalidade e responsabiliza-se pelo seu pagamento, declarando, tal como a sociedade acima identificada, aceitar a confissão de divida e o acordo de pagamento.

O não pagamento de uma das prestações na data do seu vencimento dará a A...a faculdade de exigir judicialmente da sociedade e de B...a totalidade da quantia em dívida.

Igualmente se extrai que as assinaturas dos três outorgantes foram reconhecidas presencialmente.

2. O réu B... apenas liquidou duas prestações no valor total de € 5.000,00.

3. Atendendo ao aludido em 2 o autor intentou acção executiva que corre os seus termos com o n.º 155/09.9 TBLRA, no 2º Juízo Cível deste Tribunal, em que foi dado à execução o documento referido em 1 e cuja quantia exequenda ascende a € 201.118,80.
4. Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Leiria, em 23 de Dezembro de 2008, B... e C... declaram doar ao seu filho D... os prédios rústicos sitos em ..., ... e ..., freguesias de ... e ..., Concelho de Leiria, inscritos na matriz predial com os art.ºs 3798, 3617 e 4117, descritos na 2ª Conservatória do Registo Predial de Leiria sob os n.ºs 5280, 5276 e 5285, e que este aceitou.

5. Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Leiria, em 23 de Dezembro de 2008, B... e C... declaram doar à sua filha E...os prédios rústicos sitos em ..., ... e ..., freguesia de ..., Concelho de Leiria, inscritos na matriz predial com os art.ºs x..., , y... e z..., descritos na 2ª Conservatória do Registo Predial de Leiria sob os n.ºs k..., w..., q... e h..., e que esta aceitou.

6. Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Leiria, em 23 de Dezembro de 2008, B... e C... declaram doar aos seus filhos D... e E..., em comum e em partes iguais, um prédio urbano composto de casa de rés-do-chão para habitação, dependência e logradouro, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Leiria, inscrito na matriz predial com o art.º i..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º j...e que estes aceitaram.

7. O mencionado em 4, 5 e 6 foi levado a registo pelas apresentações n.ºs 51, 52 e 53 de 30/12/2008.

8. Os prédios sitos em ..., a que correspondem as descrições n.ºs 5276, w... e k... encontram-se penhorados a favor de G... , Lda, desde 29/12/2008, para garantia da quantia exequenda de € 106.767,10, bem como o prédio urbano composto de casa de habitação de cave e rés-do-chão, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Leiria, inscrito na matriz predial com o art.º l... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º m....

9. Os réus B... e C... não possuem qualquer outro bem susceptível de satisfazer o crédito do autor.

10. B... e C... são casados no regime de comunhão geral de bens.

11. Na execução aludida em 3 encontra-se penhorada a habitação de B... e C..., inscrita na matriz sob o art.º l... e descrita na Conservatória do Registo Predial de Leiria com o n.º m..., impendendo uma penhora anterior datada de 29/12/2008, a favor de “ G... Lda.”, um prédio rústico inscrito na matriz sob o art.º n... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria com o n.º o...e todos os bens móveis que se encontravam no interior da casa de habitação.

12. B... dizia que tinha propriedades para poder proceder ao cumprimento do acordado em 1.

13. Os réus agiram com consciência do prejuízo que com a sua actuação provocavam ao autor e que consiste na impossibilidade de este obter a cobrança do seu crédito através da penhora dos aludidos imóveis.

14. O réu B... foi interpelado por diversas vezes para proceder ao pagamento da quantia aludida em 1.


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b) – De direito

A impugnação pauliana, cujo nome faz jus ao pretor romano que a criou, pode definir-se, na síntese de Almeida Costa[1] como a faculdade que a lei concede aos credores de rescindirem judicialmente os actos verdadeiros celebrados pelos devedores em seu prejuízo.

Trata-se, pois, de um meio de conservação da garantia patrimonial estabelecida em benefício dos credores.

São seus requisitos (art.ºs 610.º e 612.º, do CC):

a) – A existência de um crédito;

b) – A prática pelo devedor de um acto que não seja de natureza pessoal que provoque no credor um prejuízo traduzido na impossibilidade de obtenção da satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa possibilidade;

c) – A anterioridade do crédito relativamente ao acto ou, se posterior, ter sido o acto dolosamente praticado com finalidade de impedir a satisfação do direito do futuro credor;

d) – Que o acto seja de carácter gratuito ou, se oneroso, que o devedor e 3.º tenham agido de má fé.

São requisitos que se revêem na factualidade provada e não constituem discórdia entre as partes.

Antes da reforma processual operada pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12 o art.º 825.º, n.º 1, do CPC consagrava uma moratória quanto à execução movida contra um só dos cônjuges, ficando suspensa a execução, após penhora do direito à meação do devedor, até que fosse dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento ou decretada a suspensão judicial de bens.[2]

Face à nova redacção desse preceito, aditada no interesse dos credores, na execução movida contra um só dos cônjuges podem ser penhorados directamente bens concretos do património comum do casal, desde que não conhecidos bens suficientes próprios do executado, citando-se o cônjuge do executado para requerer, por apenso, em 20 dias, a separação de bens (ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que tenha sido requerida) em processo de inventário (art.º 1406.º do CPC), então ficando suspensa a execução até à partilha e se os bens penhorados não couberem ao executado podem ser penhorados outros que lhe tenham cabido, permanecendo a anterior penhora até nova apreensão (n.º 7).

E se assim é quando os bens estão no património do casal, garantia inferior não pode ser devida ao credor se os bens forem transferidos para outrem, v. g., por doação.

Daí que se entenda que a impugnação pauliana abranja todos os bens doados ainda que anteriormente fizessem parte de comunhão conjugal, podendo o credor impugnante penhorá-los ainda que um dos cônjuges não seja devedor face ao título executivo.

Aliás, se na comunhão conjugal não pode conceber-se meação em bens certos e determinados, na medida em que constituem uma massa patrimonial com especial afectação e pertencem a ambos os cônjuges como titulares de um único direito sobre ela[3], transitando validamente os bens para terceiro (como é apanágio da impugnação pauliana), descabida é conceber qualquer meação.

Afectação essa a que a própria Ré não devedora pôs cobro ao intervir, com o cônjuge devedor, na alienação dos bens.

Seguindo aqui de perto o Ac. STJ de 13.12.05[4], na impugnação pauliana, porque o contrato de alienação é válido, o bem de terceiro (no caso dos filhos dos RR.) é um bem deles que irá ser objecto de execução, pelo que não há que colocar a questão, no momento em que é alvo da impugnação, se é próprio ou comum do casal.

É, então, um bem de terceiro a restituir ao património do cônjuge devedor, sem perder a natureza de bem de terceiro e, por isso, nunca a acção pode proceder apenas em parte, isto é, restrita à meação que o cônjuge devedor haveria tido (e deixou de ter) nos bens alienados, que se mantêm na titularidade dos adquirentes.

É certo que segundo o n.º 1 do art.º 1696.º do CC pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns.

Todavia, com a transmissão dos bens para o património de terceiro deixa de poder considerar-se a qualidade que o bem tinha antes da transmissão. Deixa de poder partilhar-se para se saber se o bem viria a caber ao cônjuge devedor do credor impugnante ou ao cônjuge não devedor.

Daí que, por os bens serem já de terceiro e não comuns do casal, em que um dos membros é devedor, desde logo deixa de poder colocar-se a questão da citação a que alude o n.º 1 do citado art.º 825.º do CPC.

Em suma, tendo em vista a execução instaurada (ou a instaurar), uma acção de impugnação pauliana não pode ser julgada procedente apenas quanto à meação que ao cônjuge devedor poderia caber nos bens comuns alienados, podendo a execução incidir sobre a totalidade de tais bens, como assim decidiu a douta sentença.[5]

Assim sendo, soçobram as conclusões recursivas.


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            3. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

            I – A impugnação pauliana abrange todos os bens alienados ainda que anteriormente fizessem parte de comunhão conjugal, podendo o credor impugnante penhorá-los na sua totalidade, ainda que um dos cônjuges não seja devedor face ao título executivo;

            II – Com a transmissão válida para o património de terceiro, deixa de poder considerar-se a qualidade que o bem tinha antes da transmissão e de poder ser partilhado para se saber a qual dos cônjuges poderia vir a caber.


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            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelos recorrentes.


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Francisco Caetano (Relator)

António Magalhães

Ferreira Lopes


[1] “Direito da Obrigações”, 3.ª ed., pág. 600.
[2] Era a seguinte a redacção: “Na execução movida contra um só dos cônjuges, a execução dos bens comuns fica suspensa, depois de penhorado o direito à meação do devedor até ser exigível o cumprimento nos termos da lei substantiva”.
[3] V. Pereira Coelho, “Curso de Direito da Família”, 1977, pág. 397.
[4] CJ, 2005, III, pág, 162.
[5] V., ainda no mesmo sentido, os Acs. STJ de 6.11.08, Proc. 07B4517, 18.4.02, Proc. 02B3424, 30.4.02, Proc. 02A4258 e 11.3.99, Proc. 00B195, in www.dgsi.pt. e RC de 27.1.04, CJ, 2004, I, pág. 32.