Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
306/17.0T8GRD-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
CUSTAS
Data do Acordão: 11/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA, GUARDA, JUÍZO LOCAL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 3, 17, 18, 186, 303, 304 CIRE, 527, 640 CPC
Sumário: 1.- No recurso, em sede de impugnação da matéria de facto, impõe-se o cumprimento rigoroso do ónus de especificação ( art.640 nº2 CPC), sob pena de imediata rejeição, sem que haja lugar a despacho de aperfeiçoamento, visando-se impedir que a impugnação se transforme numa mera e genérica manifestação de inconformismo.

2.- O art.186 do CIRE deve ser interpretado no sentido de que as alíneas do nº2 consagram presunções absolutas de insolvência culposa, e as alíneas do nº3 presunções relativas de insolvência culposa .

3.- Deve ser colocada alguma exigência no preenchimento da previsão normativa das alíneas h) e i) do nº2 do art.186 CIRE, no sentido de ser exigida alguma “densidade” factual para poder dar como satisfeitas/provadas as expressões “em termos substanciais”, “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” e “de forma reiterada”.

4.- As custas no incidente de insolvência culposa estão sujeitas às regras do vencimento ( art.527 CPC), devendo suportá-las o requerente que decaiu na pretensão.

Decisão Texto Integral:



            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A “L (…)”, doravante apenas designada por Liga, foi declarada insolvente por sentença de 24 de maio de 2017 já transitada em julgado (fls 32 e segs dos autos principais).

O presente incidente de qualificação de insolvência foi requerido pela credora “E (…) Lda”, cujo crédito de 7.442,03€ foi reconhecido e graduado como comum no apenso B.

Requereu o incidente (e afectação) contra os membros da Direção e da Mesa da Assembleia nos últimos três anos

Alegou, em suma, que foi a responsável pela contabilidade da Liga até fins de janeiro de 2016 e que os elementos contabilísticos fornecidos por esta não espelhavam a realidade, sendo ocultados e distorcidos elementos que impediram a mesma de emitir as declarações fiscais devidas e que ficassem por encerrar os anos contabilísticos desde 2012.

Nem sequer foi informada da existência de um contrato de trabalho com a requerente da insolvência, sendo que esta própria chegou a emitir recibo de prestação de serviços em regime de avença, tendo havido distorção da realidade para gerar um crédito a favor da mesma e que fundamentou a p.i. de insolvência.

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Foi declarado aberto o incidente, por despacho de 8/08/2017 (fls 26).

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A fls 44 e segs, a Sra AI veio apresentar o parecer a que alude o art.º 188º nº2 do CIRE.

Em tal parecer conclui que a Liga não tinha contabilidade executada e contas prestadas desde 2012, por não ter sido habilitado o CC (contabilista certificado) com a documentação necessária o que não permitiu o conhecimento real da situação da devedora.

Para além disso a Direção desinteressou-se do projeto da Liga.

Entende que se mostram verificadas as alíneas b) e h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE e que deverão ser afetados os membros dos órgãos sociais da administração da Liga.

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O Ministério Público acompanhou o parecer da Sra AI, no que respeita à verificação do requisito a que alude a alínea b) do nº 3 do artº 183º do CIRE.

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A fls 60 e segs, J (…) deduziu oposição dizendo que como Presidente da Mesa da Assembleia não pertenceu à administração da Liga, não podendo ser afectado com a qualificação da insolvência como culposa.

Sempre cumpriu com as suas obrigações legais e estatutárias.

Mas do que sabe, a situação de insolvência não foi provocada ou potenciada pela Direção, mas por factores externos como a diminuição de utentes e redução de apoios da segurança social e as questões da contabilidade ocorreram devido à própria requerente que criou conflitos com a Direção, exigindo documentos que não existiam já de Direções anteriores, recusando-se a entregar contas e a aceitar a sua substituição por outro profissional.

Contestou o Presidente da Direção, (…), dizendo que foi ele, embora residente em Lisboa, que por razões afectivas a x... investiu dinheiro próprio para a criação de um Centro de Dia de apoio a idosos, gerido pela Liga e que veio a ter o seu nome ((…)).

Com o passar dos anos, as Direções da Liga vieram a modificar os fins do prédio que construiu, destinando-o a Lar, embora nunca o legalizassem com tal.

Em 2013 aceitou assumir a Presidência da Direção, deixando claro que não tinha condições para exercer a gerência de facto, que nunca exerceu, embora se fosse inteirando do que se passava.

Tentou, em vão, fazer o saneamento financeiro da Liga.

Não teve qualquer culpa na insolvência, bem pelo contrário.

Os demais requeridos opuseram-se a fls 85 e segs, imputando as culpas da situação das contas à própria E (…).

O que levou à insolvência fora as irregularidades várias que se vinham sentindo das Direções anteriores e que foram denotadas no relatório inspectivo da Segurança Social de janeiro de 2013 onde se fizeram exigências que não foi possível satisfazer, não obstante os vários esforços e empenho da Direção que tomou posse em 2013 e que descreveram.

Foi proferido despacho sanedor, no qual se julgou improcedente a excepção de ilegitimidade invocada pelos requeridos A (…) e demais subscritores de tal contestação, fixado o objeto do litígio e os temas da prova – fls 176 a 178.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais, com recurso à gravação dos depoimentos prestados, após o que foi proferida a sentença de fl.s 335 a 348, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e a final, se decidiu julgar o incidente de qualificação como não provado e improcedente, com a consequente absolvição dos requeridos no pedido e qualificando-se a insolvência como fortuita, ficando as custas a cargo da requerente.

 

Inconformada com a sentença proferida, dela interpôs recurso a requerente, E (…), recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 416), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

(…)

Contra-alegando, o MP, em 1.ª instância, defende a improcedência do recurso, com o fundamento em que a prova produzida foi bem apreciada e a situação que conduziu à falência da requerida se verificou em situação anterior à tomada de posse da Direcção composta pelos aqui requeridos e, ainda, porque a falta de contabilidade organizada e de apresentação de contas, se iniciou com a anterior Direcção e a visada (os seus Membros) em nada contribuiu para a situação de insolvência, dado que a situação da insolvente era do conhecimento geral da comunidade.

Contra-alegando, os requeridos (…) peticionam a rejeição do recurso de facto, por a recorrente não ter indicado, por referência aos assinalados pontos incorrectamente julgados, quais os meios de prova em que se fundamenta; assim não sendo, que a prova foi bem apreciada e devendo manter-se a decisão recorrida, com o fundamento em que a situação de falência em que caiu a insolvente, não se ficou a dever a questões/problemas de contabilidade, mas sim à falta de recursos financeiros que permitissem a legalização da valência de lar que, já se verificava antes da tomada de posse da Direcção, de que faziam parte os ora requeridos.

Acrescentam, que embora se verifique a falta de contabilidade organizada e a não prestação de contas, nunca existiu uma contabilidade fictícia, nem qualquer irregularidade, com o objectivo de ocultar a sua real situação financeira.

Contra-alegando, o requerido M (…), com fundamentos coincidentes com os dos demais recorridos, pugna pela rejeição do recurso de facto e no mais, estribando-se nos fundamentos exarados na sentença recorrida, defende a improcedência do recurso, mantendo-se aquela.

Como resulta do relatório que antecede, a ora recorrente parece pretender colocar em causa a decisão recorrida, no tocante à fixação da matéria de facto dada como provada, (embora, nos termos que constam das suas conclusões, acima transcritas, nada se refira quanto a tal).

No entanto, no que apelida de “Introdução” às alegações de recurso, refere que alguns itens da matéria de facto foram incorrectamente apreciados (em termos que mais à frente se mencionará).

Mas, se é essa a sua intenção, fá-lo em termos que acarretam a que se conclua que, o recurso, no que à matéria de facto respeita, não está conforme aos ditames legais aplicáveis, pelo que desde logo, em sede de questão prévia, importa apreciar a questão da rejeição do recurso de facto, com o fundamento em a recorrente não ter cumprido o disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do CPC (no que seguiremos de perto o por nós já decidido, em anteriores Apelações).

De acordo com este preceito, em caso de impugnação da matéria de facto e se trate da reapreciação de provas gravadas, sob pena de rejeição, deve o recorrente indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com exactidão as passagens da gravação em que se funda e, disposição inovadora, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Ora, como resulta da acta da audiência de julgamento, procedeu-se à gravação dos depoimentos prestados, no sistema de gravação digital em aplicação informática, em uso no Tribunal recorrido.

Assim, nos termos do disposto no supra citado artigo 640.º, o recorrente, em caso de recurso sobre a matéria de facto, para além da indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, tem de indicar, com exactidão, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, as passagens da gravação em que se funda o mesmo, bem como a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

A recorrente, cf. alegações e conclusões apresentadas (sendo que estas, como consabido e adiante se referirá, é que delimitam os termos do recurso), cf. fl.s 201 v.º e 202 e 204 a 206, limita-se a referir o seguinte:

“Nesta senda, consideramos que devem ser qualificados como não provados os seguintes factos que a douta sentença considerou provados, sumariando-se o motivo que melhor se exporá nos pontos seguintes:

1. Ponto 9 - “Nos primeiros dias de mandato os Requeridos aperceberam-se de imediato, da complexa situação em que se encontrava a Liga”

Houve uma transação de um membro da direção – a tesoureira, pelo que havia pleno conhecimento da situação antes da data apontada, pelo que este argumento não deverá ser considerado.

2. Ponto 10 - “Envidaram esforços para resolver os problemas da Liga e assegurar o seu funcionamento” .

Não houve colaboração com o Contabilista Certificado para regularização da contabilidade, não houve pedido de redução de coimas, não foi apresentada defesa à aplicação da tributação autónoma, não houve investigação para descobrir o paradeiro de quantias de dinheiro avultadas e quando o Requerido M (…) se predispôs a sanear financeiramente a Liga dos Amigos de x... , os restantes membros desistiram do desiderato, tendo este requerido acabado por se desinteressar igualmente do projeto.

3. Ponto 16 - “Desde que a Direção fez diversos contactos escritos, (…) com vista à regularização da situação da liga.”

O Relatório da Sr.ª Administradora Judicial, a própria vice-presidente e a Segurança Social, confirmam o desinteresse expressamente manifestado, o qual foi acompanhado por uma tentativa de alienação do património à Raríssimas, com as consequências que daí adviriam.

4. Ponto 17 - “Por falta de fundos, não foi possível à Direção fazer obras necessárias”

Existiam fundos, alguns deles aplicados em pagamentos de indemnizações, quando houve desinteresse, houve um protocolo com uma empresa que atribuiu uma verba efetivamente recebida para realização de obras, a própria Câmara Municipal do y... colaborava, havia dinheiro “desaparecido” cujo paradeiro poderia ter sido investigado, além de que o pedido de licenciamento ultrapassava largamente o número de utentes que aí se encontravam. Ao que acresce que o Presidente M (…) se predispôs a sanear financeiramente a Liga dos Amigos de x... .

5. Ponto 21 - “Os Requeridos lavraram todos os esforços ao seu alcance para manter em funcionamento as valências da Liga”

Reitera-se o que foi dito no ponto 2, 3 e 4.

6. Ponto 28 - “(…) a nova direção tentou resolver (…) com vista ao encerramento das contas (...)”

Não tentou resolver, uma vez que apenas pretendia que as contas fossem apresentadas com alguns dados, com ocultação e não produção de documentos de suporte, e com registos em anos diferentes dos da verificação dos factos originários, impossibilitando a produção de demonstrações financeiras fidedignas.

7. Ponto 29 - “A Requerente não submeteu (…) as contas dos anos de 2012 e seguintes”.

As contas foram submetidas para não penalizar a Liga, mas não foram assinadas pelo Contabilista certificado, pois não concordando este profissional com o seu teor, havia a possibilidade e compromisso dos órgãos sociais (que acabou por não ser cumprido) de as retificar.

8. Ponto 30 - “A Direção ia entregando os documentos que conseguia descobrir nas instalações”

Alguns documentos eram ocultados, deliberadamente não entregues, alguns dos quais eram produzidos na própria liga, havendo obrigação de os produzir e possuir. Além de que o contrato impunha a entrega mensal, o que se provou nunca ter acontecido.

9. Ponto 50 - “(…) que relata que desde 2011 que se apercebe da ocultação (...)”

Não foi em 2011, até porque essas contas se encontram encerradas. O que sucedeu e se deixou explícito, foi que em 2013, o Contabilista Certificado se apercebeu que foram ocultados dados em 2011 que a atual direção não quis regularizar no ano da sua verificação como impõe o princípio contabilístico da especificação do exercício económico.

Por sua vez, consideramos que devem ser qualificados como provados os factos enunciados de a) a e), considerados não provados na douta sentença, a saber: (Cfr. fls.339 verso )

a) Os Requeridos não entregavam deliberadamente documentos que possuíam;

Provou-se exatamente o contrário, através de vários elementos probatórios.

b) A falta de apresentação (entendida como a apresentação de contas assinadas) deveu-se exclusivamente ao facto da Direção não entregar os documentos necessários;

Facto provado pela vasta documentação junta das comunicações trocadas e pela autorização concedida pelo Sr. Bastonário da Ordem dos Contabilistas Certificados.

c) O Presidente da Direção foi contactado para prestar informações e entregar documentos e não o fez;

A Sr.ª Administradora mencionou este facto no Relatório e confirmou em depoimento, sendo que a morada coincidia com a constante nos autos.

d) Os Requeridos desinteressaram-se do projeto;

Esta postura consta de vários documentos juntos aos autos, desde o Parecer da Sra Administradora de Insolvência, a uma comunicação da requerida A (... ), uma declaração emitida pela Segurança Social ou mesmo os articulados dos requeridos.

e) A atuação dos Requeridos contribuiu para o agravamento da situação da Liga.

A falta de apresentação de contas, da exclusiva responsabilidade dos órgãos sociais, e a preterição do cumprimento de normas fiscais elementares, originaram um défice, que os órgãos sociais aceitaram, nada tendo feito, nem neste particular, nem noutros semelhantes.”.

Após o que, como se constata de fl.s 352 e seg.s, não mais especifica qualquer item da matéria de facto, que pretende ver alterado, por remissão aos depoimentos prestados ou outros elementos probatórios.

Efectivamente, com excepção do que acima se transcreveu, define a requerente 9 pontos de discordância, relativamente à sentença recorrida e, em alguns deles transcreve trechos de depoimentos testemunhais e refere documentos, sendo tais pontos os seguintes:

“1. Da alegada falta de conhecimento da situação da Liga (fl.s 352);

2. Da alegada conflitualidade com o gabinete de contabilidade (fl.s 353 v.º);

3. Da falta de contabilidade organizada após renúncia da requerente (fl.s 356 v.º);

4. Da falta de colaboração para a elaboração da contabilidade organizada (fl.s 358);

5. Da ilegitimidade passiva do requerido J (... ) (fl.s 364 v.º);

6. Da falta de apresentação à insolvência (fl.s 365 v.º);

7. Da falta de colaboração com a Sr.ª Administradora Judicial (fl.s 368);

8. Análise (crítica) das provas (fl.s 369) e;

9. Das custas judiciais (fl.s 371)”.

Após o que se seguem as conclusões.

Inexiste, pois, uma ligação de tal descrição/motivação com a matéria de facto anteriormente referida e fundamentada, específica e concretamente, com base nos elementos probatórios em que assenta a pretensão recursiva, em sede de matéria de facto, por reporte, reitera-se, a cada um dos itens da matéria de facto dada por provada e não provada, a qual não pode ser baseada em alegações genéricas de discordância ou por apelo a trechos de depoimentos ou de documentos constantes dos autos, sem se saber, em concreto, qual a matéria de facto em causa, que está delimitada e descrita em cada um dos seus vários itens, como, de resto, na referida “Introdução”, a requerente sinalizou, mas sem que, depois, tenha associado, a cada um deles, quais os elementos probatórios atinentes, com o exige o preceito acima referido.

Consequentemente, tem de concluir-se que o seu recurso, em sede de impugnação da matéria de facto, não obedece aos critérios expostos no referido artigo 640.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do CPC, pelo que tem de ser, imediatamente rejeitado, sem que exista lugar a qualquer despacho de aperfeiçoamento – neste sentido, veja-se Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Reimpressão, Almedina, Fevereiro de 2008, pág.s 141 a 143 e F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos Em Processo Civil, 6.ª edição, Almedina, Setembro de 2005, a pág. 171, último parágrafo e nota 354.

Também o STJ, se pronunciou no sentido de que o incumprimento do ónus de alegação em causa, conduz à imediata rejeição do recurso, entre outros, nos seus Acórdãos de 15/09/2011, Processo 1079/07.0TVPRT.P1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj e de 23/11/2011, in CJ, STJ, Ano XIX, Tomo III/2011, a pág. 126 e seg.s.

Como refere Abrantes Geraldes, ob. cit., a pág.s 142 e 143, as exigências contidas nos preceitos em referência devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor e visando impedir que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação inconsequente de inconformismo.

E, como se salienta, nos Arestos do STJ ora citados, só exigindo-se o fundamento da discordância, se apontem as passagens precisas dos depoimentos que fundamentam a concreta divergência, que se explique em que é que os concretos depoimentos contrariam o julgamento da matéria de facto operado no Tribunal recorrido, se dará cabal cumprimento ao princípio do contraditório, só assim se permitindo à parte contrária a possibilidade de contrariar os argumentos invocados pelo recorrente.

Compulsando o teor das alegações e conclusões de recurso (estas, completamente omissas, no que a esta questão respeita, o que, desse logo, aplicando o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, em bom rigor – que é o que decorre dos mesmos – levaria a que nem sequer se abordasse a questão do recurso da matéria de facto), tem de concluir-se que a recorrente, manifestamente, não cumpriu o ónus imposto pelo artigo 640.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, al. a), do CPC, o que acarreta a rejeição do recurso no segmento relativo à matéria de facto, nos termos ali constantes.

Também, para tal não basta alegar o que consta de certos documentos juntos aos autos (e sempre, reitera-se, com a pecha de que se desconhece a que item, em concreto, se refere a recorrente).

Os documentos são meios de prova constantes do processo, mas para se fundamentar o recurso de facto com base no seu teor não basta alegar o que deles consta.

Efectivamente, é preciso especificar o porquê de os mesmos levarem a um diferente juízo do efectuado em 1.ª instância, como resulta do disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. b), do CPC, com excepção, claro está, de se tratar de documento autêntico desconsiderado e que faça prova plena de um facto dado, não obstante isso, como não provado ou um documento superveniente que imponha diversa decisão – cf. artigo 662.º, n.º 1, do CPC (antigo 712.º, n.º 1, b) e c), o que não é o caso.

Ora, como resulta de fl.s 340 a 344 e das respostas dadas a cada facto (ao deante transcritas), a M.ma Juiz a quo apreciou cada um dos documentos ali referidos e explicou, justificando e conexionando-os com os depoimentos prestados, o porquê da análise em termos probatórios relevantes que deles fez, por reporte com a prova testemunhal produzida e decidiu em conformidade.

Alguns deles foram impugnados, mas os mesmos foram tidos em conta pelo julgador e incumbia à recorrente, justificadamente, “desmontar” o raciocínio exposto na fundamentação da matéria de facto tida como provada e não provada.

Como resulta do já exposto, é imposto aos recorrentes, em sede de matéria de facto, o ónus de indicar os fundamentos da sua discordância, até para a contra-parte poder exercer o contraditório.

O facto de o recurso de facto se fundamentar, também ou apenas, na prova documental, não afasta o ónus de a respectiva motivação ser fundamentada, sob pena se desvirtuar o intuito do legislador ao regulamentar o respectivo regime que teve em vista facultar às partes uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito, tendo o recorrente o ónus de os apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso, decorrendo este especial ónus de alegação do recorrente dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado – como resulta do Preâmbulo do DL 39/95, de 15/2 e o refere Abrantes Geraldes, ob. cit., a pág. 143, nota 195.

Do que se deixa dito, decorre, ainda, que na sentença recorrida se faz uma análise crítica das provas, em conformidade com o disposto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC, sendo que a recorrente discorda da forma como foi apreciada a prova produzida mas, tal não acarreta que a decisão recorrida padeça de tal vício.

Pelo que se rejeita o recurso interposto pela recorrente, no que se refere à matéria de facto, em função do que se mantém a factualidade dada como provada e não provada em 1.ª instância.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.   

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Qualificação da insolvência: se a mesma é de qualificar como fortuita ou culposa e;

B. A quem incumbe a responsabilidade pelo pagamento das custas devidas, inerentes ao incidente de qualificação da insolvência, a que se reportam os presentes autos.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1) A L (…) é uma instituição de solidariedade social sem fins lucrativos, sita em x... , com actividades de apoio a pessoas idosas, tendo sido criada para a prestação de serviços de Centro de Dia e Apoio Domiciliário, estando registada na Segurança Social desde (... )/06/1998, Livro (... ) sob o nº (... ) a fls (... )verso – declaração da segurança social de fls 8 verso dos autos principais.

2) A Liga suportava as despesas e encargos mensais com receitas provenientes da comparticipação familiar dos idosos (mensalidades), comparticipação ao abrigo de protocolos de cooperação com a Segurança Social, subsídios das autarquias locais, Câmara Municipal do y... e Junta de Freguesia de x... , quotas dos sócios da liga e donativos.

3) No dia 26/06/2013 foram eleitos novos os novos membros dos órgãos sociais para o triénio 2013-2016, sendo a Direção composta pelos seguintes: (…) ata nº 7/2013 de fls 97 a 98

4) O requerido J (…) foi eleito Presidente da Mesa da Assembleia Geral – idem.

5) Este último nunca administrou ou geriu a referida IPSS, no período em causa, limitando-se a cumprir as suas funções enquanto Presidente da Mesa, nomeadamente convocando as assembleias ordinárias e extraordinárias, presidindo às mesmas, assinando as repetivas atas sociedade – documentos de fls 62 a 71 e livro de atas da Assembleia Geral junto aos autos.

6) A tomada de posse dos membros da Direção e da Assembleia tomaram posse em 24/07/2013 – ata de fls 99

7) Em janeiro de 2013 (antes da nomeação e tomada de posse da nova Direção) o ISS IP já havia comunicado por carta à Liga uma série de recomendações relativas ao relatório de visita de acompanhamento, salientando várias irregularidades entre as quais a existência de Lar de Idosos a funcionar ilegalmente, a falta de plano interno de segurança, a falta de documentação relativos às instalações (seguros obrigatórios, licença de utilização, certificados de vistoria sanitária e de condições de segurança), etc – documento de fls 96

8) Tendo concedido à Liga um prazo de 10 dias para iniciar os procedimentos tendentes à implementação das recomendações. – idem

9) Nos primeiros dias de mandato os requeridos aperceberam – se, de imediato, da complexa situação em que se encontrava a Liga, com dívidas a fornecedores, coimas por não pagamento de Impostos, desorganização do serviço e pessoal, ausência de valor em caixa, nas contas bancárias, etc

10) .Envidaram esforços para resolver os problemas da Liga e assegurar o seu funcionamento.

11) A Direção reunia todos os meses, onde debatiam e decidiam sobre assuntos diversos, essenciais à Instituição e ao seu funcionamento diário

12) Distribuíram tarefas entre si, ficando a requerida A (…) com as questões relacionadas com a S. Social, I.E.F.P, processos sociais e recursos humanos; a requerida C (…) com questões relacionadas com a prestação de cuidados de saúde médicos e de enfermagem aos utentes, aquisição e distribuição de medicação e, com assuntos relacionados com fornecedores; e o requerido S (…), por auxiliar os demais membros da direção nas suas tarefas - ata n.º 22/2013 de 16/10/2013.

13) Tentaram criar um quadro de pessoal técnico especializado, que assegurasse a organização interna da Instituição

14) Em reunião da Direção de 16 de Setembro de 2013 foi deliberado que face à ilegalidade em que se encontrava a resposta social de Lar, seria elaborado um projeto para serem criados os quartos necessários para as pessoas do lar e que seria pedido ajuda à Câmara Municipal do y... – ata de fls 99 verso e 100

15) Na reunião da Direção de outubro de 2013 foi acordado que seria feito um projeto de ampliação para as obras do lar. – ata 22/2013 de fls 102 verso

16) Desde então que a Direção fez diversos contactos escritos, teve reuniões e fez projetos ou alterou existentes (com o ISS, Câmara, Junta, Engenheiros, Arquiteto, com outras IPSS como a “Raríssimas”, etc) e outras iniciativas com vista à regularização da situação da Liga, quer no que concerne ao Lar, cumprindo as exigências do ISS quer no que que respeita à estabilização da situação financeira, angariando fundos, reduzindo despesas etc– atas e outros documentos juntos aos autos (p.ex fls 105 e segs e fls 142 a 169).

17) Por falta de fundos, não foi possível à Direção fazer as obras necessárias para legalizar o Lar, que já funcionava como tal muito antes de 2013 e, assim, cumprirem as determinações do ISS- IP.

18) E, por isso, em 2016 tiveram de reencaminhar os idosos para outros locais, fechando o Lar e perdendo as respectivas comparticipações. – vide comunicação do ISS de fls 166

19) O que levou a uma situação de insustentabilidade total da Liga e ao seu encerramento.

20) Em maio de 2016 a Liga cessou os contratos com todos os funcionários, mantendo-se apenas uma em funções até dezembro de 2016.

21) Os requeridos lavraram todos os esforços ao seu alcance para manter em funcionamento as valência da Liga.

22) O Centro de Dia da Liga tem o nome do Presidente da Direção, aqui requerido, por ter sido ele o benemérito da Instituição, doando o seu património pessoal – cerca de 500.000€ em dinheiro, para possibilitar a sua construção.- prova testemunhal

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23) A requerente E (…) esteve responsável pela execução da contabilidade da Liga desde 2008– contrato de fls 136 e prova por declarações de parte e testemunhal.

24) Sendo que o seu legal representante, (…), consta como o contabilista certificado da Liga de28/05/2010 até 20/07/2017 – doc de fls 300 da Autoridade Tributária.

25) Em reunião da Direção de agosto de 2013, subsequente à tomada de posse da nova Direção, deliberou-se que “devido aos problemas contabilísticos que se têm feito notar, achou-se melhor fazer novo procedimento concursal para requerer novos serviços de contabilidade. Dessa forma vão ser enviados pedidos de orçamento para os seguintes contabilistas: (…)” doc de fls 101 a 102

26) Em Setembro foram enviados e-mails a várias empresas de contabilidade, incluindo à própria requerente, solicitando orçamentos para serviços de contabilidade – doc de fls 112.

27) Fez-se constar em ata de outubro de 2013 a existência de problemas de contabilidade que já vinham de direções anteriores, a marcação de uma reunião com o representante da empresa de contabilidade para resolver as questões da contabilidade de 2011 e 2012- fls 102 verso

28) Desde o verão de 2013 que a nova Direção tentou resolver com a empresa responsável pela contabilidade os problemas já existentes a este nível, com vista ao encerramento das contas, à entrega de documentação, à actualização do programa de facturação, etc – docs de fls 118 a 132 e documentação de fls 212 a 270.

29) A requerente não submeteu ou não assinou as contas dos anos de 2012 e seguintes alegando falta de documentos necessários a uma contabilidade correta e verídica e ia solicitando constantemente documentos em falta, o que se verificou desde 2013, por reporte aos anos de 2011 e 2012 e que se repercutia nos anos subsequentes – prova documental e testemunhal (vide e.mail de fls 297 e 298)

30) A Direção ia entregando os documentos que conseguia descobrir nas instalações e que solicitava a terceiros (segundas vias) e ia pedindo à contabilidade auxílio para tal – Idem.

31) Quando a Direção tomou posse em 2013 deparou-se com grande desorganização a nível administrativo e de contabilidade, com documentos soltos pelo escritório e não organizados e arquivados, com falta de documentos, etc. – prova testemunhal.

32) Com vista a solucionar os problemas entre a Direção e a contabilidade, trocaram diversas comunicações e fizeram reuniões.- idem e prova testemunhal

33) No dia 31 de julho de 2013 a Liga comunicou à requerente que iria manter os seus serviços e caso em dezembro fosse decidido rescindir o contrato seria avisada – doc de fls 112 verso

34) O que sucedeu porque a Requerente, por razões estatutárias / legais, comunicou que teria de terminar a contabilidade que já havia iniciado.

35) Em novembro de 2013 as contas de 2012 ainda não haviam sido prestadas – ata de fls 104.

36) Em maio de 2014 a Direcção decidiu rescindir o contrato com a empresa de contabilidade Ecotoc, aqui requerente, e contratar um novo atento às necessidades da instituição e que resolvesse os problemas pendentes.

37) Em reunião da Direção de julho de 2014 manteve-se a intenção de rescisão do contrato com a contabilidade, sendo feito constar em ata que o contrato que havia sido realizado continuava sem aparecer na Liga.

38) Mais se consignou a necessidade de aprovar as contas de 2013 que não haviam sido apresentadas pela contabilidade e a falta de liquidez da Liga.

39) Na ata de outubro de 2014 a Direção reiterou a decisão de por termo ao contrato com a Requerente – ata nº 27/2014 de fls 142

40) Por comunicação de 26/11/2014 a Liga comunicou à Requerente que pretendia rescindir o contrato com efeitos a partir de janeiro 2015.

41) Respondeu a requerente, por carta registada com AR de 9/12/2014 dizendo, em suma, não aceitar a rescisão do contrato por não ter sido por acordo nem por com justa causa pelo que continuaria a debitar os honorários, solicitando o envio de documentação em falta para a emissão das declarações fiscais – carta de fls 115.

42) Em 30/12/2014 a Liga comunicou à Requerente que não necessitaria mais dos serviços a partir de janeiro de 2015, solicitando-lhe que procedesse à entrega do relatório de contas de 2014. – admitido por acordo, prova documental (fls 113)

43) No dia 28 de janeiro de 2015 a requerente enviou à liga o processamento de salários desse mês e no dia 30 de janeiro solicitou informações acerca do nome e identificação do novo Toc da empresa – e-mails de fls 113 a 114.

44) Em março de 2015 a Liga solicitou a ajuda do CDSS- w (... ) para resolver os problemas com a contabilidade e a rescindir o contrato com a Requerente – doc de fls 117.

45) A requerente não aceitou a rescisão e manteve-se responsável pela contabilidade da Liga, até finais de janeiro de 2016 - doc de fls 116 e segs, ata de fls 147 de novembro de 2015 e prova testemunhal e por declarações de parte.

46) Em março de 2015 o legal representante da Requerente denunciou à Autoridade Tributária a situação da Liga relativamente às contas de 2011 a 2014, o que motivou uma fiscalização / inspecção por parte de tal entidade - declarações de parte do Dr (…) na última sessão de julgamento e doc de fls 301 e segs

47) Nessa sequência, a AT remeteu à Liga, em janeiro de 2016 o relatório de inspecção – fls 301 e segs dando conta de irregularidades em sede de IVA e IRC.

48) Entre as infrações constam a falta de entrega das declarações do modelo 22 em 2012 a 2014, a falta de liquidação de IVA de 2011 a 2013 e outras omissões de tributação autónoma de despesas confidenciais ou não documentadas em 2012 a 2014

49) Tendo sido levantado auto de notícia para pagamento de coimas.

 

50) Por carta datada de 12 de março de 2015 a E (…), representada pelo seu gerente (…) fez uma exposição ao Bastonário da OTOC em que relata que desde 2011 que se apercebe da ocultação de elementos contabilísticos relevantes e discrepância nos valores apresentados relativamente às contas da Liga e que a Direção lhe tinha imposto uma data para o fecho das contas de 2013 que, na sua otica, não poderia fazer devido a divergências e falta de documentação; mais comunica que apresentou queixa crime por difamação e “instigação à prática de falsificação de documentos” bem como de ocultação a factos sujeitos a tributação. – doc de fls 29

51) Em 29 de março de 2016 o Bastonário da Ordem dos Contabilistas Certificados comunicou a F (... ), legal representante da Requerente autorizou o mesmo à recusa de assinatura por ele requerida das declarações fiscais e demonstrações financeiras e anexos de encerramento das contas da Liga de 2012 a 2014 e que, caso não tivesse condições para proceder ao envio das declarações periódicas deveria, no prazo de 30 dias comunicar à AT as razões para tal – doc de fls 15 e segs.

***

4.2) Factos não provados (com interesse para a decisão da causa)

a) Os requeridos estavam na posse da documentação que ia sendo solicitada pela contabilidade e não a entregavam deliberadamente.

b) A falta de apresentação das contas desde 2012 deve-se exclusivamente ao facto da Direção não entregar os documentos solicitados.

c) O Presidente da Direção foi contactado para prestar informações e entregar documentos e não o fez.

d) Os requeridos, enquanto membros da Direção, desinteressaram-se do projeto.

e) A atuação dos requeridos, enquanto membros da Direção, contribuíram ou agravaram a situação deficitária da Liga, levando ao estado de insolvência.

f) A falta de apresentação de contas desde 2012 é exclusivamente imputável à Requerente E (…)

A. Qualificação da insolvência: se a mesma é de qualificar como fortuita ou culposa.

Relativamente à qualificação da insolvência, como fortuita ou culposa, que constitui a questão central do presente recurso, defende a recorrente que a mesma se tem de qualificar como culposa, porque os administradores da insolvente incumpriram o dever de colaboração com o contabilista e de não terem criado as condições para que fosse possível a elaboração de uma contabilidade organizada e se terem desinteressado, por completo, pela prossecução dos objectivos da insolvente, o que, tudo, criou as condições para gerar e agravar a situação de insolvência da requerida.

Ao invés, na sentença recorrida, qualificou-se como fortuita a insolvência em causa, por se considerar não estarem verificados os fundamentos previstos no artigo 186.º, n.º 2, alínea h) e n.º 3, al. b), do CIRE.

E tal conclusão assenta no trecho que se passa a reproduzir:

“Perante a factualidade assente e respetiva fundamentação, entendemos que não se pode ter por verificado o preenchimento de qualquer das supra referidas alíneas no que respeita aos membros da Direção.

E muito menos ao Presidente da Assembleia da Mesa que nem deveria ser requerido nestes autos por não ser da Direção.

É que, salvo melhor opinião, não se pode afirmar que os membros da Direção incumpriram, além do mais, o dever de contabilidade organizada.

É certo que o incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter a contabilidade organizada constitui presunção inilidível de insolvência culposa.

“Porém, para que tal incumprimento ocorra é essencial que as irregularidades verificadas tenham influência na percepção que se possa ter da situação patrimonial e financeira da insolvente, delas resultando o propósito de, designadamente, mediante ocultação de documentos e desrespeito pelas boas práticas contabilísticas, esconder aquela situação patrimonial e financeira.” – vide Ac TRP de 16/03/2013, proc 1709/06.0TBPNF-T.P2, dgsi.pt.

No caso, as contas não estavam prestadas, é certo.

Mas não por incumprimento da Direção visada. Já assim estavam quando tomaram posse e sem o fecho das anteriores não podiam ser apresentadas as do ano subsequente.

E sobretudo, não se vislumbrou qualquer intenção ou propósito de não manter essa contabilidade efetuada para ocultar a real situação da empresa, antes bem pelo contrário.

Aliás, o teor das atas é demonstrativo da situação financeira da instituição, quer no aspeto financeiro quer no da contabilidade, que nunca se quis ocultar, mas ultrapassar.

Desde que tomou posse a Direção foi tentando resolver a situação com a contabilidade para apresentação das contas em falta (incluindo impondo prazos ao contabilista certificado e a rescindir os serviços com o mesmo).

A única coisa que se pode dizer que a Direção poderia ter feito e não fez era recorrer a tribunal com vista a resolver o contrato.

Todavia compreende-se que os custos associados para tal, face às dificuldades financeiras da IPSS, e o tempo habitual para a obtenção de uma decisão definitiva. associados às negociações que ia havendo com vista à resolução rápida e amigável das questões, tenham influenciado na não opção por tal atitude.

Aliás, face à postura da Requerente em não aceitar a rescisão, o novo contabilista que fosse a ser contratado, como veio em 2016, também nada podia e pode fazer por não lhe ter sido entregue os elementos necessários para tal.

Acusar esta Direção de culpa grave ou dolo na situação de insolvência com fundamento na falta de entrega das contas consubstancia, inclusivamente, a nosso ver, um manifesto abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, já que a falta de cumprimento na organização da contabilidade é assacada a direcções anteriores e à própria requerente.

Repugna, pois, ao comum cidadão, que os cidadãos requeridos que se empenharam por salvar esta instituição de interesse social público, sejam sacrificados pessoalmente pelo seu trabalho em prol da comunidade.”.

Vejamos, então, como deve qualificar-se, no que a esta perspectiva se refere, a insolvência em apreço, desde já, se adiantando, não nos merecer censura a decisão recorrida.

Notando-se, desde logo, que o objecto do recurso não sejam exactamente a alínea h) e do art. 186.º/2 e b) do art. 186.º/3, do CIRE, mas sim a qualificação da insolvência como culposa e a consequente afectação (nos termos do art. 189.º do CIRE) da apelante; ou seja, para confirmar ou revogar tal qualificação culposa, podemos/devemos, em termos de direito, ir buscar regras diferentes das invocadas, atribuir às regras invocadas sentido diferente do que lhes foi dado ou fazer derivar das regras efeitos e consequências diversas das que foram tiradas (é o que resulta e está implícito no art. 5.º/3 do CPC), sem embargo, como é óbvio, de tal questão só se poder apreciar e decidir, por reporte à factualidade assente.

Segundo o art. 186.º/1 do CIRE – “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores[1], de direito ou de facto, nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

“Definição” esta que é complementada, nos n.º 2 e 3 do art. 186.º, por um conjunto de presunções (inilidíveis e ilidíveis) que facilitam a qualificação como culposa da insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular[2] sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham adoptado um dos comportamentos aí descritos.

Interpretando tal art. 186.º do CIRE, a jurisprudência vem entendendo[3] que as alíneas do n.º 2 correspondem a presunções (absolutas) de insolvência culposa; e começou por entender que as alíneas do n.º 3 apenas consagram presunções relativas de culpa qualificada (nos comportamento omissivos aí referidos), ou seja, para a insolvência ser dada como culposa com base no art. 186.º/3, seria necessário que a presunção de culpa qualificada não fosse ilidida e, ainda, que fosse feita a prova do requisito adicionalmente exigido pelo art. 186.º/1 do CIRE – o nexo de causalidade entre o facto omitido e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

Posição esta sobre o art. 186.º/3 do CIRE – que a jurisprudência maioritariamente começou por adoptar – de que nos afastamos, por tal preceito, assim interpretado, ser vazio de sentido útil[4]; razão porque – procurando encontrar o seu sentido útil e interpretando-o em conjunto e em harmonia com todo o art. 186.º do CIRE – entendemos que as presunções do art. 186.º/3 não podem ser consideradas simples presunções de culpa qualificada no facto praticado/omitido, tendo antes que ser vistas como presunções relativas (ilidíveis) de culpa qualificada na insolvência (o mesmo é dizer, presunções relativas de insolvência culposa)[5].

“Conjunto de presunções” que pela não homogeneidade dos comportamentos aí descritos (nos n.º 2 e 3 do art. 186.º do CIRE) nos deve fazer reflectir e concluir que não estão sempre em causa e enunciados em todas as alíneas do n.º 2 e 3 do art. 186.º comportamentos, directa e imediatamente ligados à criação ou agravamento da situação de insolvência.

Analisando as alíneas a) a g) do n.º 2 do art. 186.º vemos que estão em causa factos/actos[6] em que há um denominador comum de delapidação do património do devedor, em que existe (em abstracto) um nexo lógico entre os respectivos factos/actos e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[7], em que, sendo assim, pode dizer-se que o legislador mais não fez do que mandar presumir a causalidade (que era latente) entre eles e a insolvência;

Ao invés, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas duas alíneas do n.º 3 já não se consegue ver onde é que possa estar o nexo lógico, a conexão substancial entre o facto/acto que dá origem à presunção e a criação ou o agravamento da situação de insolvência; do que se trata, em tais alíneas h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3, é de enunciar factos que fazem suspeitar a existência de outros factos relevantes para a situação de insolvência, ou seja, por outras palavras, os factos enunciados – a não organização ou desorganização da contabilidade, a falsificação dos respectivos documentos, a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos, o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e a não elaboração e depósito das contas – fazem supor que, se assim se procedeu, é porque pode haver alguma coisa a esconder, é porque podem ter sido praticados actos que contribuíram para a insolvência e se quis/quer ocultá-los, sendo estes os factos (que se quis/quer ocultar e porventura causais da criação ou agravamento da situação de insolvência[8]) que estão implicitamente presumidos (ou, se preferirmos, ficcionados) nos factos enunciados em tais alíneas h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3 e cuja verificação desencadeia a insolvência culposa.

Em síntese, os actos/factos constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3 são “estranhos” à ideia de nexo lógico, de conexão substancial, de relação causal entre eles e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[9]; estando em causa, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas alíneas a) e b) do n.º 3, o incumprimento/violação dos deveres específicos dos comerciantes (v. g. art. 18.º do C. Comercial) e dos deveres gerais dos insolventes (cfr. art. 83.º do CIRE), sendo em função da violação de tais deveres legais que a lei a supõe que foram praticados actos que contribuíram para a insolvência e se quis/quer ocultá-los, o que determina a aplicação do regime da insolvência culposa a estas situações.

Temos pois que a lei (art. 186.º do CIRE), além da cláusula geral contida no n.º 1 (em que define a insolvência culposa), enumerou, nos seus n.º 2 e 3, um conjunto de factos que desencadeiam como consequência a qualificação da insolvência como culposa; factos enumerados em que, “em vez de se limitar a desenvolver, casuisticamente, o enunciado geral [contido no n.º 1], acrescenta alguns casos de insolvência (…) que não se subordinam aos requisitos da noção geral de insolvência culposa – a sua submissão ao mesmo regime resulta de um juízo diferente ou de uma distinta valoração. Em síntese, as alíneas a) e g) são factos/actos que se reconduzem ainda à cláusula geral; havendo nos factos/actos apurados indícios sérios de que a insolvência se deve a tais actos/factos, não surpreendendo ou repugnando que consubstanciem presunções. Mas, nas alíneas h) e i) o caso é diverso. Só muito remotamente algum dos factos/actos pode ser considerado causa de insolvência ou mesmo do seu agravamento. Constituindo, por um lado, a violação de um dever específico do comerciante e, por outro lado, a violação de um dever elementar de todo o insolvente, é legítimo supor que houve culpa qualificada do sujeito – mas culpa qualificada no acto praticado ou omitido e não na insolvência, como é exigido pela norma geral do n.º 1. E, no entanto, desencadeiam os mesmos efeitos da insolvência culposa.

O legislador terá entendido submetê-los também ao regime da insolvência culposa não porque eles pudessem ser a causa (real ou presumível) da insolvência, mas porque a probabilidade de o sujeito ter praticado um acto ilícito gravemente censurável justificava submetê-los também. Na base desta opção legal está, portanto, como se disse, uma valoração diferente daquela que terá estado na origem da disciplina. Deve, por isso, considerar-se que a lei estabeleceu, nestes dois pontos, não presunções, mas – passe o paradoxo – verdadeiras ficções.[10]

Evidentemente, não o podemos ignorar, assim vistas as coisas, serão muitos os casos em que a insolvência será declarada culposa; uma vez que o insolvente tem que combater a presunção legal de insolvência culposa do n.º 3 ou, pior ainda, que se conformar com as consequências da insolvência culposa caso se verifique algum dos factos do n.º 2, em que a presunção é iuris et de iure.

Porém, a nosso ver, é mesmo este o sentido da lei.

Abarca os casos em que se verifica a culpa qualificada e o nexo de causalidade integrantes da noção de insolvência culposa, nos termos do art. 186.º/1; ou seja, os casos em que tenha havido uma conduta do devedor, ou dos seus administradores, de facto e de direito, que (a) tenha criado ou agravado a situação de insolvência, que (b) se trate de actuação dolosa ou com culpa grave, e que (c) tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo.

Além e fora disso, sujeita aos efeitos da insolvência culposa os casos em que se verifique alguma das situações/presunções constantes do n.º 2 e 3 do art 186.º do CIRE; presunções que também foram estabelecidas, para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os devedores que violaram obrigações legais.

Solução, esta, porventura excessiva, especialmente quanto às alíneas h) e i) do n.º 2, em que não é detectável uma diferença sensível em relação às alíneas a) e b) do n.º 3 do art. 186.º (em que a presunção pode ser ilidida)[11]; razão pela qual – tendo isto presente, procurando aproximar as alíneas h) e i) do art. 186.º do tratamento das alíneas do n.º 3.º – entendemos que pode/deve ser colocada alguma exigência na preenchimento de tais alíneas h) e i), entendemos que pode/deve ser exigida alguma “densidade” factual para poder dar como satisfeitas/provadas as expressões “em termos substanciais”, “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” e “de forma reiterada”, constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 186.º.

Embora, a própria doutrina não seja unânime, quanto à melhor interpretação dos preceitos em causa.

Por exemplo (para além do já acima referido), Alexandre de Soveral Martins, in Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, a pág.s 362/3, defende ser de considerar culposa a insolvência, se a respectiva situação “foi criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave, de devedor ou seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (art.186.º, 1). Assim, a lei exige que esteja em causa um comportamento de certos sujeitos (o devedor ou os seus administradores, de direito ou de facto), a existência de dolo ou culpa grave, uma relação causal entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência e, por fim, que o comportamento tenha lugar dentro de certo lapso de tempo (nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência). A situação de insolvência pode ter sido criada sem que existisse culpa mas pode ter havido culpa no agravamento da situação de insolvência. Em ambos os casos a insolvência pode ser qualificada como culposa”.

Incluindo-se na actuação dolosa, todas as modalidades de dolo ou com culpa grave.

Acrescentando que o CIRE contém um “duplo sistema de presunções legais”, contendo-se no n.º 2 do artigo 186.º “algumas presunções de culpa que não admitem prova em contrário («sempre culposa»). As presunções ali estabelecidas dizem respeito à culpa e não à situação de insolvência.”.

Ao passo que, no n.º 3 do artigo 186.º, se contém “hipótese de cuja verificação resulta uma presunção legal de culpa grave que admite prova em contrário”.

Reiterando, a pág.s 376/7 que o artigo 186.º, n.º 2 “não só presume a culpa, mas também o nexo de causalidade quanto à criação ou agravamento da situação de insolvência. Porém, a prova de algum dos factos ali enumerados não significa que se presuma a situação de insolvência”.

Reforçando a ideia, a pág. 380 que na previsão do artigo 186.º, n.º 3, as presunções ali previstas “apenas dizem respeito à actuação do devedor. Será, ainda, necessário provar que tal actuação com culpa grave (presumida) criou ou agravou a situação de insolvência”.

Aqui chegados, do que acaba de ser dito sobre o modo como interpretamos todo o art. 186.º do CIRE – consagrando as alíneas do n.º 2 presunções (absolutas) de insolvência culposa e as alíneas do n.º 3 presunções (relativas) de insolvência culposa[12] (e não meras presunções relativas de culpa grave, o que, como se referiu, esvaziaria a utilidade destas presunções) – irradia para o caso dos autos e do recurso o seguinte:

No que concerne à alínea h), é certo que a requerida não possuía contabilidade organizada, o que, prima facie bastaria para que se verificasse uma das situações previstas no artigo 186.º, n.º 2, do CIRE, com as consequências acima já mencionadas.

No entanto, não nos podemos esquecer que se trata de uma IPSS, com uma Direcção “rotativa”, sendo que a composta pelos aqui recorridos tinha sido eleita em 26 de Junho de 2013 e que já herdou as vicissitudes relatadas na factualidade dada como provada, no que se refere à desorganização da contabilidade, das anteriores direcções, como melhor resulta do que consta do item 7.º e seg.s da factualidade dada como provada.

Não obstante os esforços levados a cabo, não conseguiram levar a bom porto a prossecução do escopo da insolvente, por não terem conseguido “legalizar” a situação no que se refere à actividade de “Lar de Idosos”, que já vinha sendo exercida, sem que, legalmente, a insolvente estivesse autorizada a fazê-lo.

Trata-se de uma IPSS que nasceu da generosidade de um dos ora requeridos, sem a qual a mesma não teria sido criada – cf. item 22.º- e de cujas direcções foram fazendo parte várias pessoas, o que explica a “desorganização” da contabilidade, melhor dito, dos elementos em que assenta a elaboração de contabilidade organizada, como se encontra espelhado nos itens 30.º e seg.s.

Efectivamente, tem de concluir-se que a inexistência de contabilidade organizada, mais do que consubstanciar ou justificar uma “escrita paralela” ou tentar encobrir a real situação da requerida, resulta de uma total desorganização a tal nível que, também, é potenciada, pelo facto de a mesma ter Direcções trianuais.

É evidente que isso não justifica tal desorganização a nível dos elementos contabilísticos mas, a nível da qualificação da insolvência como culposa, não pode tal desiderato deixar de ser tido em consideração.

De todo o modo, trata-se de um quadro que já vinha de trás (o que, igualmente, se verifica, relativamente à não entrega de contas anuais).

Sendo que, relativamente a esta questão, a situação se agravou dada a existência de “atritos” entre a requerida e a empresa encarregue da elaboração da contabilidade e da apresentação de contas, como melhor resulta do descrito nos itens 23.º e seguintes.

Como acima já se referiu, estas situações exigem uma maior densificação no que respeita à sua verificação, pelo que, acompanhando a decisão recorrida, consideramos que não se trata de um caso de insolvência culposa.

Reitera-se, trata-se de uma IPSS, com direcções trianuais, não se podendo imputar à composta pelos aqui recorridos, a falta de contabilidade organizada e de apresentação de contas.

É uma situação que já vinha de anteriores direcções e a não apresentação das contas de anos anteriores, impedia a apresentação e “fecho” das subsequentes.

Por isso, não se podem ter por verificados os pressupostos que permitam qualificar a insolvência em causa como culposa.

Relativamente ao n.º 3, alínea a) do artigo 186.º do CIRE, como acima já aflorado:

“Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;”.

A recorrente fundamenta este pressuposto no facto de os administradores da insolvente, bem sabendo da situação de insolvência, não a terem requerido, não obstante, já desde há muito tempo que a insolvente se encontrava em situação deficitária.

De acordo com o art. 18º/1 do CIRE, em conjugação com o art. 3º/1 do mesmo diploma, o devedor/comerciante deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, ou à data em que devesse conhecê-la.

Exige pois a aplicação deste normativo legal a demonstração do início da situação de insolvência; só com a determinação deste facto é que se poderá delimitar o prazo de que o devedor dispunha para cumprir o dever referido.

Como já referido e se explicita na sentença recorrida, os actuais requeridos só tomaram posse em 26 de Junho de 2013 e só depois disso se aperceberam do estado financeiro da requerida, tendo desenvolvido os esforços descritos no item 10.º e seguintes.

E só em 2016 é que se decidiram pelo “fecho” do lar, vindo a cessar os seus contratos com todos os funcionários, com excepção de uma, em Maio de 2016.

Assim, resulta da factualidade dada como provada, que não foi a conduta dos ora requeridos que deu causa à insolvência, porquanto tomaram posse na supra referida data, após o que encetaram diversas démarches, no sentido de resolver a situação herdada, o que não conseguiram, por razões, externas ou independentes da sua vontade – designadamente a impossibilidade de legalização do lar, que vinha funcionando de forma ilegal – não o lograram fazer, assim ilidindo tal presunção, pelo que a mesma não pode subsistir nem funcionar, o mesmo é dizer, que impõe que, também por referência ao artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE, se mantenha a qualificação da insolvência como fortuita.

Assim, no que a esta questão concerne, improcede o recurso.

B. A quem incumbe a responsabilidade pelo pagamento das custas devidas, inerentes ao incidente de qualificação da insolvência, a que se reportam os presentes autos.

Na sentença recorrida, foi a ora recorrente condenada no pagamento das custas, com fundamento no disposto no artigo 527.º do CPC, ex vi artigo 17.º do CIRE.

Contra o que se insurge a recorrente, alegando que as custas devem ser suportadas pela massa insolvente, nos termos do disposto no artigo 304.º do CIRE, dado o presente incidente não ter carácter anómalo.

Dispõe o artigo 304.º do CIRE que:

“As custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado”.

Por seu turno, estabelece o artigo 303.º do CIRE, o seguinte:

“Para efeitos de tributação, o processo de insolvência abrange o processo principal, a apreensão dos bens, os embargos do insolvente, ou do seu cônjuge, descendentes, herdeiros, legatários ou representantes, a liquidação do activo, a verificação do passivo, o pagamento aos credores, as contas de administração, os incidentes do plano de pagamentos, da exoneração do passivo restante, de qualificação da insolvência e quaisquer outros incidentes cujas custas hajam de ficar a cargo da massa, ainda que processados em separado”.

Daqui resulta, pois, que nem todas as custas ficam a cargo da massa insolvente, de outro modo, não se compreenderia a referência que neste preceito é feita às “custas que hajam de ficar a cargo da massa” – sublinhado nosso, o que implica, que, em regra de custas, também no âmbito dos processos de insolvência, devem prevalecer as regras do vencimento ou quem do processo tirou proveito, ou seja, o disposto no artigo 527.º, CPC, ex vi artigo 17.º do CIRE.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 29 de Abril de 2014, Processo n.º 919/12.6TBGRD, disponível no respectivo sítio do itij, “… o processo de insolvência (…) não é tendencialmente gratuito para os respectivos intervenientes, pois, existem regras especiais e específicas que afastam expressis verbis essa asserção, a começar por aquele artigo 303.º do CIRE quando nos diz que para efeitos de tributação o processo de insolvência abrange todo o processado autónomo ali referenciado cujas custas tenham de ficar a cargo da massa, o que significa que não são todas e quaisquer custas que estarão a cargo da massa, mas apenas aquelas que esta haja de suportar e a massa insolvente só suportará as custas na medida da sua sucumbência, por força das disposições processuais gerais aqui aplicáveis subsidiariamente, ex vi do artigo 17.º do CIRE que para elas nos remete.”.

Ali se concluindo, que será responsável pelo pagamento das custas, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC, a parte que a elas der causa ou tire proveito da acção.

E acrescentando-se:

“Aliás, se assim não fosse entendido, cairíamos numa completa subversão do sistema instituído, onde o princípio geral nesta matéria é o de que a responsabilidade pelo pagamento das custas assenta na ideia de que não deve pagar custas a parte que tem razão, passando o mesmo a conter desvios, nomeadamente no âmbito do processo de insolvência, fazendo-se recair sobre a massa insolvente toda e qualquer responsabilidade das custas, independentemente de a mesma poder obter ganho de causa nos processos e incidentes por aquele abrangidos nos termos do artigo 303.º do CIRE.

O facto de o normativo inserto no artigo 304.º do CIRE fazer consignar que as custas do processo ficam a cargo da massa insolvente, não poderá ser interpretado isoladamente, sem o apelo a outros ínsitos legais existentes na ordem jurídica, sob pena de se criarem brechas, incongruências e contradições insanáveis no sistema jurídico, o qual se pretende uno.

(…)

A primeira das quebras (…) seria desde logo fazer tábua rasa do preceituado no artigo 303.º do CIRE, na parte em que acentua que … cujas custas hajam de ficar a cargo da massa, pois tal normativo só poderá fazer sentido se concatenado com o preceituado no artigo 527.º, n.º 1, do CPC, a não se entender assim, então bastar-nos-ia a formulação do artigo 304.º do CIRE, na interpretação de que esta norma seria, afinal das contas, em relação àquela, bem como à processual, uma norma excepcional, por forma a que às regras estabelecidas pelos artigos 303.º do CIRE e 527 do CPC a mesma se opusesse contrariando a valoração ínsita nesta para atingir finalidades particulares, o que, como já vimos, não se vislumbra”.

Assim, dado que, segundo as regras do vencimento (artigo 527.º do CPC), as custas do presente incidente não têm que ficar a cargo da massa, deve suportá-las a recorrente, que decaiu na sua pretensão.

Decorre do disposto no artigo 304.º do CIRE que, sendo decretada a insolvência, como regra, as custas são encargo da massa.

Mas cotejando-o com os artigos 303.º do CIRE e 527.º do CPC, se as mesmas não forem da sua responsabilidade, devem ficar a cargo da parte vencida, não se compreendendo que, numa situação como a retratada in casu em que tenha sido a recorrente a formular o pedido de qualificação da insolvência, no que ficou vencida, não tenha de suportar as custas, o que se traduziria, a assim ser, numa “isenção” de custas que, salvo o devido respeito, não tem cobertura legal, até porque as isenções de custas se encontram taxativamente previstas no Regulamento Das Custas Processuais, onde, nada de excepcional, se consagra, especificamente, para o processo de insolvência.

Pelo que, também, quanto a esta questão, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Coimbra, 13 de Novembro de 2018.

Arlindo Oliveira ( Relator )

Emídio Santos

Catarina Gonçalves


[1] Cfr. art. 6.º do CIRE.
[2] Sem prejuízo do 186.º/4 mandar aplicar, “com as necessárias adaptações”, os n.º 2 e 3 à actuação da pessoa singular.
[3] Cfr., v. g., Ac. Rel. de Guimarães de 12/03/2009, in CJ online, ref. 5220/2009; e Ac. Rel. de Coimbra de 20/04/2010, in CJ online, ref. 3246/2010, e de 08/02/2011, in CJ online, ref. 741/2011.

[4] Desde logo por entre os factos omitidos referidos nas alíneas a) e b) do art. 186.º/3 do CIRE (incumprimento do dever de apresentação à insolvência e incumprimento do dever de elaboração e depósito das contas) e a criação ou o agravamento da situação de insolvência não ser vislumbrável, em abstracto, a possibilidade de vir a existir um nexo lógico ou uma qualquer conexão, o que, evidentemente, tornaria inatingível a prova, em concreto, do nexo de causalidade exigido e redundaria – exigindo-se a prova de tal nexo causal – na inutilidade e no esvaziamento do art. 186.º/3 do CIRE (enquanto enumeração de actos/factos susceptíveis de desencadear como consequência a qualificação da insolvência como culposa).
[5]Existem para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os sujeitos que violaram obrigações legais. Oneram-se, assim, estes sujeitos com a prova de que não foi a sua conduta ilícita (e presumivelmente culposa) que deu causa à insolvência ou ao respectivo agravamento, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade – por exemplo a conjuntura económica ou as condições de mercado” - Cfr. Catarina Serra, in Cadernos de Direito Privado, n.º 21, Janeiro/Março de 2008, pág. 69
[6] Que, no contexto da insolvência de um devedor que não seja pessoa singular, se configuram como infracções ao dever geral de fidelidade consagrado no art. 64.º/1/b) do CSC.
[7] Como é evidente, a delapidação de património causa ou pode causar, pela diminuição de recursos que gera, impossibilidades de cumprimento e/ou activos manifestamente inferiores ao passivo (cfr. art. 3.º/1 e 2 do CIRE).
[8] Como refere Catarina Serra, local citado, pág. 65, “entre o facto conhecido – não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respectivos documentos, a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos – e o facto desconhecido ou presumido – insolvência culposa – interpõe-se um outro que não chega a ser conhecido”.

[9] É também e justamente por isto que dissemos que a exigência da prova do nexo causal entre os factos do n.º 3 e a criação ou agravamento da situação de insolvência redundaria na inutilidade e no esvaziamento do art. 186.º/3 do CIRE.
[10] Catarina Serra, local citado, pág. 68/69.
[11] Efectivamente, não existindo nas alíneas h) e i) do art. 168.º/2 do CIRE um nexo lógico ou uma conexão substancial entre o acto/facto aí referido e o facto presumido (insolvência culposa), parece que, também aqui, devia ser concedida a possibilidade do devedor se defender mostrando que a sua conduta, apesar de ilícita e culposa não causou a insolvência.
[12] Neste sentido, Ac. Rel. do Porto de 05/02/2009, in CJ online, ref. 2737/2009, e Ac. Rel. de Coimbra de 26/01/2010; e, na doutrina, além de Catarina Serra, locais citados, Cassiano Santos, Direito Comercial, Vol. I, pág. 214/5, e Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, pág. 34.