Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7553/15.7T8VIS-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITOS LABORAIS
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
ÓNUS DA PROVA
HIPOTECA
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
Data do Acordão: 02/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 333 CT, 686, 687, 751 CC, 2 CRP
Sumário: 1.- O privilégio imobiliário especial, previsto no art. 333 nº1 b) do CT, abrange todos os imóveis do empregador afectos à organização empresarial, não sendo de exigir especial conexão entre o trabalhador e o imóvel.

2.- Assim, por “local onde o trabalhador exerce a actividade”, deve ser interpretado de forma lata, abrangendo todos os imóveis da entidade patronal que estejam afectos à sua actividade empresarial, à qual os trabalhadores estão funcionalmente ligados, independentemente da localização, em concreto, do respectivo posto de trabalho, ficando, consequentemente, excluídos, os imóveis que embora pertença da entidade patronal não estivessem afectos ao escopo societário, à actividade empresarial da entidade patronal.

3.- Deve presumir-se que os imóveis afectos à organização da empresa integram o processo da respectiva produção, a menos que o credor interessado em que o privilégio imobiliário não possa favorecer o credor-trabalhador demonstre que assim não é, ou que o tribunal tenha elementos para disso se convencer.

4. A norma que impõe a prevalência do privilégio imobiliário especial sobre a hipoteca anteriormente constituída não viola os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos, consagrados no artigo 2.º da CRP.

Decisão Texto Integral:




            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

“S (…), Lda.” foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos de que os presentes são apensos em 9 de Março de 2016, já transitada em julgado, que fixou em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos.

A fls. 608 e seguintes do presente apenso veio o Sr. Administrador da Insolvência apresentar a lista rectificada de créditos a que alude o art. 129º do C.I.R.E.

Impugnaram essa lista no que diz respeito aos próprios créditos: “F (…), Lda.”, “A (…)Lda.”, “A (…), Lda.” e A (…).

 Ninguém respondeu às impugnações deduzidas, sendo que o Sr. Administrador da Insolvência reconheceu os créditos dos credores impugnantes nos termos das impugnações deduzidas (o crédito de A (…) foi reconhecido, sob condição de serem juntos documentos da Segurança Social confirmando a situação contributiva do credor/trabalhador, o que foi feito).

 No apenso D) de verificação ulterior de créditos foi reconhecido ao Estado um crédito comum no valor de €2.155,00.

 “F (…), Lda.”, “A (…), Lda.”, “A (…), Lda.” e A(…)impugnaram a lista de créditos reconhecidos apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência no que diz respeito aos seus próprios créditos. Na tentativa de conciliação realizada os créditos reclamados pelos credores atrás referidos foram aprovados nos termos da impugnação por eles deduzida.

Assim, e ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 136º do CIRE, considerou-se reconhecido o crédito comum de “F (…) Lda.” pelo montante de €2.070,00; o crédito comum de “A (…), Lda.” pelo montante de €5.716,00; o crédito comum de “A (…)Lda.” pelo montante de €8.023,22; e o crédito privilegiado de A (…) pelo montante global de €14.031,27.

Os demais créditos reclamados e constantes da lista de créditos apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência (fls. 608 e seguintes) foram reconhecidos e não foram impugnados.

Nessa medida, e de acordo com o disposto no nº 3 do art. 130º do CIRE, decidiu-se homologar a lista de créditos reconhecidos com as alterações supra referidas.

Proferiu-se decisão de verificação e graduação de créditos de fl.s 264 a 280, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e, a final, se reconheceram e graduaram os créditos, nos seguintes moldes:

“Nesta conformidade, e pelo exposto, o tribunal decide:

- Homologar a relação de créditos reconhecidos apresentada pelo Senhor Administrador da Insolvência a fls. 615 e seguintes e reconhecer ainda:

- O crédito comum do Estado no valor de €2.155,00, conforme resulta do apenso D);

- O crédito comum de “F (…) Lda.” pelo montante de €2.070,00;

- O crédito comum de “A (…) Lda.” pelo montante de €5.716,00;

- O crédito comum de “A (…), Lda.” pelo montante de €8.023,22;

- e o crédito privilegiado de A (…) pelo montante global de €14.031,27.

*

- Sem prejuízo do pagamento precípuo das dívidas da massa insolvente definidas no art. 51º do C.I.R.E., graduar os créditos verificados pela seguinte ordem:

A) Quanto ao produto da venda dos imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial de São Pedro do Sul na ficha nº2396 e nº2397 da freguesia de Santa Cruz da Trapa.

Créditos de (…)  a par e em rateio; Os credores cujos créditos tenham sido parcialmente satisfeitos pelo Fundo de Garantia Salarial receberam rateadamente quanto ao valor que vier a caber o credor originário.

- O crédito do Estado – Fazenda Nacional por IMI, relativamente a cada um dos imóveis.

- Os créditos do regime geral da Segurança Social e os da Fazenda Nacional por IRS, IRC e IVA, a par e em rateio.

- Os créditos comuns a par e em rateio.

- Os créditos subordinados de acordo com a ordem, previsto no art. 177º do CIRE.

B) Quanto ao produto da venda do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de São Pedro do Sul na ficha nº1846 da freguesia de Carvalhais.

Créditos de (…) a par e em rateio; Os credores cujos créditos tenham sido parcialmente satisfeitos pelo Fundo de Garantia Salarial receberam rateadamente quanto ao valor que vier a caber o credor originário.

- O crédito do Estado – Fazenda Nacional por IMI.

3º - O crédito da “C (…), CRL” até ao limite constante do registo através da Ap. 3 de 2006/05/17.

4º - O crédito da “C (…), CRL” até ao limite constante do registo através da Ap. 468 de 2010/02/09.

5º - O crédito da “C (…) CRL” até ao limite constante do registo através da Ap. 328 de 2012/01/19.

6º - O crédito da Segurança Social até ao limite constante do registo através da Ap. 2423 de 2013/07/24.

7º - O crédito da Segurança Social até ao limite constante do registo através da Ap. 2571 de 2015/04/10.

- Os créditos do da Segurança Social e os da Fazenda Nacional por IRS, IRC e IVA, a par e em rateio.

- Os créditos comuns a par e em rateio.

10º - Os créditos subordinados de acordo com a ordem, previsto no art. 177º do CIRE.

C) Quanto ao produto da venda do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de São Pedro do Sul na ficha nº1342 da freguesia de Santa Cruz da Trapa.

- O crédito do Estado – Fazenda Nacional por IMI.

2º - O crédito da Segurança Social até ao limite constante do registo através da Ap. 2423 de 2013/07/24.

3º - O crédito da Segurança Social até ao limite constante do registo através da Ap. 2571 de 2015/04/10.

- Os créditos do da Segurança Social e os da Fazenda Nacional por IRS, IRC e IVA, a par e em rateio.

- Os créditos comuns a par e em rateio.

- Os créditos subordinados de acordo com a ordem, previsto no art. 177º do CIRE.

D) Quanto ao produto da venda do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de São Pedro do Sul na ficha nº181 da freguesia de Várzea.

- O crédito do Estado – Fazenda Nacional por IMI.

2º - O crédito da Segurança Social até ao limite constante do registo através da Ap. 2423 de 2013/07/24.

3º - O crédito da Fazenda Nacional até ao limite constante do registo através da Ap. 2078 de 2014/02/28.

4º - O crédito da Fazenda Nacional até ao limite constante do registo através da Ap. 1467 de 2014/10/14.

5º - O crédito da Fazenda Nacional até ao limite constante do registo através da Ap. 1847 de 2015/04/13.

- Os créditos do da Segurança Social e os da Fazenda Nacional por IRS, IRC e IVA, a par e em rateio.

- Os créditos comuns a par e em rateio.

- Os créditos subordinados de acordo com a ordem, previsto no art. 177º do CIRE.

E) Quanto aos veículos automóveis.

- Crédito do Estado – Fazenda Nacional por IUC relativo a cada um dos veículos.

Créditos de (…), a par e em rateio; Os credores cujos créditos tenham sido parcialmente satisfeitos pelo Fundo de Garantia Salarial receberão rateadamente quanto ao valor que vier a caber o credor originário.

- Os créditos do Estado - Fazenda Nacional por IVA, IRA e IRC.

- Os créditos da Segurança Social

- O crédito da “V (…), Lda.”, requerente da insolvência, nos termos do art. 98º do CIRE.

- Os créditos comuns, a par e rateadamente.

- Os créditos subordinados de acordo com a ordem prevista no art. 177º, nº1 do CIRE

Quanto aos demais bens móveis e direitos equiparados.

Créditos (…) a par e em rateio; Os credores cujos créditos tenham sido parcialmente satisfeitos pelo Fundo de Garantia Salarial receberão rateadamente quanto ao valor que vier a caber o credor originário.

- Os créditos do Estado - Fazenda Nacional por IVA, IRA e IRC.

- Os créditos da Segurança Social

- O crédito da “V (…), Lda.”, requerente da insolvência, nos termos do art. 98º do CIRE.

- Os créditos comuns, a par e rateadamente.

- Os créditos subordinados de acordo com a ordem prevista no art. 177º, nº1 do CIRE

Custas pela massa insolvente.”.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a credora C (…) , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida, imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho aqui junto a fl.s 2), finalizando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

(…)

Não foram apresentadas contra-alegações.

           

Dispensados os vistos legais, há que decidir.         

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se deve ou não ser reconhecida a existência do privilégio imobiliário especial, incidente sobre os imóveis identificados no item 5.º dos factos dados como provados na decisão recorrida, reconhecido aos trabalhadores da insolvente e respectivas consequências sobre o crédito da ora recorrente, que se fundamenta em hipoteca e;

B. Se a sentença recorrida viola os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos, consagrados no artigo 2.º da CRP.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. “V (…), Lda.” requereu a declaração de insolvência de “S (…) Lda.” em 29 de Dezembro de 2015.

2. “S (…), Lda.” dedicava-se à construção e civil e obras públicas, sobretudo na vertente de construção e remodelação de prédios.

3. “S (…) Lda.” foi declarada insolvente por sentença proferida em 09 de Março de 2016.

4. Para a massa insolvente foram aprendidos imóveis, vários móveis, entre os quais veículos automóveis, conforme resulta do apenso de apreensão de bens.

5. O imóvel descrito na verba nº1 corresponde ao escritório-sede da empresa; o imóvel descrito na verba nº2 corresponde a um armazém de apoio e garagem; o imóvel descrito na verba nº3 corresponde a um grande armazém construído na zona industrial, onde eram depositados materiais e parqueadas viaturas da empresa e onde funcionava a carpintaria e pintura, conforme declaração do Sr. administrador da insolvência de fls. 606.

A. Se deve ou não ser reconhecida a existência do privilégio imobiliário especial, incidente sobre os imóveis identificados no item 5.º dos factos dados como provados na decisão recorrida, reconhecido aos trabalhadores da insolvente e respectivas consequências sobre o crédito da ora recorrente, que se fundamenta em hipoteca.

Estamos em presença de créditos reclamados por ex-trabalhadores da insolvente, com base no disposto no artigo 333.º, n.º 1, al. a) e b), do Código do Trabalho, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, de acordo com o qual:

«Os créditos emergentes de contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:

Privilégio mobiliário geral;

Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade».

«O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no art. 748° do Cód. Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à Segurança que Social» - al.ª b) do n° 2 do mesmo artigo.

Norma, esta, que reproduz o que já se dispunha no artigo 377.º do Código do Trabalho, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto.

Ao invés do que anteriormente sucedia, com o aludido Código do Trabalho os créditos dos trabalhadores passaram a gozar de privilégio imobiliário especial, abandonando o legislador a atribuição do simples privilégio imobiliário geral. Dessa forma, ficaram tais créditos claramente abrangidos pela letra do art. 751° do Cód. Civil, na redacção dada pelo Dec.-Lei n° 38/2003, de 8 de Março, onde se estatui que «Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores».

A norma que veio criar o novo privilégio imobiliário especial para os créditos dos trabalhadores substituiu, portanto, o preexistente quadro do privilégio imobiliário geral que vigorava ao abrigo das Leis n°s 17/86, de 14 de Junho, e 96/2001, de 20 de Agosto (cfr. art. 4°, n° 4, b), deste último diploma), entretanto revogadas pelo art.º 21, nº 2 al.ªs e) e t) da Lei nº 99/2003, alargando-o a todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação.

Em confronto directo com o privilégio imobiliário especial conferido aos créditos laborais reclamados e reconhecidos está a garantia resultante do registo de hipoteca voluntária a favor da recorrente e que incide sobre o imóvel descrito na verba n.º 3 dos bens apreendidos para a massa.

Nos termos do art.º 712.º do CC, “Hipoteca voluntária é a que nasce de contrato ou de declaração unilateral.”.

E nos termos do disposto nos artigos 686.º, n.º 1 e 687.º, ambos do CC:

“A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.”.

A recorrente - sem pôr em causa a prevalência, em tese, do privilégio especial dos trabalhadores sobre a hipoteca – apenas quer questionar a possibilidade de os créditos de trabalhadores, reclamados e reconhecidos, aproveitarem do privilégio imobiliário especial do art.º 333, 1, do CT - pelo facto de, segundo alega não estar apurado o requisito da prestação da actividade do credor-trabalhador nos bens imóveis do empregador  - por não ter sido alegado, qual o local onde exerciam funções, bem como que o imóvel em causa, não estava integrado, não fazia parte, da actividade produtiva da insolvente e, entendendo-se que assim é, então, a norma em causa, assim interpretada, viola os princípios constitucionais da igualdade e da segurança jurídica que se reconduz à protecção da confiança.

Importa, pois, desde logo, averiguar do âmbito/alcance do mencionado artigo 333.º, ao referir que o privilégio em causa incide sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.

No que a tal respeita e em primeiro lugar – salvo aqui o respeito por entendimento diverso[1] - não se vê que o legislador tenha imaginado conceder o privilégio em questão relativamente ao imóvel ou imóveis nos quais, regular ou habitualmente, o trabalhador haja executado a sua prestação para a entidade patronal.

Desde logo é possível configurar um vastíssimo leque de empresas, nomeadamente tendo por objecto a realização de empreitadas de construção civil (como é o caso), com dezenas ou centenas de operários que desempenham as suas tarefas nas diversas obras para onde são chamados, localizadas em terrenos dos terceiro (donos da obra), no país ou no estrangeiro, que nunca podem prestar a sua actividade nos imóveis da entidade empregadora, quando esta, porventura, só é proprietária do valioso prédio onde está instalada a respectiva sede.

Depois há inúmeras situações de trabalhadores que, pela natureza das suas funções, têm de exercer a sua actividade necessariamente fora do imóvel ou imóveis em que se concentram o processo produtivo ou administrativo da empresa: veja-se o caso dos motoristas, dos trabalhadores de veículos de transporte, dos vendedores itinerantes, dos pescadores, dos trabalhadores agrícolas, dos funcionários de empresas de segurança, dos próprios vigilantes de entrada de pessoas nos edifícios da empresa, etc., todos eles, naturalmente contratados para desempenharem tarefas no exterior dos imóveis em que eventualmente se posicionem as instalações da entidade empregadora.

Acresce que há trabalhadores que não têm um local – que pode ser ou não um imóvel – certo e pré-definido para exercerem as suas tarefas, porque são periodicamente deslocados pela entidade empregadora consoante as conveniências da produção.

Por fim, uma empresa de serviços pode funcionar com um escasso número de trabalhadores administrativos no único imóvel que lhe pertence e, ao mesmo tempo, trazer todo o restante pessoal – a esmagadora maioria do seu quadro - a trabalhar exteriormente.

A pergunta que intuitivamente se coloca respeita a saber se o legislador pretendeu excluir do privilégio imobiliário especial em questão todos os trabalhadores que desenvolvem as suas tarefas em locais que não pertencem à entidade empregadora, do mesmo passo que o quis conceder àqueles que, pelo mero acaso da natureza das respectivas funções, se encontravam a desempenhá-las em imóvel (ou imóveis) propriedade dessa mesma entidade, estabelecendo uma discriminação de todo incompreensível. Ou se porventura quis conceder privilégios de diferente valor, conforme o valor de cada imóvel em que o trabalhador se encontrava a prestar serviço no momento da cessação de funcionamento da falida.

Objecta-se que, a não ser feita a imputação do privilégio segundo o imóvel a que respeita o exercício laboral do credor-trabalhador, a exigência do art.º 333, nº 1 do CT é inútil, uma vez que haveria privilégio em relação a todos os imóveis da falida.

Ao que propendemos, o problema é tão só de interpretação do pensamento legislativo.

Nos termos do art.º 9, nº 3 do C.Civil "Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".

Importa, pois, ir em busca da solução mais acertada.

Ao eliminar o privilégio imobiliário geral e criar o de tipo especial, o legislador significou que a organização produtiva da entidade empregadora deveria responder em primeira linha, quanto ao património imobiliário nela integrado, pelos créditos daqueles que prestaram a sua actividade laboral confiando em que esse património produtivo salvaguardaria o pagamento desses mesmos créditos (e não mais que isso). Daí que, os imóveis laterais à dinâmica produtiva da entidade empregadora globalmente considerada, porque não objecto dessa regra de confiança, sejam os únicos que podem ser distraídos da previsão do privilégio legal. Assim sendo, hipóteses haverá – e não serão poucas – em que os imóveis da entidade empregadora, por estarem de fora do seu processo produtivo, não poderão ser objecto da preferência legal.   

A que há que acrescentar, por força do AUJ, de 23/02/16, Processo n.º 1444/08.TBAMT, a exclusão dos imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização.  

Em segundo lugar – discordando também da recorrente – não se adivinha como sendo a mais razoável a tese de que incumbe ao credor-trabalhador o ónus de alegar e, se necessário, provar quais os imóveis que eventualmente estiveram conexionados com a prestação da respectiva actividade.

Deverá, antes, partir-se do princípio oposto, isto é, de que se tem de presumir que os imóveis, propriedade da falida integravam o processo da respectiva produção, a menos que o credor interessado em que o privilégio imobiliário não possa favorecer o credor-trabalhador demonstre que assim não é, ou que o tribunal tenha elementos para disso se convencer.

Na verdade, exigir a cada um dos trabalhadores reclamantes a oportuna alegação e prova de que prestou serviço neste ou aquele imóvel já nos pareceria excessivo, se mais não fosse pelas apontadas dificuldades que uma tal especificação pode acarretar; mas ainda se afigura violento que se requeira que cada um desses reclamantes discrimine qual ou quais dos imóveis da falida estiveram inseridos na respectiva actividade produtiva, sendo que os restantes credores ou o tribunal estarão melhor posicionados para fazer um tal escrutínio (nomeadamente, através do mecanismo excludente da descrição daqueles concretos imóveis que nada tiveram que ver com a organização produtiva da falida).

Assim sendo, no alinhamento acima proposto, há que tomar como bom o dado de que todos os imóveis apreendidos estavam inseridos na actividade produtiva da falida, independentemente de ser a sede e locais onde se desenvolvia a actividade da insolvente.

De resto, ainda que não directamente alegado o local exacto em que o trabalhador presta funções, sempre será de presumir que o faz em imóvel inserido no processo produtivo da empresa, designadamente quando se trata de um local fixo de trabalho, presunção que a este Tribunal é lícito extrair dos elementos constantes dos autos – cf. artigo 349.º CC.

Trata-se, pois, de averiguar se o imóvel em causa, integra ou não a organização empresarial da insolvente, se o mesmo era relevante para a prossecução do escopo societário da insolvente.

O entendimento do que se deve entender por “local onde o trabalhador exerce a actividade”, tem vindo a ser entendido de forma lata, abrangendo todos os imóveis da entidade patronal que estejam afectos à sua actividade empresarial, à qual os trabalhadores estão funcionalmente ligados, independentemente da localização, em concreto, do respectivo posto de trabalho, ficando, consequentemente, excluídos, os imóveis que embora pertença da entidade patronal não estivessem afectos ao escopo societário, à actividade empresarial da entidade patronal.

Ao invés, os seguidores do entendimento restritivo de tal noção, defendem que só gozam do privilégio ora em causa, os trabalhadores que fisicamente estivessem ligados a algum dos imóveis pertença da entidade patronal em que se desenvolvesse a sua actividade económica e aí os reclamantes exercessem a sua actividade.

Pelos motivos já acima expostos, somos de opinião que deve atender-se ao critério lato acima referido, por se mostrar o mais ajustado com a realidade das coisas, para além de que é o que, maioritariamente, se segue no STJ.

Neste sentido, por último o seu Acórdão de 30 de Maio de 2017, Processo n.º 4118/15.7T8CBR-B.C1.S1 e no qual se faz uma resenha jurisprudencial da questão ora em apreço.

Ainda, no que respeita à falta de alegação por parte dos trabalhadores, do local onde exerciam a sua actividade laboral, incumbe referir que, efectivamente, os mesmos se limitaram a fazer uma “alegação genérica” dos factos que sustentam o crédito reclamado, não identificando o prédio em causa, por referência à sua inscrição matricial ou registral, nem que neles prestassem funções, como o exige a lei, dado tratar-se dos factos constitutivos em que assenta a sua pretensão.

Não obstante na sentença recorrida, entendeu-se que, não obstante esta falha de alegação, os autos dispunham de elementos bastantes para que se pudesse concluir que os reclamantes dispõe de um crédito imobiliário especial sobre os bens imóveis, referidos no item 5.º, dos factos provados, que foram apreendidos para a massa insolvente, sendo, por isso, de concluir que os reclamantes neles prestavam/exerciam funções laborais, tudo em obediência ao princípio da oficiosidade e indagação oficiosa que rege em matéria de insolvência, como decorre do disposto no artigo 11.º do CIRE e que permite ao juiz ter em conta tais factos, ainda que não alegados pelo respectivo reclamante.

É indubitável que por se tratar de factos constitutivos do crédito reclamado, é ao respectivo credor que cabe o ónus de alegar e provar a matéria factual em que assenta a sua pretensão – cf. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

Resulta, ainda, à evidência, que os reclamantes não satisfizeram as exigências legais de uma correcta alegação, como acima já explicitado.

Pelo que a questão que se nos coloca é a de saber se não obstante esta lacuna de alegação/descrição factual, por parte dos ex-trabalhadores, reclamantes, ainda assim, como se fez na sentença recorrida, se pode colmatar tal omissão mediante a recolha de factos constantes nos autos e que tal permitam concluir (que os imóveis em causa, estavam afectos à actividade desenvolvida pela insolvente, como se refere no item 5.º dos factos provados).

Somos de opinião que assim se pode concluir.

Em primeiro lugar, cumpre referir que o presente recurso não incide sobre a matéria de facto dada como provada na sentença, pelo que a mesma se tem de ter por definitivamente fixada.

Ora, como da mesma consta (cf. respectivo item 5.º), todos os imóveis ali mencionados, atenta a respectiva finalidade e uso que lhes era dado, estavam afectos à actividade empresarial da insolvente.

Nos termos do disposto no artigo 333.º, n.º 1, al.s a) e b), do Código do Trabalho, os créditos emergentes de contrato de trabalho, pertencentes ao trabalhador, gozam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário especial sobre os imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.

Assim, em face da factualidade dada por demonstrada, verifica-se que tais imóveis estavam afectos à estrutura empresarial e organizativa da insolvente, valendo, por isso, o disposto no preceito acima citado, do que resulta terem os créditos dos ex-trabalhadores, a natureza de créditos protegidos pelo referido privilégio imobiliário especial.

Pelo que, desde logo e atento o que ora se deixou dito, teria o presente recurso de improceder.

Mas, ainda que assim não fosse, sempre terá o mesmo de improceder porque, efectivamente, dos autos constam elementos que permitem concluir que os imóveis em causa, estavam afectos às finalidades referidas no item 5.º, dos factos provados, como nele se refere na sua parte final, pelo que tais factos se têm de ter por adquiridos processualmente e podem ser indagados oficiosamente pelo juiz, que pode, inclusive, fundar a sua decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes, cf. artigo 11.º do CIRE (sendo que o princípio da aquisição processual vale na insolvência e em todos os seus apensos, globalmente considerados, cf. Acórdão do STJ, de 07/02/2013, Processo 148/09.6TBPST-F.L1.S1, disponível no respectivo sítio do itij).

Constitui jurisprudência uniforme o entendimento de que num processo de insolvência, a reclamação de créditos não pode dissociar-se desse processo global de liquidação universal em que se insere, pelo que documentada nos autos a identificação dos imóveis onde laborava a insolvente ou onde eram exercidas as actividades que a mesma levava a cabo, deve considerar-se processualmente adquirido esse facto e valorado pelo juiz na graduação de créditos, ainda que tal não haja sido especificamente alegado no requerimento apresentado pelos trabalhadores reclamantes – neste sentido, podem ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 22/10/2009, Processo n.º 605/04.0TJVNF-A.S1 e de 10/05/2011, Processo n.º 576-D/2001.P1.S1, ambos disponíveis no mesmo sítio do anteriormente citado.

Também, no Aresto acima referido, de 07/02/2013, se decidiu que “o princípio da aquisição processual (art.º 515.º CPC) e a regra de que o tribunal pode decidir com base em factos de que teve conhecimento em virtude do exercício das suas funções (art.º 514.º, 2, CPC) permitem considerar o facto de que os trabalhadores exerciam a sua actividade no imóvel em causa.”.

Assim, também, com base nesta ordem de razões, é de manter a sentença em análise.

Conclusão que mais se reforça se atentarmos no facto de o Administrador da Insolvência ter reconhecido e graduado tais créditos, como graduados com base no artigo 333.º do Código do Trabalho, em face do que se pode concluir que a alegação genérica efectuada por tais reclamantes veio a ser sanada mediante o reconhecimento do Administrador, nos termos do artigo 129.º do CIRE, para além de que, e no seguimento do anteriormente exposto, como decidido no Acórdão deste Tribunal da Relação, de 24/02/2015, Processo n.º 3475/12.1TBVIS-N.C1, disponível no respectivo sítio do itij, “o juiz para aferição da verificação dos pressupostos que integram o preenchimento do privilégio concedido pelo artigo 333.º do Código do Trabalho, deverá socorrer-se dos elementos constantes dos autos, ainda que não alegados.”.

Assim, quer por consideração do que se acha disposto no artigo 129.º do CIRE, quer por esta faculdade de consideração de factos não alegados, soçobra o recurso.

Em face do ora exposto e por cotejo com a factualidade provada, dúvidas não há de que tais imóveis têm de ser considerados como integrando, como estando afectos, à actividade empresarial da insolvente.

Esta, como resulta do item 2.º dos factos provados, tinha por objecto a indústria de construção civil e obras públicas, sobretudo na vertente de construção e remodelação de prédios.

Os prédios ora em apreço, como resulta do referido item 5.º, correspondiam ao escritório/sede da empresa (verba n.º 1); armazém de apoio e garagem (verba n.º 2) e grande armazém onde eram depositados materiais e parqueadas viaturas da empresa e onde funcionava a carpintaria e pintura (verba n.º 3).

Em resumo, entendemos, face ao exposto, que estes imóveis, estavam afectos à actividade empresarial da insolvente e, por consequência, podem incidir sobre os mesmos o privilégio concedido aos créditos laborais em apreço.

Consequentemente, improcede esta questão do recurso.

B. Se a sentença recorrida viola os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos, consagrados no artigo 2.º da CRP.

No que a esta questão concerne, alega a recorrente que o facto de os créditos laborais, mercê do privilégio imobiliário especial de que gozam se sobreporem a hipoteca anteriormente constituída a seu favor, constitui violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos, consagrados no artigo 2.º da CRP.

Dispõe este artigo que:

“A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP, Anotada, Vol. I, a pág.s 205 e 206:

“Na sua vertente de Estado de direito, o princípio do Estado de direito democrático, mais do que constitutivo de preceitos jurídicos, é sobretudo conglubador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia de sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança”.

(…)

Visando “a protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça”.

Ora, confrontando a situação sub judice com o que ora se deixou transcrito, salvo o devido respeito, não se pode dizer que estejamos perante uma situação de arbítrio e/ou injustiça, que ponha em causa a segurança jurídica e a protecção dos cidadãos, in casu aqueles que sejam beneficiários de hipoteca, anteriormente constituída, que vêm a garantia que a mesma propiciaria, postergada pela existência de privilégio imobiliário especial, decorrente de haver trabalhadores da insolvente, com retribuições em atraso.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 10 de Novembro de 2011, Processo n.º 278/10.1TBFND-C.C1.1, disponível no respectivo sítio do itij, acolhendo a decisão tomada pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 498/2003, in www.tribunalconstitucional.pt/acordãos/20030498.html, trata-se de um conflito entre o credor hipotecário, em que está em causa a tutela da confiança e da certeza do direito, com protecção no artigo 2.º da CRP e um direito, igualmente com garantia constitucional, na vertente de direito fundamental dos trabalhadores, o direito à retribuição do trabalho que visa garantir uma existência condigna, cf. artigo 59.º, n.º 1, al. a), da CRP, com natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, ali se concluindo que:

“parece manifesto que a limitação à confiança resultante do registo é um meio adequado e necessário à salvaguarda do direito dos trabalhadores à retribuição; na verdade, será, eventualmente, o único e derradeiro meio, numa situação de falência da entidade empregadora, de assegurar a efectivação de um direito fundamental dos trabalhadores que visa a respectiva “sobrevivência condigna”.

Ou seja, entre dois direitos em conflito, o legislador entendeu dar prevalência ao direito dos trabalhadores a receberem as retribuições que lhes são devidas, sacrificando a tutela da confiança e da certeza do direito que está inerente ao registo da hipoteca em que o credor hipotecário fundamenta a sua pretensão e tinha a expectativa de a mesma ser suficiente para a satisfação do seu crédito, do que decorre não se verificar a invocada constitucionalidade.

De resto, no caso em apreço, mais patente se torna a inexistência de tal inconstitucionalidade, porquanto, como resulta da certidão de ónus e encargos, junta de fl.s 293 a 295, a hipoteca de que goza a recorrente foi registada em 17 de Maio de 2006, altura em que no artigo 377.º do Código do Trabalho, na redacção então em vigor, já se encontrava previsto o privilégio imobiliário especial de que gozam os trabalhadores, sendo, a falência de uma empresa um facto que, embora, não seja de verificação certa, também não seja de afastar, por completo.

Todavia, o que releva é o que acima se deixou dito quanto ao modo como o legislador preveniu a resolução do conflito entre os direitos aqui em causa, pelo que, reitera-se, não padece a decisão recorrida da invocada inconstitucionalidade.

Assim, igualmente, quanto a esta questão, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas do presente recurso, a suportar pela apelante.

Coimbra, 26 de Fevereiro de 2019.

Arlindo Oliveira ( Relator )

Emídio Santos

Catarina Gonçalves


[1] Cfr. uma certa orientação jurisprudencial  e, nomeadamente, o Ac. do STJ de 29 de Abril de 2008 in CJ, STJ, Tomo II, p. 43-44.