Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1619/15.0T9GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
REGRAS DE CONDUTA
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JL CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 50.º A 52.º DO CP; ART. 34.º-B DA LEI N.º 112/2009, DE 16-09
Sumário: I – O regime regra nos casos de condenação de um agente pela prática do crime em causa [violência doméstica], em pena de prisão suspensa na sua execução, será o da sua subordinação à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, mas sempre se incluindo regras de conduta de protecção da vítima.
O que redunda, em outras palavras, que a não imposição de um tal regime conducente a facultar a suspensão da execução da pena de prisão, há-de ser excepcional e devidamente fundamentado.
II – A não imposição de um tal regime conducente a facultar a suspensão da execução da pena de prisão, há-de ser excepcional e devidamente fundamentado.
III – A finalidade da norma do art. 34-B) da Lei n.º 112/2009 é definir regras de protecção da parte mais débil nas relações tipificadas neste crime, acautelando, sobretudo, uma sua eficácia real. Entre elas, desde logo, o afastamento dos intervenientes.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I. Relatório.
1.1. No âmbito dos presentes autos de Processo comum singular, após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença no dia 10 de Novembro de 2017, na qual se decidiu, ao por mais ora relevante, condenar o arguido A…, entretanto já melhor identificado, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p.p.p. art.º 152.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, sujeita a regime de prova e plano de reinserção social, a elaborar e fiscalizar pela DGRSP, nomeadamente no sentido de o arguido se abster do consumo excessivo de bebidas alcoólicas e se prevenir o risco de reincidência, e sendo a suspensão subordinada ainda à condição e regra de conduta de o arguido abandonar o domicílio onde vive com a lesada B… e não proceder a qualquer contacto voluntário e de sua iniciativa com esta última, durante todo o período da suspensão.
1.2. Inconformado apenas com o segmento decisório que ditou a condição e regra de conduta de o arguido dever abandonar o domicílio onde vive com a lesada B… e não proceder a qualquer contacto voluntário e da sua iniciativa com a mesma, durante todo o período da suspensão, o arguido interpôs recurso (constante de fls. 191/193), pedindo a revogação parcelar da sentença prolatada, no que concerne, e isto fundado nas seguintes conclusões extraídas da motivação apresentada (transcrição):
1.ª Tendo a douta sentença considerado que o arguido não tem antecedentes criminais, encontra-se inserido na comunidade em geral e que, as razões de prevenção especial são reduzidas e, ainda, que este caso não é de extraordinária gravidade, a pena acessória em causa é, salvo melhor opinião, excessiva.
2.ª Por outro lado, atendendo a que a lesada e o arguido nunca deixaram de coabitar um com o outro, relação que mantêm ininterruptamente há mais de … anos, que nem sequer foi interrompida pelos factos ocorridos há mais de … anos e, sobretudo, atendendo a que a medida em causa, não foi solicitada pela lesada, a decisão do Tribunal quanto a esta matéria, é, salvo melhor opinião, desajustada.
3.ª Decidindo como decidiu, o Tribunal a quo não fez a melhor interpretação da norma prevista no art.º 152.º, n.º 4, do Código Penal.
1.3. O recurso foi admitido por despacho de fls. 195.
1.4. Notificado ao efeito, o Ministério Público respondeu ao recurso (fls. 201/203) sustentando o seu improvimento.
1.5. Observadas as formalidades devidas, foram os autos remetidos para este Tribunal da Relação, onde, aquando do momento previsto pelo art.º 416.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer (fls. 212/215) conducente também à negação de provimento à impugnação deduzida.
1.6. No âmbito do subsequente art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
1.7. Porque não vinha requerida a realização de audiência, e nenhum fundamento obstava ao prosseguimento do recurso, ordenou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, e sua submissão a conferência.
Dos trabalhos desta emerge a presente apreciação e decisão.
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II. Fundamentação.
(…)
3. MOTIVAÇÃO
A respeito da convicção do Tribunal, diremos antes do mais que o arguido, nas declarações que prestou em sede de audiência, começou por afirmar que assumia e confessava a totalidade do que é alegado na acusação, mais acrescentando que se encontra arrependido, que não deseja repetir, e que sente que teriam sido actos de cobardia da sua parte perante a sua companheira, a qual o tem ajudado e apoiado muito.
No entanto, ainda assim, o arguido acabaria em seguida por inflectir um pouco na assunção dos factos, na medida em que passou a colocar em causa que tivesse sido pessoa agressiva desde o início da relação e sobretudo que alguma vez tivesse apelidado a sua companheira de “puta” ou de “vaca” como aqui se alega, ainda que assumisse que tal fosse possível e que incorreu em inúmeras discussões com a sua companheira ao logo dos anos, sobretudo desde o ano de …, altura em que o arguido (…).
No entanto, ainda assim, e para além da já aludida confissão total que o arguido começou por fazer, instintivamente também a este respeito, o depoimento que foi em seguida prestado pela sua companheira B… não deixou qualquer dúvida no sentido do que supra se acabou de dizer, tendo esta afirmado no seu depoimento, entre tudo o mais, que desde o início e profusas vezes ao longo dos anos foi apelidada pelo arguido de “puta”, “vaca”, “cabra do inferno”, entre outros epítetos.
E já em jeito de conclusão, quanto ao alegado na acusação como tendo ocorrido no mês ..., o arguido confessou e assumiu tal data, embora a sua companheira e testemunha antes haja apontado para o mês de … desse mesmo ano, e daí que demos como provado que o aqui sucedido terá ocorrido então no mês de … ou no mês de … de tal ano de ….
Finalmente, quanto às condições pessoais, sócio-económicas e financeiras do arguido que se deram como provadas, foram relevantes as respectivas declarações, bem como as prestadas pela sua companheira, e quanto à ausência de antecedentes criminais por parte do arguido foi relevante o respectivo CRC de fls. 137.»
2.2. Delimitação do objecto do recurso.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e delimita através das conclusões formuladas na motivação apresentada (art.º 412.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no art.º 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
No caso vertente, tal como transposto nas conclusões apresentadas, e porque não intercede fundamento conducente a qualquer intervenção oficiosa, a questão decidenda traduz-se em verificarmos se não deve subsistir a condição e regra de conduta aplicada ao recorrente de dever abandonar o domicílio onde vive com a lesada B… e não proceder a qualquer contacto voluntário e da sua iniciativa com a mesma, durante todo o período da suspensão.
2.3. Cotejando-se a decisão recorrida e a motivação e conclusões apresentadas pelo arguido ao longo da peça recursiva, como sinaliza o Ministério Público na resposta que opôs à última, o recorrente labora num patente equívoco, pois que não lhe foi imposta qualquer pena acessória, antes, a sanção aplicada se traduziu numa pena de prisão, suspensa na sua execução (e isto, além do mais, tudo questões que não controverte), subordinada à condição e regra de conduta de o mesmo abandonar o domicílio onde vive com a lesada B… e não proceder a qualquer contacto voluntário e de sua iniciativa com ela, durante todo o período da suspensão, este sim o nó górdio da impugnação.
Feita a precisão, vejamos, então:
A propósito da questão da suspensão da execução da pena de prisão (que, reitera-se não se mostra controvertida) e do regime que a subordinou, exarou-se na sentença sob censura:
«Enfim, aqui chegados, por tudo quanto se acaba de dizer, julgamos justa, adequada e proporcional a aplicação ao arguido de uma pena principal de 2 anos e 6 meses de prisão.
Isto posto, resulta, contudo, do artigo 50.º do Cód. Penal que a pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos é suspensa na sua execução se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, o tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Tal suspensão pode ser sujeita a diversos deveres ou regras de conduta, tendo como duração um período igual ao da duração da pena efectiva, embora nunca inferior a um ano.
Por seu turno, mais nos diz ainda o artigo 34.º-B da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, já vigente à data dos factos aqui em causa, que “A suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.”.
No nosso caso concreto, tendo nós optado pela aplicação de uma pena concreta de 2 anos e 6 meses de prisão, entendemos que a suspensão da sua execução será ainda aqui de aplicar, tendo presente que o arguido não apresenta quaisquer antecedentes criminais, nunca tendo sofrido anteriormente qualquer advertência por parte do sistema judicial, para além de se encontrar sensivelmente inserido na respectiva comunidade, pelo que entendemos que, sem que fosse concedida ainda ao arguido esta oportunidade, seria claramente excessivo sujeitá-lo desde já ao cumprimento de uma pena de prisão efectiva.
(...).
Por outro lado, mais diremos que, não obstante seja aplicável ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com a vítima, com necessário recurso a meios de vigilância electrónica, pensamos que seria no entanto excessivo e desproporcionado aplicar tal pena no caso concreto, atendendo às limitações elevadas que isso implica, e face à não extraordinária gravidade do caso concreto em face dos demais casos como este, que apesar de tudo são comuns no domínio do judiciário.
No entanto, ainda assim e por outro lado, pensamos que é ajustado e adequado sujeitar a suspensão da execução da pena de prisão que se aplica a regime de prova e plano de reinserção social, a elaborar e fiscalizar pela DGRSP, nomeadamente no sentido de o arguido se abster do consumo excessivo de bebidas alcoólicas e se prevenir o risco de reincidência.
E mais se condicionará a aludida suspensão à regra de conduta de o arguido abandonar o domicílio onde vive com a aqui lesada B… e não proceder a qualquer contacto voluntário e de sua iniciativa com esta última durante todo o período da suspensão, ao abrigo do estabelecido no artigo 52.º, n.º 2, do Cód. Penal.»
Como sobressai do exposto e do regime decorrente do aludido art.º 34.º-B (redacção introduzida através da Lei n.º 129/2015, de 3 de Setembro), a suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no art.º 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.” (sublinhados nossos).
Ou seja, regime regra nos casos de condenação de um agente pela prática do crime em causa, em pena de prisão suspensa na sua execução, será o da sua subordinação à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, mas sempre se incluindo regras de conduta de protecção da vítima, designadamente as elencadas e impostas ao arguido. O que redunda, em outras palavras, que a não imposição de um tal regime conducente a facultar a suspensão da execução da pena de prisão, há-de ser excepcional e devidamente fundamentado.
Compreende-se facilmente o alcance do regime resultante do citado art.º 34.º-B: definir regras de protecção da parte mais débil nas relações tipificadas neste crime, acautelando, sobretudo, uma sua eficácia real. Entre elas, desde logo, o afastamento dos intervenientes. Residindo o arguido e a ofendida na mesma habitação, pertença desta, a proibição de contactos com a ofendida tornar-se-ia inexequível, por ser fisicamente impossível, sem que fosse determinada também a ausência do primeiro da habitação (cfr. Ac. do TRP, in processo n.º 190/16.3PBMTS.P1, acedido em www.dgsi.pt/jtrp).
Os elementos carreados aos autos por forma alguma denotam circunstâncias susceptíveis de “revogar” aquele regime regra.
Os dados mitigadores da actuação do arguido foram sopesados nas antecedentes tarefas de determinação da medida da pena principal e no regime de suspensão da execução que se entendeu por bem facultar. Na sede concreta em que o mesmo coloca o recurso, nada mostra que fosse possível arquitectar um regime distinto do fixado na decisão recorrida. Prevalece uma lógica de prevenção do conflito que o afastamento entre si e a ofendida possibilita, e uma lógica de intimidação, mostrando ao arguido que é tempo de obstar à continuação da sua actividade delitiva.
Tudo para concluirmos que é de manter o sentenciado.
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III. Dispositivo.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, manter a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em três UC a taxa de justiça devida (sem prejuízo de eventual concessão de apoio judiciário e/ou de legal isenção) – cfr. art.ºs 513.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.
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Coimbra, 12 de Abril de 2018

Brizida Martins (relator)

Orlando Gonçalves (adjunto)