Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
154/11.0GBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: QUEIXA
RATIFICAÇÃO
VALIDADE
DEDUÇÃO
ACUSAÇÃO
FALTA
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 02/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COVILHÃ (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 268.º, N.º 1, DO CC; ARTIGOS 48.º, 49.º E 119., ALÍNEA B), TODOS DO CPP
Sumário: I - A ratificação da queixa-crime pressupõe que alguém, sem poderes de representação, actue em nome de outrem; não é juridicamente aplicável quando alguém age em nome próprio no exercício de um direito meramente aparente.

II - O segmento normativo da parte inicial da alínea b) do artigo 119.º do CPP - do seguinte teor: “A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º” - contempla não só situações omissivas do despacho acusatório quando a lei confere àquele legitimidade para o efeito, mas também os casos em que o MP acusa sem legitimidade, ou seja, fora da previsão do artigo 48.º do compêndio legislativo referido.

III - Consequentemente, tendo o MP deduzido acusação em momento anterior ao da apresentação de queixa juridicamente válida, verifica-se a nulidade insanável prevista naquele normativo, que contamina tudo o que foi processado posteriormente - com excepção da queixa -, em consonância com o disposto no artigo 122.º do CPP.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum singular 154/11.0GBCVL do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, após realização da audiência de discussão e julgamento com documentação da prova oral, em 3 de Dezembro de 2012 foi proferida sentença como o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, e em face do que fica dito, decide-se:

A) PARTE CRIMINAL:

I - Condenar o arguido A... , pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de 7€ (sete euros), o que perfaz o montante global de 1400€ (mil e quatrocentos euros);

II - Condenar o arguido A... nas custas do processo crime, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

B) Parte Cível:

I - Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo demandante e, em consequência, condenar o arguido A... a pagar-lhe a quantia de €6.000 (seis mil euros), sendo que sobre a quantia de 5.000€ acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação;

II - Condenar demandante e demandado nas custas do pedido cível, na proporção dos respectivos decaimentos.

Inconformado com esta decisão dela recorreu o arguido A..., rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões:

1) O arguido suscitou a questão prévia de ver declarada a ilegitimidade do Ministério Público para deduzir a acusação pública no momento em que a proferiu devendo ter sido declarado extinto o procedimento criminal contra o arguido, uma vez que tal ilegitimidade gera uma nulidade insanável.

2) Uma vez que não tendo sido apresentada queixa pelo crime de furto pelo legítimo titular não podia o MP, no momento em que o fez, deduzir acusação pública como não podia o Tribunal receber tal acusação nem tão pouco conhecer da sua existência, devendo ter procedido à sua rejeição.

3) A ratificação da queixa junta aos autos não tem e não podia ter tido, a virtualidade da sanar a falta de um pressuposto processual que tem de estar verificado no momento em que o MP deduz a acusação pública, pelo que não pode ter efeitos retroactivos.

4) O que equivale à sua falta e implica a nulidade do processo (Cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal. III. 2ª ed, pág.34, nulidade esta insanável e consequentemente invocável por qualquer interessado e do conhecimento oficioso até ao trânsito da decisão final  - artº 119º alínea b) do Código de Processo Penal.

5) A sentença recorrida, ao decidir-se pela improcedência da questão prévia da falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal levantada previamente pelo arguido, da forma explanada na douta decisão recorrida, violou entre outros, os artigos 203º, nº 3 do CP e arts 48º, 49º, 50º, 51º, 52º, 11º al. b), 358º e 359º todos do CPP.

6) Sem prescindir, também a sentença recorrida, no que à apreciação da prova foi decidido, apreciou erradamente boa parte das provas produzidas, quer documentais, quer no que concerne às testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento.

7) Efectivamente, o arguido ao invocar c provar através de testemunha idónea - B... - gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, prestadas no dia 08-10-2012 das 16.23.47 às 17.02.17. que tinha autorização para mandar limpar a estrema da sua propriedade que confina com a propriedade do demandante, ao tribunal incumbia afastar tal prova, chamando a depor o próprio demandante, pois só este poderia contrariar tal facto, assim o ónus da prova de que tal autorização não existia, incumbia ao Ministério Público e não ao arguido que goza da presunção de inocência.

8) A sentença recorrida desvalorizou cm absoluto um depoimento directo prestado pela testemunha B... gravado nas coordenadas do dia 08-10-2012 das 16:23:47 às 17:02:17 que alega claramente ter recebido consentimento do proprietário do imóvel - demandante - para proceder a limpeza do prédio na estrema a fim de evitar a ocorrência de incêndios, impunha-se determinantemente a inquirição do demandante a fim de ficar assente tal facto. O que não aconteceu

9) Face à prova produzida o tribunal a quo deveria dar como não provados os factos elencados nas alíneas 1) e 2) dos tactos provados e como provado o facto susceptível de influir na decisão da causa - que o ofendido autorizou o arguido ou a sua mãe a proceder a limpeza da estrema da sua propriedade.

10) O Tribunal "a quo não apreciou devidamente todas as provas carreadas para os autos e errou na apreciação que fez das mesmas, por violação das regras da experiência comum.

11) Tal erro consubstancia vício de erro de julgamento de facto, constante do nº 2 do Artº 410º do CPP. conforme foi decidido pelo Ac do STJ de 97-09-18, Proc. nº 48230-A.

12) Pelo que a prova produzida nos presentes autos impunha ao tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta da sentença recorrida, considerando o arguido absolvido do crime que vem acusado.

13) A sentença em crise viola ainda o princípio do “in dubio pro reo”.

14) Para além da prova produzida ter sido contraria a imputação do arguido de qualquer facto que determine ter sido aquele que mandou proceder ao corte das oliveiras, impunha-se - como já se deixou alegado que o tribunal para descredibilizar os depoimentos arrolados pela defesa os únicos com conhecimento directo dos factos - a realização de outras diligencias probatórias, pois a prova realizada não foi suficiente para, sem qualquer dúvida, permitir a condenação do arguido, por todas as razões já supra expostas.

15) A. convicção do tribunal “a quo” para dar tal facto como provado, baseou-se nas declarações das testemunhas arroladas pela acusação designadamente as testemunha C..., D...e E...- e ainda de F...- Agente da GNR - e G..., funcionário do arguido.

16) Resulta claramente o contrário do depoimento de tais testemunhas. designadamente de G... - única testemunha presencial dos factos -. gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, prestadas no dia 29-09-2012 das 11.53.33 às 14.54.01, que o arguido não deu qualquer ordem à testemunha para cortar qualquer árvore ou oliveiras. Se a testemunha cortou foi por sua conta e risco, com o intuito de proceder à limpeza da estrema, conforme ordenado pelo arguido.

17) Desta forma, o tribunal a quo violou entre outros os artigos 203º do CP e artigos 127º e 410º do CPP

18) A douta decisão recorrida deve ser substituída por outra que absolva o arguido do crime de furto e consequentemente do pedido cível nos termos em que foi condenado.

19) O arguido deu conhecimento ao processo - através da junção aos autos de certidão de óbito a fls. que dá aqui por integralmente reproduzida - do falecimento do ofendido que ocorreu em data anterior à leitura da sentença condenatória. Pelo que, nos termos dos artigos 276º e segs do CPC o presente processo após a leitura da sentença deveria ficar suspenso em virtude do falecimento do ofendido, aguardando que o mesmo fosse impulsionado através do incidente da habilitação, o que não aconteceu, sendo a sentença omissa quanto a tal consequência

Nestes Termos e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências deve a douta sentença aqui recorrida ser revogada por outra que absolva o Recorrente.

Assim se fazendo a mais elementar e costumada Justiça!

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso e, em consequência, confirmada a sentença recorrida.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos teve lugar conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

***

             II. Fundamentos da Decisão Recorrida

             A decisão recorrida é do seguinte teor no que respeita à apreciação da questão prévia de ilegitimidade do Ministério Público e contém os seguintes fundamentos de facto:

Cumpre assim, antes de mais, apreciar e decidir da suscitada questão prévia, aferindo da legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal.

                        Com relevo para a decisão a proferir cumpre salientar que:

- Os presentes autos tiverem início com a denúncia junta a fls. 2 e 3 dos autos, por meio da qual C... reportou o furto de 57 oliveiras de grande porte na Quinta da ..., declarando desejar procedimento criminal contra os autores de tais factos;

- A convite do Ministério Público, foram juntas pelo referido C..., a fls. 46, e em 12.12.2011, certidões prediais, de onde resulta que proprietário do imóvel de onde alegadamente foram subtraídas as árvores descritas nos autos é o seu pai H...

- Por despacho proferido em 16.12.2011, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203º, n.º 1 do Código Penal;

- Já por requerimento entrado em juízo no dia 8 de Fevereiro de 2012, veio o ofendido H...ratificar a queixa oportunamente apresentada pelo seu filho C..., “manifestando o desejo de procedimento criminal e requerendo que os autos prossigam a sua tramitação”.

                        Dito isto, vejamos se ao arguido assiste razão quanto à questão prévia que suscitou:

                        O crime de furto simples, previsto e punido no artigo 203º, n.º 1 do Código Penal, pelo qual o arguido vem acusado, é um crime cujo procedimento criminal depende de queixa, de acordo com o estipulado no n.º 3 do mesmo artigo. Significa isto que o crime em apreço é de natureza semi-pública e, como tal, para que o Ministério Público promova o processo é necessário que o ofendido dê conhecimento do facto ao Ministério Público ou a qualquer outra autoridade que tenha obrigação de transmitir àquele, nos termos do artigo 49º n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal. Como é sabido, o ofendido é quem, em regra, tem legitimidade para exercer o direito de queixa, considerando-se como tal, o titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação, de acordo com o n.º 1 do artigo 113º do Código Penal, sendo que no caso de furto simples, é o titular do direito de propriedade dos bens subtraídos que é titular do direito de queixa.              

                        Ora, no caso em apreço, não foi o ofendido quem apresentou queixa, tendo porém vindo a ratificá-la.

                        Com respeito à ratificação[1] da queixa importará chamar à colação o artigo 268º, nº 1 do Código Civil, que depois de preceituar no seu n.º 1 que "o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este se não for por ele ratificado ", acrescenta no n.º 2 que "a ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro".

                        Ora, sabendo-se que para a apresentação da queixa não é exigida forma especial, assim também não será exigida forma especial para a ratificação da queixa, tendo por conseguinte de considerar-se a ratificação apresentada nos autos como válida.

                        Como válida e eficaz, dir-se-á desde já, susceptível de sanar o vício decorrente da apresentação de queixa por pessoa diversa do ofendido.

                        Isto porque, como tem sido sustentado na jurisprudência, “sendo a denúncia uma declaração do ofendido ao Estado titular do “jus puniendi” a manifestar a vontade de que o agente do crime seja punido e não tendo este o direito a ver cessado o procedimento criminal se for necessária a ratificação da queixa, esta ratificação tem eficácia retroactiva (artº 268º, nº 2 do C.C. ), solução confirmada pela norma adjectiva aplicável - artº 40º, nº 2 do C.P.C., " ex vi " do artº 4º do C.P.P.” – Cfr. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.02.1995, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler que “a ratificação tem eficácia retroactiva, sanando o vício e não está sujeita ao peso do artigo 112 n.1 do Código Penal”.

                        Não pode deixar de se salientar a este propósito o acórdão uniformizador de jurisprudência tirado em 10 de Janeiro de 2007, nos termos do qual se fixou jurisprudência no sentido de que “apresentada a queixa por crime semipúblico, por mandatário sem poderes especiais, o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal se a queixa for ratificada pelo titular do direito respectivo mesmo que após o prazo previsto no artigo 112.º, n.º 1, do Código Penal de 1982”, e em cuja fundamentação se pode ler, remetendo para a orientação do Supremo Tribunal de Justiça afirmada no Acórdão de 27 de Setembro de 1994, (in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 439/94, a p. 45) que “o acto praticado por quem não possui os necessários poderes para o fazer não é um acto inválido, mas apenas inquinado de simples ineficácia, sanável através de ratificação, daí que [...] sendo ratificada pelo titular do direito ofendido adquira toda a sua eficácia, uma vez ser aceite uniformemente que a ratificação opera retroactivamente ab initio, garantida assim ficando a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal.

                        Não se desconhece que o aresto citado aborda uma questão de facto diferente da que aqui nos ocupa, já que aí está em causa a apresentação da ratificação depois de decorrido o prazo para a apresentação de queixa[2] e no presente processo o que se discute é a apresentação da ratificação depois de deduzida acusação pública, mas entende-se que as considerações tecidas no referido acórdão têm inteira aplicação ao caso, por se tratar afinal de determinar (em ambos os casos) se a ratificação tem ou não eficácia retroactiva.

                        E assim sendo, conclui-se, como começamos por enunciar, acompanhando a referida jurisprudência, que a ratificação apresentada pelo ofendido tem eficácia retroactiva, operando ab initio, sanando a ineficácia do acto praticado pelo denunciante (filho do ofendido) e garantindo a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal.

                        Improcede assim a questão prévia suscitada pelo arguido, decidindo-se, sem necessidade de outras considerações, pela legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal. 

*

                        Inexistem outras questões prévias ou nulidades processuais que tenham sido suscitadas ou de que cumpra conhecer, mantendo-se a instância válida e regular, nada obstando ao conhecimento de mérito.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

A) Factos Provados:

Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. Em data não concretamente apurada, mas que sabe situar-se entre os dias 30 de Junho e 13 de Setembro 2011, o arguido deu ordens a G... para que este se dirigisse às propriedades do ofendido H..., sitas na Quinta da ... (ou ...) e na Quinta do ... (ou ...), ..., Covilhã, e ali efectuasse o corte de 57 oliveiras, no valor aproximado de 5.000 Euros, e transportasse a lenha das mesmas para a propriedade de sua mãe, B..., propriedade essa que faz extrema com as supra referidas, através de um tractor, com o propósito de se apropriar da referida lenha, o que veio a acontecer.

2. Para o efeito, o referido G... efectuou o corte das oliveiras, colocou a lenha no tractor (reboque), e transportou a mesma para a referida propriedade, tudo seguindo as instruções do arguido, e ordens deste, sendo que o G... desconhecia que as oliveiras não pertenciam ao arguido.

3. O arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, no intuito de se apropriar da madeira/lenha acima mencionada, a qual fez sua e integrou no seu património, tendo-o usada em proveito próprio, e sem proceder ao pagamento do respectivo preço.

4. O arguido, com a sua conduta, agiu de forma deliberada, não obstante saber que os produtos lenhosos de que se apropriou não lhe pertenciam e que actuava sem o consentimento e contra a vontade dos

5. proprietários dos mesmos.

6. Em tudo agiu bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

7. As referidas oliveiras tinham cerca de 50 anos de idade.

8. O corte das oliveiras efectuado a mando do arguido deixou a propriedade do ofendido descaracterizada e desvalorizou-a.

9. Em virtude dos factos o ofendido passou por momentos de intenso nervosismo, preocupação e agastamento. 

10. O arguido é empresário, dedicando-se à actividades relacionadas com reboques e lenhas, e aufere mensalmente cerca de 600 euros.

11. É casado, e actualmente vive com a mulher em cada da mãe, não pagando renda.

12. A mulher aufere mensalmente cerca de 800€ mensais.

13. Tem o 9º ano de escolaridade.

14. Do certificado de registo criminal do arguido resulta que o mesmo foi condenado no âmbito do processo n.º 260/05.0GTCTB do 1º Juízo do Fundão pela prática em 06.08.2005 de um crime de desobediência na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 5€; no âmbito do processo n.º 124/06.0GHCVL do 2º Juízo do Tribunal da Covilhã pela prática em 07.09.2006 de um crime de desobediência qualificada na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 5€; no âmbito do processo n.º 322/05.4PBCVL deste Juízo pela prática em 08.08.2005 de um crime de desobediência na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 5€; no âmbito do processo n.º 274/05.0GTCTB do 3º Juízo deste Tribunal pela prática em 26.08.2005 de um crime de desobediência na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 5€; no âmbito do processo n.º 122/07.7GBCVL do 3º Juízo deste Tribunal pela prática em 13.05.2007 de um crime de ameaça na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 7€;

*

                        Estes os factos provados, apenas não tendo resultado provado com relevo para a decisão da causa que o ofendido tivesse autorizado o arguido ou a sua mãe a proceder ao corte das árvores efectuado; que cada árvore abatida tivesse o valor unitário de 399€, que as mesmas proporcionassem anualmente centenas de litros de azeite ou que tivessem um especial significado afectivo para o ofendido.

                        Expressamente se consigna que os demais factos alegados (designadamente no pedido cível) e não referidos nos números que antecedem foram considerados conclusivos, como contendo apenas matéria de direito ou inócuos à decisão a proferir.

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B) Motivação de facto:

                        O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova testemunhal e documental produzida, bem como na inspecção judicial realizada – tudo o que apreciou de forma crítica e global segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (artigo 127.º do Código de Processo Penal).

            Assim, teve o Tribunal em consideração, em especial, os depoimentos das testemunhas arroladas pela acusação:

                        (1) C..., filho do ofendido, o qual referiu, de forma coerente, segura e por isso totalmente credível, que no dia 12 de Setembro de 2011 estava em casa com o pai quando o Sr. D..., pessoa de confiança do pai, foi lá a casa contar que tinha dado conta de que tinham sido cortadas oliveiras e carvalhos na quinta da .... Foram ao local e lá confirmaram que tinha efectivamente havido um corte de árvores, ainda lá estando algum do material usado para o efeito. Esclareceu a testemunha que na altura contaram 57 oliveiras cortadas, sendo que para além disso também foram cortados carvalhos, que não contabilizaram. Esclareceu ainda a testemunha que a quinta tem duas entradas de carro, uma através de um portão fechado e uma outra através de uma abertura para a quinta do lado, sendo que na altura viram logo que tinha sido por essa abertura que tinham passado, uma vez que se viam os rodados, tendo por esse motivo suspeitado que os vizinhos da quinta ao lado teriam pelo menos conhecimento do sucedido. Disse ainda que soube depois que quando a GNR se deslocou ao local ainda lá havia trabalhadores a retirar madeira. Disse também que as quintas estão perfeitamente delimitadas e que as árvores abatidas se situavam essencialmente no interior da quinta. Referiu igualmente que quando souberam da notícia o pai ficou muito preocupado e assustado. Esclareceu depois que na altura o pai já estava combalido e foi por esse motivo que o mandou lá a ele, sendo que o Sr. D... costumava ir regularmente à quinta, tendo lá estado em Junho e depois novamente em Setembro, data em que se apercebeu do corte das árvores. Mais disse a testemunha que as árvores cortadas eram as mais antigas, sendo mesmo centenárias, tendo cerca de 50 cm de diâmetro. Reforçou ainda o estado de ansiedade em que o pai ficou quando lhe relatou com mais pormenor o sucedido, dizendo que o mesmo se sentiu revoltado e irritado com a situação, pedindo-lhe logo para ir fazer queixa. Perguntado nesse sentido, afirmou não conhecer os proprietários da quinta vizinha, no caso a família do arguido, dizendo ainda que sempre procederam à limpeza da quinta com regularidade, facto de quem tem conhecimento apesar de lá não ir habitualmente, dizendo não se recordar de qualquer grande incêndio que tivesse afectado a quinta. Também perguntado nesse sentido, afirmou que a quinta não está abandonada, que sempre lá colheram azeite, até há cerca de 2 ou 3 anos, confirmando porém que houve há cerca de um mês uma denúncia por causa do estado da quinta, tendo de imediato sido tratada a limpeza da mesma.

 

 

                        (2) – F..., agente da GNR que se deslocou ao local na sequência da denúncia apresentada e que referiu desde logo que quando lá foi se apercebeu de que estava uma pessoa a cortar madeira na quinta vizinha, pelo que a abordou, tendo o individuo respondido que tinha recebido ordens do Sr. A... para cortar a madeira. Mais disse a testemunha que as árvores cortadas eram de grande porte. Disse ainda que na altura lhe foi dada a explicação de que a mãe do arguido tinha autorização do ofendido para limpar o terreno. Confirmou que no local se viam ainda as marcas dos rodados. Referiu por fim, que no interior da propriedade do ofendido se viam silvas, que cobriam as oliveiras, ao ponto de só se conseguir circular a pé.

                        (3) – G..., pessoa que a mando do arguido procedeu ao corte das árvores e que referiu que o arguido o contratou para cortar umas silvas e umas oliveiras, ao que julga na quinta propriedade da família do arguido. Mais referiu que não podia limpar as silvas sem cortar as árvores, já que eram silvas enormes e as árvores estavam queimadas (secas e enfarruscadas), não produzindo já azeite. Esclareceu depois que limpou o terreno por “aí acima”, ao longo de um muro e de uns “barrancos”.

                        Teve igualmente em consideração o Tribunal o depoimento das testemunhas arroladas pelo ofendido/demandante:

                        (4) – D..., pessoa encarregue pelo ofendido de tratar das suas várias propriedades, o que faz há cerca de 20 anos, e que referiu de modo espontâneo que em Setembro de 2011 foi à quinta da ... com o filho, porque o Sr. Engenheiro ( H...) lhe tinha pedido para ir ver o telhado do lagar. Quando lá chegaram depararam-se com as oliveiras cortadas, cerca de 57, mais ou menos no meio da quinta, numa extensão grande. De imediato foi a casa do ofendido contar o sucedido, tendo este reagido “muito mal”, descrevendo-o a testemunha como uma “pessoa explosiva”. Voltou ao local acompanhado do filho do arguido (a testemunha C...) e viram então que ainda lá estava lenha cortada e 2 oliveiras “estendidas” no chão, tendo de seguido ido à GNR apresentar queixa, sendo que na altura não desconfiavam de ninguém, apesar de se verem uns rodados na direcção da quinta vizinha. Perguntado nesse sentido, referiu a testemunha nunca ter ouvido falar de qualquer autorização do ofendido, dizendo mesmo que o ofendido tratava de tudo “por escrito” e que lhe parecia “impossível” que tivesse autorizado o que quer que fosse. Quanto ao estado da quinta, referiu que na altura dos factos lá havia efectivamente silvas, que crescem de um ano para o outro, acrescentando que a quinta normalmente era limpa de 2 em 2 anos, sendo que já não era limpa desde 2008/2009 e que por isso as silvas estavam muito altas. Relativamente às oliveiras, referiu que eram árvores centenárias e que até há cerca de 3 ou 4 anos ainda davam azeite (dando o Sr. Engenheiro a azeitona a colher), tendo cada uma o valor de 400€. Também perguntado nesse sentido, confirmou que em 2008 lá houve um princípio de incêndio, mas que só ardeu mato e giestas, sem grande prejuízo. Esclareceu depois que quando lá foi com a GNR entraram pela Quinta da ... e que se passava bem, não tendo havido necessidade de entrarem pela quinta da ....  Por fim afirmou que as oliveiras cortadas se situavam no meio da propriedade e não junto à estrema, onde terão sido cortados alguns carvalhos, admitindo porém que foi o filho quem andou a contar as árvores.

                        (5) – E..., filho da anterior testemunha, que confirmou que em Setembro de 2011 foi com o pai, que sempre trabalhou para o ofendido, à quinta da ... para verem o estado do telhado do lagar, precisando que entraram pela entrada que tem um portão e que na altura a quinta estava com “ervas altas”. Foi então que repararam, segundo disse, que tinha havido um corte de oliveiras, corte esse recente, dado que ainda havia oliveiras no chão talhadas e cortadas. Esclareceu a testemunha que algumas dessas árvores estavam na estrema, situando-se outras já no interior da propriedade. De seguida foram contar o sucedido ao Sr. Engenheiro, que ficou muito zangado e exaltado, tendo-se deslocado novamente à quinta com o filho do Sr. Engenheiro, altura em que tiraram fotografias e contaram as árvores cortadas – ao todo, 57 oliveiras. Disse ainda a testemunha que quando voltaram a casa do Sr. Engenheiro e lhe contaram com mais pormenor o sucedido, este reagiu muito mal, afirmando a testemunha que nunca ouviu falar de qualquer autorização (sendo que o ofendido tem o hábito de escrever tudo) e que, quando mais tarde falaram nisso ao ofendido, este negou que tivesse autorizado o corte das árvores. Confirmou depois a testemunha que se deslocou ainda à quinta uma outra vez, na presença dos agentes da GNR (altura em que o pai não terá já ido), tendo entrado pelo portão da quinta, apesar de reconhecer que tiveram dificuldades em entrar uma vez que havia ramadas de oliveiras no caminho. Quanto ao valor das oliveiras, referiu tratar-se de árvores com 40 ou 50 cm de diâmetro, que ainda davam azeite e que valeriam cerca de 400€, cada uma. Por fim, e relativamente  ao estado da quinta, disse a testemunha que a mesma era limpa habitualmente, mas que agora há cerca de 4 anos que deixou de ser limpa, confirmando que houve lá duas “queimadas”, mas longe do sítio em que foram cortadas as oliveiras, dizendo ainda que havia de facto silvas na quinta mas que estas não encobriam as árvores.

 Foi ainda considerado pelo tribunal o depoimento da testemunha arrolada pela defesa:

(6) – B..., mãe do arguido, que começou desde logo por referir que o filho está a ser acusado injustamente, já que no ano de 2003 ou 2004 (em data que não soube precisar) o Sr. Engenheiro lhe deu autorização para limpar a quinta, uma vez que a quinta dela estava em perigo. Pormenorizou depois que falou com o Sr. Engenheiro por telefone, tendo-lhe este dito que não queria saber de nada, que ela que limpasse o terreno como quisesse e que ficasse com o que quisesse, que ele só queria saber da terra, que “a agricultura era a arte de empobrecer alegremente” e que já tinha gasto 2000 contos há dois anos e que não gastava nem mais um tostão. Esclareceu ainda a testemunha que a conversa ocorreu em Julho de 2003 ou 2004 e foi motivada porque na altura havia muitos incêndios e a quinta do Sr. Engenheiro era só silvas, lá só podendo entrar “lagartos e bichos”. Na sequência dessa conversa, procedeu à limpeza da quinta do ofendido, na zona da partilha. Já em 2008 houve um grande incêndio, em que ardeu a zona da partilha e que “limpou” a estrema. Em 2011 a quinta estava outra vez um matagal, dizendo a testemunha que “parecia o Iraque”, que os caçadores armadilhavam tudo. Quanto ao corte propriamente dito disse a testemunha que o mesmo foi feito a um ou 2 metros da estrema, tendo sido cortadas 1 dúzia de oliveiras, admitindo porém que não foi ao local, dizendo que o filho fez conforme mandou e que confia nele.

Teve em tribunal ainda especialmente em consideração a inspecção judicial feita ao local, de cujo auto resulta designadamente que foi constatada a existência de diversos cepos, uns situados junto ao murro de divisão entre as propriedades e outros já algo mais afastados, sendo que um deles distava de tal murro cerca de 36m.

Foram também atendidas as declarações do arguido, em relação à sua situação económica e familiar, declarações que se revelaram nessa sede credíveis.

Finalmente, teve ainda em consideração o Tribunal os documentos juntos, designadamente, as fotografias de fls. 16, as certidões de fls. 44 e seguintes, o print de fls. 130, as cópias retiradas do processo n.º 5/08.3GACVL, as fotografias de fls. 158 e seguintes e o CRC do arguido.

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  Ora, atenta a prova produzida e acima referida, lida à luz das regras da experiência, não restaram quaisquer dúvidas de que os factos ocorreram conforme vertidos na douta acusação pública deduzida, tendo o Tribunal ficado plenamente convencido de que o arguido ordenou efectivamente o corte de 57 oliveiras da propriedade do ofendido, no intuito de se apropriar da respectiva madeira, que fez sua, integrando-a no seu património e usando-a em proveito próprio, o que fez contra a vontade do seu proprietário, que não consentiu ou autorizou tal conduta. Na verdade, foram totalmente credíveis os depoimentos a este propósito produzidos pelas testemunhas arroladas pelo Ministério Público e pelo demandante, que de forma coerente, espontânea e detalhada[3] descreveram a sucessão de acontecimentos, dizendo que da propriedade do ofendido foram efectivamente abatidas 57 oliveiras, que tal abate foi feito a mando do arguido e que este não tinha qualquer autorização para o efeito por parte do ofendido. Note-se, a respeito desta autorização, que as referidas testemunhas peremptoriamente afirmaram nunca ter ouvido dizer que o ofendido tivesse autorizado o que quer que fosse, afirmando ainda que não julgavam verosímil que o ofendido atenta a sua personalidade tivesse dado tal autorização, sendo que este, confrontado com uma possível autorização, sempre a negou. Não logrou pois obter o convencimento do tribunal a tese apresentada pelo arguido, através da sua mãe, que indicou como testemunha, no sentido de que o ofendido autorizara o referido corte, quer desde logo em face da prova de sinal contrária produzida e acima referida, quer também porque o depoimento da testemunha de defesa que sustentou tal versão se revelou manifestamente parcial, chegando a testemunha, mãe do arguido, ao ponto de dizer que não foi ao local, mas sabia o que tinha sido cortado porque confiava no filho. A tal acrescerá ainda a circunstância de a versão dos factos trazida a juízo pelo arguido se mostrar inverosímil, não sendo crível que alguém autorize outra pessoa a entrar na sua propriedade e a fazer o quiser e a ficar com o que quiser, conforme foi referido pela testemunha de defesa. Por outro lado, não colhe também a justificação de que o corte (autorizado, na perspectiva da defesa) se destinava a resguardar a propriedade da família do arguido do perigo de incêndios, dado que, conforme foi constatado no local o corte não foi efectuado apenas na estrema, havendo vestígios de abate de árvores a pelo menos 36 metros da estrema.

Assim sendo, o que ficou pois para o tribunal foi a convicção segura, como começamos por dizer, de que o arguido praticou os factos supra referidos, nos moldes descritos na douta acusação pública deduzida, tudo o que justificou que se considerassem provados os factos vertidos em A).

Diga-se por fim, quanto aos factos não provados (no sentido de que cada árvore abatida tivesse o valor unitário de 399€, que as mesmas proporcionassem anualmente centenas de litros de azeite ou que tivessem um especial significado afectivo para o ofendido) foi considerada a circunstância de quanto a eles não ter sido produzida prova credível, dizendo-se quanto ao valor das oliveiras que o valor adiantado pelo demandante (de 400€ por árvore) se considera excessivo, dado que tal valor (referido no print junto aos autos) se reportará a árvores em perfeitas condições, designadamente aptas a produção, o que não sucederia com as árvores abatidas pelo arguido, uma vez que resulta da prova produzida que as mesmas não teriam grande manutenção e já não davam azeite há cerca de 3 ou 4 anos. Parece assim ajustado, atentas as regras da experiência e as características das árvores, o valor indicado na acusação, de 5.000€, para o conjunto das árvores subtraídas – assim se justificando que se tivessem considerados não provados os factos acima referidos.

II. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (artigos 363° e 428° nº 1 do Código de Processo Penal).

Não obstante, o concreto objecto do recurso é sempre delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) sem embargo das questões do conhecimento oficioso. E vistas as conclusões do recurso as questões suscitadas são as seguintes:

- Se ocorre nulidade do processo prevista no artigo 119º, alínea b) do Código de Processo Penal;

- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo esta ser alterada no sentido indicado pelo recorrente com a sua consequente absolvição.

Apreciando:

O recorrente começa por invocar que o Ministério Público no momento em que deduziu acusação carecia de legitimidade para o efeito porque a queixa provinda do titular do respectivo direito só ocorreu posteriormente, não podendo considerar-se que ficou sanado tal vício que integra a nulidade prevista no artigo 119º, alínea b) do Código de Processo Penal.

Na sentença recorrida entendeu-se que ocorreu uma ratificação da queixa inicialmente apresentada por quem não era titular do respectivo direito e que tal, embora posterior à acusação, sanou a ilegitimidade do Ministério Público.

Vejamos.

O processo iniciou-se com base em denúncia de C..., filho do verdadeiro ofendido, que apenas relatou os factos integradores do imputado crime de furto como se fosse o titular do direito de queixa e sem mencionar que agia em nome de outrem.

A convite do Ministério Público foram juntas por C... certidões prediais, sendo destas que resultou que proprietário do imóvel de onde alegadamente foram subtraídas árvores é o seu pai, H.... 

Por despacho proferido em 16.12.2011, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203º, n.º 1 do Código Penal.

Por requerimento de 8.2. 2012, veio o ofendido H...declarar que ratifica a queixa oportunamente apresentada pelo seu filho C..., manifestando o desejo de procedimento criminal e requerendo que os autos prossigam a sua tramitação.

Tal como se refere na sentença recorrida, o crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1 do Código Penal, tem natureza semi-pública, dependendo o respectivo procedimento criminal depende de queixa, de acordo com o estipulado no n.º 3 do mesmo artigo. Para que o Ministério Público promova o processo é necessário que o ofendido lhe dê conhecimento do facto ou a qualquer outra autoridade que tenha obrigação de o transmitir àquele, nos termos do artigo 49º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal.

Por outro lado o ofendido é quem, em regra, tem legitimidade para exercer o direito de queixa, considerando-se como tal, o titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação, de acordo com o nº 1 do artigo 113º do Código Penal, sendo que no caso de furto simples, é o titular do direito de propriedade dos bens subtraídos que é titular do direito de queixa.                       

Prossegue a sentença recorrida afirmando que ocorreu ratificação da queixa inicialmente apresentada citando o disposto no artigo 268º, nº 1 do Código Civil, que depois de preceituar no seu n.º 1 que "o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este se não for por ele ratificado ", acrescenta no n.º 2 que "a ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro".

Ora, o acto de ratificação pressupõe que alguém, sem poderes de representação, actue em nome de outrem, não sendo aplicável ao caso de quem age em nome próprio no exercício de um direito meramente aparente. E foi essa a situação processual. O filho do ofendido apresentou queixa em nome próprio como se fosse o titular do direito de queixa, sendo inaplicável ao caso o instituto da ratificação.

Incontornável é que quando o Ministério Público deduziu acusação não tinha sido apresentada queixa e nos termos das disposições legais citadas carecia de legitimidade para acusar. A queixa foi apresentada posteriormente.

Temos por líquido e incontestável que a falta desse pressuposto processual não é sanável por apresentação de queixa posterior ainda em tempo e mesmo que fora aplicável o regime de ratificação à queixa, apenas legitimaria o Ministério Público a deduzir acusação posteriormente à verificação desse pressuposto de processibilidade. Ou seja, a falta de legitimidade do Ministério Público não é passível de ratificação por acto posterior à acusação porque assim se não encontra legalmente previsto.

O recorrente respaldando-se no ensinamento de Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 34, invoca que a falta de legitimidade do Ministério Público para acusar se reconduz à nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea b) do Código de Processo Penal.

O citado normativo preceitua que "constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48º (…)".

Numa primeira análise do preceito seríamos tentados a interpretá-lo no sentido de que apenas contempla situações omissivas do despacho acusatório por parte do Ministério Público quando é este que tem legitimidade para o efeito. Mas melhor analisado esse conteúdo normativo que se refere a “falta de promoção nos termos do artigo 48º” verificamos que igualmente cabe na letra do preceito a situação em que o Ministério Público acusa sem legitimidade, ou seja fora da previsão do artigo 48º que remete por sua vez para os artigos 49º a 52º, definindo o artigo 49º a legitimidade em crime dependente de queixa.

Em suma, tendo o Ministério Público deduzido acusação antes de apresentada queixa, verifica-se a referida nulidade insanável que contamina tudo o que foi processado posteriormente à excepção da queixa posteriormente apresentada, como decorre do disposto no artigo 122º do Código de Processo Penal.

Fica em consequência prejudicado o conhecimento da restante questão suscitada pelo recorrente,

***

III. Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e em consequência declarar nula a acusação e todo o processado posterior, devendo os autos voltar à fase de inquérito e aos serviços do Ministério Público para querendo deduzir nova acusação.

Não há lugar a tributação em razão do recurso interposto.

***

Coimbra, 19 de Fevereiro de 2014

 (Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relator)

 (José Eduardo Fernandes Martins)


[1] Ratificação é “o acto pelo qual, na representação sem poderes ou em caso de abuso no seu exercício, a pessoa em nome de quem o negócio é concluído declara aprovar tal negócio, que de outro modo seria ineficaz em relação a ele” - Rui Alarcão, Confirmação, n.º 1, p. 118.
[2] Questão que nos autos não se coloca, uma vez que a ratificação foi apresentada em 8 de Fevereiro, dentro por parte dos seis meses subsequentes ao conhecimento dos factos, que terão ocorrido, segundo a acusação, entre os dias 30 de Junho e 13 de Setembro. 
[3] E isto independentemente de quaisquer pequenas contradições que possam ser apontadas a tais testemunhos (como por exemplo saber se a testemunha D...foi ou não ao local com a GNR, se ocorreu ou não um incêndio na propriedade do ofendido e com que dimensão), contradições que, no entendimento do tribunal, são naturais atento o lapso de tempo entretanto decorrido e que em nada afectam a essência dos depoimentos produzidos.