Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1826/09.5T2AVR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO
PASSIVO
AGREGADO FAMILIAR
Data do Acordão: 09/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA / AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.235, 236, 237, 239 CIRE, 13 CIRS, DL Nº 70/2010 DE 16/6, ART.1880 CC
Sumário: 1. Por via da exoneração do passivo restante, nos termos dos artigos 235.º e seguintes do C.I.R.E., as dívidas são extintas, salvo as previstas no n.º 2 do artigo 245.º do mesmo diploma, o que constitui um sacrifício imposto inelutavelmente pelo Estado aos credores, o qual demanda, por sua vez, a assumpção de um comportamento similar por parte do devedor, retribuindo este com outro sacrifício efectivo e sério, de acordo com as suas capacidades económicas, através da cedência aos credores do rendimento disponível pelo prazo de cinco anos.

2. Na fixação do montante a ceder aos credores ( “rendimento disponível” ) deve partir-se, por isso, do valor correspondente a um salário mínimo nacional, adicionando-se, de seguida, se for o caso, o valor de outras despesas que se mostrem imprescindíveis para garantir um «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar».

3. Um filho, ainda que maior, integra o conceito de “agregado familiar”, para efeitos do disposto no art.239 nº3 b) i) do CIRE, desde que viva em economia comum com os pais e incida sobre estes a obrigação de o alimentar.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

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Recorrente…………………A (…) e esposa M (…) residentes na Rua (…) Albergaria-a-Velha.

Recorridos…………………Credores dos insolventes, identificados nos autos.


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I. Relatório:

a) Os recorrentes apresentaram-se à insolvência invocando a insuficiência do activo para satisfazer todos os seus compromissos vencidos e vincendos.

Pediram a exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto nos artigos 236.º, n.º 3 e 237.º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante designado apenas por CIRE), alegando que preenchiam os requisitos legais previstos na lei.

O tribunal apreciou este pedido.

Considerou, por um lado, que os insolventes não tinham invocado despesas extraordinárias em relação às normalmente suportadas pela generalidade das famílias portuguesas.

E, por outro, que o legislador ordinário entendeu constituir o salário mínimo nacional o montante mínimo necessário para salvaguardar uma vivência condigna.

Em consequência, determinou que o rendimento disponível de cada um dos devedores/insolventes, seria integrado por todos os rendimentos que lhes adviessem a qualquer título, com exclusão do correspondente ao salário mínimo legalmente determinado para cada ano, perfazendo dois salários mínimos para o casal, montante este fixado como o necessário para o sustento minimamente condigno dos devedores.

b) Os recorrentes discordaram do decidido e, por isso, recorreram para esta Relação alegando, em síntese, que, na apreciação feita em 1.ª instância, não foi ponderada toda a matéria de facto alegada, quer na petição, quer no plano de pagamentos, devendo o tribunal da Relação ordenar a ampliação da decisão de facto, ao abrigo do disposto no artigo 712.º, n.º 4, 1.ª parte, e 650.º, n.º 2, alínea f), por analogia, ambos do Código de Processo Civil, com vista a ser proferida decisão que determine que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer titulo aos Recorrentes, com exclusão do valor dos rendimentos directamente auferidos pelos insolventes até ao montante equivalente às suas despesas mensais que computaram em €1356,00 euros mensais.

Sustentam que alegaram e concretizaram as despesas tidas com a formação universitária de um dos seus filhos, ainda a seu cargo, que frequenta a Universidade de Aveiro, designadamente as devidas com as propinas e todo o material necessário ao curso universitário, relativamente às quais a sentença é completamente omissa.

Dizem que, no plano de pagamentos apresentado conjuntamente com a petição inicial, os recorrentes indicaram, na página 18 de tal plano, uma listagem completa e discriminada das suas despesas mensais, entre despesas com a sua alimentação, despesas básicas como água, luz, gás, transportes, comunicações e despesas com o seu filho que frequenta a Universidade de Aveiro.

Dizem que tais despesas não foram contestadas por qualquer credor ou pelo Sr. administrador da insolvência, razão pela qual deviam ter sido consideradas provadas, o que não sucedeu.

Tais despesas são as que lhes asseguram o razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno e do seu agregado familiar, nele incluído o mencionado filho.

Porém, a decisão fixou o mencionado rendimento no valor correspondente a dois salários mínimos garantidos, sendo que da leitura da parte da decisão sob recurso não se vislumbra como foi alcançado tal valor, não constando da mesma uma exposição dos factos julgados relevantes para justificar a fixação do valor que veio a ser fixado.

Ora, como o processo de insolvência decorre sob o princípio do inquisitório, princípio este que impõe ao julgador a averiguação de todos os factos relevantes para a decisão, sempre o tribunal devia ter averiguado os factos que entendesse necessários à decisão desta questão.

Pedem, por conseguinte, que a Relação mande ampliar a decisão de facto, ao abrigo do disposto no artigo 712.º, n.º 4, 1.ª parte e 650.º, n.º 2, al. f), por analogia, ambos do Código de Processo Civil, e que se decida excluir do rendimento disponível para os credores o montante equivalente àquelas despesas.

c) Não houve contra-alegações.

O objecto do recurso consiste no seguinte:

Em primeiro lugar, em saber se se deve devolver o processo à 1.ª instância para ampliação da matéria de facto.

Em segundo lugar, se a anterior questão for respondida negativamente, se é de ampliar para €1356,00 euros o montante do rendimento que deverá ficar na posse dos devedores ou, em todo caso, se deverá ser fixado um valor superior ao já fixado, ainda que inferior ao pedido.

II. Fundamentação.

1. Vejamos a primeira questão.

a) Nos termos da 1.ª parte, do n.º 4, do artigo 712.º, do Código de Processo Civil, «Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1.ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta…».

Afigura-se que não há, no caso dos autos, lugar à aplicação desta norma.

Com efeito, como se verá de seguida, o processo contém os elementos factuais suficientes para decidir a questão material colocada pelos recorrentes.

Só se se concluísse negativamente é que seria de ordenar à 1.ª instância que averiguasse os factos pertinentes.

b) Cumpre, então, verificar se há nos autos factos provados suficientes para decidir a questão ou se não há.

Os recorrentes alegaram que têm a seu cargo um filho de maioridade que é estudante universitário.

Juntaram um documento da Universidade de Aveiro, relativo ao (…), respeitante ao ano de 2008, do qual consta que, neste ano, o aluno pagou de propina anual €978,87 euros.

Referiram que o requerente está reformado e aufere uma pensão de reforma de €456,98 euros e que o vencimento mensal ilíquido da requerente é de €1744,84 euros.

Alegaram também que tinham despesas no montante mensal de €1356,00 euros, sendo €30,00 euros de condomínio, €550,00 euros de alimentação, €110,00 euros de despesas com electricidade, gás e água, €175,00 euros com transportes, €425,00 euros com material escolar, didáctico e explicações e €66,00 euros com outras despesas.

Esta factualidade não foi impugnada, nem pelos credores, nem pelo Sr. Administrador, nem o tribunal entendeu ser necessário investigar acerca da sua correspondência com a realidade.

Efectivamente, por não se mostrarem ofendidas ou contrariadas quaisquer regras da experiência, não havia razões para o tribunal investigar se os factos alegados eram reais.

Com efeito, quanto aos salários, a requerente juntou recibos do seu vencimento que comprovam o alegado, verificando-se ainda dos mesmos que, por vezes, por força de outros componentes remuneratórios, aufere quantias líquidas superiores ao vencimento base ilíquido.

Relativamente à frequência do ensino universitário por parte de um seu filho, juntou documento comprovativo do pagamento das propinas.

As despesas mostram-se apropriadas às receitas e ao número de elementos do agregado familiar, sendo certo que quanto mais elevadas são as receitas, mais elevados tendem a ser os gastos.

Face ao exposto, é de considerar como provado:

Que o agregado familiar dos requerentes é constituído por ambos e ainda por um filho, estudante universitário, que, à data da instauração da acção, tinha 24 anos de idade.

Que no ano de 2008, as propinas devidas à universidade por este filho importaram em €978,87 euros.

Que o requerente está reformado e aufere uma pensão de reforma de €456,98 euros mensais e a requerente um salário base mensal ilíquido de €1744,84 euros.

Que despendem €30,00 euros de condomínio; €550,00 euros em alimentação; €110,00 euros de despesas com electricidade, gás e água; €175,00 euros com transportes; €425,00 euros com material escolar, didáctico e explicações e €66,00 euros com outras despesas.

2 – Passando à questão de saber se é de ampliar o montante do rendimento disponível para os devedores até ao valor de €1356,00 euros.

Trata-se de um valor próximo do equivalente a três salários mínimos nacionais, em vigor no presente ano de 2010, cuja soma perfaz o montante de €1425,00 euros (O s.m.n. para o ano de 2010 é de €475,00 euros - Decreto-Lei n.º 5/2010 de 15/1).

Vejamos o que vem referido na lei sobre esta matéria.

Nos termos do artigo 235.º do CIRE, «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo».

A «exoneração do passivo restante» é uma medida nova, introduzida no ordenamento jurídico nacional pelo actual código da insolvência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18 de Março.

No preâmbulo deste diploma o legislador referiu-se a esta medida nos seguintes termos:

«O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da ‘exoneração do passivo restante’.

O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.

A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.

Esclareça-se que a aplicação deste regime é independente da de outros procedimentos extrajudiciais ou afins destinados ao tratamento do sobreendividamento de pessoas singulares, designadamente daqueles que relevem da legislação especial relativa a consumidores».

Trata-se, pois, como resulta deste texto, da concessão de um benefício que o Estado atribui a um seu cidadão libertando-o de dívidas que ele tem para com outros cidadãos ou outras pessoas jurídicas (por exemplo, sociedades), tendo como finalidade a futura reintegração do devedor na vida económica, mas livre dos constrangimentos que as dívidas extintas, salvo as previstas no n.º 2 do artigo 245.º do mesmo diploma, lhe trariam.

Para o efeito, a lei prevê que tal benefício seja acompanhado de uma atitude recta por parte do devedor concordante com o benefício de que poderá vir a gozar, prevendo que, durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, os devedores entreguem aos credores o respectivo rendimento disponível.

A cedência do rendimento disponível aos credores é medida que goza de plena justificação: se as dívidas são perdoadas ao devedor isso constitui um sacrifício imposto pelo Estado aos credores, o que implica que a medida seja acompanhada da assumpção de um comportamento similar por parte do devedor, retribuindo este com outro sacrifício, proporcional às suas capacidades económicas.

O conceito de «rendimento disponível» vem indicado no n.º 3, do artigo 239.º (Cessão do rendimento disponível), do C.I.R.E., nos seguintes termos:

«3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor».

No caso dos autos, o rendimento disponível será definido apenas a partir dos parâmetros indicados na anterior alínea b), pois a situação prevista na alínea a) não tem aplicação a este caso.

A primeira regra que se extrai da alínea b) é esta: no que respeita ao sustento do devedor e seu agregado familiar, o rendimento do devedor considerado indisponível não deve exceder três vezes o salário mínimo nacional.

No presente ano de 2010 o salário mínimo nacional tem o valor de €475,00 euros (Decreto-Lei n.º 5/2010 de 15/1), sendo o triplo deste montante a quantia de €1425,00 euros.

Trata-se de uma regra similar à que consta dos n.º 1 e 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil, relativa à penhora de vencimentos e salários, onde se dispõe que «1 - São impenhoráveis:

a) Dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado;

b) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.

2 - A impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional».
Ou seja, resumindo em poucas palavras, em razão da penhora, o executado não pode ficar com um rendimento disponível inferior ao salário mínimo nacional, nem com um rendimento superior a três salários mínimos nacionais.

A segunda regra diz-nos que ainda fazem parte do rendimento indisponível as quantias necessárias ao exercício da profissão do devedor.

 Por fim, a terceira regra contempla despesas do devedor com origem em causas variadas, a analisar casuisticamente pelo juiz, tendo em conta a razão de ser desta medida de indulgência.

Passando ao caso concreto, tendo em conta o exposto.

Exigindo-se sacrifícios ao devedor, como contrapartida à medida da «exoneração do passivo restante», os sacrifícios têm, então, de ser efectivos e os rendimentos indisponibilizáveis para o sustento tenderão a aproximar-se ou a coincidir com o salário mínimo nacional.

Com efeito, o salário mínimo nacional é o montante que o Estado entende constituir o mínimo dos mínimos para uma sobrevivência ainda digna do trabalhador ([1]).

Por conseguinte, embora o conceito de «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» seja mais amplo que o conceito de «sustento» pressuposto pelo «salário mínimo nacional», já que o primeiro pode inclusive exceder o triplo do salário mínimo, podem, no entanto, coincidir quando se tratar de analisar um caso concreto.

O tribunal recorrido fixou como rendimento disponível, a favor dos credores, o valor equivalente a um salário mínimo nacional para cada um dos requerentes, isto é, dois salários mínimos, o que perfaz €950,00 euros.

Os recorrentes dirão que é pouco, pois foi por considerarem ser pouco, que recorreram de tal decisão.

Vejamos.

Há que levar em consideração o que ficou referido supra.

A medida da exoneração do passivo restante, destinada a permitir aos requerentes a futura reintegração na vida económica, livres, então, das dívidas antigas, que provavelmente os acompanhariam por grande parte da vida, necessita de ter um correspectivo, uma razão justificativa, sob pena de parecer ser uma medida arbitrária.

Ou seja, só há justificação para se aceder a este benefício se houver uma contrapartida meritória, sendo esta constituída pela assumpção de uma vida pautada pelo máximo de privação e poupança a favor dos credores durante cinco anos.

Por isso, para encontrar os rendimentos com que os requerentes se hão-de governar cumpre partir do valor do salário mínimo nacional, que é o mínimo previsto por lei para viver ainda com dignidade, e acrescentar-lhe o que for necessário para que tal dignidade não seja quebrada face às características do agregado em questão.

Sendo dois os insolventes e também titulares dos rendimentos deve atribuir-se a cada um valor igual a um salário mínimo nacional, o que perfaz para ambos a quantia já mencionada de €950,00 euros.

De seguida, cumpre focar a atenção em dois aspectos.

Um tem a ver com as despesas de transporte no montante de €175,00 euros mensais.

Trata-se de uma despesa necessária, atinente ao exercício da profissão por parte da requerente, que se desloca da sua residência em Aveiro para o seu local de trabalho em Águeda.

Esta despesa, como resulta do acima mencionado, tem de acrescer às despesas necessárias ao sustento.

A outra questão respeita ao facto dos requerentes terem no seu agregado familiar um filho de maioridade, estudante universitário, que, naturalmente, é uma fonte de despesas.

Na mencionada alínea b), do n.º 3, do artigo 239.º (Cessão do rendimento disponível), do C.I.R.E., alude-se ao «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar», sem se definir o que seja «agregado familiar», sendo certo que não existe um conceito de «agregado familiar» unívoco na lei, variando de acordo com os fins tutelados por cada lei que usa o conceito.

O que fica afirmado é corroborado pelos seguintes dois exemplos.

Para efeitos do Código do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares, o agregado familiar é constituído, entre outros elementos, pelos cônjuges e os seus dependentes, sendo os dependentes os filhos, adoptados e enteados, menores não emancipados, bem como os menores sob tutela; bem como os filhos adoptados e enteados, maiores, e ainda aqueles que até à maioridade estiveram sujeitos à tutela de qualquer dos sujeitos a quem incumbe a direcção do agregado familiar, que, não tendo mais de 25 anos nem auferindo anualmente rendimentos superiores ao salário mínimo nacional mais elevado, tenham frequentado no ano a que o imposto respeita o 11.º ou 12.º anos de escolaridade, estabelecimento de ensino médio ou superior ou cumprido serviço militar obrigatório ou serviço cívico (cfr. artigo 13.º do CIRS).

Já para efeitos de atribuição do rendimento social de inserção ou de subsídio de desemprego o conceito de «agregado familiar» é muito mais amplo, pois, para além do requerente, integram o conceito o cônjuge ou pessoa em união de facto há mais de dois anos; parentes e afins maiores, em linha recta e em linha colateral, até ao 3.º grau; parentes e afins menores em linha recta e em linha colateral; adoptantes, tutores e pessoas a quem o requerente esteja confiado por decisão judicial ou administrativa de entidades ou serviços legalmente competentes para o efeito; adoptados e tutelados pelo requerente ou qualquer dos elementos do agregado familiar e crianças e jovens confiados por decisão judicial ou administrativa de entidades ou serviços legalmente competentes para o efeito ao requerente ou a qualquer dos elementos do agregado familiar (cfr. artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de Junho).

No entanto, apesar da variabilidade do conceito, afigura-se que um filho, ainda que maior, integrará sempre o conceito mínimo de agregado familiar desde que viva em economia comum com os pais e recaia sobre os pais a obrigação de o alimentar.

Coloca-se, porém, a questão de saber o que deve entender-se por «sustento» deste elemento do agregado familiar, isto é, se no sustento do filho devem integrar-se apenas despesas tais como alimentação ou vestuário ou se também devem ser levadas em linha de conta as despesas escolares.

Como a lei dispõe no artigo 1880.º do Código Civil, que os pais devem continuar a prestar alimentos aos filhos após estes atingirem a maioridade quando ainda não tenham completado a sua formação profissional, na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento ([2]), deve-se entender, por coerência do sistema jurídico, que o sustento do agregado familiar inclui também as despesas mínimas com a formação escolar de um filho.

Concluindo-se deste modo, vejamos agora se os apontados €425,00 euros mensais gastos em material escolar, didáctico e explicações poderá ser diminuído.

Afigura-se que sim.

Com efeito, estamos a lidar com aquilo que devem ser as despesas mínimas necessárias e não com despesas discricionárias, úteis ou até desnecessárias, que um estudante poderá fazer, consoante o dinheiro de que possa dispor.

Os sacrifícios, como acima se disse, têm de ser necessariamente recíprocos.

Ora, contabilizando a quantia de €75,00 euros mensais para propinas, na falta de concretização pelos requerentes de despesas concretas além das propinas, afigura-se que acrescendo a tal quantia a quantia de €250,00 euros mensais para outros gastos, é suficiente para satisfazer as necessidades mínimas ao nível de despesas escolares.

Decorre do exposto, que se afiguram aceitáveis como mínimas as despesas de €30,00 euros relativas ao condomínio; €550,00 euros atinentes à alimentação; €110,00 euros para despesas com electricidade, gás e água; €175,00 euros com transportes e €66,00 euros para outras despesas, que perfazem €931,00 euros, pouco menos que dois salários mínimos nacionais.

Somando mais das despesas escolares fixar-se-á o rendimento disponível para os credores na parte que exceda €1256,00 euros.

Porém, quando o filho deixar de integrar o agregado familiar dos pais ou concluir os estudos universitários o rendimento disponível para os credores será o que exceda dois salários mínimos nacionais.

III. Decisão.

Considerando o exposto:

1 - Julga-se o recurso parcialmente procedente e fixa-se o rendimento disponível de cada um dos devedores/insolventes, para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 239.º do C.I.R.E., como sendo integrado por todos os rendimentos que lhes advierem a qualquer título, com exclusão do correspondente ao salário mínimo nacional que seja legalmente determinado para cada ano, para cada um deles, perfazendo um salário mínimo para cada membro do casal, acrescidos de mais €350,00 (trezentos e cinquenta euros), enquanto o filho fizer parte do seu agregado familiar e até concluir a sua formação universitária.

2 - Custas pelos requerentes e pela massa insolvente na proporção do vencimento e decaimento, sendo o vencimento dos requerentes de 75% e o decaimento de 25%.


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Nos termos do n.º 7 do artigo 713.º do Código de Processo Civil elabora-se o seguinte sumário:

1. Por via da exoneração do passivo restante, nos termos dos artigos 235.º e seguintes do C.I.R.E., as dívidas são extintas, salvo as previstas no n.º 2 do artigo 245.º do mesmo diploma, o que constitui um sacrifício imposto inelutavelmente pelo Estado aos credores, o qual demanda, por sua vez, a assumpção de um comportamento similar por parte do devedor, retribuindo este com outro sacrifício efectivo e sério, de acordo com as suas capacidades económicas, através da cedência aos credores do rendimento disponível pelo prazo de cinco anos.

2. Na fixação do montante a ceder aos credores deve partir-se, por isso, do valor correspondente a um salário mínimo nacional, adicionando-se, de seguida, se for o caso, o valor de outras despesas que se mostrem imprescindíveis para garantir um «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar».

[1] «…o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o 'mínimo dos mínimos' não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo…» - ac. do TC n.º 96/2004 de 11-02-2004, DR, II série, de 1 de Abril de 2004.

[2] «Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete» - artigo 1880.º do Código Civil.

Alberto Ruço (Relator)
Judite Pires
Carlos Gil