Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
236/19.0YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
FINALIDADES
RECUSA
PRAZO RAZOÁVEL
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Data do Acordão: 11/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA - SECÇÃO CENTRA
Texto Integral: S
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: RECUSADO
Legislação Nacional: ART.ºS 1.º E 12.º, AL. E) DA LEI N.º 65/2003; ART.º 6.º, N.º 1 DA CONVENÇÃO EUROPEIA PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS
Sumário: I - O mando de detenção europeu (MDE) é uma decisão judiciária emitida por um Estado-membro da União Europeia (dito Estado da emissão), que tem como finalidade a entrega por outro Estado-membro (dito Estado da execução) de um cidadão para efeitos de procedimento criminal, cumprimento de pena ou medida de segurança privativa de liberdade - art.º 1.º, n.º 1 da Lei 65/2003.

II – Segundo o artigo 12.º deste diploma, constituem, entre outras, causas de recusa facultativa de execução do mandado, se “tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu” – alínea e).

III – A questão da prescrição é transversal a vários sistemas jurídicos e até a Convenção Europeia Para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais dispõe no artigo 6.º, n.º 1, que “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela”.

IV – Vivendo o requerido em Portugal há cerca de dez anos, tendo uma conduta conforme o direito, mostrando-se bem integrado, social e familiarmente e sendo o prazo de prescrição para os factos indiciados e imputados ao requerido, segundo o nosso ordenamento jurídico, de dez anos – n.º 1 do artigo 118.º, ambos do nosso do Código Penal – e quando os mesmos terão pretensamente ocorrido entre os dias 15 de agosto de 1991 e 5 de novembro de 1995, ou seja, há mais de 24 anos, existe fundamento para recusa facultativa de execução do MDE com base na sua prescrição.

Decisão Texto Integral:









            Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I – Relatório

          1. Requereu o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, nos termos do artigo 16º, nº 1, da Lei nº 65/03, de 23/08, a Execução de Mandado de Detenção Europeu emitido em 26 de março de 2019 pela Autoridade Judiciária do Reino Unido (Tribunal da Coroa de Swison), relativa ao súbdito britânico SB, filho de (...) e de (...), natural do Reino Unido, nascido em (...), de Nacionalidade Britânica, com o Passaporte n.º (...) e domicílio (...), a fim de ser entregue às autoridades Britânicas, com o fundamento de se encontrar indiciado pela prática de sete crimes de atentado ao pudor de menor de dezasseis anos de idade ocorridos entre os dias 15 de agosto de 1991 e 5 de novembro de 1995, concretamente por lhe ter tocado nos seios e vagina quando a mesma se encontrava na cama para dormir.

            2. Procedeu-se à audição do requerido nos termos do art° 18º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, tendo o mesmo declarado opor-se à execução do mandado, não renunciar ao princípio da especialidade e requerendo prazo para apresentar a sua defesa, tendo-lhe sido concedido o prazo de 10 dias - cfr Auto de Audição de Detido, do dia 17 de outubro de 2019.

            3. No decurso deste prazo fixado apresentou o requerido a sua defesa com os seguintes fundamentos:

           

            I – Da residência em Portugal

            1. O Requerido encontra-se no território nacional desde junho de 2010.

            2. Concretamente, o Requerido permanece legalmente e de forma ininterrupta durante um período de quase 10 anos em Portugal.

            3. Considerando que “Uma pessoa procurada é “residente” no Estado-Membro de execução quando tiver fixado a sua residência real nesse Estado-Membro e “encontra-se” aí quando, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração nesse Estado-Membro, criou laços com esse Estado num grau semelhante aos que resultam da residência; (…) cabe à autoridade judiciária de execução fazer uma apreciação global de vários dos elementos objectivos que caracterizam a situação dessa pessoa, entre os quais, nomeadamente, a duração, a natureza e as condições da sua permanência, bem como os seus laços familiares e económicos com o Estado-Membro de execução.”[1]

            4. O Requerido decidiu vir para Portugal para ter uma vida mais calma, próxima da Natureza.

            5. Primeiramente, esteve a viver em casa da sogra do irmão.

            6. Mudou de residência quando conheceu a atual companheira, com quem vive há aproximadamente 9 anos.

            7. A companheira tem uma quinta com uma grande área de terreno.

            8. A quinta foi afetada pelos incêndios, e é o Requerido quem faz a plantação de árvores, corte de lenha, limpezas no terreno, etc.

            9. Mais, o Requerido sempre trabalhou em oficinas de automóveis.

            10. Quando chegou a Portugal, trabalhou como mecânico numa oficina, com contrato de trabalho.

            11. Em consequência da crise económica que fustigou o país, ficou desempregado.

            12. Contudo, nos últimos anos começou a trabalhar por conta própria como trabalhador independente, também numa oficina de automóvel.

            13. Do ponto de vista social, o Requerido é visto pela comunidade como uma pessoa muito trabalhadora, pacífica, respeitadora e humilde, encontrando-se plenamente inserido no meio onde vive.

            14. Ou seja, estamos perante uma pessoa plenamente inserida do ponto de vista familiar e social.

            II – A existência de causa de recusa de execução do mandado de detenção europeu, doravante designado por MDE, concretamente da alínea e, do n.º 1, do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto

            15. A prescrição do procedimento criminal enquanto causa de recusa facultativa MDE pressupõe que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão dos mandados de detenção.

            Ora,

            16. No dia 26 de Março de 2019 pelo tribunal da comarca de Swindon, foi emitido um MDE, ao Requerido.

            17. Sabendo que, “o mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade”, nos termos do número artigo 1.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto.

            18. No caso em apreço, o Requerido encontra-se indiciado de, entre os dias 15 de agosto de 1991 e 5 de novembro de 1995, ter regularmente tocado nos seios e na vagina da sua enteada, nascida a (...) quando a mesma se encontrava na cama.

            19. Os factos descritos integram a prática de sete crimes de atentado ao pudor de uma rapariga de idade inferior a 16 anos, punido pela Secção 14(1) da Lei de Crimes Sexuais de 1956, com uma pena de prisão de até dez anos.

            20. O Requerido foi detido no dia 17 de Outubro de 2019, pelas 8h00, na localidade (...)

            21. No ordenamento jurídico português, os factos vindos a descrever encontram enquadramento legal no crime de abuso sexual de crianças, p.p. no número 1 do artigo 171.º do Código Penal, em que “quem praticar acto sexual de relevo com ou em menos de 14 anos, ou o levar

a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos”.

            22. Tendo em conta o âmbito da aplicação do MDE pode ser emitido: “por factos puníveis, pela lei do Estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver por finalidade o cumprimento de pena ou de medida de segurança, desde que a sanção aplicada tenha duração não inferior a 4 meses.”, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 65/2003, de 23 agosto.

            Contudo,

            23. O dever geral de executar mandados de detenção europeus, com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na Decisão-Quadro 2002/584/JAI, de 13 de junho, é limitada, nomeadamente por motivos de não execução facultativa.

            24. Assim, tendo em conta o caso concreto, conforme o disposto no artigo 12.º n.º 1 alínea e) da Lei 65/2003, de 23 de agosto, se “tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu”, a execução do MDE pode ser recusada.

            25. Na Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho, “A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu:

            4. Quando houver prescrição da ação penal ou da pena nos termos da legislação do Estado-Membro de execução e os factos forem da competência desse Estado-Membro nos termos da sua legislação penal.” (Artigo 4.º, n.º 4 da Decisão-Quadro supra referida).

            Ora vejamos,

            a) Da prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa

            26. Como já referido anteriormente, o Requerido encontra-se indiciado por factos que se passaram entre os dias 15 de Agosto de 1991 e 5 de Novembro de 1995, praticamente há 24 anos.

            27. Somente no dia 26 de Março do presente ano, foi emitido o MDE.

            28. À luz da lei portuguesa, “o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sob a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos:

             (…)

            b) dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas não exceda dez anos” _ alínea b) do número 1, do artigo

118.º do Código Penal. (sublinhado nosso)

            29. Ou seja, os factos que justificaram a emissão do MDE encontram-se prescritos de acordo com a lei portuguesa.

            30. Salienta-se ainda, o artigo 6.º da Convenção Europeia Para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, atento o direito a um processo justo e equitativo, implicando uma decisão em tempo útil, dificilmente conciliável com o enorme lapso temporal que mediou entre

1995 e 26 de Março de 2019 (correspondente à data de emissão do presente MDE).

            31. O enorme lapso temporal coloca em crise o exercício do direito de defesa.

            b) Da competência dos tribunais portugueses para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do MDE.

            32. Nos termos do artigo 5.º n.º 1, alínea c), do Código Penal, salvo tratado ou convenção em contrário, factos praticados fora do território português, é aplicável a lei portuguesa a qualquer agente, nacional ou não nacional, que tivesse cometido, entre outros, o crime previsto no

artigo 171.º do CP (ou seja, o crime de abuso sexual de crianças), desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de MDE, ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português.

            33. Estamos aqui perante o princípio da nacionalidade na aplicação da lei portuguesa.

            34. Quer isto dizer que, quando esteja em causa um crime de abuso sexual de crianças, a lei portuguesa é aplicável a qualquer agente, independentemente da sua nacionalidade, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não seja possível ao Estado Português satisfazer o MDE para entrega da pessoa que praticou o crime num país estrangeiro, por ocorrer, um qualquer motivo de recusa.

            35. Portanto, não há dúvida de que, sendo aplicável a lei penal portuguesa a factos alegadamente cometidos num país estrangeiro, neste caso no Reino Unido, relativos a um cidadão não nacional, mas residente no território português há já 10 anos, tem de ser competente a jurisdição

portuguesa.

            36. Verificamos assim que a prescrição da pena, de acordo com a lei portuguesa, constitui, como expressamente decorre da alínea e) do n.º 1, do citado artigo 12.º da Lei 65/2003, quando os tribunais portugueses, neste caso, sejam competentes para o conhecimento dos factos que

motivam a emissão do MDE, causa facultativa de recusa da execução do MDE.

            37. Dado que, quando se aplica qualquer dos motivos de não execução facultativa e estes foram transpostos para o direito nacional, a autoridade judiciária de execução pode recusar a execução do MDE em função das circunstâncias.

            III – Da não renúncia ao princípio da especialidade

            38. Nos termos do disposto no artigo 7.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, relativo ao princípio da especialidade “a pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma

infração praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu.”

            39. O Requerido não renuncia ao princípio da especialidade.

            Em conclusão,

            40. O Requerido não consente na sua entrega às autoridades judiciárias britânicas, opondo-se com fundamento na existência de causa de recusa de execução do MDE, mais concretamente à prescrição do procedimento criminal relativamente aos factos imputados em face da legislação Portuguesa, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, e ao seu impacto na decisão final a proferir, relembrando o facto de o Requerido residir em Portugal há

cerca de 10 anos.

            Nestes termos e nos melhores de Direito, requer a V/Ex. que a execução do mandado de detenção europeu seja recusada com fundamento na existência de causa de recusa, mais concretamente do artigo 12.º n.º 1, alínea e) da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto que aprova o regime

jurídico do mandado de detenção europeu (em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de junho).

            4. Notificado da oposição, veio o Ministério Público responder o que faz do seguinte modo:

            - Encontrando-se verificadas todas as circunstâncias previstas pela al. e) do nº 1 do artº 12º da Lei 63/2005, de 23 de agosto e, assim, os pressupostos formais da possibilidade de recusa de entrega do requerido às Autoridades do Reino Unido, e para além dos invocados no requerimento a que agora se responde, há a considerar que, de acordo com a lei portuguesa, o mais recente dos crimes em causa prescreveu há já praticamente quinze anos, o que equivale a dizer que entre aquele crime e a presente data já decorreu um lapso de tempo equivalente a duas vezes e meia o prazo normal de prescrição.

            - Por outro lado, embora se trate de factos objetivamente graves, como o são todos os

que atentam contra a autodeterminação sexual de menores, os que são imputados ao requerido, ainda que prolongados no tempo, não aparentam uma gravidade que, neste caso, justifique uma especial censura.

            - Acresce que nada consta dos autos que coloque em crise o facto por si alegado de, pelo

menos desde que passou a residir no nosso país, ter tido uma conduta conforme ao Direito, vivendo bem integrado social e familiarmente.

            - Finalmente, o MDE foi emitido, não para cumprimento de uma pena em que o requerido

já tenha sido condenado, mas, tão só, de uma acusação que contra ele foi deduzida.

            - Tudo ponderado, mesmo admitindo-se que o requerido possa ter cometido os factos pelos quais se encontra acusado, considerando o longuíssimo período de tempo decorrido sobre os mesmos, a circunstância do requerido se encontrar a residir em Portugal há já praticamente uma década, onde vive de forma social e familiarmente integrada e onde não há notícia de que entretanto tenha cometido crimes da mesma ou de diferente natureza, não nos repugna seja recusada a entrega do requerido SB às Autoridades do Reino Unido, nos termos do disposto pelo artº12º.1, al. e), da Lei 63/2005, de 23 de agosto, o que se consigna.

            II - Cumpre decidir:

            1. O mando de detenção europeu (MDE) é uma decisão judiciária emitida por um Estado-membro da União Europeia (dito Estado da emissão), que tem como finalidade a entrega por outro Estado-membro (dito Estado da execução) de um cidadão para efeitos de procedimento criminal, cumprimento de pena ou medida de segurança privativa de liberdade - art. 1.º, n.º 1 da Lei 65/2003.

            “O objectivo prosseguido pela União Europeia é o de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, conduzindo à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema assente nos princípios do reconhecimento mútuo das decisões dos vários países.

            Excepto quando exista motivo de recusa de execução, o MDE tem plena exequibilidade, não sendo admissível que se recoloquem os fundamentos de facto que o informam”[2].

            Este princípio do reconhecimento mútuo entre os Estados Membros que sustenta a exequibilidade do MDE emerge ainda do disposto no artigo 1.º, n.º 2 da Lei 65/2003.

            2. Nos termos do art. 21º, n.º 2 da Lei 65/2003 de 23.08, a oposição do requerido só pode ter por fundamento o erro na identidade do detido ou a existência de causa de recusa de execução do mandado de detenção europeu.

            Não está em causa a identidade da pessoa do requerido, pois não foi pelo mesmo suscitada nem dos autos resulta que tal erro exista.

            Já o artigo 11º da referida Lei 65/2003 de 23.08, enuncia os motivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu quando:

            a) A infração que motiva a emissão do mandado de detenção europeu tiver sido amnistiada em Portugal, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento da infração;

            b) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado-Membro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei do Estado-Membro onde foi proferida a decisão;

            c) A pessoa procurada for inimputável em razão da idade, nos termos da lei portuguesa, em relação aos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;

            (…)

            f) O facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu não constituir infração punível de acordo com a lei portuguesa, desde que se trate de infração não incluída no n.º 2 do artigo 2.º

            Por sua vez, ao abrigo do artigo 12º do mesmo diploma, constituem causas de recusa facultativa:

            (…)

            b) Estiver pendente em Portugal procedimento penal contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu;

            c) Sendo os factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu do conhecimento do Ministério Público, não tiver sido instaurado ou tiver sido decidido pôr termo ao respetivo processo por arquivamento;

            d) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado-Membro em condições que obstem ao ulterior exercício da ação penal, fora dos casos previstos na alínea b) do artigo 11.º;

            e) Tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;

            f) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado terceiro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei do Estado da condenação;

            g) A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa;

            h) O mandado de detenção europeu tiver por objeto infração que:

            i) Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves portugueses; ou

            ii) Tenha sido praticada fora do território do Estado-Membro de emissão desde que a lei penal portuguesa não seja aplicável aos mesmos factos quando praticados fora do território nacional.

            3. No vertente caso, não existem motivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu.

            Todavia, veio o requerido alegar a sua residência em Portugal bem como a integração no nosso país há cerca de dez anos e ainda a prescrição do procedimento criminal quanto aos factos indiciados e que lhe são imputados à luz das disposições penais portuguesas, mais alegando que o nosso país é competente para eventualmente conhecer ou ter conhecido de tais factos. Ou seja, vem o requerido alegar a recusa de execução de mandado pelo Estado Português, ao abrigo da alínea e), do supra citado artigo 12º:

            e) Tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;

            Ora, segundo o disposto no artigo 5.º n.º 1, alínea c), do Código Penal, os tribunais portugueses têm competência para o conhecimento de factos “Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 144.º-A, 144.º-B, 154.º-B e 154.º-C, 159.º a 161.º, 171.º, 172.º, 175.º, 176.º e 278.º a 280.º, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português”;

            O que motiva a emissão do MDE é a eventual prática pelo requerido do crime previsto no artigo 171.º do Código Penal, ou seja, o crime de abuso sexual de crianças. E o agente não só foi encontrado em Portugal como aqui vive há cerca de dez anos.

            O prazo de prescrição para os factos indiciados e imputados ao requerido, por aplicação do disposto nos artigos 171º, nº 1 e alínea b) do número 1 do artigo 118º, ambos do nosso do Código Penal, é de dez anos.

            O que significa que os crimes em causa prescreveram há já praticamente quinze anos. Como afirma o Ministério Público, “entre o mais recente dos crimes em causa e a presente data já decorreu um lapso de tempo equivalente a duas vezes e meia o prazo normal de prescrição”.

            4. Como afirma o Prof. Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime” pág. 699 “a limitação temporal da perseguibilidade do facto ou da execução da sanção liga-se a exigências político-criminais claramente ancoradas na teoria das finalidades das sanções criminais e correspondentes, além do mais, à consciência jurídica da comunidade”.

            E assim,

            «(…) o mero decurso do tempo sobre a prática de um facto não constitui motivo para que tudo se passe como se ele não houvesse ocorrido (…) porém, que uma tal circunstância é, sob certas condições, razão bastante para que o direito penal se abstenha de intervir ou de efectivar a sua reacção[3]».

            A natureza jurídica da prescrição, sua dinâmica processual, conflito de interesses em jogo (do arguido, da comunidade representada pelo Estado), os fins das penas e muitos outros (como a dignidade pessoal do arguido, a celeridade processual, o não arrastar do processo e da decisão, a segurança jurídica para o arguido), encontra-se bem documentada no ac. do TRL de 14.12.2011 proferido no proc. nº 712/00.9JFLSB-Q.L1-3, do qual colhemos as seguintes afirmações:

            I – No Estado Democrático de Direito, é dever estatal e, portanto, do Poder Judicial, conferir a devida eficiência ao Direito Penal, para que possa desenvolver com plenitude a sua missão fundamental de protecção social.

            II – Há ao lado do direito fundamental do arguido de se ver julgado em prazo razoável um direito fundamental da sociedade de obter o resultado deste julgamento em prazo que não torne inócua a tutela penal dos bens jurídicos que a incriminação da conduta almeja salvaguardar. A prescrição penal, resultante da demora na persecução penal.

            IX – A demora do processo penal, além dos funestos prejuízos para o arguido, abala a eficiência do Direito Penal, na medida em que frustra os seus principais objectivos, comprometendo a legitimidade social e a credibilidade do Poder Judicial ao disseminar um senso de descrédito na actuação da justiça penal.

            X – O dever de protecção jurídico-penal impõe ao Tribunal criminal a prestação de uma tutela judicial efectiva, consistente na apreciação da causa em tempo hábil e razoável.
            XI – Praticado o ilícito penal, nasce para o Estado, em nome da sociedade, o direito de punir o infractor. Este direito tem o seu exercício condicionado no tempo. Se dentro de certo lapso temporal, que varia em razão da pena máxima abstractamente prevista para o crime ou da pena concretamente aplicada na sentença, o Estado não exercer a sua pretensão punitiva ou executória, ocorre a prescrição, que é a perda do direito de punir ou executar a pena aplicada.
            XII – O instituto da prescrição funda-se no princípio da segurança jurídica e traduz instrumento jurídico destinado a reforçar o aspecto preventivo da pena e a evitar a eternização do clamor social em relação à prática delituosa, é a prescrição imprescindível ao Direito Penal de todos os Estados Democráticos de Direito, sendo admitida desde o berço das instituições jurídicas e assim exercida pelos povos antigos, com relevo especial entre os romanos, que conheciam as duas espécies de prescrição (da acção penal e da pena).

            XIV – A prescrição penal é um instituto que se vincula directamente ao direito fundamental ao prazo razoável do processo constitucionalmente reconhecido no nosso sistema.
            XV – A prescrição é matéria de ordem pública e interesse social, portanto, a qualquer tempo e grau de jurisdição, deve ser declarada, inclusive
ex officio, se bem que num Tribunal Superior, como o Tribunal de Relação, deve ter-se presente que, como regra, qualquer decisão que encerre “questão nova” não pode ferir um grau de jurisdição e a mesma deve ser tomada, livremente, pelo Tribunal de 1.ª instância, pois caso contrário tal decisão transformar-se-ia em decisão insindicável (cf. art. 32.º, n.º 1 da C.R.P.).

            XVI – Não pode pairar sobre o arguido a ameaça ad perpetuam do poder repressivo estatal.
            XVII – É inegável a importância da prescrição como instrumento de política criminal destinada a reforçar o aspecto preventivo da pena e impedir a eternização do clamor social em relação à prática delituosa. O tempo parece apagar todas as feridas, individuais ou sociais.
            XXI – Necessário se torna criar uma cultura de agilização, eliminando as práticas dilatórias e tratando o processo como um instrumento ético de pacificação social, que, portanto, precisa ter um curso abreviado.

            Significa tudo isto que o prazo de prescrição não pode nem deve eternizar um processo, com as consequências apontadas.

Estamos a falar do ordenamento jurídico português, em que o legislador impôs determinados prazos de prescrição, quer o prazo normal, quer as situações de suspensão da prescrição (artigo 120º do CP, quer os prazos de interrupção (artigo 121º, do CP e o prazo máximo, abrangendo todas aquelas situações – artigo 121º, nº 3, do CP.

           

            Estando em causa o cumprimento de um mandado de detenção europeu, com certeza que se coloca a questão de simplesmente fazer “tábua rasa “dos prazos de prescrição do nosso sistema jurídico e deixar a apreciação da questão apenas ao critério do país de emissão do mandado.

            Acontece que a questão da prescrição é transversal a vários sistemas jurídicos e até a Convenção Europeia Para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais dispõe no artigo 6º, nº 1, que “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela”[4].

            Como supra se assinalou, esta questão do decurso do tempo sobre os factos indiciados contra o requerido, não é objecto de uma recusa obrigatória mas apenas facultativa.

            Mas como também assinala o Ministério Público na sua resposta, “embora se tratem de factos objetivamente graves, como o são todos os que atentam contra a autodeterminação sexual de menores, os que são imputados ao requerido, ainda que prolongados no tempo, não aparentam uma gravidade que, neste caso, justifique uma especial censura”.

            Acresce que tudo indica que o requerido tem tido, desde que vive em Portugal, uma conduta conforme o direito, mostrando-se bem integrado, social e familiarmente.        

            E como resulta do mandado, este foi emitido, não para cumprimento de uma pena em que o requerido já tenha sido condenado mas tão só de uma acusação que contra ele foi deduzida.

            Significa tudo isto, face ao prazo já decorrido desde a data da prática dos factos que é exageradamente longo perante os prazos fixados pelo nosso sistema jurídico-penal para a prescrição do procedimento criminal, ao período de tempo em que o requerido já vive em Portugal (cerca de dez anos), a sua inserção no nosso país em termos familiares, laborais e sociais e não conhecimento de quaisquer factos ou condutas que atentem contra o normal viver de acordo com o direito, que se justifica a recusa do cumprimento do MDE ao abrigo do disposto no citado artigo 12º, alínea e), da Lei 65/2003 de 23.08.

            III - DISPOSITIVO:           

            Por todo o exposto, decide-se recusar a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido em 26 de março de 2019 pela Autoridade Judiciária do Reino Unido (Tribunal da Coroa de Swison), relativa ao súbdito britânico SB pelos factos contra o mesmo indiciados em tal mandado.

            Sem tributação.

            Após trânsito (devendo para o efeito ser notificado o requerido e o Ministério Público), comunique-se, no mais curto prazo, a decisão à autoridade judiciária de emissão – art. 28.º da Lei n.º 65/2003, de 23/8.


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               Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente no sistema Citius, pelos signatários

           

Luís Teixeira (Relator)

Vasques Osório (1º Adjunto)

              

Helena Bolieiro (2º Adjunto)

           

[1] V. 62008CA0066 Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 17 de 2008 (pedido de decisão prejudicial do Oberlandesgericht Stuttgart – Alemanha) – No processo relativo à execução de um mandado de detenção europeu emitido contra Szymon Kozlowski. Processo C-66/08.

[2] Ac. desta Relação de Coimbra de 08.08.2019.
[3] Mesmo autor, obra e pág.
[4] Sublinhado nosso.